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Profissionalismo público em uma era de transformações radicais: seu significado, desafios e treinamento

O profissionalismo público vive hoje dentro de um mundo esquizofrênico. Por um lado, nunca tantas pessoas tiveram a aspiração de tornarem-se profissionais. Como escreveu Everett Hughes — talvez a maior autoridade acadêmica nesse tema —, “as profissões nunca foram tão numerosas. Os profissionais formam uma grande parcela da força de trabalho. A atitude ou o humor profissional também está mais disseminado; o status de ‘profissional’ é cada vez mais cobiçado”. Por todos os países desenvolvidos e em desenvolvimento, os profissionais públicos e o profissionalismo estão, com sucesso, contribuindo para o crescimento do PIB e para moldar e implementar a política pública na maioria das áreas (senão em todas elas). Em 2017, 27% da força de trabalho no governo federal dos Estados Unidos atuando em tempo integral estão classificados como “profissionais”, 37% como “administradores” e 27% como “pessoal técnico” (caso de 5.521 economistas, 35.529 enfermeiros, 20.115 engenheiros eletrônicos, 17.118 advogados e 242 curadores de museus). Isso significa que mais de um terço dos funcionários federais são classificados como “profissionais técnicos” (número que seria muito maior se outros empregados que são eventualmente contratados para serviços relacionados com o funcionamento do governo fossem incluídos). A profissionalização é tão disseminada que há muito tempo Frederick Mosher cunhou o termo “estado profissional” referindo-se ao governo. Já Don Price referiu-se ao governo como “o estado científico” e Zbigniew Brzezinski adotou o termo “sociedade tecnocrática”. Seja qual for o rótulo, os profissionais públicos sem dúvida fazem o governo moderno funcionar e a sociedade contemporânea andar. No entanto, em 2017, as nações ocidentais estão às voltas com determinadas revoltas generalizadas e populistas contra servidores públicos não eleitos. Os eleitores esbravejam contra os profissionais públicos e sua capacidade de influência sobre o desenho das políticas públicas, de maneira cada vez mais enfática e frequente. O voto pelo Brexit no ano passado no Reino Unido indicou o desejo pela independência em relação aos funcionários da União Europeia em Bruxelas, não eleitos e distantes dos cidadãos. A posse do presidente dos Estados Unidos Donald Trump este ano pode ser atribuída significativamente ao fato de ele ser “um estranho” que, pela primeira vez na história do país, nunca foi um político eleito, nem sequer serviu em qualquer cargo público, nem mesmo militar. Sua campanha presidencial teve como alvo instituições estabelecidas como a Otan, os acordos climáticos de Paris, o plano de saúde governamental (Affordable Health Care), a CIA e, mais recentemente, o diretor do FBI. França, Itália, Países Baixos e outros testemunharam o surgimento e o poder de líderes populistas similares, com agendas abrangentes voltadas ao corte de despesas de governo e/ou sua radical reforma. Em suma, recentemente, o eleitorado em todos os lugares parece querer pressionar e sacrificar os especialistas! Idealmente, eliminá-los.

Esta aula procurará abordar os desafios dos profissionais que trabalham neste mundo contraditório de “duas caras”, que, ao mesmo tempo que os abraça com entusiasmo, os rejeita fortemente. Examinaremos primeiro o que é o profissionalismo público hoje, como o termo pode ser definido atualmente e quais são seus maiores e fundamentais valores.

Em segundo lugar, quais são as principais tendências político-sociológicas-econômicas que influenciam as atividades e moldam ações de profissionais públicos? Quais suas fontes e impactos? E como essas forças reestruturam o trabalho dos profissionais, bem como os valores fundamentais que serviram no passado para criar e manter o profissionalismo público?

Finalmente, tendo em conta essas novas realidades das transformações radicais que enfrentam os profissionais públicos em todo o mundo na segunda década do século XXI, como os professores podem educar aqueles que visam carreiras como profissionais públicos, além de promover as habilidades daqueles que já estão no serviço público? Como é que isso pode ser mais bem ensinado, considerando os desafios que os governos em geral enfrentam?

