Acessibilidade / Reportar erro

O papel da Crabi no assentamento dos ribeirinhos atingidos pela construção da hidrelétrica de Salto Caxias no estado do Paraná

El papel del Crabi en el asentamiento de los ribereños afectados por la construcción de la represa de Salto Caxias en el estado de Paraná

The role of the Crabi riverine settlement of affected by the construction of the dam of Salto Caxias in the state of Paraná

Resumos

Este artigo tem como objetivo discutir a forma com que o movimento social Comissão Regional dos Atingidos por Barragens do Rio Iguaçu (Crabi) atuou no assentamento dos sujeitos deslocados pela construção da hidrelétrica de Salto Caxias. Mediante entrevistas e dados secundários foi investigada a ampla participação da população neste movimento, o que se refletiu em melhores condições para o assentamento. O senso de luta coletiva fomentado pela criação e mobilização da Crabi permeou os processos de reconstrução da vida dos sujeitos deslocados pela Usina, e a efetiva participação deles fez com que fossem conquistadas melhores condições de enfrentamento da situação vivida.

movimentos sociais; Crabi; deslocamento compulsório; usinas hidrelétricas; assentamento


Este artículo tiene como objetivo discutir cómo el movimiento social Comisión Regional de los Atingidos por Presas del río Iguazú (Crabi) se presentó en el asentamiento de personas desplazadas por la construcción de la represa de Salto Caxias. A través de entrevistas y datos secundarios se determinó la amplia participación de la gente en este movimiento, que se tradujo en mejores condiciones para el asentamiento. El sentido de la lucha colectiva fomentado la creación y movilización de Crabi impregnaba el proceso de reconstrucción de las vidas de las personas desplazadas por la presa, con la participación efectiva de ellos conquistaron mejor posición para hacer frente a la situación vivenciada.

movimientos sociales; Crabi; desplazamiento obligatorio; presas hidroeléctricas; asentamiento


This article aims to discuss how the social movement Regional Commission of Dam Iguassu River (Crabi) served on the settlement of individuals displaced by the construction of the dam of Salto Caxias. Through interviews and secondary data we investigated the wide participation of the people in this movement, which resulted in better conditions for settlement. The sense of collective struggle fostered the creation and mobilization of Crabi permeated the process of rebuilding the lives of individuals displaced by the plant, with the effective participation of them had them conquered best position to cope with the situation experienced.

social movements; Crabi; compulsory displacement; hydroelectric power plants; settlement


ARTIGOS

O papel da Crabi no assentamento dos ribeirinhos atingidos pela construção da hidrelétrica de Salto Caxias no estado do Paraná

The role of the Crabi riverine settlement of affected by the construction of the dam of Salto Caxias in the state of Paraná

El papel del Crabi en el asentamiento de los ribereños afectados por la construcción de la represa de Salto Caxias en el estado de Paraná

Giuliano DerrossoI; Elisa Yoshie IchikawaII

IFaculdade União Dinâmica das Cataratas

IIUniversidade Estadual de Maringá

RESUMO

Este artigo tem como objetivo discutir a forma com que o movimento social Comissão Regional dos Atingidos por Barragens do Rio Iguaçu (Crabi) atuou no assentamento dos sujeitos deslocados pela construção da hidrelétrica de Salto Caxias. Mediante entrevistas e dados secundários foi investigada a ampla participação da população neste movimento, o que se refletiu em melhores condições para o assentamento. O senso de luta coletiva fomentado pela criação e mobilização da Crabi permeou os processos de reconstrução da vida dos sujeitos deslocados pela Usina, e a efetiva participação deles fez com que fossem conquistadas melhores condições de enfrentamento da situação vivida.

Palavras-chave: movimentos sociais; Crabi; deslocamento compulsório; usinas hidrelétricas; assentamento.

ABSTRACT

This article aims to discuss how the social movement Regional Commission of Dam Iguassu River (Crabi) served on the settlement of individuals displaced by the construction of the dam of Salto Caxias. Through interviews and secondary data we investigated the wide participation of the people in this movement, which resulted in better conditions for settlement. The sense of collective struggle fostered the creation and mobilization of Crabi permeated the process of rebuilding the lives of individuals displaced by the plant, with the effective participation of them had them conquered best position to cope with the situation experienced.

Key words: social movements; Crabi; compulsory displacement; hydroelectric power plants; settlement.

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir cómo el movimiento social Comisión Regional de los Atingidos por Presas del río Iguazú (Crabi) se presentó en el asentamiento de personas desplazadas por la construcción de la represa de Salto Caxias. A través de entrevistas y datos secundarios se determinó la amplia participación de la gente en este movimiento, que se tradujo en mejores condiciones para el asentamiento. El sentido de la lucha colectiva fomentado la creación y movilización de Crabi impregnaba el proceso de reconstrucción de las vidas de las personas desplazadas por la presa, con la participación efectiva de ellos conquistaron mejor posición para hacer frente a la situación vivenciada.

Palabras clave: movimientos sociales; Crabi; desplazamiento obligatorio; presas hidroeléctricas; asentamiento.

1. Introdução

O tema da instalação de usinas hidrelétricas está constantemente sendo trazido para o debate público, principalmente pelo projeto do Estado brasileiro em explorar esse tipo de geração de energia, aproveitando o potencial dos rios existentes. Juntamente com isso, questões sociais - como o impacto ecológico e o deslocamento das populações - são discutidas, relacionadas ao fenômeno de construção de um grande empreendimento como esse.

Desde o momento da concepção da ideia para a construção de barragens, problemas ambientais e sociais começam a surgir, pois uma grande área de terra (na maioria das vezes, produtiva) será alagada e todo sistema social e ecológico será destruído para sempre. Para Bermann (2003), do ponto de vista ecológico, as populações de animais, ecossistema, fauna e flora são alagados para abrigar o reservatório de água. Do ponto de vista social, as populações que ali residiam são compulsoriamente deslocadas e, junto com isso, são obrigadas a mudar hábitos, rotinas, funções produtivas e relações sociais.

Segundo Queiroz (2000:7), "o enchimento de reservatórios tem levado ao esvaziamento da vida de milhares de pessoas, a despeito das insuficientes e amiúde equivocadas ações compensatórias a elas dirigidas pelo poder público". A construção das usinas, na maior parte das vezes, provoca um deslocamento de famílias e de modos de vida para outras áreas territoriais, visando à formação do reservatório da futura hidrelétrica. Conforme dados apresentados por esse autor, as usinas construídas até hoje no país já deslocaram cerca de 200 mil famílias. Essa mudança não é apenas de espaço físico, mas principalmente altera as relações sociais, as ocupações laborais, as rotinas, as representações simbólicas e os vínculos mais profundos dos indivíduos.

No Paraná, a Usina Hidrelétrica Governador José Richa ou comumente chamada de Salto Caxias (ver localização na figura 1) teve o início das suas obras em janeiro de 1995 e já no mês de fevereiro de 1999 iniciou o seu funcionamento. Com relação às famílias deslocadas em função dela, destaca-se que no discurso da Companhia Paranaense de Energia Elétrica (Copel), proprietária da Usina, esta realizou uma ação inédita, fornecendo a opção de escolha aos atingidos da forma de indenização. Cerca de 600 famílias foram reassentadas em locais providos de infraestrutura e recursos financeiros para seu bem-estar e o restante (425) recebeu indenizações ou cartas de crédito, conforme sua escolha. Segundo Lima e colaboradores (2005), a Copel acompanhou a desocupação e financiou as despesas de mudança dessas famílias.


Uma parcela das famílias deslocadas foi reassentada em assentamentos nas cidades de Cascavel e Corbélia (distantes cerca de 100 km da Usina) e outro grupo, em cidades próximas à região da Usina. Muitas dessas conquistas estão relacionadas ao histórico de lutas que foi empreendido por essa população, juntamente com os movimentos sociais que participaram ativamente de todo o processo de resistência contra a construção da Usina. A influência desses movimentos junto às populações ribeirinhas foi de fundamental importância para a garantia das mínimas condições dos reassentamentos e das indenizações que a população recebeu.

Desta forma, este artigo tem por objetivo estudar o papel do movimento social conhecido como Crabi (Comissão Regional dos Atingidos por Barragens do Rio Iguaçu) no processo de reassentamento dos ribeirinhos deslocados compulsoriamente pela construção da Hidrelétrica de Salto Caxias (PR).

