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Análise da instrumentação da ação pública a partir da teoria do ator-rede: tecnologia social e a educação no campo em Rondônia

Análisis de la instrumentación de la acción pública desde la teoría del actor-red: tecnología social y la educación rural en Rondônia

Resumos

Este artigo discute o uso de tecnologias sociais para a instrumentação da ação pública e a adoção da teoria do ator-rede como suporte para a análise relacional. Para tanto, um estudo de caso qualitativo foi realizado para analisar a adoção da pedagogia da alternância como instrumento da política de educação rural do estado de Rondônia, Brasil. Constatou-se que, apesar de o governo estadual querer definir um modelo padrão, a instrumentação da educação no campo foi transladada diversamente em diferentes regiões do estado, por meio da ação pública que envolveu uma ampla rede de atores. Concluindo que, em decorrência dessas múltiplas e diferentes formas de instrumentação sociotécnica da ação pública, existe uma maior demanda pela abertura dos atores governamentais à dinâmica relacional do processo de construção de políticas públicas.

Palavras-chave:
teoria do ator-rede; instrumentos de política; tecnologia social; política de educação no campo; pedagogia da alternância


En este artículo se analiza el uso de las tecnologías sociales para la instrumentación de la acción pública y la adopción de la teoría del actor-red como soporte para el análisis relacional. Por lo tanto, un estudio de caso cualitativo se realizó para analizar la adopción de la pedagogía de alternancia como instrumento de la política de la educación rural en el estado de Rondônia, Brasil. Se encontró que mismo, aunque el gobierno del estado quiere establecer un modelo estándar, la instrumentación de la educación rural se ha traducido de forma diferente en diferentes regiones del estado, a través de la acción pública que comprende una amplia red de actores. Concluyendo que, como resultado de estas múltiples y diferentes formas de instrumentación socio-técnico de la acción pública, hay una mayor demanda de la apertura de los actores gubernamentales a las dinámicas relacionales del proceso de construcción de políticas públicas.

Palabras clave:
teoría del actor-red; instrumentos de las políticas; tecnología social; política de educación rural; pedagogía de la alternancia


This article discusses the use of social technologies for the instrumentation of public action and the adoption of actor-network theory as support for relational analysis. In order that, a qualitative case study was carried out to analyze the adoption of pedagogy of alternation as an instrument for rural education policy in the state of Rondônia, Brazil. It was found that, although the state government wanted to define a standard model, the instrumentation of rural education was translated differently in different regions of the state, through public action that involved a broad actor-network. Concluding that, as a result of these multiple and different forms of sociotechnical instrumentation of public action, there is a greater demand for the opening of government actors to the relational dynamics of the process of construction of public policies.

Keywords:
actor-network theory; social technology; policy instruments; rural educational policy; pedagogy of alternation


1. Introdução

Apesar de serem centrais à análise de políticas desde o seu primórdio com Harold Lasswell na década de 1950 (Pal, 2010PAL, Leslie A. Beyond policy analysis. 4. ed. Toronto: Nelson Press, 2010.), os instrumentos têm sido pouco explorados na análise das políticas públicas, em especial no Brasil. Porém, quando são tratadas as questões relativas à implementação, os instrumentos acabam por ser lembrados, e, como destaca Hood (1983HOOD, Christopher. The tools of government: public policy and politics. Londres: The Macmillan Press, 1983., 2006HOOD, Christopher. The tools of government: public policy and politics. Londres: The Macmillan Press, 1983., 2007HOOD, Christopher. Intellectual obsolescence and intellectual makeovers: reflections on the tools of government after two decades. Governance, v. 20, n. 1, p. 127-144, 2007.), além de uma pretendida racionalidade técnica que se quer explicitada em sua aplicação, é necessário reconhecer que na sua escolha estão sempre implicados aspectos políticos, ideológicos e culturais.

Os instrumentos de política pública não são, portanto, neutros, tendo características sempre situacionais à medida que elementos técnicos estão sempre vinculados a aspectos sociais (Lascoumes e Le Gales, 2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2007.). Isto é, materialidades práticas, que refletem diferentes capacidades de ação naquilo que o técnico e o social performam simetricamente (Latour, 2012LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba, 2012.), e podem ser explicitadas nos efeitos de instrumentação da ação pública (Lascoumes e Le Gales, 2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2007.).

Neste sentido, Lascoumes e Le Gales (2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2007.) sugerem que os instrumentos de ação pública são dispositivos técnico-sociais que orientam as relações entre a administração estatal e a sociedade civil. Essas relações são aquilo que tem caracterizado as políticas públicas na contemporaneidade de maneira que, conforme Farah (2011FARAH, Marta F. S. Administração pública e políticas públicas. Rev. Adm. Pública, v. 45, n. 3, p. 813-836, maio/jun.2011.), o público é ampliado para além das fronteiras do Estado, incluindo as organizações da sociedade civil no seu processo de formulação, implementação e controle.

Por sua vez, a ação da sociedade civil organizada na resolução de problemas comuns é o que tem caracterizado originalmente as denominadas tecnologias sociais (TS). Trata-se de uma construção coletiva direcionada para a resolução de problemas socioambientais cotidianos por meio da interação, do conhecimento e das iniciativas das próprias comunidades locais que possibilitam a inclusão social, a autonomia, o desenvolvimento sustentável e a transformação social (Bava, 2004BAVA, Silvio C. Tecnologia social e desenvolvimento local. In: FUNDAÇÃO BANCO DO BRASIL (Org.). Tecnologia social: uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: FBB, 2004. p. 103-116.; Freitas e Segato, 2014FREITAS, Cesar C. G.; SEGATTO, Andrea P. Ciência, tecnologia e sociedade pelo olhar da tecnologia social: um estudo a partir da teoria crítica da tecnologia. Cad. EBAPE.BR, v. 12, n. 2, p. 302-320, 2014.; Peyloubet et al., 2010PEYLOUBET, Paula et al. Desarrollo local a partir del uso de tecnología social: un enfoque alternativo. Cuardeno Urbano Espacio, Cultura, Sociedad, v. 9, n. 9, p. 170-191, 2010.; Rodrigues e Barbieri, 2008RODRIGUES, Ivete; BARBIERI, José Carlos. A emergência da tecnologia social: revisitando o movimento da tecnologia apropriada como estratégia de desenvolvimento sustentável. Rev. Adm. Pública, v. 42, n. 6, p. 1069-1094, nov./dez. 2008.; Thomas, 2009THOMAS, Hérnan. De las tecnologías apropiadas a las tecnologías sociales: conceptos/estrategias/diseños/acciones. In: SEMINARIO IBERO-AMERICANO DE CIENCIA Y TECNOLOGIA DEL CENTRO EXPERIMENTAL DE LA VIVENCIA DE LA ECONOMÍA, IV, 2009, Córdoba.).

Esse é o caso da pedagogia da alternância (PA), reconhecida como TS por diversas organizações governamentais e não governamentais brasileiras, incluindo também a Organização das Nações Unidas (ONU). Originalmente desenvolvida na França pelo próprio campesinato, antes da Segunda Guerra Mundial, para atender as necessidades de educação rural, ela se faz presente atualmente em diversos países da Europa, África e América Latina no atendimento das demandas de comunidades rurais, fortemente embasada na associação de famílias para implantar um processo de formação integral com base na alternância entre escola e atividade no campo, que é indissociável de uma educação voltada para o desenvolvimento local e sustentável, tendo suas primeiras escolas implantadas no Brasil no final da década de 1960.

Recentemente, a exemplo de outras TS, a PA tem sido indicada como um instrumento sociotécnico na instrumentação das políticas de educação no campo. Isso se insere na necessidade de se considerar as particularidades da educação das populações rurais no Brasil que vem sendo discutida há algumas décadas. Desse modo, o direito à educação no campo sobre parâmetros diferenciados a partir de uma prática pedagógica construída por aqueles sujeitos que os vivenciam, como é o caso da PA, foi conquistado e demanda pela introdução de políticas inovadoras no Brasil (Brasil, 2007BRASIL. Educação do Campo: diferenças mudando paradigmas. Brasília: Ministério da Educação, 2007.).

No entanto, é necessário melhor explicitar a análise da instrumentação da ação pública proposta por Lascoumes e Le Gales (2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2007., 2012bLASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Sociologia da ação pública. Maceió: Editora da Ufal, 2012b.) no que diz respeito à análise de uma dinâmica processual que combina elementos heterogêneos a partir de bases relacionais entre agentes e instrumentos. Para tanto, este artigo propõe adotar a teoria do ator-rede (TAR) operacionalizando a análise da instrumentação da ação pública por meio de efeitos gerados como sugerida por Lascoumes e Le Gales (2012b)LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Sociologia da ação pública. Maceió: Editora da Ufal, 2012b., esclarecendo que essa teoria tem sido adotada na análise de políticas a exemplo de Andrade (2006ANDRADE, Jackeline A. Redes de atores: uma nova forma de gestão das políticas públicas no Brasil? Gestão & Regionalidade, n. 64, p. 52-66, 2006.), analisando a formação de políticas públicas no Brasil, e de Grau-Solés, Íñiguez-Rueda e Subirats (2011)GRAU-SOLÉS, Marc; ÍÑIGUEZ-RUEDA, Lupicinio; SUBIRATS, Joan. ¿Cómo gobernar la complejidad? Invitación a una gobernanza urbana híbrida y relacional. Athenea Digital, v. 11, n. 1, p. 63-84, 2011., analisando o processo de governança urbana na Espanha.

O objetivo é analisar essa instrumentação acompanhando a dinâmica relacional que envolveu múltiplos atores sociais e materiais na produção de efeitos, conforme propõe a TAR, partindo do princípio de que os instrumentos não são definidos a priori por meio de escolhas técnicas de governos. Assim, a análise de instrumentação da ação pública proposta orienta-se para o processo de composição de dispositivos sociotécnicos, considerando a amplitude e a variedade dos atores envolvidos em um processo de inovação aberta no qual comunidades híbridas dão materialidade a novas soluções para seu futuro comum. Sendo aqui analisado o estudo de caso da política de educação no campo no estado de Rondônia entre os anos de 2010 a 2014, que adotou a tecnologia social da pedagogia de alternância.

Além desta introdução, na seção seguinte é apresentado o referencial teórico que orientou o desenvolvimento desta investigação, sendo em seguida descrita a metodologia de pesquisa adotada, indicando o tipo de estudo, bem como as técnicas de coleta e análise de dados. Finalmente, na quarta seção são analisados os resultados da pesquisa, seguida pelas considerações finais.

2. Referencial teórico-empírico

2.1 Instrumentos de governo e a tradição da análise política

Tradicionalmente, os instrumentos de política têm sido analisados como ferramentas do governo para alcançar objetivos políticos por meio de distintas políticas públicas, sendo avaliada sua eficácia a partir do alcance dos efeitos esperados pelos governantes. Dentro dessa perspectiva, a análise de instrumentos revela as intenções e propósitos de quem os escolhe, bem como avalia seu desempenho ao verificar o alcance dos resultados pretendidos no contexto político (Linder e Peters, 1989LINDER, Stephen; PETERS, Guy. Instrumentos de gobierno: percepciones y contextos. Gestión y Políticas Públicas, v. 2, n. 1, p. 5-34, 1989.), privilegiando fundamentalmente a racionalidade técnica (Lascoumes e Le Gales, 2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2007., 2012bLASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Sociologia da ação pública. Maceió: Editora da Ufal, 2012b.).