Antes de mais nada, é importante descrever as premissas por trás desta aula. São seis e relativamente claras e simples:

As decisões governamentais e o comportamento oficial impactam imensamente qualquer nação e o mundo como um todo, influenciando o desenvolvimento da sociedade, a prosperidade econômica e a legitimidade da democracia;

A grande maioria das decisões do setor público, mesmo as decisões-chave, é determinada por profissionais públicos que são amplamente não eleitos e possuem estabilidade funcional;

A qualidade e os tipos de decisões e ações que esses profissionais públicos fazem dependem de suas habilidades, orientação, perspectivas e valores;

Essas qualidades profissionais dependem fortemente de seu histórico, formação, escolaridade, desenvolvimento de carreira, bem como seu envolvimento atual em quaisquer associações ou grupos profissionais;

O governo é composto por muitas profissões — médicos, advogados, engenheiros etc. — e, por isso, nunca pode esperar tornar-se apenas um corpo profissional, mas a profissionalização do setor público envolve, de forma realista, o avanço do grau de influência individual na tomada de decisões, bem como envolve incutir valores profissionais entre os muitos grupos que trabalham no setor público; e

As atividades e os desafios enfrentados pelos profissionais públicos, bem como o avanço do profissionalismo dentro de cada nação, não são idênticos, mas compartilham atualmente muitos dos mesmos atributos em todo o mundo.

Uma vez que nos referimos com frequência ao “profissional público” e ao “profissionalismo público”, é essencial esclarecer do que se está falando aqui. São termos que podem gerar confusão, podem ser considerados até ambíguos e dão margem a diversas interpretações e modos de pensar. O Oxford English dictionary, por exemplo, nos mostra o significado mais antigo, derivado de “professar” ou de alguém que “professa” saber mais sobre um assunto e está mais bem qualificado para realizar um trabalho como resultado desse conhecimento. “A ocupação que alguém professa seguir e ser especialista em {...} Uma vocação na qual o conhecimento profissional de algum ramo de aprendizagem é usado, aplicado a assuntos de outrem, na prática da arte baseada nesse conhecimento”. Originalmente, o termo “profissional” estava limitado aos tradicionais “chamados divinos”, a lei, a medicina e aos militares. Hoje aplica-se a grupos muito mais amplos, mais abrangentes e sempre crescentes — alguns empregados exclusivamente por governos, como oficiais de serviços estrangeiros, gestores de cidades, policiais, militares e urbanistas e outros empregados do serviço público em geral, de organizações sem fins lucrativos e de setores privados que influenciam enormemente nas escolhas do setor público, como advogados, engenheiros, cientistas, médicos e economistas. E isso ainda não inclui as profissões emergentes, como a segurança cibernética e o pessoal responsável por emergências relacionadas com desastres ou outras especializações e subespecializações. Dado o número cada vez maior de ocupações especializadas, poderiam essas categorias de emprego recentes ser rotuladas como profissionais? Não é fácil responder essa pergunta nem oferecer definições claras. Embora atualmente não haja acordo em relação a um significado para profissionais públicos e/ou profissionalização do serviço público, a definição de Frederick Mosher é útil, tanto precisa como flexível o suficiente para se ajustar ao entendimento do dia a dia. Para ele, trata-se de

{...} um campo de atividade humana com propósito, mais ou menos especializado, que exige alguma formação ou treinamento especializado (embora a expertise possa ser adquirida no trabalho), que oferece uma carreira de trabalho para a vida e goza de um status relativamente alto. Normalmente aspira um propósito social, não egoísta. Geralmente, mas nem sempre, requer um diploma ou certificação e credenciais de algum tipo. Muitas vezes, seus membros se juntam a uma organização profissional, local, estadual ou nacional, muitas vezes com poderes de controle e fiscalização, que enuncia padrões e ética relacionados com o desempenho profissional.

É importante observar os três componentes de valor da definição de Mosher, que servem como as normas fundamentais dos profissionais públicos, tanto no passado quanto no presente: conhecimentos aplicados, identidade corporativa e responsabilidade ética.

