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A governança facilitada no Mercosul: transferência de políticas e integração nas áreas de educação, migração e saúde

La gobernanza facilitada en el Mercosur: transferencia de políticas e integración en las áreas de educación, migración y salud

Resumo

O artigo investiga o papel das instituições do Mercosul no processo de transferência de políticas entre os Estados--membros em três áreas específicas: educação, saúde e migração. O argumento principal é que essas instituições tornaram-se espaços formadores de políticas públicas, atuando como facilitadoras da transferência de políticas nos três casos empíricos examinados. O artigo pretende contribuir para o desenvolvimento de estudos empíricos de transferência de políticas públicas nos processos de integração regional. Os blocos regionais criam espaços de articulação de ideias e trocas de experiências entre os gestores de políticas públicas. A metodologia envolveu análise de documentos oficiais do bloco e entrevistas. Apesar do seu caráter intergovernamental e da sua baixa institucionalização, o Mercosul desempenhou funções importantes no processo de formulação de políticas públicas nacionais nas três áreas selecionadas na pesquisa.

Palavras-chave:
Mercosul; transferência de políticas; política migratória; política educacional.

Resumen

El trabajo investiga el rol de las instituciones del Mercosur en el proceso de transferencia de políticas entre los Estados miembros en tres áreas: educación, salud y migración. El argumento principal es que estas instituciones se han convertido en espacios que forman la política pública, actuando como facilitador de transferencia de políticas en los tres casos. El paper tiene como objetivo contribuir al desarrollo de los estudios empíricos sobre la transferencia de las políticas en los procesos de integración regional. Los bloques regionales crean espacios de articulación de ideas e intercambio de experiencias entre los gestores. La metodología consistió en el análisis de documentos oficiales del bloque y entrevistas. A pesar de su carácter intergubernamental y su baja institucionalización, el Mercosur desempeñó funciones importantes en el proceso de formulación de políticas en las tres áreas seleccionadas.

Palabras clave:
Mercosur; transferencia de políticas; política migratória; política educacional.

Abstract

This article researches the role of Mercosur’s institutions in the process of policy transfer among member states in three specific areas: education, health and migration. The main argument is that these institutions became public policy-making forums acting as policy transfer facilitators in the empirical cases studied. This article aims to contribute to the development of empirical studies on public policy transfer in regional integration processes. Regional trading blocs promote the articulation of ideas and experience exchange among public policy managers. The methodology applied to this study involves the analysis of Mercosur’s official documents and interviews. Despite its intergovernmental nature and its low institutionalization, Mercosur has played an important role in national policy-making in education, health and migration.

Keywords:
Mercosur; policy transfer; migration policy; educational policy.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo analisa o papel das instituições do Mercosul na transferência de políticas em três áreas referentes à circulação de pessoas entre seus Estados-membros e associados. As três áreas selecionadas para análise são: i) a mobilidade acadêmica possibilitada pelo Projeto Mobilidade Acadêmica Regional de Cursos (Marca); ii) os Acordos de Residência do Mercosul; e iii) a formação de recursos humanos e o exercício profissional na área de saúde. A circulação de pessoas é um dos temas principais do projeto do Mercosul, que pretendia, desde a sua fundação, ser um mercado comum. Isso implica estabelecer facilidades de circulação de capital, bens, serviços e pessoas, como explica o trabalho clássico de Béla Balassa (1961BALASSA, Béla. The theory of economic integration. Londres: George Allen & Unwin Ltd, 1961.). O Mercosul vem buscando avanços nessas áreas, sobretudo a partir da renovação pela qual passou nos anos 2000. Com ela houve a ampliação da agenda sociopolítica do bloco, intensificando o papel de suas instituições formais atuantes em temáticas sociais. Com isso, observou-se a proliferação das esferas de debate e de formação de políticas, envolvendo as áreas de educação, saúde e migração.