Assim, nos anos de 1950, identificam-se referências a instrumentos a partir da análise política de Harold Lasswell (1951LASSWELL, Harold. The policy orientation. In: LERNER, Daniel; LASSWELL, Harold. (Ed.). The policy science. Stanford: Stanford Univerty Press, 1951. p. 102-120.) em sua proposta de buscar eficácia para as decisões políticas por meio da racionalização. Como esclarecem Lascoumes e Simard (2011LASCOUMES, Pierre; SIMARD, Louis. L’action puplique au prisme de ses instruments: introduction. Revue Française de Science Politique, v. 61, n, 1, p. 5-22, 2011.), a abordagem dos instrumentos se inscreveu originalmente dentro dos pressupostos da racionalidade técnica vinculada às questões relativas à capacidade normativa e de regulação das burocracias estatais.

Além da abordagem da escolha racional, também se incorporou a racionalidade limitada de Herbert Simon. Desse modo, a escolha de instrumentos passa a ser também analisada na variedade daquilo que os governos querem influir ou por conta de diferenças subjetivas dos tomadores de decisão dadas suas afiliações institucionais e profissionais, como abordam Linder e Peters (1989LINDER, Stephen; PETERS, Guy. Instrumentos de gobierno: percepciones y contextos. Gestión y Políticas Públicas, v. 2, n. 1, p. 5-34, 1989.), evidenciando-se também uma dimensão cognitiva, além das proposições normativas e técnicas elencadas anteriormente na análise de instrumentos de políticas públicas entre os anos de 1960 e 1970.

Na década de 1980, no entanto, há a proposição de Hood (1983HOOD, Christopher. The tools of government: public policy and politics. Londres: The Macmillan Press, 1983.), em seu livro The tools of government, questionando a neutralidade na escolha de instrumentos de políticas, indicando a presença de fatores políticos, culturais e ideológicos, concluindo que “cada época tende a ser dominada por uma visão recebida ou a ideologia do que conta como o bom instrumento para o governo usar para os seus propósitos” (Hood, 2007HOOD, Christopher. Intellectual obsolescence and intellectual makeovers: reflections on the tools of government after two decades. Governance, v. 20, n. 1, p. 127-144, 2007.:137).

Ao mesmo tempo, Hood (2006HOOD, Christopher. The tools of government in the information age. In: MORAN, Michael; REIN, Martin; GOODIN, Robert E. The Oxford handbook of public policy. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 469-481., 2007HOOD, Christopher. The tools of government: public policy and politics. Londres: The Macmillan Press, 1983.) delimita três abordagens centrais que tratam dos instrumentos de governo: (i) aquelas que analisam os instrumentos como instituições - como no trabalho de Lester Salamon (2000SALAMON, Lester M. The new governance and the tools of public action: an introduction. Fordham Urban Law Journal, v. 28, n. 5, p. 1611-1674, 2000.) referente a novas formas institucionais e organizacionais como instrumentos na oferta de políticas públicas dentro do escopo das contratualizações e do outsourcing; (ii) aquelas que consideram a seleção dos instrumentos, isto é, as políticas de instrumentalidade - orientadas a problematizar os processos políticos e cognitivos que levam à escolha de instrumentos específicos; e (iii) aquelas que descrevem e categorizam os instrumentos de forma genérica, ou seja, livres de instituições e tecnologias - identificados como caixas de ferramentas utilizadas para o controle comportamental como também para a mensuração de informações.

Por outro lado, Lascoumes e Le Gales (2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2007., 2012bLASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Sociologia da ação pública. Maceió: Editora da Ufal, 2012b.) argumentam que os instrumentos de política não operam exclusivamente na dimensão técnica instrumentalizando os propósitos dos governantes, uma vez que os destinatários das políticas públicas têm sua própria interpretação, além de os próprios instrumentos aportarem em si seus resultados quando produzem efeitos inesperados. Conforme esses autores, se os instrumentos de políticas não são neutros, eles se constituem em formas condensadas de conhecimento sobre o controle da sociedade e os modos de exercê-lo. Por isso, também é necessário compreender como os instrumentos de políticas podem produzir efeitos independentemente dos objetivos governamentais perseguidos naquilo que se inscreve na instrumentação da ação pública (Lascoumes e Le Gales, 2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2007.), sugerindo que os instrumentos são indissociáveis dos agentes que os utilizam e não aportam em si racionalidade técnica.

Também indicam que a ação pública contemporaneamente foi reconfigurada e não se restringe mais à centralidade do Estado e dos governos. O que tem ocorrido é uma proliferação de atores e instrumentos para tratar das “políticas públicas” levando a três tipos de proliferações: (1) dos problemas socialmente debatidos que vão das questões de governança mundial, a exemplo dos problemas climáticos, à transversalidade de situações locais; (2) a multiplicação de atores e espaços em que se inventa e pratica a ação pública, bem como a diversificação de atores, cenas e formas de interação; e (3) isso implica também uma diversificação da instrumentação, uma vez que “cada programa de intervenção é produto de uma longa sedimentação histórica e conjuga uma vasta panóplia de instrumentos {...}” (Lascoumes e Le Gales, 2012bLASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Sociologia da ação pública. Maceió: Editora da Ufal, 2012b.:209).

Para Lascoumes e Le Gales (2012bLASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Sociologia da ação pública. Maceió: Editora da Ufal, 2012b.:209) isso implica passar das análises tradicionais para uma análise que dê conta “da complexidade das ações públicas entremeadas”. Assim, é necessário adotar uma análise processual que possibilite acompanhar esse entremear relacional de agentes a fim de compreender a instrumentação da ação pública pelos efeitos que são gerados.

2.2 Instrumentos de políticas como dispositivos na instrumentação da ação pública

Em face da não neutralidade dos instrumentos de políticas e a necessidade de compreendê-los associados aos agentes que os utilizam, Lascoumes e Le Gales (2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2007.) propõem abordá-los como dispositivos de conhecimento-poder, conforme Michel Foucault. Seu objetivo é ultrapassar as abordagens funcionalistas de instrumentos de políticas públicas que os consideram exclusivamente uma ferramenta técnica na operação de programas para a resolução de problemas específicos.

Neste sentido, eles definem os instrumentos como “um dispositivo ao mesmo tempo técnico e social que organiza relações sociais específicas entre o poder público e seus destinatários em função das representações e das significações das quais é portador” (Lascoumes e Le Gales, 2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2007.:4). Também, eles discutem as dimensões anteriormente indicadas por Hood (2006HOOD, Christopher. The tools of government in the information age. In: MORAN, Michael; REIN, Martin; GOODIN, Robert E. The Oxford handbook of public policy. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 469-481., 2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Sociologia da ação pública. Maceió: Editora da Ufal, 2012b.) dentro das especificidades de sua abordagem.

Desse modo, igualmente como Salamon (2000SALAMON, Lester M. The new governance and the tools of public action: an introduction. Fordham Urban Law Journal, v. 28, n. 5, p. 1611-1674, 2000.), Lascoumes e Le Gales (2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2007.) entendem que as instituições são formas para estabilizar a ação coletiva de modo previsível. No entanto, eles não consideram os instrumentos novas formas organizacionais, conforme o primeiro. Para Lascoumes e Le Gales (2007)LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Sociologia da ação pública. Maceió: Editora da Ufal, 2012b., os instrumentos como instituições constituem-se em rotinas instrumentalizadas pelas relações entre a administração estatal e a sociedade civil, estabelecendo dispositivos que misturam componentes técnicos e sociais. Ao mesmo tempo, deixam de considerar as características genéricas elencadas por Hood (2007HOOD, Christopher. Intellectual obsolescence and intellectual makeovers: reflections on the tools of government after two decades. Governance, v. 20, n. 1, p. 127-144, 2007.) no que diz respeito ao controle comportamental dos instrumentos de política, propondo entender a instrumentação da ação pública pelos seus efeitos ao invés das escolhas sugeridas pelas políticas de instrumentalidade.

Para Lascoumes e Le Gales (2012bLASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Sociologia da ação pública. Maceió: Editora da Ufal, 2012b.), a instrumentação da ação pública se coloca na escolha e na utilização de técnicas e práticas que permitem materializar e operacionalizar a ação pública, sendo estas compreendidas como dispositivos que estruturam as políticas públicas. Assim, os instrumentos como dispositivos transportam em si aquilo que deve orientar as relações entre Estado e sociedade e cada um “é uma forma condensada de conhecer o poder social e as formas de exercê-lo” (Lascoumes e Le Gales, 2012bLASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Sociologia da ação pública. Maceió: Editora da Ufal, 2012b.:202).

Nesse sentido, Lascoumes e Le Gales (2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2007.:7) sugerem que a análise da instrumentação da ação pública deve acompanhar os processos por meio dos quais há uma combinação de fatores heterogêneos a fim de “desnaturalizar objetos técnicos, mostrando que seu progresso depende mais das redes sociais que se formam nas relações do que pelas suas próprias características”. Para essa análise os autores fazem alusão a alguns autores da teoria do ator-rede; entretanto, não aprofundam suas proposições. Isto é, analisar o dispositivo como uma rede, um processo em formação que interliga elementos heterogêneos e inscreve estrategicamente práxis, saberes e instituições situadas espacial e temporalmente, conforme proposto por Foucault (1983FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1983.) ao analisar dispositivos de conhecimento/poder.

2.3 Teoria do ator-rede e os dispositivos sociotécnicos da ação pública

Dentro da proposição de discutir a instrumentação da ação pública a partir da teoria do ator-rede (TAR), são aqui apresentados seus elementos centrais, indicando como eles podem ser auxiliares à análise processual proposta por Lascoumes e Le Gales (2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2007.). Isto é, compreender e explicar como são mobilizados, justapostos, conectados, associados e mantidos juntos peças, pedaços, pessoas e ideias para compor materialidades heterogêneas (Law, 1992LAW, John. Notes on theory of the actor-network: ordering, strategy and heterogeneity. Systems Practices, v. 5, n. 4, p. 379-393, 1992.), dando forma a redes que instrumentam a ação pública processualmente a partir de multiplicidades relacionais.

Como destaca Michael (2004MICHAEL, Mike. On making data social: heterogeneity in sociological practice. Qualitative Research, v. 4, n. 1, p. 5-23, 2004.), a análise processual da TAR está orientada simultaneamente para características distribuídas e unitárias da dinâmica relacional na qual emergem entidades híbridas que constituem cada vez mais intensamente nosso cotidiano. Deve-se salientar que esses híbridos, ou, como também propõe a TAR, esses atores-redes,1 1 Na infralinguagem da TAR, “na primeira parte (ator) revela o minguado espaço em que todos os grandiosos ingredientes do mundo começam a ser incubados; a segunda (rede) explica em quais veículos, traços, trilhas e tipos de informação o mundo é colocado dentro desses lugares e depois, uma vez transformado ali, expelido de dentro de suas estreitas paredes” (Latour, 2012:260). resultam de translações2 2 Na infralinguagem da TAR, “em suas conotações linguísticas e material, refere-se a todos os deslocamentos por entre outros atores cuja mediação é indispensável à ocorrência de qualquer ação. Em lugar de uma rígida oposição entre contexto e conteúdo, as cadeias de translação referem-se ao trabalho graças ao qual os atores modificam, deslocam e transladam seus vários e contraditórios interesses” (Latour, 2001:356). (mediações) e revelam possibilidades de durabilidade no traçar de conexões em sua extensão. Trata-se de uma análise orientada ao movimento daquilo que é transportado no espectro de uma rede à medida que mediadores “transformam, traduzem, distorcem e modificam o significado ou os elementos que supostamente veiculam” (Latour, 2012LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba, 2012.:65).