Primeiro, e acima de tudo, o profissionalismo público é baseado em conhecimentos especializados. O conhecimento, baseado em teorias, mas pragmaticamente aplicado para moldar direta ou indiretamente os assuntos humanos, serve como princípio e contínua razão de ser de cada profissional. A profissão militar moderna gerou a formação do Estado-nação nos séculos XV e XVI, o que exigiu a construção de expertise no que Harold Lasswell caracterizou como “a gestão da violência”. A American City Manager Profession, ou a profissão de gestor de cidade, foi uma solução corriqueira para o que fazer em relação a buracos nas ruas da cidade, graças ao automóvel recém-inventado no início do século XX. A cidade de Staunton, no estado da Virgínia, contratou o primeiro executivo da cidade em 1909, Charles Ashburner, um engenheiro civil de formação, para lidar com esse problema dos buracos. Da mesma forma, outras respostas para necessidades empíricas específicas surgiram na mesma época, para lidar com temas como a computação em nuvem, a aplicação de novas técnicas de investigação para o combate ao crime, lidar com um surto repentino de uma doença médica até agora desconhecida ou combater as ameaças do Estado Islâmico (Isis) são também a causa das origens e do crescimento de novas profissões. Um mundo urbanizado, industrializado, globalizado e orientado pela informação engendra profissionalização a um ritmo rápido, muito mais rápido do que nunca. Há pouco tempo, íamos a “um médico de ouvido, nariz e garganta” para tratar doenças relacionadas com essas partes do corpo, mas hoje em dia há uma infinidade de especialistas que subdividem o trabalho naquela área única com estranhos títulos impronunciáveis, como otorrinolaringologistas, pneumologistas, gastroenterologistas, alergistas e muitos outros. A especialização é impulsionada por uma acumulação mais rápida de conhecimento científico que requer uma subdivisão do trabalho. Entretanto, ela também é fruto do interesse próprio, uma vez que a especialização do conhecimento geralmente implica um status superior e salários mais elevados. Seja qual for o motivo para a especialização cada vez maior, de acordo com um estudo empírico recente de Lotte Anderson e Lene Peterson, o profissionalismo está negativamente correlacionado com a compaixão, definida como motivação emocional (empática) para fazer o bem aos outros, melhorando a entrega do serviço público. Ao contrário, os fatores determinantes para o desempenho efetivo na entrega do serviço para os clientes são as normas profissionais referentes ao exercício da expertise, e não a compaixão humana ou as abordagens voltadas a facilitar a vida do usuário. Em suma, o grau de conhecimento especializado — tanto aplicado como teórico — e a firmeza e consistência de sua aplicação continuam a ser a pedra angular das “melhores práticas” de profissionais em qualquer lugar.

Em segundo lugar, uma identidade corporativa delineia o desenvolvimento e a expansão de profissões. Ela fornece estrutura e propósito a sua existência, define limites de alcance e conteúdo de qualquer atividade profissional, e estabelece linhas de quem pertence a determinadas categorias profissionais ou não. Além disso, a identidade corporativa define e cria “elites profissionais” que governam e controlam, nas palavras de Corinne Gibbs, “hierarquias internas escondidas”. Ordens dos Advogados nos Estados ou Sociedades Médicas, nas áreas tradicionais do direito e da medicina, ou ainda a Associação Internacional de Gerentes de Cidade/Condado e Sociedade de Engenheiros Civis, no caso das mais recentes carreiras em gestão pública local e da engenharia civil, fornecem estruturas corporativas nos EUA e definem as melhores práticas educacionais, formas de ingresso, requisitos para o credenciamento, opções de treinamento contínuo, códigos de conduta e métodos de execução. Essas organizações servem como defensores de uma profissão, promovendo sua causa por meio de campanhas publicitárias usando internet, lobby e literatura impressa das mais variadas, bem como divulgando conhecimento mediante reuniões regulares e publicações em periódicos de referência. Como ressalta um estudo recente de Mirko Noordegraaf, o profissionalismo é desenvolvido e nutrido através de “conectividade”, levada a cabo de três maneiras: entre ações e práticas profissionais, entre segmentos e grupos, e entre locais de trabalho e outros espaços. Acima de tudo, os profissionais resistem à intrusão política em seu trabalho. Ironicamente, os profissionais de todos os campos muitas vezes expressam hostilidade a qualquer coisa que chegue de “político”, embora os profissionais públicos, por definição, trabalhem para o governo e devam, no final, responder a alguém que foi eleito. Ainda, os profissionais públicos estão interessados em manter sua independência em relação a outros grupos profissionais. As ferozes rivalidades dentro do governo são frequentes entre profissões vizinhas, como os conflitos repetidos entre o exército, a marinha e o pessoal da força aérea. Muitas vezes invisíveis ao público e pouco estudadas na academia, essas associações profissionais e suas elites exercem influências poderosas sobre a formação das identidades profissionais modernas e suas ações públicas.

