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Crise e percalços da aferição de uma política pública: II

Crisis and obstacles in the evaluation of a public policy: II

SEÇÕES ESPECIAIS

A CONJUNTURA DAS ESCOLHAS PÚBLICAS

Crise e percalços da aferição de uma política pública - II

Crisis and obstacles in the evaluation of a public policy - II

Jorge Vianna Monteiro

Professor de políticas públicas da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (Ebape/FGV). Professor associado do Departamento de Economia da PUC-Rio. Endereço: PUC-Rio, Departamento de Economia - rua Marquês de São Vicente, 225 - Gávea - CEP 22453-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: jvinmont@econ.puc-rio.br

Um comentário estabelecido a partir do modelo analítico da public choice - uma vertente da moderna economia política que considera as políticas públicas resultado da interação social, sob instituições de governo representativo.

1. Introdução

Um sinal muito peculiar da fragilidade com que se lidou com a crise de 2008, especialmente pela débil capacidade de antecipá-la e mais ainda de entendêla em toda a sua extensão (Monteiro, 2011), é que, a posteriori, vão surgindo contribuições que interpretam a atuação contemporânea do governo sob perspectivas inovadoras (Posner e Vermeule, 2011; Nzelibe e Stephenson, 2010; Davidoff e Zaring, 2009).1 1 Mesmo a impropriedade da formação acadêmica que conceitua política macroeconômica, em um ambiente não intervencionista pode ser outro indicador dessa capacidade pouco apta a lidar com a crise (Monteiro, 2011: Nota do autor).

2. Novas tendências analíticas

A crise oferece a oportunidade para que os governos ampliem sua presença em várias frentes, mais especialmente em volume orçamentário (gastos, dívida, impostos) e regulatório (estabelecimento de novos e complexos blocos de regras que condicionam os mercados de bens e serviços). Em decorrência, observam-se impactos, tais como:

a relativa passividade do Congresso diante de uma crise resulta, em parte, da incapacidade de a escolha majoritária legislativa coordenar a formulação de políticas em situações de emergência e, assim, os legisladores tendem a ser condescendentes, durante e após a deliberação do Executivo (Posner e Vermeule, 2011:50).

por igual, com seu regime decisório não especializado, reativo e limitado, em sua cúpula, a 11 membros sem mandato representativo, o Judiciário mostra-se ainda menos alerta, diante das iniciativas de política econômica promovidas pelo Executivo.2 2 Contraponto importante a essa constatação é o fato de que, na crise de 2008, nos EUA, as operações de salvamento lá empreendidas "essencialmente cortaram os tribunais fora da análise [...] não havendo nenhuma única decisão judicial digna de nota" (Davidoff e Zaring, 2009:534).

Independentemente, presidente da República e burocratas formulam suas estratégias pressupondo que os demais agentes de decisão, em especial os legisladores (na coalizão e fora da coalizão majoritária) e o STF, aceitarão ou, pelo menos, aquiescerão quanto às políticas estabelecidas pelo Executivo.

É curioso que o debate econômico contemporâneo brasileiro tanto enfatize a qualidade dos resultados finais da política econômica, tais como o gasto público e as exportações, porém pouco dê atenção à qualidade dos processos e regimes, sob os quais se produz a política econômica.

Mais especificamente, que não se incorpore ao diagnóstico macroeconômico a significativa mudança com que operam certos segmentos críticos da economia nacional na atualidade:

a tolerância em face da forte concentração de mercado no setor bancário privado, sendo o setor uma fonte substancial de financiamento de campanhas eleitorais.

A elevada predisposição do governo em estender a setores críticos, como o automotivo e o exportador, proteções que correm uma gama de políticas que vai da desoneração tributária à sustentação de um limite mínimo para a cotação do dólar.

Tais atributos fazem com que a construção de estratégias por parte dos agentes privados ocorra de outra perspectiva do que se daria, caso a intervenção governamental fosse menor e qualitativamente distinta do que é correntemente observado. Em especial, esses agentes antecipam, com grande margem de certeza, que a proteção governamental requerida é bastante flexível, diante de suas demandas preferenciais, instrumentadas por via de lobbying, financiamentos de campanhas eleitorais e uso de espaço na mídia (Monteiro, 2007: cap. 6).

Esse é um dos temas centrais com que se confrontam políticos e policy-makers no rastro da crise de 2008: os segmentos beneficiários das ações anticrise promovidas pelos governos acabaram por obter uma vantagem competitiva, que se traduz pela elevada probabilidade de que, diante de um agravamento da crise, o socorro governamental virá na medida apropriada: afinal, esses são setores muito importantes para serem deixados à própria sorte. E mais: esses agentes privados incorporam tal atributo às suas estratégias de mercado e ficam mais propensos a se porem em sintonia com o governo "que estrutura transações para salvar o mercado, e tentar restabelecer a estabilidade por meio [dessas transações]" (Davidoff e Zaring, 2009:533).3 3 Tal como ocorreu no mercado financeiro, com a venda do Unibanco para o Itaú (novembro de 2008), por exemplo. É o governopromotor-de-acordos.