Como esclarece Latour (2011LATOUR, Bruno. Networks, societies, spheres: reflections of an actor-network theorist. Internacional Journal of Communication, n. 5, p. 796-810, 2011.:777), a noção de rede é usada “quando a ação é para ser redistribuída {...} aponta para uma transformação no modo da ação ser localizada e alocada”. Consequentemente, “a palavra rede não designa apenas coisas no mundo que têm a forma de rede {...}, mas principalmente designa um modo de questionamento que aprende listar, na ocasião de um processo, os seres imprevistos necessários para qualquer entidade existir” (Latour, 2011LATOUR, Bruno. Networks, societies, spheres: reflections of an actor-network theorist. Internacional Journal of Communication, n. 5, p. 796-810, 2011.:799).

Desse modo o “desenho de uma tecnologia é um processo sem fim” (Callon, 2004CALLON, Michel. The role of hybrid communities and socio-technical arrangements in the participatory design. Journal of the Center for Information Studies, v. 5, n. 3, p. 3-10, 2004.:3) e tudo é continuamente transformado “de acordo com as provas às quais se é submetido {...} redefinindo suas propriedades e seus públicos” (Akrich, Callon e Latour, 2002AKRICH, Madeleine; CALLON, Michel; LATOUR, Bruno. The key to success in innovation. International Journal of Innovation Management, v. 6, n. 2, p. 187-225, 2002.:213). Assim, a materialidade é constantemente engajada para enactar a realidade (Mol, 2002MOL, Anne-Marie. The body multiple: ontology in medical practice. Durham: Duke University Press, 2002.), isto é, constitui-se por ontologias múltiplas (Mol, 2008MOL, Anne-Marie. Política ontológica: algumas ideias e várias perguntas. In: NUNES, João Arriscado; ROQUE, Ricardo. Objectos impuros: experiências em estudos sobre a ciência. Porto: Afrontamento, 2008. p. 63-78.), à medida que a própria realidade é coletivamente produzida pela prática material sendo praticada (Law, 2009LAW, John. Actor network theory and material semiotics. In: TURNER, Bryan S. The new Blackwell companion to social theory. Mandel, MA: Blackwell Publishing. 2009. p. 141-158.). Desse modo,

enactaments e práticas nunca param e as realidades dependem de sua elaboração contínua - talvez por pessoas, mas mais frequentemente (como Latour e Woolgar implicam) em uma combinação de pessoas, técnicas, textos, arranjos arquitetônicos e fenômenos naturais (que são eles mesmos enactados e reenactados). {Law, 2004LAW, John. After-method: mess in social science research. Londres: Routledge Taylor & Francis Group, 2004.:56}

Como ressalta Callon (2008CALLON, Michel. Dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias, v. 10, n. 19, p. 302-321, 2008.:308), a ideia de translação se associa à ideia de circulação operando por agenciamentos múltiplos e dinâmicos, ou, conforme sugerem Law (2004LAW, John. After-method: mess in social science research. Londres: Routledge Taylor & Francis Group, 2004.) e Mol (2002MOL, Anne-Marie. The body multiple: ontology in medical practice. Durham: Duke University Press, 2002.), pelo enactment de diferentes sociomaterialidades. Por isso, a rede não pode ser concebida pela TAR como um agregado de laços, como uma entidade dada (Latour, 2012LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba, 2012.). Para Latour (2012)LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba, 2012., são os agregados sociotécnicos que devem ser explicados uma vez que o social sempre é o resultado de engajamentos técnicos e sociais a partir daquilo que circula na rede e à medida que novos elementos passam a fazer parte de sua composição em realidades sempre em movimento.

O social não é um domínio particular da realidade, mas um princípio de conexões, e o foco naquilo que circula permite conhecer a dinâmica e multiplicidade sociomaterial que o compõem e os efeitos que produzem (Callon, 2008CALLON, Michel. Dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias, v. 10, n. 19, p. 302-321, 2008.; Latour, 2012LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba, 2012.). Por isso, Latour (2001LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. São Paulo: Edusc, 2001., 2011LATOUR, Bruno. De la mediación técnica: filosofía, sociología, genealogía. In: DORMÈNECH, Miquel; TIRADO, Francisco Javier. Sociología simétrica: ensayos sobre ciencia, tecnología y sociedad. Barcelona: Gedisa Editorial, 1998. p. 109-142.) sugere analisar a “viabilidade da circulação”. Ao mesmo tempo, Callon (2008:309) observa que o ponto central é “saber quais são os agenciamentos que existem e que são capazes de fazer, de pensar e de dizer, a partir do momento em que se introduz nestes agenciamentos, não só o corpo humano, mas os procedimentos, os textos, as materialidades, as técnicas, os conhecimentos abstratos e os formais, etc.”.

Desse modo, a instrumentação da ação pública pode ser compreendida como uma inovação aberta. Como observa Levesque (2014LEVESQUE, Benoit. As inovações sociais podem contribuir para transformações, mas isso não é tão evidente. Ciências em Debate, v. 1, n. 2, p. 179-99, 2014.:193), a inovação como processo representa o social acontecendo, e “não há uma diferença de natureza entre a inovação tecnológica e a inovação social”. Assim, o determinismo tecnológico e o determinismo social são interditados pelo princípio de simetria generalizada de maneira que o social e o técnico são explicados nos mesmos termos (Callon, 1986CALLON, Michel. Some elements of a sociology of translation: domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. In: LAW, John. Power, action and belief: a new sociology of knowledge? Londres: Routledge, 1986. p. 196-223.), devendo ser analisadas as sociomaterialidades na prática (Latour, 1988LATOUR, Bruno. The pasteurization of France. EUA: Harvard University Press, 1988., 1992LATOUR, Bruno. Where are the missing masses? The sociology of a few mundane artifacts. In: BIJKER, Wiebe B.; LAW, John. (Ed.). Shaping technology/building society. Cambridge: MIT Press, 1992. p. 225-258., 1994LATOUR, Bruno. Pragmatogonies: a mythical account of how humans and nonhumans swap properties. American Behavioral Scientist, v. 37, n. 6, p. 791-808, 1994., 1998LATOUR, Bruno. De la mediación técnica: filosofía, sociología, genealogía. In: DORMÈNECH, Miquel; TIRADO, Francisco Javier. Sociología simétrica: ensayos sobre ciencia, tecnología y sociedad. Barcelona: Gedisa Editorial, 1998. p. 109-142., 1999LATOUR, Bruno. On recalling ANT. In: LAW, John; HASSARD, John (Ed.). Actor-network theory and after. Oxford: Blackwell Publisher, 1999.).

Por outro lado, o princípio da irredutibilidade, de que os efeitos são irredutíveis a suas causas, evidencia que, pelas translações, sempre existe algo novo no lado dos efeitos que não foi previsto pelas causas, e nesses desvios ocorrem as transformações (Latour, 2012LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba, 2012.). Portanto, “são confrontadas as combinações múltiplas e totalmente reversíveis dos altamente complexos constituintes individuais e seus múltiplos e totalmente reversíveis agregados” (Latour, 2011LATOUR, Bruno. Networks, societies, spheres: reflections of an actor-network theorist. Internacional Journal of Communication, n. 5, p. 796-810, 2011.:804).

O que leva a inferir que a instrumentação da ação pública não pode ser compreendida por escolhas feitas a priori, mas pelos efeitos gerados, que, conforme TAR, são sempre provisórios. Assim, devem ser considerados na análise da instrumentação alguns pressupostos sugeridos por Callon (2004CALLON, Michel. The role of hybrid communities and socio-technical arrangements in the participatory design. Journal of the Center for Information Studies, v. 5, n. 3, p. 3-10, 2004.) na análise de dinâmicas participativas. Isto é, (1) deve-se levar em conta a amplitude e a variedade de atores envolvidos na ação pública; (2) o novo não deve estar limitado à satisfação de necessidades e demandas, mas orientado à “construção de novos tipos de vida coletiva”; e (3) é necessário melhor reconhecer a importância de comunidades híbridas na construção de nosso mundo futuro.

2.4 Tecnologia social e a instrumentação da ação pública

Fortemente baseadas em práticas participativas e voltadas para uma instrumentação sociotécnica da ação pública, as tecnologias sociais (TS) têm se destacado nos últimos anos no Brasil. Como salientam Rodrigues e Barbieri (2008RODRIGUES, Ivete; BARBIERI, José Carlos. A emergência da tecnologia social: revisitando o movimento da tecnologia apropriada como estratégia de desenvolvimento sustentável. Rev. Adm. Pública, v. 42, n. 6, p. 1069-1094, nov./dez. 2008.:1070), a TS é uma ideia ultimamente em voga e tem sido relacionada com “produtos, técnicas ou metodologias replicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem efetivas soluções de transformação social”. Nos termos de Thomas (2009THOMAS, Hérnan. De las tecnologías apropiadas a las tecnologías sociales: conceptos/estrategias/diseños/acciones. In: SEMINARIO IBERO-AMERICANO DE CIENCIA Y TECNOLOGIA DEL CENTRO EXPERIMENTAL DE LA VIVENCIA DE LA ECONOMÍA, IV, 2009, Córdoba.:2), “é possível definir tecnologia social como uma forma de desenhar, desenvolver, implementar e gerir tecnologia orientada a resolver problemas sociais e ambientais, gerando dinâmicas sociais e econômicas de inclusão social e desenvolvimento sustentável”.

No entendimento de Peyloubet e colaboradores (2010PEYLOUBET, Paula et al. Desarrollo local a partir del uso de tecnología social: un enfoque alternativo. Cuardeno Urbano Espacio, Cultura, Sociedad, v. 9, n. 9, p. 170-191, 2010.), diferentemente das abordagens ofertista e de demanda presentes na inovação tecnológica, as TS orientam-se fortemente para a construção coletiva do conhecimento de modo que soluções tecnoprodutivas sejam adequadas aos contextos territoriais de onde emergem e fundamentadas em princípios participativos no desenho e na tomada de decisões para sua implementação. Isso significa que a TS conduz a repensar a relação ciência e sociedade e estaria próxima dos pressupostos do modo 2 de pesquisa e desenvolvimento, ou seja, caracterizada pela heterogeneidade, orientada por problemas, enfatizando o contexto de aplicação e transcendendo fronteiras disciplinares (Garcia, 2014GARCIA, Sylvia G. A tecnologia social como alternativa para a reorientação da economia. Estudos Avançados, v. 28, n. 82, p. 251-275, 2014.:257) e também de saberes.