2. Os movimentos sociais

Neste artigo, destacamos o papel dos movimentos sociais nas lutas que foram empreendidas juntamente com as populações ribeirinhas, tendo êxito na ampliação dos direitos e espaços dessas populações, principalmente aquelas atingidas por deslocamentos compulsórios. Nesse sentido, procuramos compreender melhor de que forma os movimentos são constituídos e como eles fazem parte hoje das lutas sociais que se estabelecem no país. Segundo Coelho e Dellagnelo (2012), os estudos sobre a resistência a práticas hegemônicas de organizar vêm surgindo, gradativamente, nos estudos organizacionais, e daí a importância de se discutir o papel dos movimentos sociais nesse contexto.

Para Melucci (1989), movimentos sociais são algo muito difícil de definir. Segundo ele, os diferentes autores tentam isolar alguns aspectos empíricos dos fenômenos coletivos, mas como cada qual acentua características diferentes, muitas vezes existem mais definições empíricas do que conceituações analíticas. Assim, organizações de protestos e movimentos sociais são as mesmas coisas? Como saber se há movimentos por trás desses protestos? Como diferenciar uma greve sindical de uma mobilização contra armas nucleares? São perguntas realizadas pelo autor, às quais ele responde dizendo que isso depende do sistema de referências de cada ação. Essas referências são baseadas na solidariedade, no conflito e no rompimento dos limites do sistema em que ocorre a ação. São essas as bases para se entender conceitualmente um movimento social. Assim, conflito pode ser entendido como "uma relação entre atores opostos, lutando pelos mesmos recursos (...), a solidariedade é a capacidade dos atores partilharem uma identidade coletiva (...) e os limites de um sistema indicam o espectro de variações tolerado dentro de uma estrutura existente" (Melucci, 1989:57).

Uma das autoras que têm trabalhado bastante essa questão é Gohn (2011), para quem os movimentos sociais são ações sociopolíticas levadas a cabo por diversos atores sociais coletivos, que pertencem a camadas sociais diferentes e que se articulam em diferentes cenários da conjuntura política e socioeconômica do país. Para essa autora, essas ações se estruturam a partir de litígios, conflitos e disputas vivenciadas por esses grupos, que se identificam entre si e com a causa, pela força do princípio de solidariedade que os une e pela base cultural e política compartilhada pelo grupo em espaços coletivos não institucionalizados.

A literatura mostra que os movimentos fazem parte das mudanças sociais e da história de qualquer país, acompanhando as transformações das forças sociopolíticas e dos projetos políticos que constroem a história de uma nação. No caso brasileiro, esses movimentos passaram por uma mudança na atuação dos militantes e das causas que esses movimentos passaram a representar, principalmente a partir dos anos 1990. Antes desse período, prevaleciam ideias que davam suporte ao movimento de redemocratização por que o país passava. Com a democracia, os movimentos sociais no país ganham mais espaço e suas reivindicações passam a ser variadas, com aspectos relacionados às transformações do trabalho e à globalização (Gohn, 2011).

Segundo Gohn (2011), nesse período, tanto o mundo como nossa cultura transformaram-se, ganhando aspectos novos, baseados numa visão de direitos sociais coletivos e cidada-nia coletiva de grupos sociais oprimidos e/ou discriminados. Hoje, os movimentos apresentam suas questões de lutas mais voltadas à situação da exclusão social do que antigamente. As causas defendidas estão relacionadas com o mundo vivido pelas pessoas, criando movimentos coletivos para articular lutas relacionadas a seus próprios projetos. Ou seja, hoje os movimentos estão mais vinculados a um agir coletivo, próprio desta época, do que a pressão ou pseudonegociações, como eram nos anos 1970 e 1980 no Brasil.

Conforme afirma Scherer-Warren (2011), a categoria do sujeito popular, para uns, e de ator social, para outros, passa a substituir a categoria de classe social, bem como a de movimento popular e/ou de movimento social substitui a de luta de classe, significando que, em lugar da tomada revolucionária do poder, poder-se-ia pensar em transformações culturais e políticas substantivas a partir da cotidianidade dos atores envolvidos. Para a autora, a ideia diretriz dos novos movimentos sociais é de que eles almejam atuar no sentido de estabelecer um novo equilíbrio de forças entre Estado (aqui entendido como o campo da política institucional: do governo, dos partidos e dos aparelhos burocráticos de dominação) e sociedade civil (campo da organização social, que se realiza a partir das classes sociais ou de todas as outras espécies de agrupamentos sociais fora do Estado como aparelho), bem como no interior da própria sociedade civil nas relações de força entre dominantes e dominados, entre subordinantes e subordinados.

Entretanto, percebemos que, quando falamos em movimentos sociais, não existe uma uniformidade nos movimentos existentes, ou seja, cada movimento pode assumir uma forma particular de estruturação. De maneira geral, no entanto, para Gohn (2011:160), a análise da estrutura dos movimentos sociais pode ser avaliada através de alguns itens como: a necessidade para que haja uma demanda de luta; a origem social (classes e camadas) dos participantes; o princípio articulatório interno (bases demandatárias); a análise do cenário político e a análise de suas redes e articulações; a ideologia ou o conjunto de crenças, valores e ideais que fundamentam suas reivindicações; o conjunto de práticas sociais configuradas pelo seu projeto do movimento; a organização do movimento (formal ou informal); o conjunto de ações diretas e discursos; o projeto sociopolítico ou cultural; a identidade do movimento e, por fim, dos opositores, sujeitos que detêm o poder sobre o bem demandado.

Amenta e colaboradores (2010), em sua análise da conjuntura norte-americana, afirmam que na última década tem havido uma extensa pesquisa sobre as consequências dos movimentos sociais. Em sua análise, esses movimentos têm se mostrado politicamente influentes de várias maneiras, e especialmente os movimentos de protesto têm ajudado a definir agendas políticas, ganhando destaque nesse contexto.

De certa forma, Bebbington e colaboradores (2008) compartilham das ideias expostas até aqui, mas eles chegaram à conclusão de que os movimentos sociais têm procurado muito mais mudanças nos arranjos de governança do que nos processos econômicos, ou seja, sua luta é muito mais no sentido da inclusão e da participação na tomada de decisões, planejamento local e formação de políticas, do que na efetiva transformação econômica dos que estão atrelados a eles.

Ao descrever pesquisas que trabalham com as ações de vários movimentos sociais na América Latina, principalmente na área rural, Bebbington e colaboradores (2008) afirmam que, apesar das importantes vitórias dos movimentos sociais, as mudanças institucionais ocorridas em consequência delas pouco modificaram a situação de pobreza e exclusão, principalmente nas regiões rurais da América Latina. Eles acrescentam - e nesse ponto concordam com os diversos autores aqui citados - que as características dos movimentos se alteraram muito, em razão de que há aqueles que buscam soluções mais radicais, em detrimento daquelas consideradas reformistas, prosseguindo em confrontos táticos em vez de serem conciliadores. Para os autores, essas diferentes características fazem com que alguns movimentos sociais tenham mais abertura e sucesso no enfrentamento de questões políticas, mas também no alcance de ganhos econômicos dos atores envolvidos.

Em termos específicos dos movimentos sociais contra a construção de usinas hidrelétricas, Rebouças (2000) afirma que, a despeito da diversidade de dinâmicas dos movimentos contra barragens que eclodiram em diferentes regiões brasileiras, pode-se reconhecer a conquista de importantes espaços políticos na relação do setor elétrico com as comunidades ribeirinhas, traçando uma história que partiu da total exclusão desses grupos até a sua participação na mesa de decisões sobre referidos projetos. Assim, vemos que os movimentos sociais representam papéis significativos na criação de políticas públicas e na luta por seus direitos, e, por outro lado, elas acabam influenciando a forma como os indivíduos vivenciam o momento de grande mudança, tendo implicações, inclusive, em seu processo identitário.

Jatobá e colaboradores (2009) afirmam que tais movimentos são uma manifestação do que chamam de "ecologia política". Citando autores tais como Watts, Blaikie, Bunker, Skocpol e Mann, Jatobá e colaboradores (2009) afirmam que a ecologia política identifica-se com o contexto de injustiça social que caracteriza os países em desenvolvimento, e sua principal estratégia de ação são os movimentos socioambientais. Esses movimentos originaram-se nas manifestações de grupos sociais em contestação a casos, geralmente locais, de ameaças à biodiversidade. Entre essas manifestações, os movimentos dos atingidos por barragens se enquadram.