Esse é o caso do Foro Especializado Migratório da Reunião de Ministros do Interior (FEM), que teve papel fundamental na formulação dos Acordos de Residência e no avanço das normas sobre livre circulação. O FEM foi criado em 2004 e reúne os funcionários das autoridades migratórias dos Estados-partes. Antes da criação do FEM, as discussões sobre migração eram realizadas nas comissões técnicas da Reunião de Ministros do Interior. Na área educacional, a Comissão Regional Coordenadora de Educação Superior (CRCES) possibilitou debater avanços nessa área e foi responsável, também, pela implantação dos programas referentes à mobilidade acadêmica. Por fim, na área de saúde, destaca-se o Subgrupo de Trabalho (SGT) no 11 vinculado ao Grupo Mercado Comum (GMC). Esse Subgrupo, criado em 1996 pela Resolução GMC no 151/1996, é formado por três comissões, a saber: 1) Comissão de Produtos para a Saúde; 2) Comissão de Vigilância em Saúde; 3) Comissão de Serviços de Atenção à Saúde. Essa terceira comissão está dividida em três subcomissões: a de Serviços de Saúde; a de Avaliação e Usos das Tecnologias em Serviços de Saúde; e a de Desenvolvimento e Exercício Profissional (SEDP) (Machado et al., 2007MACHADO, Maria H.; PAULA, Aida E.-K. de; AGUIAR Filho, Wilson. O trabalho em saúde no Mercosul: uma abordagem brasileira sobre a questão. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, sup. 2, p. 292-301, 2007.:295).

Neste artigo, busca-se analisar o papel das instituições do Mercosul (o FEM, a CRCES e a SEDP do SGT no 11) no processo de transferência de políticas nas três áreas - migração, educação e saúde. Argumenta-se que essas instituições atuam segundo o modo de governança facilitada (Bulmer e Padgett, 2004BULMER, Simon; PADGETT, Stephen. Policy transfer in the European Union: an institutionalist perspective. British Journal of Political Science, v. 35, p. 103-126, 2004.) no processo de transferência de políticas públicas nas três áreas temáticas. Desde os anos 2000, essas instituições tornaram-se espaços de indução de novas políticas que, por sua vez, foram impactadas por ideias e conhecimentos compartilhados e previamente adotados em um dos Estados-membros. Como ocorre com frequência, mais tarde os Estados importaram as experiências aprendidas no Mercosul com uma revisão ou adaptação das políticas propostas de acordo com suas realidades e interesses nacionais - práticas identificadas como bricolagem (De Jong, 2013DE JONG, Martin. China’s art of institutional bricolage: selectiveness and gradualism in the policy transfer style of a nation. Policy and Society, v. 32, n. 2, p. 89-101, 2013.) ou enxerto institucional (Pessali, 2011PESSALI, Huáscar. Public policy design in developing countries: beyond transplantation. Journal of Developing Societies, v. 27, n. 1, p. 11-28, 2011.).

Para desenvolver o argumento apresentado, o artigo está estruturado em cinco seções principais, além desta introdução. Na seção seguinte, os elementos teóricos e metodológicos da transferência de políticas são apresentados, com o objetivo de identificar quais elementos contribuem para a análise do papel do Mercosul nos três casos. Na terceira, quarta e quinta seções serão apresentados os processos de transferência nas três áreas, com ênfase no papel das instituições do Mercosul. Na sexta seção, o artigo apresenta as conclusões finais e uma discussão dos casos empíricos, mostrando como as instituições do Mercosul exerceram impacto sobre as transferências em cada um desses casos.

2. ELEMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DA TRANSFERÊNCIA DE POLÍTICAS

O desenvolvimento recente de uma agenda de pesquisa sobre policy transfer é favorecido pelos processos de globalização e regionalização, como destacaram diferentes autores (Evans e Davies, 1999EVANS, Mark; DAVIES, Jonathan. Understanding policy transfer: a multi-level, multi-disciplinary perspective. Public Administration, v. 77, n. 2, p. 361-385, 1999.; Stone, 1999STONE, Diane. Learning lessons and transferring policy across time, space and disciplines. Politics, v. 19, n. 1, p. 51-59, 1999., 2004; Hassenteufel et al., 2017HASSENTEUFEL, Patrick et al. Policy diffusion and translation. The case of evidence-based health agencies in Europe. Novos Estudos Cebrap, v. 36, n. 1, p. 77-96, 2017.; Porto de Oliveira e Faria, 2017PORTO DE OLIVEIRA, Osmany; FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de. Policy transfer, diffusion and circulation. Research Traditions and the state of the discipline in Brazil. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 13-32, 2017.). Um dos principais desafios dessa agenda é diferenciar conceitos tais como transferência, difusão e convergência (Stone, 2004STONE, Diane. Transfer agents and global networks in the ‘transnationalization’ of policy. Journal of European Public Policy, v. 11, n. 3, p. 545-566, 2004.; Dolowitz, 2017DOLOWITZ, David. Transfer and learning: one coin two elements. Novos Estudos Cebrap, v. 36,n. 1, p. 35-56, 2017.; Porto de Oliveira e Faria, 2017PORTO DE OLIVEIRA, Osmany; FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de. Policy transfer, diffusion and circulation. Research Traditions and the state of the discipline in Brazil. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 13-32, 2017.). Transferência, nos termos formulados por Dolowitz e Marsh (1996DOLOWITZ, David; MARSH, David. Who learns what from whom: a review of the policy transfer literature. Political Studies, v. 44, n. 2, p. 343-357, 1996.:344), corresponde a processos pelos quais o conhecimento sobre políticas, ins­ti­tuições e ideias em uma realidade passada ou atual é utilizado no desenvolvimento de políticas, normas administrativas, instituições e ideias em outro cenário político. Esse conceito não é sinônimo de difusão. Para Porto de Oliveira (2013)PORTO DE OLIVEIRA, Osmany. Embaixadores da participação: a difusão internacional do Orçamento Participativo a partir do Brasil. Tese (doutorado em ciência política) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. e Porto de Oliveira e Faria (2017PORTO DE OLIVEIRA, Osmany; FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de. Policy transfer, diffusion and circulation. Research Traditions and the state of the discipline in Brazil. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 13-32, 2017.:30), difusão corresponderia à adoção de políticas por um grupo de países ou governos, enquanto a transferência, por sua vez, envolveria movimentos unidirecionais nos quais o deslocamento das políticas ocorre de uma jurisdição (distrito, estado, país etc.) a outra. Convergência, por fim, é o resultado da harmonização macroeconômica de forças ou processos comuns que pode ocorrer de forma não intencional, segundo Evans e Davies (1999)EVANS, Mark; DAVIES, Jonathan. Understanding policy transfer: a multi-level, multi-disciplinary perspective. Public Administration, v. 77, n. 2, p. 361-385, 1999..

Outro desafio, observado por Stone (1999STONE, Diane. Learning lessons and transferring policy across time, space and disciplines. Politics, v. 19, n. 1, p. 51-59, 1999.), diz respeito ao número relativamente restrito de análises sobre a transformação das normas nos processos de integração regional. A literatura sobre europeização fornece subsídios para preencher essa lacuna. Segundo Graziano e Vink (2007GRAZIANO, Paolo; VINK, Maarten. Europeanization. Nova York: New Research Agendas, Palgrave, 2007.), o processo de europeização avalia em que medida normas construídas na União Europeia impactam as políticas nacionais dos Estados-membros e geram convergência de políticas. A mesma avaliação pode ser aplicada à experiência do Mercosul, sobre o qual há poucos estudos.1 1 Um dos estudos realizados no Brasil sobre essa temática foi produzido por [xref ref-type="bibr" rid="r21"]Marin (2011)[/xref], que recorreu à classificação de Bulmer e Padgett e sugeriu utilizar o modo de governança facilitado para analisar a Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar (Reaf) do Mercosul. Seria a chamada “mercosulinização” nos termos de Solanas (2009SOLANAS, Facundo. El impacto del impacto del Mercosur en la educación superior: un análisis desde la “Mercosurización” de las políticas públicas. Archivos Analíticos de Políticas Educativa, Buenos Aires, v. 17, n. 20, p. 1-18, 2009.) e Botto (2011BOTTO, Mercedes I. El Mercosur, ¿para qué sirve? Claves para el debate sobre los alcances de la integración. Buenos Aires: Ediciones Flacso/CTA, 2011.). De fato, esse é um tema cuja abordagem não é frequente no Brasil. Por isso, pesquisas empíricas são necessárias, segundo Dolowitz (2017DOLOWITZ, David. Transfer and learning: one coin two elements. Novos Estudos Cebrap, v. 36,n. 1, p. 35-56, 2017.:51). Os estudos de policy transfer são, ainda, muito incipientes no Brasil, segundo o levantamento realizado por Porto de Oliveira e Faria (2017)PORTO DE OLIVEIRA, Osmany; FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de. Policy transfer, diffusion and circulation. Research Traditions and the state of the discipline in Brazil. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 13-32, 2017..