Finalmente, a responsabilidade ética é o propósito de toda profissão. As profissões estão enraizadas em propósitos morais de servir ao outro para além de interesses próprios. Tais objetivos morais são mais frequentemente codificados em declarações escritas, códigos de conduta explícitos, frequentemente combinados com mecanismos obrigatórios para garantir sua conformidade. É o caso do antigo Juramento de Hipócrates dos médicos, onde se comprometem a não fazer nenhum mal, ou dos códigos de ética profissionais mais recentes, como os da Associação de Diretores de Finanças do Governo ou da Sociedade Americana de Administração Pública, que explicam padrões de conduta profissionais, morais e legais para seus membros. Entretanto, a transmissão de normas éticas ao longo das fileiras profissionais não se dá, na prática, mediante documentos escritos ou códigos de ética. Ela ocorre por meio de comunicações informais sobre o que é um comportamento aceitável ou não. Os modelos adotados pelas elites, em especial, servem para estabelecer padrões de “melhores práticas”, normas de bom comportamento, formação de base, “carreira ideal” e o que define “sucesso” ou não dentro de determinado campo. Conferências, revistas internas, discussões informais são maneiras de incutir valores éticos, informalmente, entre os membros das associações. Como James Svara escreveu recentemente, a essência dos valores éticos atribuídos para as profissões públicas deve enfatizar servir “o público com respeito, preocupação, cortesia e capacidade de resposta, reconhecendo que o serviço ao público está além do serviço a si mesmo”. A aplicação efetiva desses códigos produz fortes e constantes lembretes de que as violações têm consequências significativas na carreira — em curto e longo prazo. Os desafios de garantir uma eficaz aplicação da ética dentro de cada profissão continuam a ser questões das mais difíceis, complexas e duradouras a enfrentar.

Então, como as tendências sócio-político-econômicas de hoje reformulam esses valores fundamentais profissionais para o futuro? Quais são os desafios que as profissões enfrentam, globalmente, nos últimos anos? Os valores fundamentais sobre os quais as profissões públicas foram criadas e cresceram estão sendo fortalecidos? Ou enfraquecidos? Minha tese: os três valores tradicionais — expertise aplicada, identidade corporativa e responsabilidade ética — sobre os quais os profissionais públicos se originaram e são fundamentados hoje em dia estão sendo transformados profundamente, em todo o planeta, por uma série de forças influentes, mesmo contraditórias. Aqui estão várias dessas forças que aparecem com destaque em todo o mundo, dando forma e remodelando os valores fundamentais do profissionalismo público:

Revolta Populista versus a Necessidade de Expertise no Setor Público: como foi indicado no início desta aula, as democracias ocidentais nos últimos anos experimentaram fortes reações aos funcionários não eleitos de todos os tipos e elegeram muitas lideranças que se comprometeram em cortar ou eliminar tais posições no funcionalismo público. Mas, ao mesmo tempo, a demanda por mais serviços governamentais permanece inalterada. Como conciliar esses opostos que simultaneamente rejeitam e sustentam o governo efetivo, bem como os valores fundamentais da expertise neutra e objetiva no cerne do profissionalismo público?

Mídia Social versus Expertise Contínua: em 2007 a Apple lançou o iPhone; no final de 2006, o Facebook abriu as suas portas; o Google saiu com o sistema operacional Android em 2007; a Amazon introduziu o Kindle em 2007; e a Airbnb começou nesse mesmo ano. Graças às mídias sociais, a última década testemunhou uma remodelação fundamental do comportamento individual, do trabalho, do comércio, das finanças, da educação, do governo, da economia e, sim, do profissionalismo público. A mídia social pede que todos sejam imediatamente envolvidos, oferecendo respostas imediatas a questões complexas, além de apresentar muito rapidamente alterações nas demandas feitas aos funcionários públicos. Sim, a mídia social é mais democrática porque permite que todos se envolvam quase que instantaneamente, mas simultaneamente elas promovem o “presentismo” que afasta o pensamento e a ação de longo prazo. Então, como as profissões públicas que valorizam — e de fato exigem — expertise para solução neutra, aplicada e objetiva para problemas de longo prazo vão lidar com as mídias sociais? Como podem nutrir uma expertise aplicada que envolve reflexão profunda e tomada de decisão cuidadosa em meio a esses que “sabem mais”? Considerando a grande quantidade de dados disponíveis — mais informações do que tudo o que foi acumulado pela humanidade até 2003 —, qual é o tipo certo de dados para identificar, coletar e utilizar e qual aquele que se deve ignorar e desconsiderar? Como conhecemos o impacto real das redes sociais nos profissionais públicos?