Para Scherer-Warren (2011), a organização coletiva por meio dos movimentos sociais, resultante dos movimentos de resistência à construção das barragens, pode trazer reflexos positivos na reestruturação de espaços sociais decorrentes do processo migratório. Sob esse enfoque, Bermann (2003) aborda que as criações de diversos movimentos sociais contribuíram para ampliar essas discussões e avançar nas pequenas conquistas que as populações atingidas tiveram relacionados aos empreendimentos hidrelétricos.

Historicamente, podemos citar a obra da usina hidrelétrica de Itaipu, com mais de 40 mil pessoas atingidas, e a criação do Movimento dos Agricultores Sem Terras do Oeste Paranaense (Mastro), no final dos anos 1970, como a representante da gênese desse processo. Isso foi ampliado, na mesma época, pela criação, na região fronteiriça entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, da Comissão Regional de Atingidos pelas Barragens do Rio Uruguai (Crab). A atuação do Movimento Nacional de Atingidos por Barragens (MAB), em anos mais recentes, evidencia que os problemas, as dívidas e os riscos de comprometimento ambiental apenas se ampliaram (Bermann, 2003).

No entanto, o que se pode notar da literatura sobre os movimentos sociais contra a construção de hidrelétricas (Rebouças, 2000; Sevá Filho e Pinheiro, 2006; Pinheiro, 2007; Jeronymo, 2007; Rampazo, 2009) é que, quando há vitórias, elas se referem basicamente ao direito de ressarcimento em relação às terras perdidas por parte de uns poucos, em detrimento da maioria. Depois que esse ressarcimento ocorre, normalmente a situação da população atingida pouco se altera - na maioria das vezes, piora - e essa situação corrobora a afirmação de Bebbington e colaboradores (2008) de que as mudanças institucionais ocorridas em consequência dos movimentos sociais pouco modificam a situação de pobreza e exclusão, principalmente nas regiões rurais. Veremos nos próximos itens se foi o que aconteceu na região de Salto Caxias.

3. Percurso metodológico

A presente pesquisa é de abordagem qualitativa. Para Minayo (2001), a pesquisa qualitativa é a que consegue transcrever o dinamismo da vida social e coletiva e seus significados, que são seu próprio fundamento, afinal, sem interpretação e significado, não há ação social.

Com relação ao tipo de estudo desta investigação, podemos classificá-lo como pesquisa descritiva. Segundo Triviños (1987), na pesquisa descritiva, o foco essencial é compreender as comunidades por meio dos seus indivíduos, dos traços característicos, dos problemas vivenciados pelos indivíduos e dos valores que permeiam suas realidades.

Em termos de coleta de dados, nesta investigação, em primeiro lugar foram utilizados dados secundários. Isso foi no sentido de colher informações de todo o contexto de construção da hidrelétrica, como fatores históricos, sociais e econômicos da região, e também sobre a história de lutas do povo durante a construção de Salto Caxias. Foram utilizados documentos, atas de reuniões dos moradores e da Crabi, jornais e periódicos da época da construção.

Os dados primários foram coletados por meio de entrevistas. As entrevistas foram realizadas durante o mês de março de 2012, após quase 10 anos do estabelecimento do reassentamento dos ribeirinhos deslocados compulsoriamente pela construção da usina de Salto Caxias, em um contexto em que grande parte dos moradores já se encontrava integrada à estrutura local, fazendo parte do município de Cascavel (PR).

Entrevistamos, em primeiro lugar, sujeitos que se relacionaram com a construção do empreendimento para avaliar as percepções a respeito dos movimentos sociais, das populações ribeirinhas e do resultado da construção da hidrelétrica para os municípios atingidos. Assim, entrevistamos o representante da Companhia Paranaense de Energia Elétrica (Copel) na cidade de Capitão Leônidas Marques, sede da hidrelétrica, o prefeito da cidade de Capitão Leônidas Marques no período da implantação da hidrelétrica e o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da região, que originou a criação da Crabi, nos municípios atingidos. Infelizmente, não conseguimos encontrar para entrevistas o coordenador da Crabi da época das negociações com a Copel, em virtude do fim do movimento na região.

Com os ribeirinhos foi realizada entrevista de história oral, levando em consideração a perspectiva de compreender historicamente o processo de implantação da usina hidrelétrica dentro do contexto de vida. Alberti (2008:18) define história oral como um tipo "de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica etc.) que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do objeto de estudo". Além disso, para Ichikawa e Santos (2006:191), o pesquisador que trabalha com história oral muitas vezes se apoia na tradição, nas ideias, nos valores que estão nele mesmo. Nos trabalhos de pesquisa fundamentados em narrativas históricas, o pesquisador é levado, então, "a afastar-se de interpretações fundadas na rígida separação entre sujeito e objeto de pesquisa e buscar caminhos alternativos de interpretação".

Os ribeirinhos entrevistados foram aqueles que passaram pelo deslocamento compulsório em função da construção da hidrelétrica e hoje residem no reassentamento São Francisco de Assis, localizado entre as cidades de Cascavel e Corbélia, no Oeste do Paraná. No total foram realizadas 12 entrevistas de história oral com os moradores e neste trabalho utilizamos seu primeiro nome para identificar suas falas. Os sujeitos da pesquisa foram escolhidos com a técnica da bola de neve, em que um sujeito entrevistado indica outro, e o único critério para a entrevista foi o fato de ter sido assentado, em função da perda de terras por causa da construção da usina de Salto Caxias.

Na fase de interpretação das narrativas, caminhamos tanto na direção do que era homogêneo quando no que se diferenciava dentro das narrativas. Gomes (1993) aborda que a análise e a interpretação dentro da perspectiva de pesquisa qualitativa não têm como finalidade contar opiniões ou pessoas, têm seu foco na exploração do conjunto de opiniões e representações sociais sobre o tema que se pretende investigar. Ou seja, tem-se interesse na dimensão sociocultural das opiniões e representações de um grupo que tem características e costuma ter pontos em comum e ao mesmo tempo apresenta singularidades próprias da biografia de cada interlocutor. Assim, os resultados da pesquisa foram expressos em descrições e narrativas, ilustradas com as declarações das pessoas e dos dados secundários investigados, para dar o fundamento concreto necessário.

4. A colonização do Oeste e Sudoeste do Paraná e a construção da Usina Salto Caxias

A colonização dessa região foi feita basicamente por colonos vindos do Sul do Brasil, marcado por conflitos e predominância da mestiçagem. Em função de ser uma região de fronteira, o governo federal criou a Colônia Agrícola Nacional General Osório (Cango), compreendendo uma faixa de 60 km da fronteira. Essa instalação contribuiu para a ocupação da região Sudoeste do Paraná nos anos 1970. A síntese da história da região de Salto Caxias pode ser observada no quadro 1, e a descrição dos acontecimentos virá a seguir.


No governo de Getúlio Vargas começa uma campanha para a colonização e o aumento das fronteiras agrícolas do país, chamada "Marcha para o Oeste", buscando ampliar as áreas de agricultura, trazendo força de trabalho para essas regiões. Com isso, o objetivo era o de ampliar a agricultura extensiva em regiões de terra fértil, uma vez que as regiões urbanas cresciam e necessitavam do aumento da produção de alimentos no país. Com a campanha, Vargas pretendia preencher vazios demográficos que existiam na região Oeste do Brasil, principalmente por serem áreas de fronteiras de países, como com a Argentina e o Paraguai (Gomes, 1987).

Segundo Gomes (1987), nesse movimento, o governo Vargas cria, em 1943, a Cango, que tinha o objetivo de ocupar uma extensão de terras de 60 quilômetros de fronteira, dos estados de Santa Catarina e Paraná. Ao chegar à Cango, o agricultor recebia de 10 a 20 alqueires de terra, casa, ferramentas, sementes, assistência dentária e médico-hospitalar. Assim, em poucos anos essas áreas territoriais cresceram e receberam um grande contingente populacional. A Cango era a principal instituição da região, sendo responsável pela renda da maior parte do povoado que ali residia.