Dolowitz e Marsh (2000DOLOWITZ, David; MARSH, David. Learning from abroad: the role of policy transfer in contemporary policy-making. Governance, v. 13, n. 1, p. 5-24, 2000.) sugerem que as transferências nos processos de integração regional podem ser caracterizadas como negociadas, enquanto Bulmer e Padgett (2004BULMER, Simon; PADGETT, Stephen. Policy transfer in the European Union: an institutionalist perspective. British Journal of Political Science, v. 35, p. 103-126, 2004.) e Stone (1999STONE, Diane. Learning lessons and transferring policy across time, space and disciplines. Politics, v. 19, n. 1, p. 51-59, 1999.) as chamam de facilitadas. A partir do conceito de policy transfer, Bulmer e Padgett (2004)BULMER, Simon; PADGETT, Stephen. Policy transfer in the European Union: an institutionalist perspective. British Journal of Political Science, v. 35, p. 103-126, 2004. estudaram as formas de governança da União Europeia. Inspirados no trabalho de Dolowitz e Marsh (2000)DOLOWITZ, David; MARSH, David. Learning from abroad: the role of policy transfer in contemporary policy-making. Governance, v. 13, n. 1, p. 5-24, 2000., os autores definiram quatro diferentes graus de transferência: emulação ou cópia, síntese, influência e abortiva. A emulação ou cópia implica o empréstimo de um modelo de política de outra jurisdição sem alterações. A síntese é a combinação de modelos de duas ou mais jurisdições. A influência ocorre quando um modelo serve de inspiração para uma nova política. A abortiva seria uma transferência bloqueada por atores com poder de veto na jurisdição receptora. O quadro 1, a seguir, sintetiza os elementos básicos da abordagem dos autores.

Quadro 1
formas de governança e graus prováveis de transferência

A forma de governança hierárquica envolve alto grau de institucionalização, concebido a partir de regras formais e informais, instituições supranacionais e uma sociedade transnacional. Nesse contexto, a transferência aconteceria de modo vertical, com a aplicação das regras e legislações por meio da autoridade supranacional que se impõe sobre os governos nacionais (Bulmer e Padgett, 2004BULMER, Simon; PADGETT, Stephen. Policy transfer in the European Union: an institutionalist perspective. British Journal of Political Science, v. 35, p. 103-126, 2004.).

A forma de governança negociada é o processo pelo qual normas comuns a serem adotadas são acordadas entre os Estados-membros, havendo alguma acomodação de seus interesses específicos. Nesse cenário, a transferência pode ocorrer a partir da adoção, pelo bloco regional, do modelo ou da política de um de seus membros. As regras da tomada de decisão contribuem para criar um ambiente mais favorável à transferência baseada na negociação política. Os autores observam que a existência da maioria qualificada no processo decisório europeu reduz as possibilidades de veto dos Estados-partes, proporcionando condições para formas mais consistentes de transferência (síntese ou influência). A regra da unanimidade, porém, produz formas menos consistentes de transferência baseadas na influência (Bulmer e Padgett, 2004BULMER, Simon; PADGETT, Stephen. Policy transfer in the European Union: an institutionalist perspective. British Journal of Political Science, v. 35, p. 103-126, 2004.).