O Pseudoevento versus o Evento Real: há muitos anos, Daniel Boorstin referiu-se a um evento criado pela mídia que era irreal ou falso como “um pseudoevento”. O crescimento das mídias sociais acelerou o que agora é chamado de “fake news”. Muitas vezes, os pseudoeventos criam uma realidade que acaba acontecendo e que tem sérias consequências, como suicídios, manifestações ou tiroteios. No entanto, o profissionalismo se embasa em informações honestas, fatos verificáveis e análises objetivas. Separar a verdade da ficção sempre foi um desafio para os profissionais públicos, mas a expansão das mídias sociais durante a última década só amplia um dilema que já era terrível. Como os profissionais podem atualmente discernir entre fato e ficção, e responder adequadamente, em um mundo cada vez mais saturado de mídia social?

Motivos para a Elaboração Profissional da Política de Forma Especializada versus a Elaboração de Forma Integrada: como enfatizado anteriormente, é possível identificar o motivo para especializar, subespecializar, e assim por diante, nas fileiras profissionais, uma vez que novos problemas e novas informações exigem novas variedades de expertise. O resultado é que as informações não fluem através das diversas áreas do governo, ou pequenos grupos de especialistas acabam falando entre si, ao invés de compartilhar com outros que estão fora de sua área de especialização ou para além de sua própria agência imediata, ou ainda ao público em geral. Assim, a mão direita muitas vezes não sabe o que a mão esquerda está fazendo. A competição entre grupos profissionais, como dentro do departamento de defesa — exército, força aérea, marinha —, inibe ainda mais a colaboração. No entanto, uma formulação efetiva de políticas públicas exige a integração de diversos campos profissionais para que se obtenha sucesso. Nenhum grupo profissional pode ir sozinho em qualquer arena de elaboração de políticas. Fica o dilema: como promover a integração e a colaboração em fileiras profissionais cada vez mais especializadas e competitivas?

Proliferação de Contratos Temporários versus Profissionais “Da Casa”: os recentes vazamentos devastadores no setor de inteligência dos EUA foram resultado da contratação de funcionários temporários, como Edward Snowden. O uso crescente de profissionais contratados temporariamente é justificado politicamente para manter os custos baixos e reduzir o número de funcionários do governo. É uma boa retórica política, mas há pouca evidência para apoiar tais raciocínios. Em vez disso, nas palavras de Hugh Heclo, nos tornamos um “governo de estranhos”. Como resultado, tem-se o potencial para uma séria erosão da identidade corporativa profissional devido à falta de normas profissionais comumente compartilhadas, além da falta de mecanismos eficazes de aplicação ética. A questão-chave então é: como a profissionalização do governo como um todo pode avançar, quando ela é fortemente confrontada internamente devido ao aumento de contratados temporários (o que, no caso da segurança nacional e dos processos de aplicação da lei, também pode colocar em risco a vida humana)?

Interconectividade Global versus Responsabilidade Local: como mencionado anteriormente, os grupos profissionais estão enraizados em associações em nível estadual e local, como a Ordem dos Advogados nos Estados ou as Sociedades Médicas Estaduais, que providenciam exames de admissão, credenciamento, garantem o exercício da ética etc. No entanto, o trabalho cada vez mais profissional tem alcance global ou, pelo menos, está interligado além das fronteiras de qualquer nação. Mais uma vez, as demandas por resolução de problemas exigem ampla cooperação e colaboração internacional para que se obtenha sucesso em quase todos os campos, desde a proteção ambiental até intervenção militar. Então, como garantir que os profissionais públicos, com formação e credenciados em uma jurisdição local, estejam preparados para ver o panorama geral e trabalhar efetivamente com colegas para além das fronteiras nacionais?

Aumento das Responsabilidades Éticas versus Limitação da Formação Ética: pouco tempo atrás, assumia-se que, se você estudasse administração pública, você ERA ÉTICO! Assim, os programas de mestrado em administração pública eram dedicados em grande parte a capacitar os alunos em tópicos de formação “feijão com arroz” para os ‘3 Es’ — Economia, Eficiência e Eficácia — por meio de aulas de organização e gerenciamento, orçamento e finanças, gestão de recursos humanos etc. Poucos professores prestaram atenção à ética e o assunto estava praticamente ausente dos currículos da administração pública. Enquanto a incorporação de uma formação ética vem ganhando espaço nas salas de aula — assim como se ampliam os esforços em estabelecer quais condutas devem ser aplicadas por associações profissionais —, a escalada das responsabilidades e demandas éticas recaindo sobre funcionários públicos continua a crescer em um ritmo surpreendente. Do funcionário na linha de frente até o chefe de departamento no governo, os dilemas éticos são profundos e penetrantes. Então, provavelmente o desafio central do campo hoje é: como desenvolver a consciência ética entre os profissionais, a fim de fazer e aplicar escolhas eticamente saudáveis para resolver os problemas enfrentados?