O único item que a Cango não oferecia para as pessoas que decidiram se fixar na região, segundo Gomes (1987), era a documentação definitiva das terras em que eles estabeleceram suas plantações. Isso fez com que se gerasse uma série de conflitos e problemas entre os moradores e os proprietários formais das terras. Esse conflito eclodiu no dia 10 de outubro de 1957 e ficou conhecido como a Revolta dos Posseiros, movimento no qual aqueles que estavam de posse das terras reivindicavam seus direitos de propriedade. Nessa época, o levante foi amplamente divulgado pela imprensa nacional e ficou conhecido como a Revolta de 57. Em 11 de outubro de 1957, a população conseguiu expulsar a Clevelândia Industrial e Territorial Ltda., a Companhia Comercial Agrícola e a Companhia Apucarana, empresas do ramo imobiliário que exigiam e se declaravam os proprietários das terras utilizadas, e, após uma longa luta de confrontos físicos e judiciais, foi concedida a vitória aos posseiros, que tiveram suas terras reconhecidas.

Na visão de Battisti (2006), no Sudoeste do Paraná, resolvidas as questões da posse da terra através de conflito aberto, inclusive armado, entre agricultores e empresas colonizadoras, iniciou-se o processo de modernização da agricultura que se constituiu, basicamente, na mudança da base tecnológica orientada pelo capital industrial. Este, a partir da cidade, absorve e recria o campo com outros significados, transformando a produção agrícola em um setor da produção industrial subordinada aos seus imperativos e submetida às suas exigências.

Para Santos (2008), a modernização tecnológica da agricultura no Sudoeste do Paraná provoca alterações em sua configuração territorial e no ritmo das mudanças. Possibilita repensar o espaço em rede, verificando o processo de exclusão e/ou inclusão dos diferentes atores sociais em um sistema global. Todavia, a tecnificação das relações de trabalho no campo provoca a inserção instantânea em um sistema mundializado, ao mesmo tempo que essas condições materiais (ou a falta delas) provocam a exclusão de muitos agricultores desse sistema. Pode-se afirmar, utilizando essa lógica, que tanto os lugares como as pessoas são incluídos e excluídos da constituição das redes de produção/comercialização agrícola.

Nos anos 1970, com a utilização de insumos modernos e técnicas avançadas de plantio e cultivo, a região passou a sofrer alterações em seu perfil produtivo, voltando-se para a produção de culturas de exportação (soja, milho e trigo). Uma economia agrícola tradicional passou então por uma transformação industrial no meio urbano e uma acelerada industrialização do campo, impulsionada por tecnologias avançadas. A formação da renda agrária possibilitou, a partir dos anos 1980, a formação, organização e estruturação do setor urbano.

A literatura mostra que, mesmo com esse movimento de modernização da agricultura, as lutas pela posse da terra continuaram na região. Segundo Battisti (2006), a luta pela terra, no Sudoeste do Paraná, reiniciou-se de forma sistemática em 1983, quando 650 famílias de "sem-terra" das regiões Sudoeste do Paraná e Oeste de Santa Catarina ocuparam 4 mil hectares de terras da "Fazenda Annoni" - localizada no município de Marmeleiro, na divisa com o estado de Santa Catarina. A terra estava improdutiva, após a extração de quase toda a madeira pelos proprietários que residiam no Rio Grande do Sul. No confronto entre jagunços e ocupantes, um sem-terra foi assassinado, fortalecendo a luta, e cujo desfecho foi o assentamento dos ocupantes.

Em 1984 e 1985, ainda segundo Battisti (2006), o Mastes, já estruturado e atuante em nove municípios da região, coordenou grandes manifestações - atos públicos e passeatas - seguidas de ocupações de terra e acampamentos, envolvendo 1.881 famílias de sem-terra - em torno de 10 mil pessoas. Os sem-terra, na busca de seu "espaço vital", enfrentaram o Estado e os latifundiários, resistindo em acampamentos improvisados durante meses e, até, anos. Em 1986, por determinação nacional, o Mastes incorporou a seu plano de ação a tarefa de elaborar propostas para a Constituinte, o que culminou com a emenda popular a favor da Reforma Agrária, contendo mais de um milhão e meio de assinaturas. A estratégia de ocupar e resistir - implementada a partir de 1987 - forçou o Estado a agilizar as desapropriações nas áreas conflituosas, derrubando a proposição do governo de que quem não ocupa é assentado.

Na visão de Gohn (2011), o recrudescimento da luta no campo nos anos 1990, período em que centenas de trabalhadores foram mortos em conflitos pela posse da terra, a maioria deles assassinados, alcançou a mídia nacional. A matança de 19 sem-terra no sul do Pará, em 1996, foi manchete nos principais jornais do mundo. Os conflitos de Pontal do Paranapane-ma/SP ganharam, nesse período, as manchetes dos principais jornais e notícias do país. Isso, aliado ao aumento da violência urbana, gerada pelo desemprego, levou a sociedade brasileira, de modo geral, a apoiar a luta dos sem-terra pela reforma agrária, na esperança de fixar o homem no campo, diminuir a pobreza nas cidades e diminuir a violência.

Juntamente com todo este processo de luta por terras que acontecia nas zonas rurais da região, vemos a progressão da urbanização das cidades. Na visão de Santos (2008), em poucas décadas, o Sudoeste do Paraná é colonizado efetivamente e se transforma. As características de povoamento são expressas em sua territorialização: pequenas propriedades; trabalho familiar; hábitos culturais dos descendentes de alemães, italianos e poloneses, como dança e comidas típicas (como a polenta); exclusão territorial etc. Enfim, um território que atende às demandas do esgotamento/fracionamento/concentração das terras do Rio Grande do Sul e geopolíticas e de urbanização/industrialização da região Sudeste do Brasil. Ou seja, a região foi definida em virtude de fatores econômicos, políticos e culturais de outras regiões, cujas populações, expulsas de seu território original, foram também testemunhas de outros conflitos que se armaram no Sudoeste do Paraná, devido às condições com que essa região foi colonizada.

É nesse contexto histórico que acontece a construção da usina de Salto Caxias. A região da Usina é formada por nove municípios. Ao norte, na margem direita do rio Iguaçu, estão localizados os municípios pertencentes à região Oeste do Paraná, a saber: Boa Vista da Aparecida, Capitão Leônidas Marques, Três Barras do Paraná e Quedas do Iguaçu. Na margem esquerda, têm-se os municípios pertencentes à região Sudoeste: Boa Esperança do Iguaçu, Cruzeiro do Iguaçu, Nova Prata do Iguaçu, Salto do Lontra e São Jorge do Oeste. A Usina de Salto Caixas é a mais importante das operadas pela Copel, possuindo uma capacidade de 1.240 MW, sendo situada no rio Iguaçu. A previsão inicial da operadora era a construção de duas hidrelétricas para o trecho do rio de Salto Osório até Salto Caxias, mas, após avaliação de rentabilidade, optou-se pela construção de apenas uma delas. As obras de Salto Caxias iniciaram-se em janeiro de 1995 e no mês de fevereiro de 1999 a hidrelétrica passou a operar. O complexo também é chamado por Usina Governador José Richa e garante à Copel a autossuficiência no abastecimento do seu mercado consumidor até a metade da próxima década (Copel, 2011).

Segundo Parmigiani (2006), os primeiros boatos sobre a construção da nova usina no ano de 1988 mobilizaram os sindicatos dos trabalhadores rurais dos municípios de Nova Prata do Iguaçu, Dois Vizinhos, Realeza, Capitão Leônidas Marques, Boa Vista da Aparecida, Capanema, Planalto e Três Barras do Paraná, que organizaram e encaminharam uma carta aberta à população e às autoridades do Estado com as principais questões sociais que iriam decorrer a partir da obra e trazendo o posicionamento contrário com relação à instalação deste empreendimento.

No ano de 1990 foi realizado um seminário com a participação de representantes das comunidades atingidas para avaliação do empreendimento. Sua conclusão foi a elaboração de uma carta enviada à Copel, na qual as comunidades deixam clara sua posição contrária à obra e contendo a ressalva de que a barragem só seria construída com a resolução de todos os problemas sociais que foram levantados durante o seminário. Como resposta a essa carta, a Copel realiza um encontro com os prefeitos e sindicatos locais onde ela reafirma os propósitos da construção e os benefícios que a barragem trará para a região em geral. Juntamente com o referido encontro, a empresa começa uma grande campanha publicitária, nos veículos de comunicação, com líderes da região para ganhar adesão da população à obra (Parmigiani, 2006).