A forma de governança facilitada pressupõe que a soberania nacional está mantida, isto é, não há obrigação de adotar determinado modelo político. No entanto, o bloco possibilita uma interação ou troca entre os formuladores da política. Nesse sentido, as instituições moldam os processos de transferência de políticas públicas. Coexistem, portanto, tipos diferentes de governança na União Europeia, o que acarreta diferentes formas de transferência (Bulmer e Padgett, 2004BULMER, Simon; PADGETT, Stephen. Policy transfer in the European Union: an institutionalist perspective. British Journal of Political Science, v. 35, p. 103-126, 2004.). A facilitação corresponde à voluntariedade - nos termos utilizados nas teorias de transferência e difusão de políticas públicas. Ela ocorre quando um Estado soberano adota uma política de uma fonte externa e, embora detenha a competência para a tomada de decisão, concorda em cooperar e coordenar esforços em situações menos institucionalizadas (Bulmer e Padgett, 2004), como se pode observar no Mercosul. Segundo Andrés Malamud (2003MALAMUD, Andrés. Integração regional na América Latina: teorias e instituições comparadas. In: ESTEVES, Paulo L. (Org.). Instituições internacionais: segurança, comércio e integração. Belo Horizonte: PUC/Minas, 2003. p. 325-350.), as instituições regionais desse bloco seriam apenas fóruns intergovernamentais nos quais os representantes nacionais são constrangidos a obter unanimidade como única forma de produzir decisões. Dessa forma, os Estados conservam sua competência e autonomia na agenda regional e nacional de políticas públicas, embora utilizem tais fóruns ou espaços para cooperar e coordenar esforços para alcançar soluções comuns para determinados problemas.

Na análise dos casos empíricos, procura-se evidenciar o predomínio da governança facilitada no Mercosul. Para isso, a análise se concentrou nas instituições responsáveis pela elaboração das políticas em cada caso e no estudo dos “lugares e espaços de interação (fóruns, colóquios, seminários, reuniões etc.) no seio dos quais os atores transnacionais vão difundir seus conceitos, estando em contato com atores nacionais” (Hassenteufel, 2005HASSENTEUFEL, Patrick. De la comparaison internationale à la comparaison transnationale. Les déplacements de la construction d’objets comparatifs en matière de politiques publiques. Revue Française de Science Politique, v. 55, n. 1, p. 113-132, 2005.:37; tradução livre).2 2 No original em francês: “[...] lieux et espaces d’interaction (forums, colloques, séminaires, réunions, etc.) au sein desquels les acteurs transnationaux vont diffuser leurs conceptions, en étant en contact avec des acteurs nationaux”. Por isso, optou-se pela análise documental: (i) das atas das reuniões das instituições envolvidas nos três casos empíricos (FEM, CRCES e SEDP); e (ii) pelo exame da legislação nacional com o propósito de verificar em que medida o conteúdo das decisões regionais é internalizado pelos Estados-membros.

Na análise específica das políticas migratórias, recorreu-se, também, a entrevistas semiestruturadas com: (i) gestores da política migratória; (ii) atores que participaram do FEM; e (iii) especialistas envolvidos na formulação das Leis nacionais dos Estados-membros do Mercosul. A seleção dos entrevistados foi realizada com base no seu envolvimento nos debates sobre o tema. As entrevistas contribuíram para acrescentar novas evidências empíricas a respeito do papel do FEM, que atua como instituição facilitadora da policy transfer na questão migratória. As próximas seções analisam o papel das instituições (FEM, CRCES e SDEP) na policy transfer no Mercosul.

3. TRANSFERÊNCIA DE POLÍTICAS MIGRATÓRIAS NO MERCOSUL: A ATUAÇÃO DO FORO ESPECIALIZADO MIGRATÓRIO

A migração recebeu maior destaque no Mercosul a partir dos anos 2000. A agenda migratória no Mercosul foi determinada por um protagonismo significativo da Argentina, que havia aprovado sua lei migratória nacional baseada na concessão ampla de direitos aos migrantes no final de 2002. Paralelamente, a Argentina foi a propositora dos Acordos de Residência dos Estados-partes do Mercosul, Bolívia e Chile (AR), promulgados em 2009. Os AR incorporaram a ideia do cidadão do Mercosul como sujeito portador de direitos, entre os quais o direito à regularização, ao trabalho, à educação e à saúde nas mesmas condições que os nacionais do país no qual reside. Após a assinatura dos AR, outros temas passaram a ser discutidos dentro do Mercosul, com ênfase sobre residência, circulação e refugiados.

A instituição central a atuar como espaço de transferência de ideias e políticas da Argentina para os Estados-partes é o FEM, formado por ministros do Trabalho dos Estados-partes e funcionários das autoridades migratórias nacionais. Esse espaço revelou-se central, uma vez que permitiu contatos entre representantes de cada autoridade migratória e possibilitou a transferência de ideias, conhecimentos e políticas completas. O FEM foi criado em 2004 no âmbito da Reunião de Ministros do Interior do Mercosul e elaborou acordos levados ao Conselho do Mercado Comum - órgão executivo e responsável pela aprovação das decisões no Mercosul. O FEM é a instituição mais importante na determinação da pauta de debates migratórios do Mercosul, de onde emanam as principais decisões sobre migração. Os encontros ocorrem trimestralmente, em diferentes cidades dos Estados-membros.