Neste mesmo sentido, Rodrigues e Barbieri (2008RODRIGUES, Ivete; BARBIERI, José Carlos. A emergência da tecnologia social: revisitando o movimento da tecnologia apropriada como estratégia de desenvolvimento sustentável. Rev. Adm. Pública, v. 42, n. 6, p. 1069-1094, nov./dez. 2008.:1075) afirmam que a TS “implica a construção de soluções de modo coletivo pelos que irão se beneficiar dessas soluções e que atuam com autonomia”. Para Freitas e Segatto (2014FREITAS, Cesar C. G.; SEGATTO, Andrea P. Ciência, tecnologia e sociedade pelo olhar da tecnologia social: um estudo a partir da teoria crítica da tecnologia. Cad. EBAPE.BR, v. 12, n. 2, p. 302-320, 2014.:312), a TS “rompe com a relação de dependência tecnológica {...} com o propósito de promover a transformação social, observadas as dimensões do desenvolvimento sustentável”, constituindo-se numa “proposta de resgate à adequada relação entre ciência, tecnologia e sociedade”.

Dias (2011DIAS, Rafael B. Tecnologias sociais e políticas públicas: lições de experiências internacionais ligadas à agua. Revista Inc. Soc., v. 4, n. 2, p. 56-66, 2011.:56) destaca as TS como “alternativas tecnológicas interessantes, que têm provado ser importantes ferramentas na promoção da inclusão social, para o fortalecimento das práticas democráticas e também no âmbito das estratégias de desenvolvimento sustentável de longo prazo”. Ao considerar as implicações das TS sobre o desenvolvimento, Bava (2004BAVA, Silvio C. Tecnologia social e desenvolvimento local. In: FUNDAÇÃO BANCO DO BRASIL (Org.). Tecnologia social: uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: FBB, 2004. p. 103-116.:116) salienta que

mais do que a capacidade de implementar soluções para determinados problemas, podem ser vistas como métodos e técnicas que permitam impulsionar processos de empoderamento de representações coletivas da cidadania para habilitá-las a disputar, nos espaços públicos, as alternativas de desenvolvimento que se originam das experiências inovadoras e que se orientem pela defesa dos interesses das maiorias e pela distribuição de renda.

No entanto, como destacam Costa e Dias (2013COSTA, Adriano B.; DIAS, Rafael B. Políticas públicas e tecnologia social: algumas lições das experiências em desenvolvimento no Brasil. In: COSTA, Adriano B. (Org.). Tecnologia social e políticas públicas. São Paulo: Instituto Polis/Fundação Banco do Brasil; Gapi-Unicamp, 2013. p. 223-245.), a TS como instrumento de políticas públicas necessita criar pontes capazes de mediar as formas de funcionamento do Estado com as dinâmicas sociais das comunidades. Também, deve-se ter atenção a sua padronização excessiva na intenção de replicação que pode descaracterizá-la, ressaltando “o desafio de se construir uma ação pública é baseada em tecnologia social” (Costa e Dias, 2013COSTA, Adriano B.; DIAS, Rafael B. Políticas públicas e tecnologia social: algumas lições das experiências em desenvolvimento no Brasil. In: COSTA, Adriano B. (Org.). Tecnologia social e políticas públicas. São Paulo: Instituto Polis/Fundação Banco do Brasil; Gapi-Unicamp, 2013. p. 223-245.:234).

A pedagogia da alternância (PA) é um exemplo de instrumento de ação pública, reconhecida como uma TS que relaciona interesses educacionais ao desenvolvimento sustentável das famílias rurais. Como instrumento de política, a PA reúne, simultaneamente, um conjunto de técnicas, metodologias e mobilização social na transformação da agricultura familiar. No Brasil, essa TS tem evidenciado avanços significativos para a educação no campo nas últimas décadas, consolidando sua adoção na instrumentação das políticas de educação no campo.

2.4.1 PA: uma TS para políticas de educação no campo

Como instrumento para a política de educação no campo, a TS da pedagogia da alternância foi reconhecida no Brasil como “uma das formas de organização escolar”, conforme o artigo 23 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei no 9.394/1996. Também, foi “reconhecida por unanimidade pelo Conselho Nacional de Educação”, por meio do Parecer CNE/CEB no 01/2006, sob a denominação de Centros Familiares de Formação por Alternância (Ceffas),3 3 A denominação Ceffa tem sido adotada desde o final dos anos de 1990 no contexto da AIMFR (Puig-Calvó, 2006). Por sua vez, no contexto brasileiro, foi adotada a rede dos Ceffas, em 2005, por conta de articulação iniciada durante o VIII Encontro da AIMFR. De acordo com apresentação no IX Congresso da AIMFR, os Ceffas adotam as seguintes denominações: Escolas das Famílias Agrícolas (EFAs), Casas Familiares Rurais (CFRs) e Escolas Comunitárias Rurais (Ecors) e além dessas, pelo Parecer CNE/CEB no 01/2006, são incluídas as Escolas de Assentamentos (EAs), as Escolas Técnicas Estaduais e o Programa de Formação de Jovens Empresários Rurais no estado de São Paulo e os Centros de Desenvolvimento do Jovem Rural (CDEJOR) dos estados do sul. para certificação de seus alunos (Nosella, 2012NOSELLA, Paolo. As origens da pedagogia de alternância no Brasil. Vitória: Edufes , 2012.:17). Aqui destacando-se que a PA é muito mais do que um método pedagógico, constituindo-se em “um novo sistema educativo” (Gimonet, 2007GIMONET, Jean-Claude. Praticar e compreender a pedagogia da alternância dos Ceffas. Petrópolis: Vozes , 2007.) e tem suas origens na França, no início do século XX, junto ao meio rural como “uma didática específica para articular dialeticamente os saberes escolares com os saberes da experiência fora da escola” (Nosella, 2012NOSELLA, Paolo. As origens da pedagogia de alternância no Brasil. Vitória: Edufes , 2012.:19).

De acordo com Saviani (2012SAVIANI, Demerval. Prefácio. In: NOSELLA, Paolo. As origens da pedagogia de alternância no Brasil. Vitória: Edufes , 2012. p. 22-33.:29), refere-se a “uma forma de organizar o processo de ensino-aprendizagem alternando dois espaços diferenciados: a propriedade familiar e a escola”, orientada pelos seguintes princípios básicos: (1) a responsabilidade da família e da comunidade pela educação; (2) a articulação entre conhecimentos adquiridos no trabalho na propriedade rural e aqueles adquiridos na escola; e (3) a alternância entre as etapas de formação (em ritmos: semanais, quinzenais) com períodos de permanência na escola e na vida familiar.

Por sua vez, Puig-Calvó (2006)PUIG-CALVÓ, Pedro. Los centros de formación por alternancia: desarrollo de las personas y de su medio. Tese (doutorado) - Departamento de Ciências da Educação, Universitat Internacional de Catalunya, Barcelona, 2006. destaca meios e fins que orientam a atuação dos Ceffas no mundo. A alternância integrativa é o meio condutivo da interação educativa entre escola e meio rural, constituindo-se numa metodologia apropriada a esse meio e respondendo pelas necessidades constantes de adequação aos desafios da sociedade, de suas famílias e dos jovens. A associação local é uma organização participativa de base para as famílias e as comunidades conduzida por princípios e respondendo pela gestão e o desenvolvimento dos Ceffas e seus projetos. A formação integral trata de uma visão completa - profissional, intelectual, humana, social, moral e espiritual - em que pessoas são formadas como seres humanos, orientadas ao desenvolvimento de um projeto de vida levando em conta sempre o seu entorno. O desenvolvimento local é indissociável da formação integral, uma vez que a ação educativa de jovens e adultos os torna os verdadeiros atores do desenvolvimento (Puig-Calvó, 2006PUIG-CALVÓ, Pedro. Los centros de formación por alternancia: desarrollo de las personas y de su medio. Tese (doutorado) - Departamento de Ciências da Educação, Universitat Internacional de Catalunya, Barcelona, 2006.:64-65).

Essa TS foi criada originalmente por comunidades rurais francesas entre 1935-55 para atender suas necessidades específicas de educação, sendo trazida para o Brasil na década de 1960. Uma iniciativa da Igreja Católica a partir das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) que disseminou as Ceffas junto às comunidades rurais de diversos estados brasileiros nas décadas seguintes (Begnami e Burghgrave, 2012BEGNAMI, João B.; BURGHGRAVE, Thierry. Construção da pedagogia da alternância no Brasil: desafios e perspectivas. In: NOSELLA, Paolo. As origens da pedagogia de alternância no Brasil. Vitória: Edufes, 2012. p. 251-274.; Nosella, 2012NOSELLA, Paolo. As origens da pedagogia de alternância no Brasil. Vitória: Edufes , 2012.), ocupando espaços deixados vazios pelo Estado no que diz respeito à educação das populações rurais.

Assim, esse movimento em torno da PA se vinculou à luta pela educação no campo (Queiroz, 2011QUEIROZ, João B. P. A educação do campo no Brasil e a construção das escolas do campo. Revista Nera, v. 14, n, 18. p. 37-46, 2011.; Ribeiro, 2008RIBEIRO, Marlene. Pedagogia da alternância na educação rural/do campo: projetos em disputa. Educação e Pesquisa, v. 34, n. 1, p. 27-45, 2008.), que inscreveu o conteúdo do artigo 28 da LDB:

Na oferta de educação básica para população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, especial: I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesse dos alunos da zona rural; II - organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; III - adequação à natureza do trabalho na zona rural. {Brasil, 1996BRASIL. Educação do Campo: diferenças mudando paradigmas. Brasília: Ministério da Educação, 2007.}

Também se vinculou à ação pública para a inscrição da educação no campo como política pública a partir das proposições descentralizadas e participativas do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), no governo FHC, e ao Programa Saberes da Terra, do governo Lula (Nascimento, 2009NASCIMENTO, Claudemiro. Políticas ‘públicas’ e educação no campo: em busca da cidadania possível. Travessias, n. 7, p. 178-198, 2009.). Além de ser reconhecida como TS por diversas entidades nacionais e internacionais como instrumento para as políticas de educação rural.

3. Metodologia

Esta pesquisa constituiu-se num estudo de caso qualitativo (Godoy, 2010GODOY, Alzira S. O estudo de caso qualitativo. In: GODOI, Christiane K.; BANDEIRA-DE-MELLO, Rodrigo; SILVA, Anielson B. (Org.). Pesquisa qualitativa em estudos organizacionais: paradigmas, estratégias e métodos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 115-146.; Merriam, 2009MERRIAM, Sharan B. Qualitative research: a guide to design and implementation. San Francisco, CA: John Wiley and Sons Inc., 2009.) de modo a investigar “uma situação complexa e intrigante, cuja relevância justificou o esforço de compreensão” (Alves-Mazzoti, 2006ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Usos e abusos dos estudos de caso. Cadernos de Pesquisa, v. 36, n. 29, p. 637-651, 2006.:650). Em primeiro lugar, porque a pedagogia da alternância (PA) tem sido reconhecida nacional e internacionalmente como uma TS por diversas instituições, a exemplo do Instituto de Tecnologia Social, a Rede de Tecnologia Social, o Banco de Tecnologias Sociais do Ministério de Desenvolvimento Agrário - Brasil, o Banco de Tecnologias Sociais da Fundação do Banco do Brasil, o Programa Nacional de Habitação Rural e o Programa de Voluntários da Organização das Nações Unidas.

Em segundo lugar, porque tem sido proposta a adoção da PA na instrumentalização de políticas de educação para o campo (Brasil, 2007). Esse é o caso do estado de Rondônia, principalmente a partir da década de 2010, com a aprovação da Lei no 2.688/2012 que instituiu o Programa Escola Guaporé de Educação, sendo estabelecida uma política de incentivo à expansão da PA como forma de melhorar e universalizar a educação do campo e promover o desenvolvimento sustentável.