Essa postura dos agricultores e da população local foi provocada muito pelo contato que eles estavam estabelecendo com os movimentos sociais (o Crabi e também o MAB) e pelas experiências de outras localidades em que eles tiveram contato, conforme traz Parmigiani (2006:18):

Tendo em mente a experiência de Salto Segredo, onde muitas promessas não foram cumpridas, os agricultores exigiram, ainda, um compromisso por escrito, assinado pelo presidente da Copel e pelo governador do Estado. O representante da Copel, entretanto, apenas externou disposição da empresa em "trabalhar de acordo com a lei"; e "a lei", neste caso, dava um prazo de até cinco anos para o pagamento das indenizações. O impasse estava estabelecido e a reunião não representou, portanto, um avanço concreto para a sua solução, ainda que representasse, na prática, o reconhecimento pela Copel da legitimidade da Crabi como interlocutora.

No dia 25 de julho de 1993, a Crabi realiza uma grande manifestação com a participação de cerca de 2 mil pessoas e a presença de vários deputados federais e estaduais, entidades de apoio ao movimento e atingidos por outras barragens. O evento foi ignorado pela Copel, que tenta reiniciar os trabalhos da obra, levando máquinas para a perfuração da rocha no local da barragem. Em assembleia, os agricultores decidem, em represália, ocupar a área e acampar no canteiro de obras, apreendendo máquinas e carros da empresa e impedindo que os trabalhos prosseguissem. No 30ºdia de ocupação, o acampamento foi cercado pelo Grupo de Comando de Operação Especial da Polícia Militar, estabelecendo-se o confronto (Pagliarini Júnior, 2009).

Segundo Parmigiani (2006), como resultado da ocupação, a Copel aceita que a Crabi passe a integrar o Grupo de Estudos Multidisciplinares (GEM) com representantes de todas as comunidades que seriam atingidas. Esse grupo, formado logo no início dos trabalhos na região, era encarregado das decisões sobre os problemas ambientais e era composto por representantes da Copel, das prefeituras locais e um representante da comunidade atingida, escolhido, entretanto, pela Copel. No GEM, os representantes dos atingidos, eleitos em assembleias, exigem da Copel que todas as negociações sobre as indenizações e os reassentamentos fossem tratadas coletivamente, com a intermediação da Crabi.

Com isso, conforme explica Parmigiani (2006), em 15 de dezembro de 1993, a Copel e a Crabi assinam um Termo de Compromisso que incorpora a proposta dos atingidos e fixa metas complementares aos "Princípios, Diretrizes e Critérios para o Remanejamento da População Atingida". Entre outras propostas, essas metas definem um período para as desapropriações; fixam um calendário e critérios para o início das indenizações; garantem o reassentamento para pequenos proprietários (de até cinco alqueires), arrendatários, meeiros, posseiros e, o mais importante, estabelecem que todas as indenizações e os reassentamentos deveriam ser efetuados antes da construção da barragem.

Entretanto, conforme aborda Parmigiani (2006), o atraso de quase um ano no cronograma de indenizações provocou, no dia 14 de março de 1995, uma nova mobilização da Crabi, quando mais de 4 mil atingidos ocuparam o canteiro de obras da barragem. A partir dessa mobilização, a Copel, correndo contra o atraso, cria um edital para compra de terras para os reassentamentos. Só que a confecção do edital não respeitou o acordo estabelecido, em que a comunidade atingida participaria da elaboração dos critérios para inclusão de famílias e aquisição de terras. O edital previu menos famílias atendidas do que as existentes e os critérios para a compra das terras não atendiam às exigências dos movimentos envolvidos.

A situação da Copel de não cumprir acordos feitos com as comunidades fez com que a Crabi organizasse mais uma manifestação, só que desta vez ela foi efetivada na capital do estado, em Curitiba, com o objetivo de criar um espaço de negociação direto com o governador, na época Jaime Lerner (1995-2003), solicitando a revogação do edital e a elaboração de um decreto governamental para liberar e apressar a aquisição das terras. A população exigiu direta participação do governador nas negociações, tendo em vista as várias promessas feitas pela Copel e não cumpridas. Assim, a Crabi organiza os moradores da região para participar de uma audiência com o governador para tratar das indenizações e dos reassentamentos das populações que seriam deslocadas da região de Salto Caxias. Como resultado, em 1996, os agricultores escolheram 5 mil alqueires de terras em áreas previamente selecionadas e restava ao Estado a compra através da publicação do decreto governamental.

Segundo Pagliarini Junior (2009), os resultados desses embates significaram, a partir de 1999, mudanças nas vidas de famílias destituídas de suas terras em nove municípios do Sudoeste do Paraná, sendo eles: Capitão Leônidas Marques, Boa Vista da Aparecida, Três Barras do Paraná, Quedas do Iguaçu, Nova Prata do Iguaçu, Salto do Lontra, Boa Esperança do Iguaçu, Cruzeiro do Iguaçu e São Jorge do Oeste. Dessas famílias, cerca de 600 foram reassentadas em 10 reassentamentos. Entre as famílias atingidas, as possuidoras de propriedades compostas por mais de cinco alqueires foram indenizadas com dinheiro. As famílias que possuíam área de cinco alqueires, juntamente com meeiros, posseiros e agregados, foram incluídas no projeto de reassentamento. Das famílias indenizadas por terra, 76% eram de pequenos proprietários.

Ainda segundo Pagliarini Junior (2009), na região de Cascavel foram constituídos, a partir de 1996, três reassentamentos, sendo o maior o São Francisco de Assis. Formado por terras indenizadas da Fazenda Piquiri, pertencente até então à Agropecuária Flamapec, conhecida na região por Flamapec, nome da empresa proprietária do estabelecimento. Além do São Francisco, foram estabelecidos no município de Cascavel os reassentamentos Baretar e Refopaz. Os três, juntos, totalizam 450 famílias e representam um aumento de aproximadamente 15% no número de propriedades rurais do município. O presente dado reflete, em parte, as transformações que os reassentamentos trouxeram à região. Ditos reassentamentos estão localizados nos limites das cidades de Cascavel e Corbélia. O impacto social e econômico dos reassentamentos nesses dois municípios foi significativo.

4.1 A Crabi e o assentamento dos ribeirinhos

Buscando uma compreensão do papel dos movimentos sociais no contexto da construção da usina hidrelétrica de Salto Caxias e no processo de reassentamento dos ribeirinhos, do ponto de vista deles, entrevistamos sujeitos que foram deslocados compulsoriamente pela construção de Salto Caxias, que atualmente vivem no assentamento São Francisco de Assis. Também entrevistamos alguns representantes de movimentos e de outras organizações que tiveram relações com os movimentos sociais para, em conjunto com a narrativa dos ribeirinhos reassentados e com os dados secundários, desvelar o papel da Crabi em todo esse processo ocorrido.

Indubitavelmente, o papel da Crabi como movimento que reunia os interesses da população foi destacado pelos moradores:

Nós unimos com a Crabi para lutar por aquilo que a gente tinha direito e também para não acontecer igual aos outros de outros lugares que pioraram suas vidas depois de terem que se mudar para se construir uma hidrelétrica, como a gente ficou sabendo (Milton).

O papel da Crabi foi fundamental para que hoje nós tenhamos o que temos, foram muitas vezes que tivemos que nos manifestar, lutar para que as coisas acontecessem do jeito certo. No começo, a gente ficou meio assim com este pessoal dos movimentos, pra nós eram o sem-terra, mas depois, quando a gente mesmo escolheu nossos representantes, a coisa melhorou e nos ajudou muito (Valter).

Segundo Ribeiro (2002), o surgimento das Crabs, entre as quais a Crabi, origina-se no momento em que o Estado, em nome do "desenvolvimento", prevê a construção de grandes obras, entre elas a hidrelétrica de Itaipu, com um megainvestimento de 10 bilhões de dólares. A construção da hidrelétrica de Itaipu se constitui num marco histórico para o surgimento dos "Novos Movimentos Sociais Rurais" no Paraná, já que a grandiosidade do empreendimento implicaria profundas transformações sociais, culturais e econômicas na vida das pessoas atingidas direta e até indiretamente pela construção da usina. A constituição desses movimentos sociais no Paraná influenciou diretamente nas mobilizações das populações para que os problemas decorrentes das instalações das usinas fossem resolvidos, levando em conta as reivindicações existentes. Os movimentos de luta política nasceram nas experiências vividas dos sujeitos, que através de suas ações conquistaram importantes espaços de forma pacífica, minimizando os efeitos trágicos a que essas populações são submetidas durante a construção destes grandes empreendimentos. Isto pode ser observado no relato dos moradores, quando eles contam o que passaram e como foi a criação da Crabi, uma etapa importante na luta empreendida por eles:

Eles [a Copel] chegavam achando que eram donos daquele pedaço e a gente tava atrapalhando as coisas que eles queriam fazer ali, no caso, o lago. Parecia que não tinha gente ali, que era só terra, depois eles viram que nós nos organizamos e queriam nossos direitos para que a gente saísse dali (...). Chegavam os engenheiros, entravam na nossa casa, começavam a medir as coisas, tirar foto, sei lá que mais que eles faziam... e nem se preocupavam com a gente. Isto foi deixando a gente com mais raiva deles, não era o jeito certo de fazer as coisas, todo mundo sabia ali que ia ter que abandonar suas casas, mas demorou até que eles falassem isto pra gente, fizeram uma reunião, chamaram todo mundo e explicaram como ia ser feito (Valter).