A respeito do FEM como fórum de mediação de transferência, Granja (2016GRANJA, João G. Entrevista concedida a Ludmila A. Culpi. Curitiba, 16 out. 2016.:s.p.) indicou que o espaço permite “{...} compartilhar experiências e atualizar informações sobre as ações que as cinco Direções Nacionais de Migração desenvolveram e aprofundar boas práticas”. Granja assinalou que dentro do FEM, “{...} o Mercosul passou por essa discussão, de conceder direitos aos imigrantes, o que reforçou a lógica tradicional de princípios” (Granja, 2016GRANJA, João G. Entrevista concedida a Ludmila A. Culpi. Curitiba, 16 out. 2016.:s.p.). O entrevistado apontou o compartilhamento de hábitos entre os membros do FEM, capazes de garantir a manutenção dos procedimentos dessa instituição. Muiño (2016MUIÑO, Jorge. Entrevista concedida a Ludmila A. Culpi. Curitiba, 30 out. 2016.:s.p.) assinalou que dentro do FEM “existe transferência de ideias e conhecimentos de boas práticas de forma permanente”.

Em novembro de 2005, a Declaração sobre o Programa “Pátria Grande” foi assinada no FEM. Ela foi proposta pela Argentina e, por meio dela, os Estados se comprometeram a incorporar o Programa pioneiro argentino destinado à regularização de nacionais do Mercosul (Mercosul, 2006). Essa Declaração representou uma evidência da transferência do Programa “Pátria Grande” argentino para os demais Estados do bloco, segundo o então diretor nacional de Migrações da Argentina, Ricardo Eusébio Rodriguez (2007RODRIGUEZ, Ricardo E. Entrevista. Mercosul Parlamentário, Montevidéu, 3-9 dez. 2007. Disponível em: <Disponível em: http://www19.iadb.org/intal/intalcdi/PE/2007/00431.pdf >. Acesso em: 15 out. 2017.
http://www19.iadb.org/intal/intalcdi/PE/...
). Na comparação entre os “Trâmites Mercosul” do Brasil, do Paraguai e do Uruguai, há semelhanças com os AR e com o Programa “Pátria Grande”, evidenciando a transferência. Esse era um objetivo do governo argentino - difundir sua política e, assim, impedir retrocessos na política migratória regional. Augusti (2016AUGUSTI, Federico. Entrevista concedida a Ludmila A. Culpi. Curitiba, 18 nov. 2016.:s.p.) afirmou que “a ideia do Programa ‘Pátria Grande’ acabou sendo difundida dentro do FEM”, tendo em vista que a Argentina foi o primeiro país a implementar um programa de regularização de nacionais do Mercosul. A Argentina se revelou o Estado que mais promoveu transferências da temática migratória no bloco. Essa liderança é comprovada por meio de um dado: 90% das decisões tomadas no FEM partiram de propostas da Argentina (Margheritis, 2015MARGHERITIS, Ana. Mercosur’s post-neoliberal approach to migration: from workers’ mobility to regional citizenship. In: CANTOR, D. et al. A liberal tide? Immigration and asylum law and policy in Latin America. Londres: University of London, 2015. p. 57-80.). Houve um processo de emulação da política nacional argentina para o Mercosul, pois ideias e programas foram transferidos da legislação argentina. Em seguida, o mesmo ocorreu para os Estados que ratificaram os AR. Essa transferência dentro do Mercosul foi evidenciada nas atas do FEM e em entrevistas realizadas com os gestores de política migratória, que serão apresentadas na sequência.3 3 Concederam entrevista para a realização desta pesquisa: ARGENTIERI, Constanza. Representante do Instituto de Políticas Públicas e Direitos Humanos (IPPHD) do Mercosul no FEM. Curitiba, 30 nov. 2016. AUGUSTI, Federico. Diretor de Assuntos Internacionais da Direção Nacional de Migrações (DNM) argentina e representante da DNM no FEM. Curitiba, 18 nov. 2016. BARALDI, Camila. Especialista brasileira em migrações no Brasil e no Mercosul. Curitiba, 28 out. 2016. GRANJA, João Guilherme. Ex-diretor de Assuntos Estrangeiros do Ministério da Justiça; Representante do Brasil no FEM. 16 out. 2016. MUIÑO, Jorge. Diretor de Assuntos Consulares e representante do Ministério de Relações Exteriores do Uruguai no FEM. Curitiba, 30 out. 2016. VICHICH, Nora Pérez. Especialista em política migratória na Argentina e no Mercosul. Curitiba, 10 out. 2016.