Formação Generalista versus Formação Especialista para o Serviço Público: as universidades continuam a ser elementos essenciais para o desenvolvimento de expertise, credenciando e educando profissionais públicos. Até recentemente, era fácil nomear as melhores escolas de administração pública, os melhores estudiosos do campo, havia um acordo em relação aos meios pelos quais se dava a preparação acadêmica e o reconhecimento de um currículo-padrão de treinamento no campo. Uma orientação generalista preparava alunos em grande parte para uma variedade de carreiras do setor público. Mas atualmente, enquanto a formação universitária para além do grau de bacharelado em ciência ou bacharelado em artes é em geral aceito como o caminho apropriado para carreiras profissionais no governo, a multiplicidade de instituições, currículos e especializações nos EUA é algo assombroso. Os diplomas de generalista diminuíram em grande parte ou desapareceram, dando lugar a formações mais especializadas como a formulação de políticas de defesa, o treinamento de gerenciamento de emergências, a administração da implementação de legislação, o orçamento e a gestão financeira, ou a gestão de recursos humanos. No passado, muitas dessas formações eram designadas como subcampos de diplomas de Masters in Public Administration (MPA) generalistas, mas agora são oferecidas como diplomas independentes de pós-graduação. Mas a formação especializada prepara adequadamente os alunos para o trabalho no governo, que exige a compreensão do “quadro geral”, como integrar as peças e, em seguida, torná-las a operar completamente como um todo? Em que ponto o aumento da especialização profissional se torna contraproducente para alcançar “o interesse público”?

Uma Dicotomia Clara versus uma Equipe Política/Profissional Integrada: desde o surgimento da democracia com pessoas eleitas e do crescimento de burocracias com profissões públicas exercidas por pessoas indicadas (cargos comissionados), o dilema sempre foi como engajar esses dois universos distintos, o político e o administrativo, em uma equipe colaborativa eficaz a serviço do interesse público (especialmente porque ambos têm estruturas, agendas, perspectivas e propósitos de incentivo profundamente diferentes). O problema é tão antigo quanto a própria administração pública, considerando que era uma grande preocupação do primeiro ensaio escrito nos EUA sobre o assunto, de autoria de Woodrow Wilson, The study of administration (1887). As reflexões giram em torno das questões: como garantir um governo responsável à luz da criação de um novo sistema de serviço público? Como fazer com que certos profissionais sejam responsabilizados e prestem contas ao público? Atualmente, esse tema permanece central para o setor público em todo o mundo, indagando-se como os eleitos podem responsabilizar os profissionais públicos indicados e, ao mesmo tempo, como os profissionais podem oferecer o melhor serviço ou aconselhamento de forma neutra, objetiva e independente, para esses representantes eleitos. Globalmente, hoje em dia, a questão de equilibrar a dimensão política e a profissional não é apenas um desafio, mas é decisiva para o destino de muitos dos — se não todos — debates políticos fundamentais.

Certamente, outras tendências globais atuais que afetam o profissionalismo público podem ser adicionadas a essa lista, como a participação do cidadão, a representação sindical no governo e a mobilidade de carreira. Mas tentei aqui enfatizar aqueles mais recentes, mais críticos e com o maior potencial de impacto global no setor público. É importante reconhecer que muitos dos meus exemplos e citações se referem ao contexto dos EUA, ou seja, minhas perspectivas e estas reflexões podem ser um pouco limitadas, paroquiais e até tendenciosas. É certo que conheço pouco sobre a administração pública brasileira e os desafios específicos enfrentados pelo serviço público no Brasil, mas suspeito que muitas das tendências descritas anteriormente também afetam o país e o setor público de forma igualmente profunda, penetrante e muitas vezes desconhecida. Especialmente para os valores fundamentais do profissionalismo público — expertise aplicada, identidade corporativa e responsabilidade ética —, meu pressentimento é que, individual e coletivamente, essas forças mencionadas servem para fragmentar, tornar obscuro e até mesmo negar muitos aspectos dos valores profissionais fundamentais, no Brasil e no mundo. Assim, meu argumento central para o avanço da formação para o serviço público é no sentido de revitalizar, revigorar e rejuvenescer os valores fundamentais que criaram e desenvolveram o profissionalismo público como agora o conhecemos, valores esses que estão sendo atacados em muitos lugares. Por quê? Novamente, como enfatizado nas premissas declaradas nesta aula, as decisões governamentais e o comportamento oficial têm um impacto imenso — social, político e econômico — em qualquer nação e no mundo e, portanto, a formação dos profissionais públicos é fundamental para moldar escolhas públicas e ações. O governo efetivo e uma sociedade justa e moderna não pode funcionar sem um serviço público profissionalizado. Se Carl Friedrich escreveu uma vez que “a burocracia é o núcleo do governo moderno”, certamente os profissionais públicos são o “núcleo desse núcleo”.

