Acessibilidade / Reportar erro

Reforma da administração pública e carreiras de Estado: o caso dos especialistas em políticas públicas e gestão governamental no Poder Executivo federal

Public administration reform and State careers: the case of experts in public policies and government management in the federal Executive Power

Reforma de la administración pública y carreras de Estado: el caso de los expertos en políticas públicas y gestión gubernamental en el Poder Ejecutivo federal

Resumos

Com o objetivo de analisar como o recrutamento baseado na ideia de "competência técnica" foi incorporado à administração pública brasileira após a reforma administrativa de 1995, investiga-se, neste artigo, a carreira de especialista em políticas públicas e gestão governamental. Entre todas as carreiras da administração pública, a de especialista em políticas públicas e gestão governamental (EPPGG) é um caso exemplar, uma vez que sua criação agrega a ideia da formação de uma burocracia estável diante das descontinuidades governamentais, capaz de formular e gerir políticas públicas em fluxo contínuo, o que justifica seu estudo. Por meio de fontes diversas relacionadas à evolução da carreira, ao perfil e à formação desses gestores e sua distribuição no Poder Executivo federal, demonstra-se que a própria formação desses funcionários públicos acabou sofrendo interferências governamentais de acordo com a orientação do governo e que o aproveitamento desses EPPGGs nos cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS) do Executivo federal tem conciliado princípios meritocráticos com certa flexibilização das nomeações, restringindo, em tese, os espaços da patronagem política.

administração pública; burocracia; carreira; política pública; gestão governamental


Aiming to analyze the way how recruitment based on the idea of "technical competence", was incorporated in the Brazilian public administration after the 1995 administrative reform, this paper investigates the career of expert in public policies and government management. Among all public administration careers, that of expert in public policies and government management (EPPGM) is an exemplary case, since its creation brings the idea of constituting a stable bureaucracy in face of discontinuities in government, able to prepare and manage public policies in a continued flow, something which justifies studying it. Through various sources related to the career evolution, the profile, and training of these managers, and their distribution in the federal Executive Power, we demonstrate that the very training of these public officials ended up undergoing government interferences according to government guidance and that allocating these EPPGMs to jobs of Superior Management and Advisement (SMA) of the federal Executive has reconciled meritocratic principles with a certain relaxation of appointments, restricting, in theory, the spaces for political patronage.

public administration; bureaucracy; career; public policy; government management


Con el objetivo de analizar como el reclutamiento basado en la idea de "competencia técnica" fue incorporado en la administración pública brasileña después de la reforma administrativa de 1995, se investiga, en este artículo, la carrera de experto en políticas públicas y gestión gubernamental. Entre todas las carreras de la administración pública, aquella de experto en políticas públicas y gestión gubernamental (EPPGG) es un caso ejemplar, pues su creación agrega la idea de formación de una burocracia estable delante de las discontinuidades gubernamentales, capaz de formular y dirigir políticas públicas en flujo continuo, lo que justifica estudiarla. Por medio de fuentes diversas relacionadas con la evolución de la carrera, el perfil y la formación de eses directivos y su distribución en el Poder Ejecutivo federal, se demuestra que la propia formación de eses funcionarios públicos acabó sufriendo interferencias gubernamentales de acuerdo con la orientación del gobierno y que el aprovechamiento de eses EPPGGs en los puestos de Dirección y Asesoramiento Superior (DAS) del Ejecutivo federal ha conciliado principios meritocráticos con una cierta flexibilización de los nombramientos, restringiendo, en teoría, los espacios del patronato político.

administración pública; burocracia; carrera; política pública; gestión gubernamental


Reforma da administração pública e carreiras de Estado: o caso dos especialistas em políticas públicas e gestão governamental no Poder Executivo federal

Reforma de la administración pública y carreras de Estado: el caso de los expertos en políticas públicas y gestión gubernamental en el Poder Ejecutivo federal

Public administration reform and State careers: the case of experts in public policies and government management in the federal Executive Power

Lorena Madruga Monteiro

Faculdade Integrada Tiradentes (Fits)

RESUMO

Com o objetivo de analisar como o recrutamento baseado na ideia de "competência técnica" foi incorporado à administração pública brasileira após a reforma administrativa de 1995, investiga-se, neste artigo, a carreira de especialista em políticas públicas e gestão governamental. Entre todas as carreiras da administração pública, a de especialista em políticas públicas e gestão governamental (EPPGG) é um caso exemplar, uma vez que sua criação agrega a ideia da formação de uma burocracia estável diante das descontinuidades governamentais, capaz de formular e gerir políticas públicas em fluxo contínuo, o que justifica seu estudo. Por meio de fontes diversas relacionadas à evolução da carreira, ao perfil e à formação desses gestores e sua distribuição no Poder Executivo federal, demonstra-se que a própria formação desses funcionários públicos acabou sofrendo interferências governamentais de acordo com a orientação do governo e que o aproveitamento desses EPPGGs nos cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS) do Executivo federal tem conciliado princípios meritocráticos com certa flexibilização das nomeações, restringindo, em tese, os espaços da patronagem política.

Palavras-chave: administração pública; burocracia; carreira; política pública; gestão governa­mental.

RESUMEN

Con el objetivo de analizar como el reclutamiento basado en la idea de "competencia técnica" fue incorporado en la administración pública brasileña después de la reforma administrativa de 1995, se investiga, en este artículo, la carrera de experto en políticas públicas y gestión gubernamental. Entre todas las carreras de la administración pública, aquella de experto en políticas públicas y gestión gubernamental (EPPGG) es un caso ejemplar, pues su creación agrega la idea de formación de una burocracia estable delante de las discontinuidades gubernamentales, capaz de formular y dirigir políticas públicas en flujo continuo, lo que justifica estudiarla. Por medio de fuentes diversas relacionadas con la evolución de la carrera, el perfil y la formación de eses directivos y su distribución en el Poder Ejecutivo federal, se demuestra que la propia formación de eses funcionarios públicos acabó sufriendo interferencias gubernamentales de acuerdo con la orientación del gobierno y que el aprovechamiento de eses EPPGGs en los puestos de Dirección y Asesoramiento Superior (DAS) del Ejecutivo federal ha conciliado principios meritocráticos con una cierta flexibilización de los nombramientos, restringiendo, en teoría, los espacios del patronato político.

Palabras clave: administración pública; burocracia; carrera; política pública; gestión gubernamental.

ABSTRACT

Aiming to analyze the way how recruitment based on the idea of "technical competence", was incorporated in the Brazilian public administration after the 1995 administrative reform, this paper investigates the career of expert in public policies and government management. Among all public administration careers, that of expert in public policies and government management (EPPGM) is an exemplary case, since its creation brings the idea of constituting a stable bureaucracy in face of discontinuities in government, able to prepare and manage public policies in a continued flow, something which justifies studying it. Through various sources related to the career evolution, the profile, and training of these managers, and their distribution in the federal Executive Power, we demonstrate that the very training of these public officials ended up undergoing government interferences according to government guidance and that allocating these EPPGMs to jobs of Superior Management and Advisement (SMA) of the federal Executive has reconciled meritocratic principles with a certain relaxation of appointments, restricting, in theory, the spaces for political patronage.

Keywords: public administration; bureaucracy; career; public policy; government management.

1. Introdução

Objetiva-se, neste artigo, demonstrar como, após mais de 10 anos da realização da reforma administrativa, o recrutamento baseado na competência técnica vem sendo progressivamente incorporado à administração pública brasileira. Como objeto empírico, optou-se por analisar uma das primeiras carreiras criadas dentro da concepção da reforma administrativa dos anos 1990, a carreira de especialista em políticas públicas e gestão governamental (EPPGG).

Acredita-se que, a partir da análise da evolução dessa carreira e dos postos ocupados por estes agentes da administração pública, possa se ter uma ideia se a reforma citada, baseada em critérios meritocráticos, por si só foi suficiente para modificar as regras que envolvem processos sociais mais amplos, ou vem reproduzindo e agregando outras práticas com esta finalidade (Charle, 2008).

O artigo está dividido em quatro partes. Inicialmente, situamos esta discussão dentro do debate entre administração pública e burocracia no Brasil. Em seguida, analisamos, a partir da literatura especializada, o projeto original desta carreira e a atual realidade destes gestores públicos. Assim como, a partir de vasto material publicado nos Cadernos da Enap, demonstra-se que houve mudanças significativas na formação destes especialistas na Escola Nacional de Administração Pública (Enap), conforme as diretrizes e a agenda política de cada governo eleito.

Por fim, com base em documentos, estatísticas e estudos oficiais produzidos pelo Ministério do Planejamento, pela Secretária de Gestão (Seges) e pela Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (Anesp) foi possível estabelecer um perfil da carreira e do gestor público. Em relação a este último ponto, estes estudos e pesquisas divulgados pela Segep e pela Anesp permitiram traçar um perfil em conjunto dos especialistas em políticas públicas e gestão governamental, assim como sua distribuição em cada ministério do Executivo federal.