Participei de muitas reuniões que tivemos com a comunidade para se organizar e pensar como fazer as coisas, como nós íamos cobrar os direitos. Primeiro, veio um pessoal de fora, que organiza uns movimentos para falar pra nós da importância de ter uma representação nossa para negociar com o governo, mostraram também como isto tinha acontecido em outros lugares, depois eles nos ajudaram a organizar o que chamamos de Crabi, que era a reunião dos atingidos pela usina do rio Iguaçu, que era o nosso caso (Adair).

Desde que chamaram todo mundo pra se reunir, eu fui, meu marido não queria muito participar, dizia que não ia levar pra lugar nenhum, mas mesmo assim eu fui. Até que a maioria participasse demorou, as pessoas ficavam com medo de ir, mas depois falaram que era pra gente escolher quem ia nos representar e tinha que ser alguém de nós. Aí sim que o pessoal gostou, não era gente de fora, era a gente mesmo que ia trabalhar pra garantir nossos direitos (Nair).

Participei desde o início do movimento da Crabi, lá a gente se organizou para fazer frente aos grandes da Copel, só assim a gente foi reconhecido. No começo, nem a Copel queria falar com a gente, só depois que eles viram que nada ia sair se eles não conversassem com nós. A gente reuniu todo mundo, de todos os municípios das redondezas, todo mundo se juntou porque viu que era o único jeito de conseguir alguma coisa. A Copel não ia ouvir cada um de nós, precisava ter alguém que representasse a ideia de todos e isto aconteceu com a Crabi, cheguei até a ser um dos diretores do movimento e negociar direto com o governo em Curitiba (Valter).

No caso de Salto Caxias, a constituição da Crabi ocorre com o objetivo de concentrar os esforços e as lutas da população em torno de objetivos e metas comuns. A formação da Crabi na região se deu após visitas que foram realizadas pela população da região de Salto Caxias a outras regiões que sofreram o deslocamento compulsório. Ao perceberem a situação ruim das populações dessas regiões e o descaso com que as empresas e empreiteiras trataram-nas é que ocorre a decisão de constituir um movimento local para reunir a população.

Segundo Scherer-Warren (2011), parece que existe um ideal básico que substancia o agir destes novos movimentos sociais: o da criação de um novo sujeito social, o qual redefine o espaço da cidadania. A fala abaixo, do entrevistado que era o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, à época da construção da barragem do Salto Caxias, mostra isso:

A população se organizou junto com a Crabi, claro que no começo nem todo mundo confiava no pessoal, mas foi o único jeito de reunir todo mundo e lutar pelos direitos, cada um tinha uma vontade particular e ficava difícil ter uma opinião só. A proposta de criar a Crabi foi resultado de um entendimento de todo mundo que a gente precisava se unir (Olinto).

Dessa forma, a Crabi passou a desempenhar um papel importante para o conjunto da população ribeirinha e a criação desse movimento passou a integrar as atividades diárias dos sujeitos. Na fala dos entrevistados, fica marcado o papel da Crabi enquanto articulador das lutas da população e o resultado que tiveram com as constantes negociações com o governo, que representava a construção da hidrelétrica.

A criação de um movimento social para representar uma categoria identitária é o que a autora Scherer-Warren (2011) aborda no sentido de que a consciência dos efeitos negativos dessas obras sobre suas vidas é que tem levado à constituição de uma identidade coletiva, como de "vítimas" do progresso entre as populações indígenas ou de "atingidos" pelas barragens entre as populações camponesas.

Segundo Pagliarini Junior (2009), a Copel já possuía vasta experiência na construção de hidrelétricas, assim como em lidar com os enfrentamentos e dificuldades diante dos moradores desapropriados por obras de barragem. Os moradores dos nove municípios do Sudoeste envolvidos no processo de construção de Salto Caxias tinham noção da demonstração de força do governo e passaram a ter contato com a realidade de outros atingidos por obras hidrelétricas. Um momento fundamental foi a participação de sindicatos locais e associações voltadas à discussão dos impactos sociais e ecológicos de projetos hidrelétricos no Brasil.

A criação da Crabi fez com que os sujeitos se unissem para a luta por melhores condições de vida, a partir do deslocamento que eles iriam sofrer. Os ribeirinhos reassentados reconhecem na constituição do movimento uma interação com a organização que vai consolidando uma nova identidade deste grupo:

A Crabi nos fez perceber que nós éramos importantes, que tínhamos que resistir e lutar por aquilo que achamos certo, ela despertou um sentimento de nos unirmos para lutar e conseguimos muita coisa em função disto (Valter).

Fica difícil pensar hoje como tudo seria se não tivéssemos nos reunido na Crabi, juntado as nossas ideias e a nossa força para trabalhar com conjunto. No início até que veio gente de fora, de outras barragens, para nos ajudar no movimento, mas depois escolhemos nosso representante e ficamos sozinhos lutando pelos nossos interesses (Adair).

Iam nos levar tudo, nossa casa, nossa terra, nossos amigos, e a gente ia ficar só olhando. Daí que veio o pessoal dos atingidos, o MAB, para mostrar para nós como era importante a gente se juntar para trabalhar. Foi muito bom, criamos um grupo bom que defendeu todo mundo que ia ser mudado (Nair).

Esse raciocínio ratifica a visão da autora Scherer-Warren (2011) sobre o papel dos movimentos sociais, pois é o reconhecimento coletivo de um direito que leva à formação de uma identidade social e política. Reconhece-se mutuamente como pertencendo à mesma situação de carência e como portador do mesmo direito. As carências tendem a ser definidas em torno de carências múltiplas, tendo em vista a necessidade de constituição (a partir da redescoberta) de um indivíduo total. Isso tem levado, nos novos movimentos sociais, os mesmos sujeitos a se constituir frequentemente em torno da pluralidade de identidades que, apesar de diversas, podem ser convergentes.

Scherer-Warren (2011) ainda destaca que, como espaços de socialização política, os movimentos permitem aos trabalhadores, em primeiro lugar, o aprendizado prático de como se unir, organizar, participar, negociar e lutar; em segundo lugar, a elaboração de uma identidade social, a consciência de seus interesses, direitos e reivindicações; finalmente, a apreensão crítica de seu mundo, de suas práticas e representações sociais e culturais.

O resultado disso é que, segundo Karpinski (2006), depois de toda essa luta, a Copel elaborou um projeto inédito de indenização: os atingidos poderiam escolher entre reassentamento ou carta de crédito. O reassentamento possibilitaria o transplante dos atingidos para outras localidades e a carta de crédito era a possibilidade de indenização em dólar. Das 1.025 famílias com direito de escolha, 600 optaram pelo reassentamento e 425 pela carta de crédito, ou seja, por mais que o movimento social reivindicasse o reassentamento em nome dos atingidos, uma parcela significativa, cerca de 40%, não quis ser reassentada. A partir do momento da escolha, os caminhos dos atingidos tomam rumos bem diferentes. Aqueles que escolheram o reassentamento continuaram sob a proteção da Crabi, que preservou suas reivindicações. Esse movimento tomou para si a luta pela implantação de um reassentamento que fosse capaz de prover todas as necessidades dos seus membros. E, de certa forma, conseguiu, pois o reassentamento da usina de Salto Caxias é modelo mundial de reforma agrária no discurso do Estado e do movimento social.