Desse modo, a experiência do estado de Rondônia se constituiu no contexto delimitado de investigação que caracteriza os estudos de casos como unidade de análise específica, conforme indicam Merriam (2009MERRIAM, Sharan B. Qualitative research: a guide to design and implementation. San Francisco, CA: John Wiley and Sons Inc., 2009.) e Stake (1995STAKE, Richard. The art of case research. Thousand Oaks: Sage Publications, 1995.). Trata-se de um caso intrínseco (Stake, 1995STAKE, Richard. The art of case research. Thousand Oaks: Sage Publications, 1995.), orientado para a singularidade, pois buscou, a partir daquilo que emergiu da prática, compreender situações, responder questões e resolver um quebra-cabeça (Merriam, 2009MERRIAM, Sharan B. Qualitative research: a guide to design and implementation. San Francisco, CA: John Wiley and Sons Inc., 2009.). Uma análise processual da instrumentação da ação pública baseada na TAR a fim de compreender a complexidade relacional que envolveu diversos atores, espaços e materiais dando forma à política estadual de educação no campo de Rondônia.

Em seu caráter descritivo (Godoy, 2010GODOY, Alzira S. O estudo de caso qualitativo. In: GODOI, Christiane K.; BANDEIRA-DE-MELLO, Rodrigo; SILVA, Anielson B. (Org.). Pesquisa qualitativa em estudos organizacionais: paradigmas, estratégias e métodos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 115-146.; Stake, 1995STAKE, Richard. The art of case research. Thousand Oaks: Sage Publications, 1995.), esta investigação buscou detalhar o relato sobre um fenômeno a fim de ilustrar sua complexidade considerando os diversos atores envolvidos, que orientavam o uso da PA como instrumento da política de educação do campo em Rondônia. Ao mesmo tempo, foram rastreadas as translações e controvérsias na composição da rede que possibilitou a inscrição da PA como TS na instrumentalização dessa política. Também tem características avaliativas (Godoy, 2010GODOY, Alzira S. O estudo de caso qualitativo. In: GODOI, Christiane K.; BANDEIRA-DE-MELLO, Rodrigo; SILVA, Anielson B. (Org.). Pesquisa qualitativa em estudos organizacionais: paradigmas, estratégias e métodos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 115-146.), uma vez que houve a preocupação de que os dados empíricos fossem obtidos de forma cuidadosa e sistemática a fim de possibilitar apreciar o processo de expansão da PA em Rondônia na constituição de sua política estadual de educação do campo, sem, no entanto, ter a pretensão de avaliar o desempenho da política e tampouco estabelecer generalizações.

Como esclarecem Merriam (2009MERRIAM, Sharan B. Qualitative research: a guide to design and implementation. San Francisco, CA: John Wiley and Sons Inc., 2009.) e Alves-Mazzoti (2006)ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Usos e abusos dos estudos de caso. Cadernos de Pesquisa, v. 36, n. 29, p. 637-651, 2006., os estudos de caso intrínsecos visam analisar as particularidades do caso em si buscando insights, descobertas e interpretação focados numa descrição e explanação holística, sendo esses os pressupostos centrais que orientaram esta investigação. Assim, foi realizada uma análise processual que, de acordo com Lascoumes e Le Gales (2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2007., 2012bLASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Sociologia da ação pública. Maceió: Editora da Ufal, 2012b.), é a mais adequada para a compreensão da instrumentação da ação pública, sendo a TAR a referência para acompanhar esse processo a fim de rastrear de modo mais aprofundado sua dinâmica naquilo que foi intrínseco à experiência da política de educação no campo do estado de Rondônia.

Dentro dessa perspectiva, a coleta dos dados foi baseada em três fontes de dados, conforme indicadas por Godoy (2010GODOY, Alzira S. O estudo de caso qualitativo. In: GODOI, Christiane K.; BANDEIRA-DE-MELLO, Rodrigo; SILVA, Anielson B. (Org.). Pesquisa qualitativa em estudos organizacionais: paradigmas, estratégias e métodos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 115-146.) para os estudos de caso qualitativos: observação, entrevistas e documentos. Os documentos serviram à familiarização com o fenômeno de modo a identificar e acompanhar as principais translações em seus deslocamentos e composições. As observações foram realizadas a partir da técnica da observação participante realizada, entre os meses de novembro de 2012 a março de 2014, junto aos Ceffas e outras organizações envolvidas com a PA no estado de Rondônia. Sendo totalizadas 320 horas de observação das quais 152 foram realizadas em escritórios ou ambientes de reuniões e 168 horas em atividades de contato direto com o cotidiano de aplicação da TS ou em discussões que tratavam de sua promoção, todas devidamente registradas em anotações de campo, destacando-se falas a fim de melhor compreender a sua dinâmica. Finalmente, 12 entrevistas não estruturadas permitiram aprofundar aquilo identificado em documentos e observações.

A análise dos dados ocorreu por meio da identificação e acompanhamento das translações ocorridas (Callon, 1986CALLON, Michel. Some elements of a sociology of translation: domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. In: LAW, John. Power, action and belief: a new sociology of knowledge? Londres: Routledge, 1986. p. 196-223.) no processo de instrumentação da ação pública investigada. Para isso, o corpus da pesquisa - documentos, anotações das observações de campo e entrevistas - foi organizado em três divisões: “história da PA em Rondônia”, “detalhamento da PA” e “ações de expansão da PA”, sendo em seguida classificadas.

A partir dessa classificação, ocorreu uma segunda fase de análise para delimitar o processo de instrumentação no que diz respeito (i) às origens da PA em Rondônia e (ii) aos processos de sua reaplicação de modo a identificar “discursos em ação” naquilo indicado por Austin (1990AUSTIN, John L. Quando o dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.) de que o “dizer é fazer” na medida em que os atores têm, além de suas próprias ações, sua própria teoria sobre a ação e que deve ser considerada válida.

Por fim, foi realizada uma triangulação que, além de identificar como as participações, as relações e interações dos atores se deram no processo de instrumentação da ação pública ocorrido em Rondônia, permitiu também aproximar os elementos de análise descritivos e avaliativos de modo a evidenciar as especificidades da instrumentação da TS no estado de Rondônia.

4 Análise dos resultados

4.1 Expansão da PA em Rondônia

Era dezembro de 2010, o recém-eleito governador de Rondônia proferiu o seguinte:

{...} Nesta viagem à Bahia dei com a cara numa escola rural, município de Igrapiúna, chamada Escola Casa Jovem. Até aí tudo bem, uma escola, como tantas outras mil escolas que tem neste país. Só tem uma coisa, ela é diferente. Recentemente, ganhou o prêmio nacional do MEC pela excelência da gestão. É uma escola rural, em regime integral, no sopé de um vale, atende a vários municípios, fica na área de uma fazenda, meio da Mata Atlântica. {...}. Tudo limpo, biblioteca com 2.000 livros, quadras esportivas, pais e mães no conselho escolar, tudo bem participativo mesmo. E o mais importante, as duas coisas, ensino médio convencional no extraturno curso profissional - em vários setores, inclusive, panificação. Ela é do estilo Escola da Família e em Rondônia é chamada Escola Família Agrícola (EFA). {...} Justamente este dito cujo, que eu desejo implantar no ensino rural do Estado de Rondônia. Vi com meus olhos o que desejo. Vi com meus olhos que é possível. Vi com meus olhos que tudo pode ser diferente. Vi no interior da Bahia. {governador, Documento}

Em janeiro de 2011, empossado governador, institui um grupo de trabalho para dar início à implantação do seu projeto. Para ele,

{...} o modelo adotado pelas Escolas Comunitárias Agrícolas propicia uma contribuição considerável para educação, realizando uma transformação na formação dos jovens e adultos no campo, para tanto a necessidade de adoção do mesmo modelo para implantação da rede de ensino estadual. {governador, Documento}

A PA seria o instrumento de política para melhoria da educação rural no Estado, e o governo, seu agente promotor. No entanto, essa decisão do governador expressou a pretensão de tratar a política de educação no campo de Rondônia nos termos indicados por Foucault (1983FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1983.), isto é, o Estado como agente disciplinar.

Assim, apesar das intenções do novo governo, principalmente a partir do grupo de trabalho instituído, era preciso considerar a complexidade e as controvérsias que envolviam a PA como TS com sua instrumentação em Rondônia ocorrendo há mais de três décadas. Primeiro, a PA estava presente no estado desde a década de 1980, consolidada pelas práticas das EFAs pioneiras diante da falta de atenção do Estado para as questões da educação rural. Segundo, as práticas da PA tinham adquirido características diferenciadas em cada localidade nas quais havia sido implantada. Finalmente, havia outros atores como a Associação das Escolas Família Agrícola de Rondônia (Aefaro), associações locais dos centros de ensino existentes, a Igreja Católica, as associações e as cooperativas rurais, e outros movimentos sociais, como o Movimento Sem Terra (MST), que formavam uma rede híbrida de atores constituindo aquela que é conhecida como Rede dos Centros Familiares de Formação por Alternância, ou simplesmente Rede Ceffas, transladando a PA no estado de Rondônia.

Isso evidencia que as questões da educação no campo envolviam a ação pública de diversos atores ao longo de décadas, sendo possível identificar as bases relacionais que compunham esse emaranhado que, conforme Lascoumes e Le Gales (2012bLASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Sociologia da ação pública. Maceió: Editora da Ufal, 2012b.), tinha sido complexamente entremeado ao longo do tempo.

Assim, havia três movimentos translativos da PA bem diferentes. O movimento das EFAs já implantadas plenamente, nomeadamente as EFAs pioneiras - Itapirema, Chico Mendes, Vale do Paraíso e Ezequiel Ramin - sediadas, respectivamente, nos municípios de Ji-Paraná, Novo Horizonte d’Oeste, Vale do Paraíso e Cacoal, que se constituíram na primeira metade da década de 1990. As EFAs que surgiram posteriormente a partir de um movimento de expansão capitaneado pela Aefaro, entre a primeira metade da década de 2000 e primeira metade da década de 2010, como é o caso da EFA Vale do Guaporé, Jean Pierre Mingan e Antônio Possamai, respectivamente nos municípios de Costa Marques (RO), Acrelândia (AC) e Jaru (RO). As associações já formadas que discutiam a implantação da PA em suas localidades, como é o caso de Flor do Amazonas, Manoel Ribeiro, Dom Orione e Iata, respectivamente nos municípios de Vale do Jamari, Colorado, Buritis e Guajará-Mirim em Rondônia.

Em cada uma delas, o envolvimento do governo do estado se deu de maneira muito diferente. Enquanto os centros pioneiros foram criados para fazer oposição às políticas de Estado com relação à educação do campo, nos outros centros a participação do estado ocorreu de maneira muito específica, ou até com sua completa ausência.

Por sua vez, em abril de 2011 foi possível identificar uma materialidade para a qual convergiram esses movimentos. Trata-se da Lei Estadual no 2.688 que institui o “Programa Escola Guaporé de Educação do Campo”, sancionada em março de 2012, após mais de uma década de controvérsias e disputas.