Portanto, a despeito do projeto inicial de evitar descontinuidades na condução das políticas públicas, demonstra-se que a própria formação destes funcionários públicos acabou sofrendo inferências governamentais de acordo com a orientação do governo. Além disso, embora não previsto inicialmente na Reforma Administrativa de 1995, o aproveitamento destes EPPGGs para os cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS) do Executivo federal tem conciliado princípios meritocráticos com certa flexibilização das nomeações, restringindo, assim, em tese, os espaços da patronagem política.

2. Burocracia e administração pública no Brasil

Os estudos sobre a burocracia no Brasil tendem a reproduzir a imagem de que a administração pública funciona sob as regras da patronagem, devido ao presidencialismo de coalizão. Inferem, nesse sentido, que o predomínio do fisiologismo e do clientelismo excluiu a possibilidade da criação de uma burocracia profissional no país.

A ideia de que a racionalização burocrática é falha ou inconclusa no Brasil relaciona-se, conforme Regina Pacheco (2008), ao debate entre o legado histórico das práticas de nomeação na administração pública versus a concepção normativa da boa administração. E assim o debate remete sempre a

uma inadequação histórica dos políticos brasileiros ao agirem exatamente ao inverso do que prega a boa teoria: esta, fundada na separação entre política e administração; aqueles, fazendo amplo uso dos cargos de livre nomeação como instrumentos do jogo político-partidário, ou ainda como expressões ainda mais retrógradas do patrimonialismo, via nepotismo ou práticas clientelistas. (Pacheco, 2008:1)

Entretanto, há outras práticas no jogo das nomeações dos políticos que até então são pouco divulgadas e analisadas. Trata-se, conforme Pacheco (2008), da variedade dos critérios de nomeações e das combinações praticadas pelos políticos, e, sobretudo, da diferenciação entre os métodos utilizados para a ampliação do quadro dos funcionários públicos e as estratégias de nomeação para os cargos de direção. Deste modo, a ausência da análise dos "dirigentes públicos" torna os debates e os estudos empreendidos até o momento inconclusos e nebulosos (Pacheco, 2008).

Pacheco recorre, num primeiro momento, aos estudos empreendidos por Geddes (1994), Martins (1985) e Nunes (1997) e em seguida retoma as análises referentes ao período mais recente realizadas por Amorim Neto (1994), D'Araújo (2007) e Loureiro e Abrúcio (1999) sobre a dinâmica das nomeações na burocracia pública brasileira para sustentar seu argumento.

Os estudos de Martins (1985), Nunes (1997) destacam a constituição da burocracia no Brasil no período de 1945 a 1970. Dentre suas contribuições mais relevantes, tais estudos têm em comum a constatação de que grande parte das nomeações se destinava aos cargos públicos de baixa qualificação, reforçando o caráter clientelista destas práticas, mas preservando certas áreas consideradas estratégicas, como a econômica e a diplomática, em que se preservavam os critérios meritocráticos nas nomeações para o alto escalão. Esse insulamento das áreas estratégicas permitiu o "sucesso" do projeto nacional-desenvolvimentista, durante o segundo governo Vargas e o de Juscelino Kubitschek. Desse modo, a lógica partidária clientelista não impactou os altos escalões técnicos das agências governamentais mais importantes, que permaneceram, especialmente durante o regime militar, insuladas da patronagem (Nunes, 1997).

Geddes (1994), em estudo mais amplo em relação aos anteriores, tanto temporalmente, quanto geograficamente, uma vez que sua análise contemplou os casos do Brasil, da Argentina, da Venezuela, do Chile, da Colômbia e do Peru, no período de 1945 a 1993, excluindo-se os regimes militares, identificou modelos diferenciados em cada governo no mesmo país em relação às práticas de nomeações. No caso brasileiro, classificou as preferências governamentais como "altamente politizadas" (Dutra, Goulart e Sarney), "mistas ou compartimentadas", que identificam aqueles governos que combinaram o critério da competência para as nomea­ções para os postos-chave da administração com as indicações políticas para os demais cargos (segundo governo Vargas, Juscelino Kubitschek e Collor), e "antipartidárias" (Café Filho, Quadros). Portanto, conclui a autora que as práticas de nomeação, dentro do jogo político-partidário, constituem uma das variáveis de sustentação de cada governo específico, ou seja, aqueles que não satisfizeram os partidos políticos de algum modo acabaram não tendo força diante de crises políticas e econômicas (Geddes, 1994:17 apud Pacheco, 2008:2).

Conforme Pacheco (2008:3), "as práticas clientelistas marcaram a constituição dos quadros de funcionários, mais do que a nomeação de dirigentes — pelo menos em alguns setores do Estado", uma vez que "o spoll-system poupou áreas estratégicas, ou ilhas de excelência, cujos quadros e dirigentes tiveram atuação decisiva para as realizações de governo, durante o nacional-desenvolvimentismo e a correspondente expansão do Estado brasileiro". E, assim, tais análises confirmam os postulados de Nunes (1997) de que a dinâmica do Estado brasileiro reflete quatro gramáticas políticas combinadas, que são: a tradicional (clientelista), a corporativista, o insulamento burocrático e a universificação de procedimentos.

Esses estudos sobre o Brasil, intencionalmente ou não, reforçaram a visão clássica de que a boa administração supõe a distinção entre o mundo político e o burocrático. Neste sentido, tanto a tradição europeia, cuja gênese retoma os escritos de Max Weber, quanto a norte-americana, inaugurada por Woodrow Wilson, consideram a ausência de profissionalização das burocracias nacionais entrave para seu desenvolvimento.

Entretanto, pondera Pacheco, a pesquisa de Aberbach, Putnam e Rockaman (1981) distanciou-se da dicotomia entre administração e política ao demonstrarem o papel híbrido do burocrata diante do processo decisório, assim como a desenvolvida por Lipsky (1980), que aproximou as funções estritamente políticas, como a implementação de políticas, com as da burocracia. Entretanto, mesmo que essas pesquisas mostrassem "os limites da visão recorrente sobre o caráter neutro da burocracia; não tiveram, no entanto, impacto no debate sobre a alta direção pública, que continuou colocando o tema em termos de insider (funcionário de carreira) ou outsider (em geral, visto como sinônimo de político)" (Pacheco, 2008:4).

Todavia, algumas análises vêm destacando o papel político dos burocratas e as nomeações como variável de controle do governo sobre as burocracias e sobre os partidos políticos no presidencialismo de coalizão.1 1 Essa questão é bastante explorada nas análises de Cecília Olivieri (2007, 2011a). Dentre os estudos mais representativos com este viés encontra-se o de Amorim Neto (1994) sobre a formação dos gabinetes ministeriais, o de D'Araújo (2007) sobre a "elite" do poder no governo Lula, e o de Loureiro e Abrúcio (1999) sobre as nomeações do alto escalão ministerial.

Estes estudos sobre a burocracia política brasileira após a redemocratização do país enfatizam em suas análises as lógicas de recrutamento para os altos cargos da administração pública, os perfis — políticos e/ou técnicos — destes dirigentes nomeados em governos distintos e seu espectro de ação política (Gouveia, 1994; Abrúcio, Loureiro e Rosa, 1998; D'Araújo, 2007).

Esta ênfase justifica-se por vários fatores; dentre eles, o da politização da burocracia adquire centralidade. Loureiro e Abrúcio (1999:69) destacam, neste sentido, que a "relação entre política e a burocracia é fundamental na definição do processo de governo, sobretudo no presidencialismo". Referem-se, portanto, à distribuição de cargos entre os partidos políticos necessária para que o governo forme sua maioria parlamentar. Nesta direção, a politização da burocracia é uma das variáveis-chave para compreender o equilíbrio e a conexão das demandas políticas — e partidárias — com a burocracia, desmistificando, assim, o mito da clivagem entre o comportamento técnico, meritocrático e neutro do corpo burocrático e a atuação clientelista dos parlamentares.

Essas colocações confirmam-se nos resultados da investigação empreendida por Abrúcio, Loureiro e Rosa (1998) e Loureiro e Abrúcio (1999) sobre a lógica de nomeação para os altos cargos governamentais no Ministério da Fazenda durante o governo Fernando Henrique Cardoso, assim como nas ponderações de Maria Celina D'Araújo (2007) em sua análise sobre a "elite dirigente no governo Lula", quando demonstram que, mesmo naqueles ministérios considerados "insulamentos burocráticos", em que prevalecem discussões e decisões de natureza técnica, atuam e reproduzem práticas de natureza eminentemente política.