Vichich (2016VICHICH, Nora P. Entrevista concedida a Ludmila A. Culpi. Curitiba, 10 out.2016.:s.p.) assinalou que os AR são a norma intergovernamental do processo, cuja adoção extrapolou sua intenção inicial “{...} ao modelar as políticas migratórias para a região”. Ou seja, os Acordos de Residência ajudaram a impulsionar as transferências, compelindo os Estados-partes a reformas em suas leis migratórias nacionais. Essas alterações foram necessárias à medida que os AR apresentavam uma abordagem baseada na concessão de direitos amplos aos cidadãos, o que não era contemplado pelas leis migratórias nacionais cuja ênfase era, ainda, em questões de segurança.

No caso uruguaio, a transferência foi comprovada por meio da aprovação da Lei no 18.250, que emulou ou copiou diversos artigos da Lei Migratória argentina no 25.871, conforme se observa no quadro 2, baseado nos graus de transferência apresentados por Bulmer e Padgett (2004BULMER, Simon; PADGETT, Stephen. Policy transfer in the European Union: an institutionalist perspective. British Journal of Political Science, v. 35, p. 103-126, 2004.). O Mercosul atuou como facilitador ao permitir contatos entre os agentes e gestores de política migratória de ambos os países. Augusti (2016AUGUSTI, Federico. Entrevista concedida a Ludmila A. Culpi. Curitiba, 18 nov. 2016.) afirmou que houve intercâmbio entre os formuladores da lei argentina e da lei uruguaia. De acordo com Augusti (2016:s.p.): “Houve visitas aos gestores. Eu mesmo participei de eventos no Uruguai no período de elaboração da lei”. O modelo foi, então, tomado como referência pelo Uruguai.

Quadro 2
exemplos de transferências entre a lei migratória argentina (25.871) e a lei migratória uruguaia (18.250)

Observa-se, também, que a atuação mediadora do Mercosul provocou transferência entre a lei de migrações da Argentina e a Nova Lei de Migrações brasileira no 13.445/2017. A transferência entre as normas argentina e brasileira ocorreu, também, em outras esferas, como seminários e congressos, mediadas por atores da sociedade civil, revelando que o Mercosul não foi o único ator influente. Nesse sentido, a sociedade civil cumpriu um papel destacado nessa transferência. Sobre os contatos entre as sociedades civis dos países, Argentieri (2016ARGENTIERI, Constanza. Entrevista concedida a Ludmila A. Culpi. Curitiba, 30 nov. 2016.:s.p) assinalou que há laços entre ONGs argentinas, brasileiras e uruguaias. Elas estariam articuladas em redes e promoveriam “trocas de experiências nacionais”. Ainda assim, os eventos mais importantes de intercâmbio entre atores de migração e especialistas foram as Conferências Sul-Americanas de Migrações, que resultaram das discussões dentro do FEM.

Baraldi (2016BARALDI, Camila. Entrevista concedida a Ludmila A. Culpi. Curitiba, 28 out. 2016.) indicou que existe transferência dentro do bloco, apresentando experiências pessoais de intercâmbios migratórios. “Acho que há muitas trocas em razão do Mercosul. Eu tive oportunidade de participar de um evento em 2012 {...}. Nessa ocasião tinha muitos argentinos trazendo a experiência da Argentina para pensar a nova Lei de Migrações brasileira” (BARALDI, 2016BARALDI, Camila. Entrevista concedida a Ludmila A. Culpi. Curitiba, 28 out. 2016.:s.p.).

A figura 1ilustra o caminho da transferência de política migratória no Mercosul. A lei argentina é o ponto de origem, o FEM atua como filtro e caixa de ressonância e os demais Estados-partes são o destino final das políticas migratórias condicionadas pelos AR.