As organizações da sociedade civil vinculadas à PA em Rondônia haviam negociado sua aprovação com o governo do estado, e, conforme relata um técnico da Aefaro, “{...} Essa lei é sonho resultado de 20 anos de trabalho árduo, incansável por parte das diretorias da Aefaro” (entrevista 11). Assim, a PA foi transladada como instrumento da política de educação no campo, instituindo-se o apoio financeiro e técnico do governo do estado para os Ceffas. Mesmo que a princípio fosse o Estado “{...} a figura que regula e que regra graças a poderosos instrumentos de coerção” (Lascoumes e Le Gales, 2012aLASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. A ação pública abordada pelos seus instrumentos. Pós Ci. Soc., v. 9, n. 18, p. 19-44, jul./dez. 2012a.:38), a PA podia ser vista como um dispositivo revelador da construção sociopolítica da educação no campo em Rondônia, como a análise processual baseada na TAR permitiu evidenciar.

Porém, também se evidenciou que a vinculação da PA ao Programa Escola Guaporé e à Lei no 2.688 não foi suficiente para orientar a ação governamental naquilo que sugerem Lascoumes e Le Gales (2012bLASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Sociologia da ação pública. Maceió: Editora da Ufal, 2012b.). No início de 2012, enquanto, por um lado, a aprovação da lei transladou os vários interesses dos atores envolvidos e possibilitou a inserção do governo no processo de expansão da PA no estado, por outro lado, a falta de recursos, problemas locais a serem resolvidos e outras especificidades dificultavam o entendimento entre as organizações da sociedade civil e o governo.

Começaram novas controvérsias uma vez que o modelo da Escola Guaporé não produziu efeitos. Discutia-se então o que deveria ser implementado: cursos técnicos profissionalizantes, educação do campo formal por meio do ensino médio, ou se seriam cursos integrados entre educação profissional e ensino médio como desenvolvidos pelas EFAs pioneiras e que trabalham educação integral de nível médio e técnico.

Ao mesmo tempo, também havia controvérsias de como dar agilidade às EFAs recém-implantadas, como a Antônio Possamai, no município de Jaru, que iniciou suas atividades sem um apoio efetivo do governo do estado, conforme avaliação de vários atores ligados à Aefaro, faltando infraestrutura básica para suas atividades. Além desse caso, nas localidades em que haviam sido formadas associações, ocorreram mobilizações dessas e da Aefaro na busca por efetivo apoio do governo do estado e dos governos locais para que os centros fossem construídos, especialmente por parte da Associação Manoel Ribeiro.

O que se revelava era que, apesar da promulgação da lei e a proposição do programa, o governo do estado se mantinha distante das ações em andamento implementadas pelo conjunto das organizações da sociedade civil. Por outro lado, as Secretarias de Estado se esforçavam em dar materialidade a uma versão alinhada às ideias do governador visando a implementação da PA por meio de ações diretas do governo na comunidade de Nazaré em Porto Velho, em Abaitará, a região central do estado, e no município Nova Brasilândia D’Oeste, na zona da mata. Evidenciando-se que a instrumentação proposta pelo governo do estado não convergia com aquilo que compreendiam os demais atores.

Assim, no segundo semestre de 2012, um novo cenário já se apresentava. A participação do governo do estado não era mais um consenso entre as associações das EFAs. Havia uma preocupação com relação à influência que as Secretarias de Governo, principalmente de Agricultura (Seagri) e Educação (Seduc), teriam sobre os novos centros a serem implantados, o que poderia resultar em “EFAs Públicas” ou, pelo menos, fortemente influenciadas pelo poder público. Como revela o relato de uma monitora envolvida nas discussões: “{...} já perdi sono sobre isso, mas eu tenho muito medo, assim, o que o Estado vai fazer com as EFAs, se ficar {se for gerenciada pelo Estado}, se ele tiver a liberdade de fazer o que ele pensa {...}” (entrevista 8). Ou, como uma pessoa vinculada à Aefaro observou: “{...} porque eu tenho certeza que eles {governo do estado, Seduc e Seagri} não têm o conhecimento da PA pra dizer assim, {...}, elas têm uma metodologia, elas têm um sistema próprio” (entrevista 11).

Aqueles que se engajaram para viabilizar a instrumentação da PA por meio da Lei no 2.688/2012 depararam-se com um movimento por parte do governo que buscava inscrever novos elementos em sua composição. Até então, a PA fora conhecida e compreendida por todos como uma iniciativa criada e gerenciada pelas famílias agricultoras; de repente, estava ficando claro que a responsabilidade da implantação das novas EFAs seria atribuída às entidades públicas. Isso colocava em dúvida o caráter comunitário e participativo no desenvolvimento dessa TS, evidenciando a resistência dos atores das organizações da sociedade civil em relação à participação direta do governo do estado na sua implantação, como no caso das associações das EFAs Dom Orione e Manoel Ribeiro. E, sem uma clareza de como se daria a participação e responsabilização das famílias e associações locais no processo de implantação dos Ceffas, começou a existir dúvidas em relação ao futuro da PA no estado, uma vez que foram desestabilizados aqueles elementos que caracterizavam sua implantação original, ao mesmo tempo que ela tomava contornos de uma nova materialidade.

Começam, assim, a ser redefinidos as propriedades e públicos dessa TS, conforme aquilo que indicam Akrich, Callon e Latour (2002AKRICH, Madeleine; CALLON, Michel; LATOUR, Bruno. The key to success in innovation. International Journal of Innovation Management, v. 6, n. 2, p. 187-225, 2002.). De fato, a própria PA foi desestabilizada como TS. O governo do estado trouxe para sua composição novos elementos que, para outras organizações envolvidas, não se “encaixavam” na TS existente. Isso evidencia aquilo indicado por Law (2004LAW, John. After-method: mess in social science research. Londres: Routledge Taylor & Francis Group, 2004.) de que as materialidades heterogêneas não se transladam numa só narrativa. Ou, conforme Mol (2008MOL, Anne-Marie. Política ontológica: algumas ideias e várias perguntas. In: NUNES, João Arriscado; ROQUE, Ricardo. Objectos impuros: experiências em estudos sobre a ciência. Porto: Afrontamento, 2008. p. 63-78.) propõe, a realidade é múltipla (não plural), sendo sempre localizada histórica, cultural e materialmente a partir de momento em que “{...}, são diferentes versões do objeto, versões que os instrumentos ajudam a performar {enact}”.

Dentro desse contexto, depoimentos, ao final do ano de 2012, afirmavam sobre a inviabilidade da responsabilização pública, pois, “agora dentro dessa ideia macro, aí, aí tem muita gente fala e a experiência exitosa que o pessoal conhece é a EFA, alguns chegam a falar em EFA pública, mas sem muito conhecimento de causa” (entrevista 7). Outros argumentam a favor de que os novos centros ficassem sob responsabilidade do governo do estado, afirmado que “{...} sim, vão ser escolas do governo, mas com alguma coisa de metodologia na área da Pedagogia da Alternância e tal” (entrevista 11).

A dinâmica relacional que performava (enact) a PA em Rondônia, além de questionar sua implementação no que diz respeito à responsabilidade na gerência dos centros e os tipos de curso, começou também a questionar as rotinas adotadas pelo itinerário formativo daquela TS. No entanto, os representantes governamentais compreendiam que esses questionamentos seriam apenas entraves jurídicos e estruturais. O secretário de Estado de Agricultura e Pecuária, por exemplo, entendia que, solucionadas essas questões, ficaria fácil expandir a PA e, na sua opinião, o uso dos parques de exposições (feiras agropecuárias) seria uma alternativa rápida para implantação de centros educativos e replicação da PA. Isso evidencia uma pretensão do predomínio da racionalidade técnica governamental que desconhece aquilo salientado por Lascoumes e Le Gales (2012bLASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Sociologia da ação pública. Maceió: Editora da Ufal, 2012b.) de que os propósitos dos governos estão sempre entremeados na complexidade da ação pública, devendo ser amplamente debatidos, considerando a multiplicidade de atores envolvidos e a diversidade atribuída à instrumentação.

Por outro lado, alguns atores vinculados à Aefaro e aos Ceffas pioneiros, e as representações sindicais ligadas à Fetagro alegavam que a falta de conhecimento dos “instrumentos metodológicos da PA” por parte dos representantes governamentais dificultava a expansão, pois “{...} o secretário da Seagri, o cara não tem tempo {...} nem o secretário de Educação, porque ele é um jornalista, nem a secretária adjunta também entende de educação, porque ela cuidava da parte de finanças” (entrevista 7).

{..} agora hoje nós temos praticamente dois {três} parâmetros, nós temos aqueles que há tempos tem chutado essa bola mas não sai daqui, nós temos aquele outro que está chutando, chutando a bola e tá indo devagarinho, devagarinho, mas já tá no meio da viagem, e nós temos aqueles outros que acham que já chutou a bola e já tá lá e a... só que a bola deles já tá ali, é, desenhada, já tá, formatada e a bola que nós queremos é essa, entendeu, sem nem um estudo de realidade, sem uma assim, um propósito de que bola quer, sem nem uma consulta, digamos assim, às comunidades, à sociedade, simplesmente chega lá e a bola que nós queremos é essa aqui {...}. {entrevista 10}

Desse modo, a construção coletiva que transladou uma instrumentação da PA para constituir a política estadual de educação no campo de Rondônia por meio da Lei no 2.688 não foi capaz de performar (enactar) as dinâmicas das organizações da sociedade civil, que consolidaram a rede Ceffa em Rondônia, com as formas de funcionamento do governo do estado, visando a expansão dessa TS. Ao creditar a instrumentação da ação pública em instrumentos como a lei e, principalmente, o Programa da Escola Guaporé como modelo de educação no campo, se incorreu nas limitações indicadas por Costa e Dias (2013COSTA, Adriano B.; DIAS, Rafael B. Políticas públicas e tecnologia social: algumas lições das experiências em desenvolvimento no Brasil. In: COSTA, Adriano B. (Org.). Tecnologia social e políticas públicas. São Paulo: Instituto Polis/Fundação Banco do Brasil; Gapi-Unicamp, 2013. p. 223-245.) quando da adoção de TS em políticas públicas.

Ocorreu, assim, uma padronização excessiva, não sendo dado à TS espaço para transladar a dinâmica das comunidades rurais nas quais se originou a proposição da PA como alternativa para a educação no campo em Rondônia junto às práticas do governo do estado. Por outro lado, tampouco foi possível ao governo do estado de Rondônia operar dentro daquilo que é típico do ciclo de políticas públicas, isto é, incorporar a ação dos movimentos sociais quando da inserção de novos temas na agenda pública com o posterior domínio governamental, principalmente, na fase de implementação da política. O traçar das conexões e suas extensões, de que trata Latour (2011LATOUR, Bruno. Networks, societies, spheres: reflections of an actor-network theorist. Internacional Journal of Communication, n. 5, p. 796-810, 2011., 2012), adquiriu novos contornos e três ideias diferentes de instrumentação para a PA intentaram ser performadas (enactadas) na implementação da política estadual de educação no campo de Rondônia.