Em outra frente, há a perspectiva de que o impacto potencial do uso de medidas provisórias se manifeste na macroarticulação do controle do governo por via eleitoral com a separação de poderes.

O modelo de Nzelibe e Stephenson (2010) inova nessa perspectiva:

o eleitor fica melhor em bem-estar, sob um sistema de separação de poderes, em que a agenda de política econômica estabelecida pelo presidente da República tem a opção de ser submetida à aprovação junto à legislatura, do que sob um regime em que tal aprovação não é necessária ou possa ser protelada, tal qual ocorre como na emissão de MP.

Já em uma separação de poderes que possa ser ou não mandatória é ainda melhor para o bem-estar do eleitor do que uma separação de poderes em que toda a autoridade política, em um dado domínio de política econômica, esteja concentrada em um único departamento.

Os eleitores se dão melhor, caso eles possam utilizar estratégias com maiores nuances: quando o presidente da República tem autoridade unilateral nesse domínio de política, os eleitores têm apenas uma alavanca a seu dispor - seu apoio eleitoral ao agente com essa autoridade decisória. Em contrapartida, sob uma separação de poderes efetivamente mandatória (tanto o presidente quanto a legislatura devem concordar em adotar a nova política econômica), os eleitores dispõem de duas alavancas - seu apoio eleitoral a cada um desses dois agentes.

Em um regime em que o presidente deve buscar a permissão de outro departamento de governo e pode, porém, atuar unilateralmente, os eleitores alocam ao tomador de decisões primário diferentes níveis de apoio eleitoral, dependendo não apenas do resultado final da política econômica, mas também se esse departamento atua unilateralmente ou por delegação do outro departamento.

Agora, a separação de poderes opcional disponibiliza ao eleitor três alavancas com as quais ele pode calibrar suas estratégias eleitorais: apoio eleitoral ao presidente, no caso de ação unilateral, apoio eleitoral ao presidente, no caso de ação conjunta, e apoio eleitoral aos legisladores. Nesse sentido, a métafora de "governo-de-intermediários" é muito apta (Monteiro, 2007:27-28).

3. Conclusão

Não obstante as muitas instâncias em que a política econômica tramita possam, afinal, causar benefícios aos eleitores, tal complexidade institucional confronta o eleitor com custos muito peculiares (Nzelibe e Stephenson, 2010:623):

Na extensão em que a cadeia decisória se alongue, por exemplo, em razão da difusão de poder decisório, o eleitor tem maior dificuldade em alocar responsabilidades pelas decisões de política.

Esse envolvimento de um maior número de representantes eleitos em uma dada escolha pública habilita que os eleitores lancem mão de estratégias mais sofisticadas: eles passam a monitorar o resultado final de política, tanto quanto tentam acompanhar o processo decisório subjacente a esse resultado.

Com isso, a informação requerida torna-se mais onerosa, em quantidade e qualidade. Portanto, a intermediação pode, ao fim e ao cabo, levar a um enfraquecimento do controle eleitoral a que os políticos se sujeitam, elevando potencialmente o grau de coerção das políticas.

Essa circunstância leva a que o político tenha a possibilidade de revelar um comportamento que o protege ainda mais da visualização de suas ações e seus objetivos privados perante seus potenciais eleitores: ele pode, de fato, mascarar seu tipo "mau", atuando como um tipo "bom".

  • DAVIDOFF, S.; ZARING, D. Regulation by deal: the government's response to the financial crisis. Administrative Law Review, v. 61, n. 3, p. 463-541, Summer 2009.
  • MONTEIRO, J.V. Governo e crise: escolhas públicas, 2007-2011. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. No prelo.
  • MONTEIRO, J.V. Como funciona o governo: escolhas públicas na democracia representativa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
  • NZELIBE, J.; STEPHENSON, M. Complementary constraints: separation of powers, rational voting, and constitutional design. Harvard Law Review, n. 123, p. 618-654, Jan. 2010.
  • POSNER, E.; VERMEULE, A. The executive unbound: after the Madisonian republic. Oxford: Oxford University Press, 2011.
  • 1
    Mesmo a impropriedade da formação acadêmica que conceitua política macroeconômica, em um ambiente
    não intervencionista pode ser outro indicador dessa capacidade pouco apta a lidar com a crise (Monteiro, 2011: Nota do autor).
  • 2
    Contraponto importante a essa constatação é o fato de que, na crise de 2008, nos EUA, as operações de salvamento lá empreendidas "essencialmente cortaram os tribunais fora da análise [...] não havendo nenhuma única decisão judicial digna de nota" (Davidoff e Zaring, 2009:534).
  • 3
    Tal como ocorreu no mercado financeiro, com a venda do Unibanco para o Itaú (novembro de 2008), por exemplo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      Out 2011
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