Entretanto, foi percebido que o movimento da Crabi se encerrou logo após as famílias terem se mudado para o reassentamento e a partir daí algumas associações de moradores passaram a executar o trabalho de busca de melhorias para a população local. Na fala de uma moradora do reassentamento, percebemos a ideia de que a Crabi realizou seu objetivo como movimento organizado e a partir de agora os moradores criaram um novo tipo de mobilização, por meio das associações de moradores do bairro:

Hoje não tem mais a Crabi aqui, ela desapareceu porque o principal nós conseguimos, agora tem várias pessoas que tão se organizando para pedir pra prefeitura um posto de saúde, uma escola, tão continuando a se mexer para ver se conseguem alguma coisa (Francisca).

Esse assunto foi também abordado por Pagliarini Junior (2009), afirmando que, com a extinção da Crabi, as associações de moradores continuaram agregando e representando os reassentados diante das questões político-administrativas. Entre elas, a autorização de troca, compra e venda de propriedades dos reassentamentos. Mas, pelo que podemos perceber na fala dos moradores, as associações não tiveram a mesma força que a Crabi e não conseguem dar sequência às reivindicações da população que foi reassentada. Parece também não ter mais um motivo que reúna e integre todos os moradores do reassentamento. Com a Crabi, o motivo e a identidade grupal eram bem claros para todos.

De uma forma geral, é perceptível na fala dos sujeitos a avaliação positiva dos resultados da luta contra a implantação da hidrelétrica, tanto para as cidades quanto para a população que foi deslocada. Essa avaliação tem relação direta com o movimento empreendido e liderado pela Crabi em nome do conjunto de moradores que foi compulsoriamente deslocado. A identificação com uma causa comum fez com que os moradores superassem de maneira mais positiva toda a situação vivenciada pela mudança de moradia. A fala abaixo mostra essa situação:

Foi muito bom, muito positiva, pra nós foi quase como ganhar na esportiva. Segundo o que os políticos falam e o próprio povo fala é que foi a primeira vez que uma hidrelétrica fez isto para nós, em outras regiões isto nunca aconteceu. E muito aconteceu em parte pelo que o próprio povo fez, nas lutas que tivemos que ter e com o apoio da Crabi que organizava o povo no movimento (Carlos).

Na visão da população que foi deslocada, também há a percepção de que a situação de vida de cada um hoje está melhor, inclusive economicamente. A fala abaixo resume o sentimento encontrado nas entrevistas realizadas:

Eu mudei muito vindo pra cá, minha família mudou, aqui tudo é diferente, como a gente melhorou daquele problema do dinheiro, nós estamos levando uma vida melhor, agora até um carro eu tenho pra ir na cidade, antes era só a cavalo ou com a carretinha... (João).

Assim, o reassentamento São Francisco de Assis mantém algumas condições que os sujeitos tinham em sua terra de origem: cada família ganhou sua casa e sua terra para plantação no mesmo espaço, diferentemente de outros reassentamentos, onde as terras de plantio ficam distantes do local em que os indivíduos têm de morar. Além disso, são terras mais férteis e também mais próximas de uma cidade maior (Cascavel), o que, na impressão dos ribeirinhos entrevistados, fez com que suas condições de vida melhorassem. Essas e outras características destacadas durante a coleta de dados evidenciam um razoável êxito no processo do assentamento, diferente de outros estudos (Queiroz, 2000; Reis, 2001; Rampazo, 2009) realizados com populações deslocadas em função da construção de hidrelétricas. Esse sucesso se refere tanto aos ganhos políticos como econômicos, de modo que, pelo menos no reassentamento pesquisado, a situação atual parece melhor do que as condições de vida que eles tinham anteriormente.

De certa forma, a identidade coletiva de deslocados fez com que os indivíduos se reunissem na Crabi e com suas lutas e conquistas conseguissem ocupar um espaço de melhor qualidade. Essa situação pode ser explicada pelo que diz Scherer-Warren (2011:92):

Creio que o resultado importante da ação política destes movimentos é reflexo positivo que poderá vir a ocorrer para a própria reprodução cultural. Os estudos sobre as consequências sociais dos grandes projetos de grande escala têm demonstrado que as populações por eles afetadas, quando não organizadas, têm passado por processo de desintegração comunitária. Parece-me que a solidariedade coletiva que se constrói no processo de luta poderá ser um fator de contribuição para o estabelecimento de um novo projeto de vida que se faz necessário e em vista da reestruturação de seu espaço cotidiano. De acordo com o que nos diz Bettanini (1982), um novo espaço social se constrói por meio de uma dimensão coletiva. Se a população removida compulsoriamente não consegue se reestruturar adequadamente enquanto coletividade, teremos uma situação em que a resolução de necessidades objetivas e subjetivas destas populações pode se apresentar como problemática. Penso, pois, que os movimentos sociais que se organizam tendo em vista a defesa dos projetos de vida das populações afetadas por grandes obras terão também seu papel na reconstrução da vida da coletividade no momento em que a remoção espacial se apresentar como inevitável. Isto falando-se das dimensões subjetiva e objetiva inerentes à reestruturação do espaço social de uma coletividade.

5. Considerações finais

Um ponto que merece importante destaque no contexto desta investigação foi a criação e a participação da população na Crabi, movimento social que procurou ser um interlocutor da população ribeirinha com as forças do Estado. Este movimento foi formado a partir de lideranças da própria comunidade e passou a conduzir importantes ações de resistência e luta pela garantia dos direitos da população e por uma justa recomposição das perdas desses sujeitos. A Crabi também aparece com destaque nas falas dos sujeitos entrevistados e é apontada como um dos fatores de êxito, por parte da população, para os encaminhamentos avaliados como satisfatórios da transferência da população e da instalação da hidrelétrica.

Percebemos, ao longo da pesquisa empreendida, que o senso de luta coletiva fomentado pela criação e mobilização da Crabi permeou os processos de reconstrução da vida dos sujeitos deslocados pela Usina, e a efetiva participação deles fez com que fossem conquistadas melhores condições de enfrentamento dessa difícil situação. Ou seja, os movimentos sociais, com sua ação coletiva, ajudaram no reforço de uma identidade social, em que os sujeitos envolvidos passaram a partilhar de uma identidade coletiva. A Crabi marcou a história dos sujeitos e trabalhou em prol do bem coletivo, por meio de suas ideologias e valores compartilhados pelos sujeitos, e acabou conseguindo que as negociações tivessem um resultado positivo para os ribeirinhos deslocados, tanto em termos políticos quanto econômicos.

Esse resultado foi completamente diferente do que esperávamos encontrar ao iniciar a investigação, pois tanto a literatura sobre o tema como pesquisas anteriormente realizadas por diversos estudiosos mostram que a população deslocada normalmente passa a viver de forma muito mais precária do que vivia anteriormente, pela perda de seus laços afetivos e referências quanto ao trabalho. O que esta investigação mostrou é que a história de Salto Caxias é especial, pelo fato de ter havido um "aprendizado" dos ribeirinhos que seriam deslocados como o ocorrido com a construção de outras hidrelétricas na região e por terem se mobilizado a tempo para evitar maiores perdas. Além disso, a pesquisa ora realizada foi feita em um assentamento com boas condições, e os resultados poderiam ser outros se tivéssemos entrevistado os ribeirinhos que optaram pela carta de crédito, por exemplo. Desses, não sabemos o destino que tiveram.

Há que se observar, também, que após todos os anos de conflitos entre a Copel e a Crabi, atualmente a Copel utiliza o caso de Salto Caxias como um slogan para mostrar que realizou uma ação inédita, fornecendo a opção de escolha aos atingidos da forma de indenização - não havendo, sequer, qualquer menção às lutas e às negociações feitas. A investigação realizada, em sua descrição sobre a atuação da Crabi, contribui no sentido de mostrar que se os ribeirinhos não tivessem se mobilizado junto ao movimento social, as ações compensatórias teriam sido muito mais prejudiciais a eles do que foram, ao final do processo.

Não há dúvidas de que a Crabi conseguiu abarcar a população ribeirinha na luta contra a Copel em prol dos seus direitos, pois ela seria compulsoriamente deslocada. Isso fez com que essa população se solidarizasse em torno de uma causa comum, o que formou uma identidade coletiva. Essa causa, de certa forma, ultrapassou os limites do sistema, pois pela primeira vez houve um ganho (ou talvez, menos prejuízos) dos ribeirinhos, no que concerne a casos de perda de terras e reassentamentos por causa da construção de usinas hidrelétricas. No entanto, o fato de a Crabi ter se retirado da vida dos ribeirinhos assim que ocorreu o reassentamento leva a uma reflexão importante. Muito embora se saiba que movimentos como a Crabi tenham um objetivo muito específico, de certa forma os ribeirinhos assentados se sentiram abandonados após o processo. Isso aponta para uma situação problemática, de que as populações envolvidas acabam sendo mobilizadas pelos movimentos sociais, mas ao mesmo tempo são apenas instrumentos de forças para eles, num momento específico do tempo. Passado esse momento, o movimento se desfaz e a população se vê por conta própria novamente.