Ambas as análises centraram-se nos cargos e nas funções de confiança do Executivo federal. Ou seja, referem-se às funções de administração direta, das autarquias e das fundações (DAS). Estes cargos estruturam-se em seis níveis, dependendo da função desempenhada, e são exercidos por indivíduos indicados, em alguns casos, por critérios políticos. São cargos que, de modo geral, objetivam o planejamento, a orientação, a coordenação e o controle dos programas dos demais escalões hierárquicos da administração pública. Entre os DAS, os níveis inferiores (1-3, por exemplo) são aqueles que concentram em seus quadros, em sua maioria, antigos servidores públicos de carreira, e nos níveis superiores (4-6) prevalecem os ingressantes, em sua maioria, por indicações fora da administração pública.

Nos últimos governos foram exatamente estes cargos — os DAS de nível 4 a 6 — que sobrecarregaram a máquina pública por meio de uma série de determinações do Executivo federal. Neste sentido, Maria Celina D'Araújo (2007) reitera a indefinição de regras, normas e mesmo de percentuais para a nomeação destes cargos em cada governo, o que, evidentemente, fragiliza a administração pública. Como consequência desta indefinição, a cada mudança de governo verifica-se uma crescente ampliação dos cargos de comissão, tanto no Executivo federal, quanto nas unidades subnacionais.

Estas análises, que cobrem o último governo Fernando Henrique Cardoso e os dois Governos de Luiz Inácio Lula da Silva, trouxeram contribuições importantes para compreender a alta burocracia pública, mas não exploram a formação dos quadros técnicos da administração pública brasileira. Percepção que Regina Pacheco (2008) compartilha, uma vez que, a despeito da importância dessas análises, especialmente por descreverem o perfil do alto escalão da burocracia, não colocam em discussão os "dirigentes públicos", os servidores de carreira.

Esta discussão aprofundou-se no cenário internacional, embora com certas distinções entre a área da gestão pública e a da ciência política. Enquanto as análises de gestão pública têm contemplado a figura do "dirigente público", a ciência política preocupa-se, dentro do enfoque institucionalista, em determinar os controles que o governo pode ter para que a burocracia expresse suas preferências políticas (Olivieri, 2007).

O argumento desenvolvido pelos teóricos da gestão pública, como Longo (2002a), é de que o "dirigente público" surgiu como novo ator político associado à concepção de eficiência da administração púbica, noção que emergiu após a crise de recursos e restrições de gastos que os estados de bem-estar enfrentaram. Assim, sua origem relaciona-se com as reformas administrativas implantadas nos países anglo-saxões e expandidas, em suas devidas particularidades, a parcela significativa de países na década de 1990.

Evans e Rauch (1999), diante desses contextos de reformas administrativas da década de 1990, reiteram que a existência de uma burocracia estatal meritocrática é um importante indicador de desenvolvimento econômico. Já Bernard Silberman (1993), a partir de uma análise de longa duração histórica da formação das burocracias na França, Grã-Bretanha e Estados Unidos, infere que as burocracias profissionais se instalam em contextos de baixa incerteza; as burocracias organizacionais, de tipo weberiano, surgiram em contextos de alta incerteza quanto à governabilidade.

Este modelo, de Silberman, foi testado para o caso brasileiro por Rachel Pellizone da Cruz (2008), em sua dissertação de mestrado. Sinteticamente, em sua pesquisa, identifica o presidencialismo de coalizão como uma condição específica que aumentou a incerteza quanto à sucessão presidencial no Brasil a partir de 1994, o que justifica a implementação de uma ampla reforma administrativa, em que, por meio do fomento de uma burocracia profissional, conciliaria os princípios meritocráticos com a flexibilidade de nomeações.

Cruz (2008) admite que as reformas administrativas não romperam com a prática da livre nomeação para os cargos de DAS e tampouco criaram, de forma consistente, carreiras meritocráticas na administração direta, mas a reforma da década de 1990, idealizada por Bresser-Pereira, ao formar burocratas de carreira, interessados também em ocupar cargos de confiança, restringiu o espaço da patronagem política. Nesta perspectiva, a autora considera que as carreiras criadas em núcleos estratégicos do Estado são compostas por membros que são candidatos naturais aos cargos de comissão.

Entretanto, conforme Pacheco (2008), a acomodação dos funcionários de carreira nos cargos de comissão tem mais relação com a desestruturação das carreiras de Estado e a remuneração do setor público. Portanto, o fato de não termos nunca concluído a constituição de uma burocracia meritocrática, é também um fator que impede avanços no debate sobre "dirigentes públicos". O argumento recorrente é o da "necessidade de profissionalização do serviço público, que algumas vezes é utilizado para usar nomeações como complementação de salário, outras significa defender a reserva de cargos de direção para funcionários de carreira" (Pacheco, 2008:9).

Estas questões serão analisadas neste estudo em relação à evolução da carreira de especialista em políticas públicas e gestão governamental (EPPGG). Trata-se de uma das carreiras da burocracia pública criadas a partir da reforma administrativa da década de 1990 — conhecida como reforma Bresser-Pereira —, que alterou os critérios tradicionais de formação da burocracia e introduziu novos instrumentos contratuais nas organizações da administração pública.

Atualmente cerca de 1.4002 2 Conforme Associação Nacional de Especialistas em Políticas Públicas. Disponível em: < http://aeppsp.org.br/>. Acesso em: 20 ago. 2011. especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental compõem o quadro de burocratas técnicos em vários ministérios federais. O desenvolvimento da carreira de EPPGG permite repensar a estrutura da administração pública no Brasil e a forma como as políticas públicas são elaboradas, implementadas e avaliadas pela gestão governamental. Mediante o estudo de sua estruturação e seu desenvolvimento é possível apreender como se estrutura a burocracia permanente do Estado brasileiro, o que justifica seu estudo aprofundado.

3. Entre o projeto original e a realidade administrativa: A carreira de EPPGG

Uma série de trabalhos ligados à área da administração pública vem discutindo o papel destes gestores governamentais na formulação e implementação das políticas públicas no Brasil, especialmente nos Congressos do Centro Latino-Americano de Administração para o Desenvolvimento (Clad). Esses estudos, em sua maioria realizados pelos próprios especialistas em políticas públicas e gestão governamental, destacam as diferenças entre o perfil idealizado destes técnicos de governo e o que se verifica na realidade, assim como demonstram que o desenvolvimento deste tipo de carreira da administração pública se encontra distante daqueles objetivos que as impulsionaram.

Santos e Cardoso (2000) destacam, neste sentido, os condicionantes que levaram a administração pública a criar o especialista de políticas públicas e gestão governamental, as características associadas a este perfil de gestor público e os atuais problemas verificados no desenvolvimento desta carreira. Conforme esses autores, o surgimento desta carreira relaciona-se com a redemocratização, com a emergência de novos atores sociais que exigiram um novo perfil de burocrata, distinto da burocracia oriunda das ilhas de excelência do período militar, e uma das alternativas disponíveis, inspiradas nas experiências europeias e da América Latina, foi a "criação de um corpo de elite formado por servidores de alta qualificação, com formação acadêmica, mas também submetidos à formação específica em escola de governo" (Santos e Cardoso, 2000:5), para que pudessem atuar tanto na administração direta, quanto na formulação de política, de forma estratégica.

Esta alternativa originou-se do estudo do embaixador Sérgio Paulo Rouanet, de 1982, encomendado pelo Dasp, que sugeria a criação de uma Escola de Governo no Brasil, similar ao modelo francês. A formação dos "grands corps" da administração pública brasileira seria pautada por sua formação "generalista" e atuaria em funções de direção e assessoramento em todos os ministérios. Portanto, a despeito de uma série de descontinuidades na estruturação da carreira

trata-se de uma das poucas estruturas profissionais do serviço público brasileiro constituída exclusivamente no sistema de mérito, com atribuições específicas de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas e direção e assessoramento nos escalões superiores da Administração Federal, com estrutura remuneratória diferenciada, ingresso por concursos públicos perió­dicos e formação específica, ministrada por escola de governo (ENAP) e uma forte identidade e espírito de corpo entre seus integrantes. (Santos e Cardoso, 2000:11)

Para Santos e Cardoso (2000), o gestor governamental, oriundo da Enap, é um administrador de informações e conflitos, um mediador entre os interesses dos grupos de pressão e das organizações político-partidárias. Para tanto, listam como característica fundamental deste profissional sua formação generalista em políticas públicas, na qual deve conhecer as teorias e os métodos de diversas áreas das ciências humanas, assim como dominar a dinâmica de funcionamento do Estado. Deve, ainda, atuar como articulador e negociador nas várias instâncias que envolvem as políticas públicas, ou seja, tanto no nível federal, como no Poder Legislativo, assim como entre os grupos sociais afetados, os partidos políticos e o Judiciário.