A do governo do estado, por meio de suas Secretarias, indicando que precisavam ser construídos centros em um “sistema em alternância”, possibilitando que os alunos ficassem períodos na escola e períodos em casa, permitindo o rodízio de turmas, que era a interpretação governamental da PA. Outra defendida pelas associações de produtores, lideranças sindicais e organizações sociais, que defendia um modelo como nova forma organizacional a ser adotada pelo governo do estado e expandida pela sua replicação em todo o estado dentro de uma concepção tradicional de instrumento como instituição nos termos de Hood (2006HOOD, Christopher. The tools of government in the information age. In: MORAN, Michael; REIN, Martin; GOODIN, Robert E. The Oxford handbook of public policy. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 469-481., 2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Sociologia da ação pública. Maceió: Editora da Ufal, 2012b.). Finalmente, aquela da Aefaro e dos Ceffas pioneiros, que demandava uma mobilização específica das famílias a serem contempladas em cada localidade, defendendo a implantação de um número reduzido de centros para assegurar a aplicação dos “instrumentos metodológicos” necessários ao alcance de seus objetivos, sem descaracterizar as rotinas originalmente definidas pelo itinerário formativo da PA.

Trata-se de diferentes representações para viabilizar a expansão da PA e a institucionalização da política estadual de educação no campo. Não implicando, entretanto, translações que propiciassem a instrumentação da ação pública sob uma nova dinâmica performativa da interação entre governo e sociedade civil. Assim, em meados de 2013, evidenciava-se a dificuldade de avançar no processo de expansão da PA em Rondônia, tanto em relação à criação de novas associações EFAs e à implantação de novos centros quanto na definição de projetos pedagógicos e autorizações junto ao Conselho Estadual de Educação.

As parcerias firmadas em torno da aprovação da Lei no 2.688/2012 que, a princípio, deram sustentação à instrumentação sociotécnica da PA foram desfeitas. Como comentou um técnico do governo do estado, “{...} na teoria muita gente fala muita coisa, sabe! Porque a gente precisa fazer isso, vamos fazer aquilo, mas é... assim, meu medo é {...} que as chefias não entendem nada de processo burocrático {construir centros, formar as associações e aplicar a PA}” (entrevista 11).

Assim, no início de 2014, organizações da sociedade civil, como a Fetagro, o MST e o MPA, estavam atuando exclusivamente no âmbito do Fórum Estadual, discutindo diretrizes gerais para a educação do campo sem tratar especificamente da PA. A Aefaro passou a participar incipientemente das discussões técnico-pedagógicas junto à Seduc e à Seagri. O governo do estado, por meio dessas secretarias, diminuiu suas visitas no interior do estado, e as reuniões com as organizações sociais e a Aefaro não foram mais regularmente realizadas. Nesse contexto, a Lei no 2.688/2012 transparecia não ser efetiva na medida em que não tinham sido firmados convênios específicos e não havia o repasse de bolsas de estudos para as EFAs, o que contribuiu para que a Aefaro, parlamentares e organizações da sociedade civil se opusessem às iniciativas de expansão da PA por parte do governo do estado.

No entanto, é preciso melhor compreender esse aparente insucesso da implementação da política estadual de educação no campo de Rondônia. Para isso é necessário analisar aquilo que foi materializado para além de representações e modelos de programa, identificando, de acordo com a sugestão de Mol (2008MOL, Anne-Marie. Política ontológica: algumas ideias e várias perguntas. In: NUNES, João Arriscado; ROQUE, Ricardo. Objectos impuros: experiências em estudos sobre a ciência. Porto: Afrontamento, 2008. p. 63-78.), as diferentes materialidades transladadas no processo de instrumentação da ação pública naquilo que foi performado (enactado) pela TS e os demais atores.

4.2 Materialidades múltiplas da PA em Rondônia

Nesta seção são apresentadas oito narrativas que descrevem as materialidades identificadas no processo de expansão e implementação da PA como TS constituindo a política de educação no campo do estado de Rondônia. Foram identificados diferentes agregados sociotécnicos resultantes de diferentes engajamentos técnicos e sociais em sua composição, naquilo que indica Latour (2012LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba, 2012.), revelando a variedade do processo de instrumentação da ação pública no caso analisado, conforme a seguir.

Vinculada ao processo de expansão da PA no estado de Rondônia promovido por movimentos sociais e organizações da sociedade civil na primeira metade da década de 2000, a EFA Antônio Possamai, em Jaru, foi somente inaugurada em fevereiro de 2013, com a expectativa de obter recursos governamentais para atender demandas de infraestrutura. É vista como aquela que aplica a PA em todas as suas rotinas e princípios, estando mais próxima das práticas disseminadas pela Aefaro. Apesar de a Lei no 2.688/2012, no seu artigo 4o, prever o “repasse de recursos financeiros às associações gerenciadoras {...} para a manutenção e seu funcionamento”, esse Ceffa tem operado, no entanto, fundamentalmente com base no apoio das famílias e do sindicato dos trabalhadores rurais, sem poder contar com o apoio governamental.

O Centro Educacional de Iata, no município de Guajará-Mirim, tem se ocupado da sua implantação há mais de uma década. Data de 2005 ofício assinado pela Associação de Desenvolvimento Comunitário e Ação Comunitária Iata solicitando à Aefaro um estudo de viabilidade para implantar uma EFA naquela localidade. Entretanto, como relataram atores vinculados à Aefaro, a falta de articulação das organizações locais e de mobilização das famílias não permitiu sua concretização. Assim, aquilo que se implantou foi “algo parecido com a PA” numa escola pública, conforme depoimento de um técnico do governo do estado de Rondônia. Trata-se de um curso de agroecologia criado a partir de modificações no currículo dessa escola, adotando uma formação que ocorre na alternância entre momentos de aprendizagem familiar e escolar.

Há mais de uma década, organizações da sociedade civil e governos municipais do Vale do Jamari iniciaram uma discussão sobre a implantação da PA no atendimento das demandas de educação da zona rural da região. No entanto, muito pouco foi concretizado. Mais recentemente, com o apoio da Aefaro e do governo do estado, a primeira dando suporte técnico-pedagógico e administrativo e o segundo garantindo recursos financeiros, foi possível, no final do ano de 2011, viabilizar a criação da Associação EFA Dom Orione e implantar um centro de ensino médio e técnico no município de Buritis. Porém, as organizações locais têm encontrado dificuldade em se articular para dar seguimento ao processo de implementação.

Com a Associação EFA Manoel Ribeiro, no município de Colorado, houve uma mobilização mais próxima temporalmente da proposição de expansão do governo do estado. Localizada numa região em que o conflito agrário é muito acentuado, a PA se inseriu dentro do escopo de lutas dos atores locais que estavam mobilizados na luta contra o latifúndio, a diminuição do êxodo rural e a extinção das propriedades familiares e assentamentos. Nesse sentido, a PA foi inserida a partir do entendimento dos movimentos sociais de que a educação é uma arma, uma forma de resistência e um meio de luta contra o agronegócio.

A Associação EFA Flor do Amazonas foi juridicamente constituída em 2010 no município de Candeias do Jamari. Mas o processo de implantação do seu centro educativo somente se efetivou a partir de 2011 quando o governo do estado direcionou os recursos de compensação pagos pelo consórcio que está construindo a Usina Santo Antônio dentro do complexo das obras da hidrelétrica no rio Madeira. Essa implantação foi, assim, influenciada pela ação direta do governo do estado na mobilização das famílias e no apoio à associação. No entanto, em face desse processo, há dúvidas das lideranças locais sobre a continuidade desse centro após o término das obras, sendo ainda uma incógnita o que se constitui efetivamente a PA naquela localidade.

A Comunidade de Nazaré, formada por ribeirinhos e outras populações tradicionais do chamado Baixo Madeira, pertence ao município de Porto Velho. Ali a proposta de implementação da PA parecia promissora por conta do potencial agrícola e pesqueiro, e da demanda por formação técnica local, além de existir a infraestrutura de uma escola pronta para o funcionamento do centro. No entanto, a forte mobilização para implantação por parte dos atores governamentais esbarrou em suas próprias contradições. Assim, a divergência política entre os representantes das secretarias do estado levou a que alguns ficassem contrários ao processo de expansão das EFAs, alegando se tratar de “escolas do PT”. Como resultado, foi implantada uma “escola estadual normal” sem a adoção da PA, conforme indicaram os relatos durante a pesquisa.

Em 2013, a proposição de aplicar a PA no município de Pimenta Bueno localizado na região fronteiriça entre o Cone Sul, Zona da Mata e Região Central do estado de Rondônia foi uma iniciativa do governo do estado. Lá havia o Centro Educacional de Abaitará, fundado em 1978, que funcionou como escola técnica agrícola até 1999 quando a sua infraestrutura foi repassada para o governo municipal. Assim, desde aquele ano, essa escola pública estadual passou a oferecer um curso técnico agrícola em regime de alternância, sendo gerenciada por meio de uma parceria público-privada. Entretanto, como destacou um técnico de governo, os responsáveis “não fazem a mínima ideia de como é de fato eles vão executar” (entrevista 16), ao mesmo tempo que a Aefaro não a reconhece, como indicou um representante: “lá é outra coisa e não é PA” (entrevista 1).

Finalmente, no município de Nova Brasilândia D’Oeste, houve a demanda da Prefeitura Municipal junto ao governo do estado para implantação de um centro. Contudo, não ocorreu um maior envolvimento de outras municipalidades, tampouco das organizações sociais, da Igreja Católica ou mesmo da Aefaro. Além disso, apesar de o governo estatual acolher a reivindicação, a solicitação foi recusada, posteriormente, pela equipe das Secretarias de Educação e Agricultura por falta de condições técnicas e de recursos.

Ao analisar essas oito experiências, constata-se primeiramente aquilo indicado por Lascoumes e Le Gales (2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2007., 2012bLASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Sociologia da ação pública. Maceió: Editora da Ufal, 2012b.) de que os instrumentos são indissociáveis do uso que os atores lhes dão, adquirindo características múltiplas no processo da ação pública em diferentes espaços, o que implica uma diversificação da instrumentação da ação pública. Evidenciando-se, assim, que a análise da instrumentação deve estar apta para acompanhar essa dinâmica na combinação de fatores heterogêneos a fim de melhor compreender o processo e os efeitos de ações entremeadas e variadas, conforme também sugerem Lascoumes e Le Gales (2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2007., 2012bLASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Sociologia da ação pública. Maceió: Editora da Ufal, 2012b.).

Também foi observado nessas oito experiências que nem todas as localidades adotaram o sistema educativo da PA indicado por Gimonet (2007GIMONET, Jean-Claude. Praticar e compreender a pedagogia da alternância dos Ceffas. Petrópolis: Vozes , 2007.) e Puig-Calvó (2006)PUIG-CALVÓ, Pedro. Los centros de formación por alternancia: desarrollo de las personas y de su medio. Tese (doutorado) - Departamento de Ciências da Educação, Universitat Internacional de Catalunya, Barcelona, 2006. em sua integralidade, sendo os seus processos de implantação marcados por uma composição sociotécnica diversificada em que, mais em uns do que em outros, possibilitaram o exercício de autonomia dos atores para buscar alternativas às suas demandas de educação no campo. Nesse ponto, identifica-se que essas experiências traíram (um dos sentidos dados à translação) a estabilização original das rotinas da PA as performando (enactando) de maneira muito particular. Isso evidencia que essa TS, como sugerem Callon (2004CALLON, Michel. The role of hybrid communities and socio-technical arrangements in the participatory design. Journal of the Center for Information Studies, v. 5, n. 3, p. 3-10, 2004., 2008COSTA, Adriano B.; DIAS, Rafael B. Políticas públicas e tecnologia social: algumas lições das experiências em desenvolvimento no Brasil. In: COSTA, Adriano B. (Org.). Tecnologia social e políticas públicas. São Paulo: Instituto Polis/Fundação Banco do Brasil; Gapi-Unicamp, 2013. p. 223-245.), Latour (2011LATOUR, Bruno. Networks, societies, spheres: reflections of an actor-network theorist. Internacional Journal of Communication, n. 5, p. 796-810, 2011., 2012LATOUR, Bruno. On recalling ANT. In: LAW, John; HASSARD, John (Ed.). Actor-network theory and after. Oxford: Blackwell Publisher, 1999.), Law (2004LAW, John. After-method: mess in social science research. Londres: Routledge Taylor & Francis Group, 2004., 2009LAW, John. Notes on theory of the actor-network: ordering, strategy and heterogeneity. Systems Practices, v. 5, n. 4, p. 379-393, 1992.) e Mol (2002MOL, Anne-Marie. The body multiple: ontology in medical practice. Durham: Duke University Press, 2002., 2008LAW, John. After-method: mess in social science research. Londres: Routledge Taylor & Francis Group, 2004.), quando localizada e alocada, isto é, redistribuída, teve suas propriedades redefinidas por agenciamentos diferenciados e múltiplos, indicando seu caráter aberto e sua alteridade.