Então, quais são os melhores caminhos para promover o profissionalismo público na segunda década do século XXI e para além dela? Novamente, devo reiterar que não tenho conhecimento sobre o serviço público brasileiro e seus particulares desafios nos dias de hoje. Mesmo assim, peço licença para discutir estratégias educacionais gerais, à luz das nove tendências globais elencadas aqui, bem como especular sobre caminhos que podem ser especialmente úteis ao fortalecimento e avanço desses três valores profissionais fundamentais. Vou resumir aqui essa conversa, não descrevendo soluções específicas ou programas educacionais e currículos, nem defendendo alternativas como tempo parcial versus tempo integral, ou formação interna ou universitária, ou ainda formação online versus presencial. Vou, no entanto, explorar estratégias educacionais gerais, destinadas a fortalecer amplamente os três valores fundamentais do profissionalismo público — expertise aplicada, identidade corporativa e responsabilidade ética.

Primeiramente, promover um maior entendimento constitucional: não estou sugerindo aqui uma formação legal a respeito das especificidades do direito constitucional. Refiro-me ao sentido aristotélico mais amplo de compreender os propósitos básicos, o significado e a influência dos documentos legais estruturantes de cada nação, sobre os profissionais públicos. No caso da Constituição dos Estados Unidos, tal instrução não pediria aos alunos que aprendessem as especificidades do documento legal que contém 6 mil palavras, mas sim que compreendam suas origens intelectuais no final do século XVIII e por que aquela era e os homens envolvidos em sua criação elaboraram um arranjo fundamental singular; seus objetivos centrais — consubstanciados em seu preâmbulo — que estabelecem as possibilidades, os limites e os papéis do setor público dos dias de hoje; sua estrutura geral que molda as atuais ações e restrições ao governo moderno dos EUA; bem como as 27 emendas somadas ao documento desde 1789 e a evolução das interpretações da Constituição ao longo do tempo, que influenciam as atividades do setor público hoje. Ao vincular uma maior compreensão constitucional à educação do profissional público contemporâneo, é possível rejuvenescer e revigorar valores éticos básicos que sustentam todas as atividades de tomada de decisão profissional.

Em segundo lugar, incentivar uma apreciação mais profunda da história profissional e da vida dos líderes profissionais: os profissionais vivem dentro de um fluxo de história que corre profunda e largamente, e que influencia de forma decisiva suas identidades corporativas modernas — quem são, o que fazem e como operam no mundo moderno. A história pode enriquecer enormemente as carreiras profissionais, inspirar o trabalho pelo conhecimento de como se desenvolveu no passado, dos principais fundadores, suas realizações e, sim, falhas. Pode ampliar sua maneira de pensar sobre problemas; oferecer exemplos, não apenas de como fazer algo, mas como fazer “bem feito”; o que funciona melhor ou não; bem como abordagens e estratégias de sucesso ou que não funcionaram. Essa formação incluiria a leitura sobre a vida de grandes líderes profissionais: por que eles entraram no campo; como aprenderam suas habilidades profissionais; o que aprenderam, experimentaram em seus estágios e que fomentou seu desenvolvimento de carreira; como eles se tornaram proeminentes em suas fileiras profissionais; o que inspirou seu profundo compromisso com essa linha de trabalho; modelos que ajudaram em seu desenvolvimento; e as decisões que fizeram que se tornassem historicamente famosos — ou não — como líderes profissionais. Muito da formação profissional exige trabalho árduo e transpiração pura. História e biografia oferecem uma inspiração inestimável tanto para aqueles que aspiram a liderança superior como para a “velha guarda” que exercita essa liderança.