Dentre todas as características, os autores destacam o compromisso com a ética e a estabilidade deste servidor. Entretanto, advertem que "ao longo da trajetória da carreira, o modelo original foi bastante modificado, perdendo algumas de suas características essenciais, devido à influência de grupos de pressão, como outras carreiras e instituições do governo central" (Santos e Cardoso, 2000:12). Segundo os autores, a mudança de perfil destes gestores públicos deve-se às mudanças no projeto original e à heterogeneidade dos processos de seleção.

Entre o primeiro concurso e os subsequentes, como demonstram os autores, houve variações que impactaram o perfil dos integrantes de carreira. Os primeiros gestores foram recrutados por meio de provas objetivas e dissertativas em português, língua estrangeira, administração, direito, ciência política, economia e história do Brasil, além da submissão a prova de títulos e entrevista, e da realização do curso de políticas públicas e de gestão governamental com carga horária de 2.800 horas. Já no segundo, realizado em 1995, foi suprimida a entrevista e reduzida a carga horária do curso, assim como foi extinto o estágio supervisionado. Os outros concursos realizados até o ano de 2000 mantiveram a estrutura dos concursos anteriores, porém dividiram os aprovados por áreas de formação entre gestão pública, gestão econômica e políticas sociais. O concurso de 1999 apresentou uma segmentação diferente, uma vez que alocou os nomeados na área de saúde, educação, economia e na administração pública. Conforme Santos e Cardoso (2000:14), o problema fundamental encontra-se na alocação dos gestores e em sua mobilidade, que é um dos pilares da carreira, uma vez que:

Desde a inserção da primeira turma, houve aperfeiçoamentos importantes, embora ainda distantes de uma situação ideal. Na verdade, o órgão supervisor da carreira vem optando pela oferta de vagas em número limitado, idêntico aos dos candidatos a serem nomeados em cada concurso, produzindo tensões desnecessárias, uma vez que não existe um mecanismo institucional de administração e seleção das demandas que otimize a alocução de gestores. Na verdade o que se verifica é um aproveitamento reprimido, pela redução da mobilidade, uma das principais características da carreira, que vem se verificando, notadamente, desde 1997.

Além das questões das variações na forma de recrutamento e da mobilidade destes gestores, os autores destacam distância da posição que esses gestores ocupariam no desenho do Estado no projeto original e o que se verifica na realidade. Enquanto no desenho original a carreira se situaria acima das demais carreiras existentes no Estado, tanto em hierarquia, quanto em termos de retribuição salarial, com o tempo foi igualada às demais carreiras do Estado. Estas mudanças, na análise deles,

Refletem o resultado por uma disputa por espaços de poder e status no âmbito do serviço público federal, que ainda convive com estruturas arcaicas de livre comissionamento e baixa aderência ao sistema do mérito, em que frequentemente decisões vitais para a estruturação de um sistema de carreira são adotadas por técnicos sem vinculação permanente com o serviço público e muito frequentemente sem a necessária visão em conjunto da administração pública ou a compreensão das necessidades de um sistema consistente. (Santos e Cardoso, 2000:14)

Estas mudanças refletiram-se na própria escola formadora destes gestores. Conforme Pacheco (2000) e Souza (2002), que analisaram a formação das escolas de governo na América Latina, a cada mudança de contexto institucional o projeto do Enap sofreu alterações em seu projeto original, que se refletiu no perfil dos egressos da Escola.

Quanto à estrutura da carreira, uma série de tramitações — a exemplo do Projeto de Lei nº 3.429/2008, que propõe a progressiva transformação dos cargos de DAS em funções comissionadas do Poder Executivo, em detrimento do livre provimento na administração pública — vem fortalecendo a construção de uma política nacional de desenvolvimento de pessoal, no qual a Enap adquire papel central.

Desse modo, a questão crucial sobre as carreiras de Estado, a exemplo da de especialista em políticas públicas e gestão governamental, encontra-se em seu aproveitamento em cargos comissionados pelo Executivo federal. Nesse sentido, Rachel Pellizzone da Cruz (2009) sustenta que a nomeação de servidores públicos concursados pertencentes à carreira de Estado vem induzindo a criação de regras para as nomeações que consideram a competência dos candidatos em detrimento de critérios clientelistas.

Conforme Cruz (2009), a vinculação de cargos de comissão a carreiras de Estado não se traduz numa ideia nova na história recente da administração pública brasileira. Houve o Decreto-Lei nº 2.403, de 1987, o Anteprojeto de Lei da Secretaria de Planejamento da Presidência, o Projeto-Lei nº 4.407/1994 e a Lei nº 8.460, de 1992, que determinavam percentuais de DAS a serem providos por servidores de carreira. Todavia, essas iniciativas nem sempre contaram com respaldo político, e, na maioria das vezes, foram modificadas ou rejeitadas pelo Congresso Nacional.

A partir da reforma gerencial implantada na década de 1990, "desenhou-se um modelo de burocracia meritocrática compatível com a flexibilidade de nomeação que sempre caracterizou a administração brasileira" (Cruz, 2009:7). A ideia, sinteticamente, era de que os burocratas egressos das novas carreiras de Estado fossem incorporados progressivamente ao alto escalão do núcleo estratégico do Executivo federal. Ou seja, estes burocratas, que detêm expertise em formulação, implantação e avaliação de políticas públicas, tornar-se-iam naturalmente candidatos ou concorrentes aos cargos de comissão. Entretanto, como demonstra Cruz (2009), a análise das legislações posteriores revela certa permeabilidade entre certos cargos de DAS de livre nomeação e aqueles vinculados a carreiras.

Na prática, o que se verificou foi que, diferentemente "da previsão do MARE de que o recrutamento de novos quadros levaria a um aumento do contingente de servidores efetivos ocupantes de DAS" (Cruz, 2009:9), no governo de Fernando Henrique Cardoso, entre 1999 e 2000, houve um pequeno crescimento de servidores nos cargos de DAS nos níveis 2, 3 e 4, e queda na nomeação de servidores para o nível 6. Entretanto, no fim do segundo governo Fernando Henrique Cardoso a situação alterou-se, pois aumentou o número de servidores concursados na administração direta com formação superior.

Segundo Cruz (2009), destes servidores concursados, menos de 10% pertenciam às carreiras de gestão, como a de especialista em políticas públicas e gestão governamental. No entanto, estas carreiras sobrerrepresentavam-se e isolaram-se no Núcleo Estratégico, e após, com a Medida Provisória nº 2.229-41/2001, no Ciclo de Gestão. Esta vinculação ao Núcleo Estratégico e ao Ciclo de Gestão logo fez com que os membros dessas carreiras pleiteassem tratamento paritário às demais carreiras de Estado. Portanto, "verifica-se que, em relação ao ciclo de gestão, o discurso como valorização da administração como área estratégica, a possibilidade de autorregulamentação da carreira e a inserção privilegiada no núcleo do poder executivo também facilitaram o processo de consolidação dessa burocracia" (Cruz, 2009:13).

Com o objetivo de limitar as indicações políticas aos cargos de secretarias executivas ou secretarias nacionais dos ministérios, instituiu-se, em 2005, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o Decreto nº 5.497, que destinou 75% dos DAS de níveis 1, 2 e 3 e 50% dos DAS de nível 4 a servidores públicos. No entanto, essas vagas incluíam tanto os servidores de carreira ativos, os inativos, os servidores do Legislativo e do Judiciário, dentre outras esferas estatais, quanto aqueles que ingressaram no serviço público sem provimento de concurso público, antes de 1998. Deste modo, o decreto estabeleceu critérios confortáveis, mas não alterou de forma significativa o número de servidores de carreira e dos externos à administração direta (Cruz, 2009).

Depois, com o mesmo objetivo, foi aprovado o Projeto de Lei nº 3.429/2008, que propôs a criação das Funções Comissionadas do Poder Executivo (FCPE) restrita aos servidores de cargo efetivo da União. A ideia é que, ao extinguir certo número de cargos de DAS para criar cargos correspondentes de FCPE e alocados em órgãos com carreiras estruturadas e que demandem conhecimento técnico, reduzam-se as livres nomeações e a administração pública se profissionalize. Portanto,

a preocupação em centralizar as nomeações, o Decreto nº 5497/2005 e o Projeto de Lei das Funções comissionadas do Poder Executivo, evidenciam que a racionalização burocrática não ocorre apenas em razão de uma grande reforma administrativa a depender de aprovação do Poder Legislativo. A meritocracia pode se instalar gradualmente, a partir de iniciativas isoladas e dispersas ao longo do tempo. (Cruz, 2009:21)

Deste modo, conforme Cruz (2009), estas iniciativas governamentais vêm restringindo a livre indicação, reduzindo assim as nomeações estritamente políticas. Acredita a autora, nesse sentido, que, quanto mais carreiras meritocráticas o Estado criar e regulamentar, tende-se a reduzir a patronagem na administração pública. No entanto, reitera a autora que, ao invés de vincular cargos de comissão à estrutura das carreiras, deveria ser inserido mecanismo de seleção para esses cargos que compatibilizaria liberdade de nomeação e exoneração com o presidencialismo de coalizão.