O quadro 1 apresenta uma síntese dos elementos que deram materialidade à instrumentação da ação pública no processo de expansão da PA e implementação da política estadual de educação no campo de Rondônia em cada localidade.

Quadro 1
Materialidades da instrumentação da pa em rondônia

Quadro 1
continuação

Na análise das narrativas sobre cada uma das localidades e do quadro-síntese, constata-se que nenhuma das três representações, assinaladas anteriormente, transladou seu conteúdo. Nesse sentido, assim como não foi performado (enactado) aquilo proposto pela Aefaro no que concerne à priorização da replicação da metodologia e das rotinas da PA originalmente desenvolvidas pelas comunidades rurais, tampouco foram adotados os modelos sugeridos pelo governo do estado e seu sistema de alternância ou pelos movimentos sociais, a exemplo da Fetagro, MST, MPA, entre outros, no Fórum Estadual pela Educação no Campo.

O que ocorreu foi que a PA como TS instrumentando a ação pública se multiplicou nessas localidades, podendo ser constatado aquilo indicado por Mol (2008MOL, Anne-Marie. Política ontológica: algumas ideias e várias perguntas. In: NUNES, João Arriscado; ROQUE, Ricardo. Objectos impuros: experiências em estudos sobre a ciência. Porto: Afrontamento, 2008. p. 63-78.:74) de que “a interferência entre as várias tensões políticas é tal que de cada vez que parece estar em jogo uma coisa {...} estão também envolvidas outras questões e realidades {...}”.

Grosso modo, a PA não produziu mediações exclusivas, tampouco constituiu-se em um único intermediário capaz de transportar uma causa, conforme aquilo discutido por Latour (2012LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba, 2012.). A PA foi performada (enactada) como TS produzindo realidades específicas e, conforme sugere um dos entrevistados, seguiu uma dinâmica própria e situada:

{...} eu sempre imaginei isso {a PA} como uma bola, por exemplo, uma bola é fácil você girar, né, e você tanto faz você girar em torno como você girar dentro, que aí faz você não sai, só que dentro dessa bola o que que eu sempre vi, alguns lugares eu já coloquei, que nós temos várias bolinhas, né, então primeiro o que que a minha visão, ao invés de você ir de dentro dessa bola, mas nós temos 10 bolas, ou mais que são os instrumentos, mas vamos começar por aquela bola que nós mais nos identificamos, na nossa realidade, é então invés da gente começar a chutar 10 bolas e cansar logo, ou chutar 10 bola sem direção, se nós começássemos por etapa, né, um... determinado tempo nós chutamos uma bola, com mais outro determinado tempo nós passamos a chutar 2, com mais outro determinado tempo nós passamos a chutar 3, né, talvez, nós teríamos um avanço muito mais significativo do que nós fôssemos querer chutar todas as 10 bolas ao mesmo tempo, {...} é fácil conduzir, então você começa a chutar uma bola, pra você vê, que ela já tá no caminho certo que você já conseguiu dominar, você vai pegar uma outra que você ainda não domina, isso partindo do que, partindo do princípio da realidade de cada um, de cada escola está inserido, né, eu sempre imaginei isso, nós vamos começar por quem, nós vamos começar com tudo de uma vez, com CR {caderno da realidade}, CA {caderno da alternância}, tutoria, avaliação, avaliação qualitativa, atividade prática, porque acho que seria assim muito é, muito amplo e muito complexo, né, você pegar uma equipe né, que nunca trabalhou no processo da PA e querer que ele faz tudo, eu acho que é onde nós cometemos aí é vários equívocos, né, o cara nunca viu aquilo, você quer que ele trabalhe tudo de uma vez, né, seria mesma coisa de um treino, de uma seleção, você pega várias bolas, mas cada grupinho tá chutando uma, mas depois qual é o objetivo final? O grupão em torno de uma, uma só, então eu sempre pensei isso, depois que nós dominarmos aquela, nós vamos partir pra segunda, dominamos a segunda, vamos partir pra terceira e de repente aqui, e {...} a bola que nós estamos chutando aqui não é a bola que a Amazonas vai chutar, mas Amazonas tem é... tem capacidade pra criar uma outra bola que vai se adaptar ao campo em que eles estão, sempre pensei, por exemplo o processo da PA dessa forma, né, e às vezes o que que acontece, às vezes nós criamos uma escola e queremos chutar todas as bolas de uma vez. {entrevista 10}

Ao analisar o caso de Rondônia, pode-se compreender que a instrumentação da ação pública requer por parte do estado não adotar uma postura orientada à escolha racional, compreendendo que ela é intrínseca à dinâmica que notadamente ocorre na articulação de diversos atores, que, segundo Lascoumes e Le Gales (2012aLASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. A ação pública abordada pelos seus instrumentos. Pós Ci. Soc., v. 9, n. 18, p. 19-44, jul./dez. 2012a.), favorece seu impacto performativo. Isso implica dizer que, por meio do processo de instrumentação da ação pública, o estado necessita reinterpretar as suas bases de ação para além de uma instrumentalização técnica direcionada ao desempenho e ao ganho político de modo a incorporar efetivamente a participação de todos os envolvidos. Além disso, deve-se levar em conta que os instrumentos não podem ser adotados como caixas-pretas fechadas para serem simplesmente replicados.

5. Considerações finais

A PA como TS na instrumentação sociotécnica da ação pública da educação no campo no estado de Rondônia, a partir de 2012, tomou outros contornos diferentes daqueles que lhe transladaram a partir do final da década 1980 em Rondônia, constituindo as Ceffas pioneiras e a possibilidade de instituir a Lei no 2.688/2012. Assim, o movimento de translação envolveu as Associações EFAs, os sindicatos rurais, a Fetrago, a Aefaro e outras organizações da sociedade civil para implantar a PA em Rondônia, inscrevendo-a como alternativa para a educação no campo, mas não encontrou viabilidade de circulação quando buscou a associação do governo do estado no intuito de expandi-la.

Nesse caso, explicitou-se o indicativo de que o governo do estado preferiu ter domínio sobre os modos de exercer controle sobre a sociedade, conforme destacam Lascoumes e Le Gales (2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2007.). No entanto, isso não significou que a PA como TS não continuasse a produzir efeitos independentes dos objetivos governamentais a partir de novas translações. Isso porque a PA como TS é um ator que se viabiliza a partir da mobilização social, portando em si a possibilidade de transformação social que é sempre situada dentro das bases relacionais disponibilizadas em sua performatividade (enactament).

Neste estudo de caso foi possível identificar aquilo indicado por Callon (2008CALLON, Michel. Dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias, v. 10, n. 19, p. 302-321, 2008.), isto é, como ocorreram os deslocamentos, o que circulou e foi transportado entre os pontos, possibilitando se produzir uma nova realidade sociomaterial ou não. Também foi possível, conforme sugerem Lascoumes e Le Gales (2007LASCOUMES, Pierre; LE GALES, Patrick. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2007.), desnaturalizar a TS como ferramenta. Além de questionar sua replicação alhures sem levar em consideração os movimentos que possibilitam sua construção coletiva, concordando com Costa e Dias (2013COSTA, Adriano B.; DIAS, Rafael B. Políticas públicas e tecnologia social: algumas lições das experiências em desenvolvimento no Brasil. In: COSTA, Adriano B. (Org.). Tecnologia social e políticas públicas. São Paulo: Instituto Polis/Fundação Banco do Brasil; Gapi-Unicamp, 2013. p. 223-245.) que há ainda muito a se fazer para se efetivar uma instrumentação da ação pública com base em tecnologias sociais.

Finalmente, a análise processual de instrumentos, evidenciada neste caso por meio da PA como TS, demostra como diferentes performatividades da ação pública podem desdobrar e localizar-se em diferentes estratégias de potencialização de configurações territoriais. Isso indica a necessidade do estado em compreender essas dinâmicas participativas (Callon, 2004CALLON, Michel. The role of hybrid communities and socio-technical arrangements in the participatory design. Journal of the Center for Information Studies, v. 5, n. 3, p. 3-10, 2004.) inerentes a cada instrumento, reconhecendo a amplitude e hibridez daquilo que os diferentes atores podem performar a partir de bases relacionais que favoreçam a renovação da governança pública sob múltiplas realidades ao invés de querer enquadrá-las em um “regime de verdade” (Foucault, 1983FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1983.) daquilo que se quer pretensamente disciplinar em seu nome, como têm se caracterizado normalmente as instrumentalizações governamentais.

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  • 1
    Na infralinguagem da TAR, “na primeira parte (ator) revela o minguado espaço em que todos os grandiosos ingredientes do mundo começam a ser incubados; a segunda (rede) explica em quais veículos, traços, trilhas e tipos de informação o mundo é colocado dentro desses lugares e depois, uma vez transformado ali, expelido de dentro de suas estreitas paredes” (Latour, 2012:260).
  • 2
    Na infralinguagem da TAR, “em suas conotações linguísticas e material, refere-se a todos os deslocamentos por entre outros atores cuja mediação é indispensável à ocorrência de qualquer ação. Em lugar de uma rígida oposição entre contexto e conteúdo, as cadeias de translação referem-se ao trabalho graças ao qual os atores modificam, deslocam e transladam seus vários e contraditórios interesses” (Latour, 2001:356).
  • 3
    A denominação Ceffa tem sido adotada desde o final dos anos de 1990 no contexto da AIMFR (Puig-Calvó, 2006). Por sua vez, no contexto brasileiro, foi adotada a rede dos Ceffas, em 2005, por conta de articulação iniciada durante o VIII Encontro da AIMFR. De acordo com apresentação no IX Congresso da AIMFR, os Ceffas adotam as seguintes denominações: Escolas das Famílias Agrícolas (EFAs), Casas Familiares Rurais (CFRs) e Escolas Comunitárias Rurais (Ecors) e além dessas, pelo Parecer CNE/CEB no 01/2006, são incluídas as Escolas de Assentamentos (EAs), as Escolas Técnicas Estaduais e o Programa de Formação de Jovens Empresários Rurais no estado de São Paulo e os Centros de Desenvolvimento do Jovem Rural (CDEJOR) dos estados do sul.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2015
  • Aceito
    09 Jan 2017
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