Um apontamento, dentro da perspectiva histórica, é perceber que a região de Salto Caxias, desde sua constituição, foi marcada por constantes lutas da população (colonos) por terras, contra grandes forças estabelecidas, como os governos ou proprietários de fazendas. O que vimos, durante o processo de construção de Salto Caxias, foi novamente a população assumindo a luta contra grandes potências, no caso a Copel, na busca da garantia por uma melhor condição de vida e de uma adequada reparação das perdas, ocasionada pelo deslocamento compulsório. É a história da população se reproduzindo em diferentes gerações, o que não deixa de ser uma representação desse grupo ao longo do tempo, ou seja, da história maior.

Dentro da perspectiva dos estudos organizacionais, este trabalho buscou uma reflexão sobre como algumas grandes decisões - como a construção de uma usina - podem impactar o dia a dia das gentes comuns e como o organizar-se contra práticas hegemônicas tem levado as populações a integrarem-se aos movimentos sociais de resistência e superação das dificuldades. Esses movimentos têm um papel muito grande na sociedade, por ajudar a mudar essas práticas hegemônicas e também por dar subsídios para que novas políticas públicas possam surgir. A história de Salto Caxias mostra um pouco dessas feições. Resta saber se a construção de outras usinas hidrelétricas no Brasil está se pautando pelo mesmo exemplo.

Artigo recebido em 25 maio 2012 e aceito em 9 nov. 2012.

Giuliano Derrosso é mestre em administração pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e professor da Faculdade União Dinâmica das Cataratas (UDC). E-mail: gderrosso@yahoo.com.br.

Elisa Yoshie Ichikawa é doutora em engenharia de produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: eyichikawa@uem.br.

  • ALBERTI, Verena. Manual de história oral Rio de Janeiro: FGV, 2008.
  • AMENTA, Edwin et al. The political consequences of social movements. Annual Review of Sociology, v. 36, p. 287-307, 2010.
  • BATTISTI, Elir. As disputas pela terra no sudoeste do Paraná: os conflitos fundiários dos anos 50 a 80 do século XX. Campo Território: Revista de Geografia Agrária, v. 1, n. 2, p. 65-91, ago. 2006.
  • BEBBINGTON, Anthony et al. Social movements and the dynamics of rural territorial development in Latin America. World Development, v. 36, n. 12, p. 2874-2887, 2008.
  • BERMANN, Célio. Energia no Brasil: para quê? Para quem? São Paulo: Livraria da Física, 2003.
  • COELHO, Kellen da S.; DELLAGNELO, Eloise L. Uma análise epistemológica das teorias dos movimentos sociais utilizadas nos estudos em administração. In: Encontro de Estudos Organizacionais (EnEO), VIII, 2012, Curitiba. Anais... Rio de Janeiro: ANPAD, 2012. CD-ROM.
  • COMPANHIA PARANAENSE DE ENERGIA ELÉTRICA (COPEL). Usina Governador José Richa - Salto Caxias. Localização Disponível em: <www.copel.com/hpcopel/hotsite_caxias/localizacao. html>. Acesso em: 8 out. 2012.
  • F044b34faa7cc1143032570bd0059aa29%2F9bdc37f6b8c44b810325741200587db7>. Acesso em: 6 jul. 2011.
  • GOHN, Maria da G. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2011.
  • GOMES, Iria Z. 1957 A Revolta dos Posseiros 2. ed. Curitiba: Criar Edições, 1987.
  • GOMES, Romeu. Análise e interpretação de dados em pesquisa qualitativa. In: MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 67-79.
  • ICHIKAWA, Elisa Y.; SANTOS, Lucy W. dos. Contribuições da história oral à pesquisa organizacional. In: SILVA, Anielson B. da; GODOI, Christiane K.; BANDEIRA-DE-MELLO, Rodrigo. (Org.). Pesquisa qualitativa em estudos organizacionais: paradigmas, estratégias e métodos. São Paulo: Saraiva, 2006. Cap. 6, p. 181-202.
  • JATOBÁ, Sérgio U. et al. Ecologismo, ambientalismo e ecologia política: diferentes visões da sustentabilidade e do território. Sociedade e Estado, Brasília, v. 24, n. 1, p. 47-87, jan./abr. 2009.
  • JERONYMO, Alexandre C. J. Deslocamento das populações ribeirinhas e passivos sociais e econômicos decorrentes de projetos de aproveitamentos hidrelétricos: a Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto/SP-PR. Dissertação (mestrado em energia) - Escola Politécnica, Faculdade de Economia e Administração, Instituto de Eletrotécnica e Energia e Instituto de Física, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
  • KARPINSKI, Cezar. Sobre as águas a memória: relações de poder e subjetividades durante a implantação da Usina Hidrelétrica Salto Caxias (Paraná, 1989-2001). Dissertação (mestrado em história) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006.
  • LIMA, Jandir F. de; ALVES, Lucir R.; KARPINSKI, Cesar; PIACENTI, Carlos A.; PIFFER, Moacir. A região de Salto Caxias no sudoeste paranaense: elementos para uma política de desenvolvimento econômico microrregional. Revista Paranaense de Desenvolvimento, n. 108, p. 87-111, jan./jun. 2005.
  • MELUCCI, Alberto. Um objetivo para os movimentos sociais? Lua Nova, São Paulo, n. 17, p. 49-66, jun. 1989.
  • MINAYO, Maria C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2001.
  • PAGLIARINI JUNIOR, Jorge. Memórias de luta, lutas pela memória: o reassentamento São Francisco de Assis (1995-2008). Dissertação (mestrado em história) - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Marechal Cândido Rondon, 2009.
  • PARMIGIANI, Jaqueline. Apontamentos para a história de uma luta: os atingidos da barragem de Salto Caxias/PR. Tempo da Ciência, v. 13, n. 26, 2ş sem. 2006.
  • PINHEIRO, Maria F. B. Problemas sociais e institucionais na implantação de hidrelétricas: seleção de casos recentes no Brasil e casos relevantes em outros países. Dissertação (mestrado em planejamento de sistemas energéticos) - Faculdade de Engenharia Mecânica, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.
  • QUEIROZ, Renato da S. Apresentação. In: REBOUÇAS, Lidia Marcelino. O planejado e o vivido: o reassentamento de famílias ribeirinhas no pontal do Paranapanema. São Paulo: Annablume, 2000.
  • RAMPAZO, Adriana V. O simbolismo das identidades naufragadas do Território Cantuquiriguaçu Dissertação (mestrado em administração) - Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2009.
  • REBOUÇAS, Lidia M. O planejado e o vivido: o reassentamento de famílias ribeirinhas no pontal do Paranapanema. São Paulo: Annablume, 2000.
  • REIS, Maria J. O reassentamento de pequenos produtores rurais: o tempo da reconstrução e recriação dos espaços. In: REIS, Maria J.; BLOEMER, Neusa M. S. Hidrelétricas e populações locais Florianópolis: Editora da UFSC, 2001. p. 119-166.
  • RIBEIRO, Maria de F. B. Memórias do concreto Cascavel: Edunioeste, 2002.
  • SANTOS, Roseli A. dos. O Processo de modernização da agricultura no Sudoeste do Paraná Tese (doutorado em geografia) - Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho, Presidente Prudente, 2008.
  • SCHERER-WARREN, Ilse. Rede de movimentos sociais São Paulo: Edições Loyola, 2011.
  • SEVÁ FILHO, Arsênio; PINHEIRO, Maria F. B. Conflitos sociais e institucionais na concretização recente de algumas concessões de aproveitamentos hidrelétricos assinadas entre 1997 e 2000. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ENERGIA, 11, 2006, Rio de janeiro. Anais eletrônicos... 2006.
  • TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2013
  • Data do Fascículo
    Fev 2013

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2012
  • Aceito
    09 Nov 2012
Fundação Getulio Vargas Fundaçãoo Getulio Vargas, Rua Jornalista Orlando Dantas, 30, CEP: 22231-010 / Rio de Janeiro-RJ Brasil, Tel.: +55 (21) 3083-2731 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rap@fgv.br