O panorama descrito até então descreve o desenvolvimento e o estado atual da administração pública no Brasil e pontua os termos do debate em relação à carreira de especialista em políticas públicas e gestão governamental, como: 1) Distância entre a carreira e o perfil idealizado destes gestores, e o que se verifica na realidade (Santos e Cardoso, 2000; 2) Diferenças na formação adquirida na Enap e no recrutamento em períodos distintos (Santos e Cardoso, 2000; Souza, 2002); 3) O aproveitamento destes especialistas em políticas públicas e gestão governamental nos cargos comissionados do Executivo federal (Cruz, 2008, 2009; Pacheco, 2008). Aspectos estes que analisamos detalhadamente.

4. A formação dos EPPGG na Enap

Embora o curso de formação de especialistas em políticas públicas e gestão governamental ministrado na Enap tenha tido sua primeira edição durante o governo Collor, diante de suas indefinições e descontinuidades durante a gestão Itamar Franco, optamos por analisar a formação dos EPPGG na Enap a partir do primeiro governo Fernando Henrique Cardoso (FHC).

Neste primeiro momento destaca-se a heterogeneidade em termos de formação escolar dos egressos. Isto se deve ao fato de a Enap não exigir diploma de curso superior para candidatura ao concurso. Deste modo, 50% daqueles servidores públicos que preencheram as vagas existentes possuíam apenas certificados de conclusão do ensino médio. Esta não exigência esteve relacionada com a ideia de a Enap proporcionar uma formação similar à da ENA francesa, mas não levaram em consideração que, enquanto os ingressantes da ENA já vinham com conhecimentos profundos das disciplinas básicas, pois passavam anteriormente por cursos preparatórios na Sciences Po, boa parte dos da Enap não possuía nenhum tipo de formação nas disciplinas estruturantes do curso.

Isto fez com que a grade curricular e os conteúdos das disciplinas fossem constantemente refeitos, em função da disparidade de conhecimentos de seus alunos. Desse modo, uma série de matérias e atividades introdutórias foi privilegiada em detrimento daquelas de cunho prático, uma vez que, para apreender o mundo prático da formulação, elaboração e avaliação das políticas públicas, foi preciso nivelar os conhecimentos teóricos dos alunos. Dentre as atividades práticas destacou o seminário "Práticas de Políticas Públicas", em que os alunos elaboravam e avaliavam projetos em quatro áreas temáticas importantes para o governo, como violência, alimentação, desenvolvimento científico e tecnológico e processo de urbanização, e a expressiva carga horária dedicada à realização de estágio junto a órgãos do governo federal.

Portanto, este primeiro momento reflete a experiência isolada da primeira turma formada na Enap na conjuntura da redemocratização do país no final dos anos 1980. Entretanto, ao contrário da expectativa dos ingressantes na carreira, e da própria sociedade, que esperavam a capacitação de uma elite administrativa mediante uma formação primorosa, depararam-se com um curso exaustivo, com pouca coerência curricular, com conteúdos desarticulados. Ou seja, problemas que se relacionavam com o processo simultâneo de estruturação do curso (Ferrarezi e Zimbrão, 2005).

Desta primeira leva de especialistas em políticas públicas e gestão governamental, 90% exerceram cargos comissionados na administração pública federal, e, destes, 46% ocuparam posições de destaque através de cargos DAS 4 e 5. Portanto, já nesta primeira etapa o objetivo de formar técnicos para assumir posições estratégicas da administração pública federal se realizou.

O primeiro governo FHC compreende a formação da segunda à quinta turma de EPPGG. Os cursos ministrados na Enap neste período refletiam os esforços de institucionalização e de legitimação da reforma administrativa empreendida pelo Ministério de Administração e Reforma do Estado (Mare). Isto se verifica na extensiva carga horária dos eixos temáticos "Reforma do Estado e políticas públicas no Brasil" e "Administração pública e sistemas de gestão", conforme o quadro 1.


Estes eixos temáticos compreendem as disciplinas de "Reforma do Estado: Brasil em contexto comparado", "Plano Diretor da Reforma do Estado", "Formas históricas de administração pública", "Organizações públicas em contexto de mudança", "Monitoramento, controle e gestão por resultados", "Administração pública gerencial", dentre outras. O objetivo da maioria das disciplinas era, dentro da concepção da administração gerencial, inculcar entre os analistas de políticas públicas e gestão governamental um perfil similar ao do gestor do mercado privado, ou seja, que eles fossem agentes da mudança da "cultura burocrática tradicional" para a gerencial. Portanto, estas disciplinas buscavam explorar as diferentes formas que a New Public Management (Nova Administração Pública) realizou nos países considerados "desenvolvidos" e os benefícios para o Brasil da reforma gerencial implantada a partir do Mare.

Deste modo, este segundo momento relacionou-se com a reforma gerencial posta em vigor por Bresser-Pereira, então ministro de Administração e Reforma do Estado, a partir de 1995. Para Bresser-Pereira, o curso deveria aproximar-se do modelo norte-americano, no qual seus administradores são recrutados baseando-se na formação pós-graduada. Por isso a característica marcante do curso, neste período, foi a ênfase na temática "Administração gerencial" (Ferrarezi e Zimbrão, 2005:5). Esta formação, baseada no discurso do expert em gerência e avaliação do New Management, consagrou-se na formação das segunda, terceira, quarta e quinta turmas de EPPGG da Enap.

Com a crise financeira internacional ocorrida no final da década de 1990, durante a reeleição de Fernando Henrique Cardoso na Presidência da República, o tema e a implantação definitiva da reforma do Estado perderam importância diante da nova realidade brasileira e internacional. Um dos indicadores deste processo foi a fusão do Mare com o Ministério do Orçamento, tornando-se Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, em 1999.

Deste modo, o destaque nesse período, durante o segundo governo FHC, foi o desenvolvimento do Plano Plurianual 2000-2003. O governo, nesse período, buscava ampliar sua atuação através da implantação de uma série de políticas públicas previstas no Plano Purianual 2000-2003. Nesse contexto, a formação dos especialistas em políticas públicas e gestão governamental esteve intrinsecamente vinculada aos 380 projetos em curso pelo governo federal. Portanto, diante da crise econômica e social que o governo enfrentava, cabia à Enap formar os gestores para a execução dos projetos públicos em andamento.

Destaca-se nesse contexto a realização de oficinas sobre temas urgentes à época, como o fomento do empreendedorismo, desafios da redução da pobreza por meio de coordenação horizontal de políticas e programas com execução descentralizada, políticas sociais no Brasil, organização industrial, políticas de infraestrutura, desenvolvimento sustentável. Desse modo, na estrutura curricular, os eixos temáticos destinados a implantação, análise e avaliação de políticas públicas foram valorizados, como demonstra o quadro 2:


Embora a ênfase na administração pública ainda esteja presente na carga horária, em especial nas disciplinas de gestão orçamentária e financeira, as disciplinas de políticas públicas foram privilegiadas, como "Atores políticos, participação e controles", "Formulação e avaliação de políticas públicas", "Elaboração de projetos e indicadores de desempenho", "Gestão de políticas públicas", "Políticas públicas e gestão por programas" e "Avaliação de programas governamentais". Portanto, a formação dos especialistas em políticas públicas e gestão governamental pautou-se por qualificar esses agentes para gestar os projetos governamentais do período, em especial os previstos no Plano Plurianual Avança Brasil de 2000-03.

O primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-06) imprimiu novas diretrizes e prioridades na agenda governamental, que se refletiram na formação dos especialistas em políticas públicas e gestão governamental na Enap. As prioridades do governo nesse período referiam-se ao combate à concentração de renda, à riqueza e à exclusão social, assim como os entraves à geração de emprego e renda no Brasil. Diante dessas metas, o governo ampliou suas atividades na área de gestão de políticas públicas por meio do fortalecimento e da coordenação de ações intergovernamentais.

Dentro desta nova concepção, a Enap passa a ser considerada Escola de Governo, dentro da Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoal (PNDP), de 2006. Em termos de formação, isto representou um afastamento do perfil acadêmico que até então a Enap mantinha, através dos conteúdos dos seus cursos, e ela passa a ter um perfil mais prático, como uma escola de aplicação e reflexão sobre as práticas políticas e sociais.

Desse modo, as disciplinas dos cursos da Enap foram integradas em torno dos principais temas e problemas relacionados ao governo federal, tendo como referência na formação dos especialistas em políticas públicas e gestão governamental a promoção da igualdade e do desenvolvimento humano e social sustentável.