Em terceiro lugar, apreender a partir de casos administrativos: o mundo do governo não apresenta perguntas simples ou soluções claras aos seus profissionais. Especialmente à medida que crescem nas hierarquias organizacionais, as questões administrativas tornam-se cada vez mais complexas. Os profissionais do governo não acordam pela manhã e dizem: “Hoje vou lidar com uma questão de orçamento”, “Amanhã abordarei a política de tal e tal área” e “depois de amanhã minha agenda será a contratação de um novo funcionário”. Nada é tão claro e organizado no governo. Em vez disso, tudo geralmente está interligado, os eventos ocorrem de forma imprevisível, e as escolhas são muito frequentemente entre o que é nem certo nem errado, mas uma mistura de grande incerteza, sem informações completas e com dúvidas consideráveis em relação aos resultados e impactos a serem alcançados. Aqui é onde os casos administrativos são uma ferramenta pedagógica necessária. Diferente dos casos das escolas de medicina ou direito, que contam com respostas frequentemente claras entre “certo” e “errado”, os melhores casos administrativos estão abertos a muitas interpretações e forçam os alunos a ver a ambiguidade e a complexidade do que é, na vida real, a tomada de decisão no âmbito do governo. Os melhores casos administrativos encorajam os alunos a apreciar e navegar em ambientes operacionais turbulentos, bem como a aprender como a formulação e implementação de políticas bem-sucedidas envolvem trabalhar em colaboração entre várias agências, departamentos e unidades, usando múltiplas habilidades administrativas (orçamento e finanças, recursos humanos, planejamento, entre outras) para alcançar resultados. Em suma, os casos que se concentram em adquirir habilidades de gerenciamento colaborativo, perceber o quadro geral para além dos horizontes intelectuais limitados da maioria das formações profissionais, são vitais para o avanço da profissionalização em todas as partes do governo moderno.

Finalmente, estudar o futuro: o velho ditado de que devemos estudar o futuro porque é nele que passamos o resto de nossas vidas é certamente verdade ou contém uma verdade importante para aqueles que trabalham no setor público. Para melhor ou pior — ou melhor e pior —, virtualmente todas as atividades governamentais envolvem moldar o futuro. Pode referir-se a grandes escolhas de paz ou guerra, ou simplesmente implicar a inserção de números em um item orçamentário, ou ainda a contratação de um novo funcionário. Tais grandes escolhas, ou tarefas mundanas, no serviço público ajudam a decidir como será o amanhã. Os destinos das sociedades, por todo o mundo, estão nas mãos de profissionais públicos que são empregados no governo, decidindo sobre os desafios sociais que enfrentamos, quais são eles e como enfrentá-los, fazendo escolhas grandes e pequenas. Embora poucos discutam o valor de saber sobre o futuro, a questão é: como? Ou, como formar profissionais em aprendizagem futurista? Certamente, o advento da “big data” e sua imensa influência mundial sobre o planejamento empresarial e governamental — e sobre a tomada de decisões — é aparente e é um fato da vida moderna. Assim, aprender a reunir, compreender e analisar grandes quantidades de dados, separando o essencial do não essencial, o fato da ficção, desbloquear as informações relevantes relacionadas com as questões que estão em discussão a fim de coletar as tendências futuras são elementos inestimáveis para prever o futuro. Mas outros caminhos menos importantes para vislumbrar o futuro podem ser encontrados por meio da aprendizagem em como conduzir grupos focais, em como obter uma amostragem de opiniões especializadas ou de como coletar material de referência a partir de uma ampla variedade de fontes de documentos. Embora certamente não exista uma única “melhor forma” de examinar adequadamente para onde estamos indo, o aspecto mais marcante da formação profissional até o momento é o quão pouco dessa formação envolve pensar sobre o futuro. Parte do problema é a associação que comumente se faz entre os estudos futurísticos e a leitura de bolas de cristal ou do horóscopo, atividades que não são adotadas com entusiasmo pelos acadêmicos nas universidades — até agora. Mas existem inúmeros métodos tecnológico-científicos mais respeitáveis, que valem a pena, ao menos de alguma forma, serem incorporados em nossos programas de formação profissional, como: extrapolação de tendências, genius forecasting, exercícios Delphic, simulação, construção de cenários, desenvolvimento de matriz de impacto cruzado e muitos outros que podem nos ajudar a prever e planejar para o futuro. Talvez não possamos ver o futuro com precisão ou com o grau de certeza que desejamos, mas algumas orientações são melhores do que nada para apontar o caminho a seguir de forma a ajudar os profissionais a planejar melhor, hoje. Simplesmente, o fato de não sabermos como oferecer uma formação para isso ou de até agora não existir acordo sobre uma metodologia de formação adequada não é desculpa para não tentarmos, considerando que os riscos de não o fazer são muito altos para os profissionais trabalhando no governo, e mais ainda para a prosperidade e a sobrevivência da sociedade

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2017
  • Aceito
    26 Out 2017
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