A carga horária dos eixos temáticos do curso foi reduzida, devido à urgência do governo em contar com estes gestores na administração pública federal, como demonstra o quadro 3.


Destaca-se, mesmo com a significativa redução da carga horária e a extinção das oficinas e estágio nos órgãos públicos, a ênfase nas disciplinas de gestão, de implementação e avaliação de políticas públicas, e um aumento relativo em disciplinas de análise e interpretação de dados econômicos, sociais e administrativos. Dentre as disciplinas desse período encontram-se as de "Sistemas de gestão da informação", "Planejamento e gestão financeira e orçamentária", "Planejamento estratégico", "Atores políticos e participação", "Estudos de atores e análise estratégica", "Análise organizacional das políticas públicas", dentre outras.

Este quarto momento refere-se à oitava e à nona edição do curso. A partir do primeiro governo Luiz Inácio Lula da Silva, o curso da Enap foi todo reformulado. Dentre as principais, buscou dar coerência às disciplinas e à formação recebida. Esta maior organicidade didática deve-se, em parte, ao Decreto nº 5.497, de 2005, que estabeleceu que 75% da DAS de níveis 1 a 3 e 50% da DAS de nível 4 deveriam ser ocupados por servidores de carreira. Portanto, no processo de profissionalização da burocracia, os egressos da Enap constituem as peças-chave para aumentar a capacidade técnica do Estado, o que justifica a ênfase numa formação, além de generalista, orgânica.

Embora ainda não se conte com dados para os anos subsequentes, pode-se inferir que essa maior organicidade didática e o aproveitamento direto na burocracia pública federal tiveram relação com o Decreto nº 5.437, uma vez que a carreira de especialista em políticas públicas, juntamente com outras carreiras de Estado, foi vinculada às atividades governamentais, em especial àquelas da área social.

Destaca-se que, no segundo governo Lula, foram criadas as Funções Comissionadas do Poder Executivo (FCPE), restritas aos servidores efetivos dos poderes da União, pelo Projeto nº 3.429/2008. Esse projeto buscou reduzir os cargos em comissão do Poder Executivo e melhorar a profissionalização do setor público, beneficiando muito dos especialistas em políticas públicas e gestão governamental.

Entretanto, a inclusão desses especialistas nestas novas funções comissionadas foi decorrente da própria ação da categoria profissional para inserir-se nestes cargos e na luta pela reestruturação salarial. Desse modo, enquanto nos governos FHC seguiam a lógica do modelo privado de salários, nos governos subsequentes, de Luiz Inácio Lula da Silva, os próprios servidores passaram a negociar seus salários, através de associações de classe.

Portanto, se durante os primeiros anos da carreira a cultura que impregnava era do desempenho para a valorização salarial da carreira, nos subsequentes predominou a cultura da participação, em que os próprios burocratas ditam a agenda sobre as carreiras e a remuneração. Pode-se considerar, nesse sentido, que, na última década, os próprios servidores, nesse caso o especialista em políticas públicas e gestão governamental, constroem sua carreira, após o concurso, a partir de suas competências profissionais e da oferta de cargos de comissão (Cruz, 2008).

5. O perfil, a distribuição dos EPPGG na administração pública federal e a condução de políticas

Além da formação recebida na Enap, é interessante destacar o perfil destes especialistas em políticas públicas e gestão governamental, sua circulação na administração pública e a forma com que conduzem os programas governamentais. A ideia é destacar como este perfil da administração pública vem sendo aproveitado nos diversos órgãos do Executivo.

A formação acadêmica e profissional das turmas egressas da Enap é bastante diversificada. A maioria daqueles que frequentaram os cursos na Enap possuía formação em administração, engenharia e economia. Esse tipo de formação esteve presente em quase todas as turmas, até a 11ª edição do curso. Entretanto, no decorrer das turmas, percebe-se uma diminuição daqueles com formação superior em economia, em especial a partir da nona turma, como demonstra o quadro 4.


A partir da sétima turma registram-se alguns alunos com formação em direito, da quinta à sétima, um incremento de alunos com formação em relações internacionais, assim como, a partir da oitava turma, uma diminuição daqueles com formação em administração. Esses dados reiteram a formação diversificada destes gestores, que não se concentra em um ou dois ramos profissionais.

O perfil etário dos egressos das turmas da Enap concentra-se entre as faixas etárias de 20-39 anos. Enquanto os alunos na faixa etária de 40-59 anos representavam 25% do universo na primeira turma, 34% na quinta e 37,77% na sexta, na última turma analisada representavam apenas 13%. Já os mais novos, na faixa etária dos 20-29, foram a maioria na terceira turma, na sétima, na nona e na 10ª. Aqueles na faixa etária dos 30-39 anos representavam a maioria na segunda turma, e na última turma compreendiam 43% do universo pesquisado, como ilustrado no quadro 5.


Portanto, os egressos das turmas da Enap que seguiram a carreira de EPPGG possuem uma formação acadêmica variada, com destaque para a formação em ciências humanas aplicadas, como economia, administração, direito. Quanto a seu perfil etário, pode-se considerar que esses gestores preparados para assumir posições técnicas em variados órgãos públicos federais são jovens, entre 20 e 35 anos. Possivelmente, para alguns, esta foi sua primeira experiência profissional no setor público.

Em relação à sua distribuição no Executivo federal, os EPPGG têm presença marcante nos projetos da área social, da econômica, do governo e, em menor grau, na área de infraestrutura. A presença desses gestores nessas áreas é consequência de uma ampliação de sua atuação na última década, como demonstra a figura 1.


Percebe-se que, em 2002, último ano do governo FHC, pouco mais de 150 EPPGG trabalhavam na área social, número que teve certa queda no primeiro governo Lula, em 2003. Entretanto, a presença dos EPPGG na área econômica, que vinha crescendo nas duas gestões do governo do PT, com pico em 2006 e 2007, quando cerca de 300 EPPGG estavam vinculados aos projetos desta área do Executivo federal, a partir de 2008 começa a decair com o aumento de EPPGG na área social, em especial no ano de 2009.

O incremento de pessoal EPPGG na área social teve relação com a criação do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDF) em 2004. O pico de pessoal EPPGG no MDS verifica-se no ano de 2009, prosseguindo no de 2010, conforme figura 2.


No ano de 2009, o Programa Bolsa Família estava se institucionalizando com a ampliação de suas demandas. Exatamente neste contexto se ampliou a requisição de EPPGG no ministério responsável por esse programa social, o MDS. Conforme a especialista em políticas públicas e gestão governamental, ex-secretária do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o sucesso do programa teve relação com o investimento em quadros técnicos, em especial a contribuição dos EPPGG. Segundo a gestora, o ingresso desses especialistas em políticas públicas e gestão governamental afastou as ingerências políticas, e impôs critérios técnicos que foram, conforme a gestora: "determinantes para a gente conseguir cumprir os objetivos que estavam impostos, no tempo previsto e com qualidade — fundamental para garantir a sustentabilidade do Programa" (Para secretária..., 2012).

Conforme a gestora, o aproveitamento de EPPGG na condução do PBF foi importante, mas a atuação destes gestores foi essencial na estruturação do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, pois "Foi o único jeito que a gente teve de trazer pessoal qualificado para um Ministério que era novo, que não tem carreira e que não tinha recursos humanos. Nós nos apoiamos nos gestores" (Para secretária..., 2012).

Neste período, verifica-se um declínio de pessoal EPPGG no Ministério da Saúde e um incremento desses gestores no Ministério da Cultura. Isto representa a tendência dos gestores a circularem entre os ministérios, embora com algumas exceções. Por exemplo, a EPPGG que foi diretora do Departamento de Apoio à Descentralização do Ministério da Saúde, em 2009, atua, desde 2000, no mesmo Ministério, conforme seu depoimento:

Estou na carreira há quase dez anos, pois fui nomeada em janeiro de 2000. Desde então, atuo no Ministério da Saúde, já que minha formação de base é em medicina, com pós-graduação em saúde pública. Como eu tinha experiência institucional pública anterior, posso compará-la à experiência como gestora e afirmar que minha trajetória profissional após a inserção na carreira foi completamente diferente da anterior, tanto pela possibilidade de trabalho em rede, com os demais colegas da carreira, quanto pelas possibilidades de aperfeiçoamento que surgiram desde então. No meu caso específico, pude contar com a confiança dos chefes que tive aqui no Ministério da Saúde, que me concederam a possibilidade de coordenar equipes e processos, o que tem se constituído como um desafio permanente.(Gestora..., 2012)

Em relação à atuação de EPPGG no governo federal, concentra-se na Presidência da República e no Ministério da Justiça. A presença desses gestores, nos órgãos da Presidência da República, vem aumentando desde 2002, com pico no primeiro governo Lula, em 2003. No Ministério da Justiça, o ano de 2003 registrou baixa demanda desses gestores, só tendo-os requisitado mais em 2006, como demonstrado na figura 3.


Os gestores EPPGG que compõem os quadros do governo normalmente já circularam por outros órgãos do Executivo federal, assim como em outros poderes da União. Possivelmente são selecionados nesses cargos comissionados da administração direta por sua experiência e reconhecimento profissional. Por exemplo, a EPPGG que foi diretora da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE), em 2009, recebeu, devido às diversas funções executadas nos três poderes da União e na iniciativa privada, os prêmios Mulheres mais influentes do Brasil, na categoria Direitos Humanos, Prêmio Claudia, categoria trabalho social. Durante sua trajetória, já atuou como secretária de gestão adjunta do Ministério do Planejamento, dirigiu o projeto de Combate ao Trabalho Escravo no Brasil, na Organização Internacional do Trabalho (OIT), foi diretora de Benefícios da Previdência Social e foi coordenadora do Programa Nacional dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça, assim como integrou a diretoria de Administração do Supremo Tribunal Federal (STF). Sua atividade frente à SAE consiste, conforme a gestora, em:

(...) formular estratégias que permitam solucionar problemas identificados pela SAE nas áreas de saúde, trabalho, transferência de renda, assistência social e gestão, como fundamentais para o desenvolvimento sustentável do país, em sintonia com as diretrizes e políticas definidas pelo Ministro, assim como articular politicamente a aprovação e implementação das mesmas com atores do setor público, privado e da sociedade civil. (Políticas sociais para a nação, 2012)

A mobilidade que a carreira de EPPGG proporciona também é compartilhada pelo gestor EPPGG, chefe do gabinete do ministro chefe da Secretaria de Comunicação, conforme seu depoimento:

Faço parte da IV turma, que tomou posse há quase 11 anos. Meu primeiro exercício descentralizado deu-se no Ministério do Trabalho e Emprego, onde cuidei por cerca de 4 anos de negociações internacionais em fóruns como a OMC e de nível hemisférico. Também produzia textos institucionais. Migrei para o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e assumi a direção do Projeto EuroBrasil 2000, uma iniciativa que visou contribuir para o aperfeiçoamento institucional do Estado brasileiro, experiência de cerca de 2 anos. Após outros 2 anos cedido para a Câmara dos Deputados, retornei ao Poder Executivo e hoje exerço a chefia de gabinete do ministro chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. Nossa mobilidade garante-nos muitas possibilidades. Procuro exercê-la com parcimônia, escolhendo os desafios mais interessantes, e disso tenho extraído conhecimentos valiosos não somente para meu crescimento profissional como também para minha vida pessoal. (Entrevista..., 2012)

Esta mobilidade entre os ministérios e a Presidência da República tem relação com o aproveitamento dos EPPGG em cargos nomeados, como os de DAS. Esta prática se expandiu após o Decreto nº 176/2006.

Conforme os dados da Seges, em 2008 os EEPP ocupavam 31% das vagas de DAS 1, 2 e 3; 21% das de DAS 4; 9% das de DAS 5 e 6 e 39% destes servidores não possuíam cargos de DAS. Dentre os ministérios, os que mais agregavam estes servidores em cargos de DAS 5 e 6 são o do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (15,63%), o do Planejamento, Orçamento e Gestão (14,49%), o do Transporte (14,29%), o da Cultura (11,54%), o de Minas e Energia (9,43%), dentre outros. Percebe-se, diante desse quadro, que, mesmo que o Executivo federal venha tentando incorporar esses servidores públicos nos altos cargos de Direção (DAS 6 e 7), esse movimento é pouco significativo, à exceção dos ministérios que demandam conhecimento técnico da condução de programas sociais abrangentes, como o MDS.

6. Considerações finais

A análise da evolução de uma carreira de Estado, no caso, a de especialista em políticas públicas e gestão governamental, permite uma breve reflexão, mesmo de forma sumária, sobre as dificuldades de se construir uma burocracia meritocrática, a partir de uma formação fomentada pelo próprio Estado, baseada na expertise técnica no Brasil.

Os estudos sobre esta carreira reiteraram que seu desenvolvimento está muito distante do que a reforma administrativa de 1995 previa. Referem-se, principalmente, ao fato de que a posição que os EPPGG ocupariam no desenho do Estado no projeto original não corresponde à atual situação, ou seja, a carreira não se encontra acima das demais carreiras de Estado, tanto hierarquicamente, quanto em termos salariais, como previsto na reforma administrativa.

Diante desta situação, os governos vêm tentando, especialmente a partir do primeiro governo Lula, por meio de uma série de decretos e projetos, incorporar estes funcionários de carreiras em cargos de DAS em órgãos do Executivo federal. Esta estratégia é vista como uma forma de reduzir a patronagem política a longo prazo na administração pública (Cruz, 2008); por outro lado, a acomodação destes funcionários de carreira em cargos de comissão é entendida como um modo de desestruturação da carreira e da remuneração do serviço público (Pacheco, 2000, 2008).

Na ausência de dados qualitativos sobre a atuação desses gestores, suas mobilidades, as redes sociais e políticas que compartilham,3 3 Pretende-se nesta pesquisa, futuramente, realizar entrevistas com estes gestores, e agregar informações de natureza qualitativa, para compreender a dinâmica interna dos gestores desta carreira. não é possível inferir que a inserção desses gestores no Executivo federal tenha apenas relação com as estratégias governamentais de reduzir o clientelismo e o fisiologismo de suas administrações, ou que revele uma predisposição governamental a desestruturar a carreira em proveito de outras, ou mesmo uma opção do Poder Executivo pela meritocracia.

O que os dados disponíveis indicam é que, mesmo se a incorporação dos servidores de carreira nos cargos de DAS for uma estratégia governamental de reduzir a patronagem na administração pública, em relação à incorporação dos EPPGG no Executivo federal a hipótese não se confirma, pois, dos cargos mais altos da administração direta, ocupam apenas 9% dos cargos de DAS 5 e 6, e 21% dos de DAS 4.

Entretanto, em alguns ministérios e/ou em órgãos públicos federais, estes gestores têm um aproveitamento relevante, como foi o caso deles no Ministério da Saúde na última gestão FHC e de sua atuação na estruturação e desenvolvimento do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, criado durante o governo Lula. Em relação a este último, destaca-se a coordenação de alguns desses gestores na condução do Programa Bolsa Família.

Percebe-se que a inserção destes servidores públicos formados pela Enap na burocracia pública federal por meio da ocupação dos cargos de DAS é também resultado, na última década, da ação da categoria profissional associada ao Executivo federal. Desse modo, ao adotarem essa prática, distanciaram-se da lógica de remuneração salarial segundo o modelo privado, em que os salários eram complementados através de subsídios por desempenho, e passaram a negociar sua estrutura salarial.

Nesse sentido, embora pouco explorada nesta reflexão, a luta da categoria por sua reestruturação salarial e inserção nos cargos de administração direta do Executivo federal revela uma carreira com contornos profissionais, em que o servidor constrói sua carreira, após o concurso, a partir de suas competências profissionais e da oferta de cargos de comissão, distanciando-se, assim, da concepção de uma carreira de "dirigentes públicos", inspirada no modelo francês. Conforme Cruz (2008), esta tendência já era prevista, uma vez que o modelo francês, que inspirou a criação da carreira de EPPGG, é incompatível com o sistema político — com o presidencialismo de coalizão — brasileiro.

Portanto, para confirmar se essas estratégias governamentais de inserir seus quadros técnicos em cargos de DAS têm reduzido a patronagem política na administração pública, deve-se mapear os efeitos que estas iniciativas estão gerando nas nomeações políticas, não apenas analisar o corpo de funcionários públicos do Executivo federal. Acredita-se que tal esforço futuro permita dissociar a discussão sobre a burocracia pública no Brasil da política, abrindo-se assim uma agenda de pesquisas sociológicas sobre a administração pública e a dinâmica interna do Estado brasileiro.

Artigo recebido em 6 jun. 2012 e aceito em 24 jun. 2013.

Lorena Madruga Monteiro é doutora em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora titular I do Núcleo de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade Integrada Tiradentes (Fits). E-mail: lorena.madruga@gmail.com.

  • ABERBACH, Joel; PUTNAM, Robert; ROCKMAN, Bert. Bureaucrats et policians westerns democracies Massachuts: Harvart University Press, 1981.
  • ABRÚCIO, Fernando. Trajetória recente da gestão pública brasileira:um balanço crítico e a renovação da agenda de reformas. Rev. de Adm. Pública, Rio de Janeiro, v. 41, n. especial, p. 67-86, 2007.
  • ABRÚCIO, Fernando; LOUREIRO, Maria Rita. O Estado numa era de reformas: os anos FHC.Brasília: Ministério do Planejamento; Pnud; Ocde, 2002.
  • ABRÚCIO, Fernando; LOUREIRO, Maria Rita; ROSA, Carlos. Radiografia da alta burocracia federal brasileira: o caso do Ministério da Fazenda. Revista do Serviço Público, Brasília, ano 49, n. 4, p. 47-82, out./dez. 1998.
  • AMORIM NETO, Otávio. Formação de gabinetes presidenciais no Brasil: coalizão versus cooptação. Belo Horizonte:Nova Economia, 1994.
  • ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE ESPECIALISTAS EM POLÍTICAS PÚBLICAS. Disponível em: <http://aeppsp.org.br/>. Acesso em: 20 ago. 2011.
  • BRASIL. Plano Diretor da reforma do aparelho de Estado Brasília: Presidência da República; Câmara da reforma do Estado, 1995.
  • BRESSER-PEREIRA, Luiz C. Reforma do Estado para a cidadania São Paulo: Ed. 34, 1998.
  • BRESSER-PEREIRA, Luiz C.; SPINK, Peter (Org.). Reforma do Estado e administração pública gerencial Rio de Janeiro: FGV, 1998.
  • CHARLE, Christophe. Les elites de la République revisitado. Tomo, São Cristóvão, n. 13, p. 15-42, jul./dez. 2008.
  • CHEIBUG, Zairo; MESQUITA, Amélia. Os especialistas em políticas públicas e gestão governamental: avaliação de sua contribuição para políticas públicas e trajetória profissional. Brasília: Enap, 2001. (Texto para discussão, n. 43)
  • CRUZ, Rachel. Carreiras burocráticas e meritocracia: o impacto do ingresso de novos servidores na última década sobre a dinâmica do preenchimento dos cargos em comissão no governo federal brasileiro. In: CONGRESSO CONSAD DE GESTÃO PÚBLICA, II, 2009, Brasília.
  • CRUZ, Rachel. Carreiras de Estado e cargos em comissão no Brasil Pós-1994 pela perspectiva teórica de Silberman: a consolidação de uma burocracia de tipo profissional. Dissertação (mestrado) Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 2008.
  • D'ARAÚJO, Maria Celina. Governo Lula: contornos sociais e políticos da elite do poder. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 2007.
  • ENTREVISTA com o gestor governamental Sylvio Kelsen Coelho. Gestor em foco Disponível em: <www.anesp.org.br/?q=node/2463>. Acesso em: 5 mar. 2012.
  • EVANS, Peter; RAUCH, James. Bureaucracy and growth: a cross-national analyses of the effets of the "weberian" state structures on economic growth. American Sociological Review, n. 64, p. 48-765, 1999.
  • FERRAREZI, Elisabete et al. A experiência da Enap na formação inicial para a carreira de especialista em políticas públicas e gestão governamental EPPGG: 1988 a 2006. Cadernos Enap, Brasília, v. 1, n. 33, p. 7-92, 2008a.
  • FERRAREZI, Elisabete et al. A experiência da Enap na formação inicial para a carreira de especialista em Políticas Públicas e gestão governamental- EPPGG: 1988 a 2006. Cadernos ENAP, Brasília, v. 2, n. 33, p. 93-215, 2008b.
  • FERRAREZI, Elisabete; ZIMBRÃO, Adélia. Formação de carreiras para a gestão pública contemporânea: o caso dos especialistas em políticas públicas e gestão governamental. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DEL CLAD SOBRE LA REFORMA DEL ESTADO Y DE LA ADMINISTRACION PÚBLICA, X, 2005, Santiago, Chile.
  • GEDDES, Barbara. The policians dillema: building state capacity in Latin America. Berkeley: University of California Press, 1994.
  • GESTORA Lúcia Queiroz fala de sua experiência no Ministério da Saúde. Gestor em foco Disponível em: <www.anesp.org.br/?q=node/2529>. Acesso em: 5 mar. 2012.
  • GOUVEIA, Gilda. Burocracia e elites burocráticas no Brasil: poder e lógica de ação. Tese (doutorado) Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1994.
  • LIPSKY, Michael. Street-level bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. Nova York: Russell Sage, 1980.
  • LONGO, Francisco. A consolidação institucional do cargo de dirigente público. Revista do Serviço Público, v. 54, n. 2, p. 7-33, 2002a.
  • LONGO, Francisco. Mérito e flexibilidade: a gestão de pessoas no setor público. São Paulo: Fundap, 2002b.
  • LOPEZ, Felix. Política e burocracia nos estados da Índia e do Brasil. Revista Sociologia e política, Curitiba, v. 16, n. supl., p. 69-92, 2008.
  • LOUREIRO, Maria Rita; ABRÚCIO, Fernando. Política e burocracia no presidencialismo brasileiro:o papel do Ministério da Fazenda no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 41, p. 69-89, 1999.
  • MARTINS, Luciano. Estado capitalista e burocracia no Brasil pós-1964 Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
  • NUNES, Edson. A gramática política brasileira Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
  • OLIVIERI, Cecília. Os controles políticos sobre a burocracia. Rev. de Adm. Pública, Rio de Janeiro, v. 45, n. 5, p. 1395-1424, 2011.
  • OLIVIERI, Cecília. Política, burocracia e redes sociais: as nomeações para o alto escalão do Banco Central do Brasil. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 29, p. 147-168, nov. 2007.
  • PACHECO, Regina. Escolas de governo: tendências e desafios a Enap em perspectiva comparada. Revista do Serviço Público, Brasília, v. 51, n. 2, p. 35-53, 2000.
  • PACHECO, Regina. Mudanças no perfil dos dirigentes públicos no Brasil e desenvolvimento de competências de direção. In: CONGRESO INTERNACIONAL DEL CLAD SOBRE LA REFORMA DEL ESTADO Y DE L ADMINISTRACION PÚBLICA, VII, 2002, Lisboa, Portugal.
  • PACHECO, Regina. Organizando o debate: dirigentes públicos no Brasil. In: CONGRESSO CONSAD DE GESTÃO PÚBLICA, I, Painel "Sobre dirigentes públicos: O que há de novo no Brasil?", 2008, Brasília.
  • PARA secretária do Bolsa Família, equipe é fundamental no sucesso do programa. Gestor em foco Disponível em: <www.anesp.org.br/?q=node/2807>. Acesso em: 15 jul. 2012.
  • POLÍTICAS sociais para a nação. Gestor em foco: perfil de Patrícia Audi. Disponível em: <www.anesp.org.br/?q=node/2592>. Acesso em: 5 mar. 2012.
  • ROUANET, Sérgio. Criação no Brasil de uma Escola Superior de Administração Pública Brasília: Enap, 2005.
  • SANTOS, Luiz; CARDOSO, Regina. A experiência dos gestores governamentais no governo federal do Brasil. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DEL CLAD, V, 2000, São Domingo, República Dominicana. Mimeografado.
  • SEGES. Secretaria de Gestão. Gestão da carreira de especialista em políticas públicas e gestão governamental Brasília: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, 2008.
  • SEGES. Secretaria de Gestão. Gestão da carreira de especialista em políticas públicas e gestão governamental Brasília: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, 2010.
  • SILBERMAN, Bernard. Cages of reason: the rise of the rational state in France, Japan, the United States and Great Britain. University of Chicago Press, 1993.
  • SOUZA, Eda C. A capacitação administrativa e a formação de gestores governamentais. Rev. de Adm. Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 1, p. 73-88, jan./fev. 2002.
  • SOUZA, Eda C. Escolas de governo do Cone Sul: estudo institucional do Inap (Argentina) e da Enap (Brasil). Tese (doutorado) Ciências Sociais, Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, 1996.
  • WEBER, Max. Os três tipos de dominação legítima. In: COHN, Gabriel. Weber Ática: São Paulo, 1969. p. 128-141.
  • 1
    Essa questão é bastante explorada nas análises de Cecília Olivieri (2007, 2011a).
  • 2
    Conforme Associação Nacional de Especialistas em Políticas Públicas. Disponível em: <
    http://aeppsp.org.br/>. Acesso em: 20 ago. 2011.
  • 3
    Pretende-se nesta pesquisa, futuramente, realizar entrevistas com estes gestores, e agregar informações de natureza qualitativa, para compreender a dinâmica interna dos gestores desta carreira.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Dez 2013
    • Data do Fascículo
      Out 2013

    Histórico

    • Recebido
      06 Jun 2012
    • Aceito
      24 Jun 2013
    Fundação Getulio Vargas Fundaçãoo Getulio Vargas, Rua Jornalista Orlando Dantas, 30, CEP: 22231-010 / Rio de Janeiro-RJ Brasil, Tel.: +55 (21) 3083-2731 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: rap@fgv.br