FIGURA 1
fluxograma da transferência de políticas migratórias no mercosul

Vichich afirmou que “a transferência através do Mercosul {...} é um processo que envolve mecanismos {...} que têm a ver com as trocas que se dão em reuniões mais formais, mas também com a geração de níveis de confiança entre os negociadores” (Vichich, 2016VICHICH, Nora P. Entrevista concedida a Ludmila A. Culpi. Curitiba, 10 out.2016.:s.p.). Essas formas de cooperação se concretizaram em cursos sobre temáticas específicas e trocas de informação, assim como visitas institucionais para observar o funcionamento da política.

Na questão migratória no Mercosul ocorre, essencialmente, uma troca de informações baseada na governança facilitada, pois os Estados estabelecem intercâmbio de informações e conhecimentos nesses debates, a exemplo do Programa Pátria Grande argentino, mas não são impelidos a transferir a política. Os Estados mantêm sua soberania, transferem apenas as políticas quando as consideram vantajosas e, por esse motivo, adéquam-se voluntariamente às políticas e às decisões regionais.

4. PROGRAMA MARCA: MERCOSUL EDUCACIONAL COMO FACILITADOR NA FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

A educação é considerada uma das áreas prioritárias para o fortalecimento da integração no Mercosul (Congresso Nacional, 2005CONGRESSO NACIONAL. Ministério das Relações Exteriores. Mercosul: legislação e textos básicos. Brasília: Senado Federal, 2005.:14). Desde o início das reuniões entre os ministros da Educação dos países-membros, a educação é defendida como fundamental ao processo de integração (Mercosul, 2017bMERCOSUL. Atas das Reuniões de Ministros de Educação. Documentos - Mercosul Educacional. 1992-2015. 2017b. Disponível em:<Disponível em:https://goo.gl/7TDzke >. Acesso em: 26 mar. 2017.
https://goo.gl/7TDzke...
). Considerando a amplitude de temas dessa área, esta seção se concentrará na análise da mobilidade acadêmica discente e docente.

A mobilidade acadêmica sempre esteve em pauta nas reuniões de ministros de Educação. No ano de criação do bloco regional, os ministros de Educação assinam um Protocolo de Intenções (Mercosul, 1991MERCOSUL. Protocolo de intenções entre os ministros de Educação, de 13 de dezembro de 1991. 2018c. Disponível em:<Disponível em:https://goo.gl/SiZmGA >. Acesso em:12 fev. 2018.
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) no qual declaram o interesse no fomento à mobilidade docente, discente e de especialistas com o propósito de favorecer o entendimento da realidade regional e o desenvolvimento humano, cultural, científico e tecnológico. Nesse documento, reforçam, também, a necessidade de medidas para a superação dos entraves na mobilidade e no intercâmbio de bens e pessoas no bloco. No ano seguinte, os ministros de Educação se reúnem e recomendam o desenvolvimento de mecanismos de intercâmbio docente e discente. Entre 1993 e 1995, são assinados protocolos envolvendo a formação de recursos humanos no nível de pós-graduação e a integração educacional para prosseguimento de estudos nesse nível nas instituições dos países-membros. Em 1996, os dirigentes da área educacional recomendam, ao Comitê Coordenador Regional, um estudo de viabilidade para acreditação de cursos a fim de definir um sistema de reconhecimento de títulos de graduação (Mercosul, 2017bMERCOSUL. Atas das Reuniões de Ministros de Educação. Documentos - Mercosul Educacional. 1992-2015. 2017b. Disponível em:<Disponível em:https://goo.gl/7TDzke >. Acesso em: 26 mar. 2017.
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).

Com o mecanismo experimental de credenciamento de cursos para o reconhecimento de títulos de graduação universitária nos países do Mercosul (Mexa), assinado em 1998 e implantado em 2002, são criadas as bases para o intercâmbio entre discentes e docentes (Mercosul, 2017bMERCOSUL. Atas das Reuniões de Ministros de Educação. Documentos - Mercosul Educacional. 1992-2015. 2017b. Disponível em:<Disponível em:https://goo.gl/7TDzke >. Acesso em: 26 mar. 2017.
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). Esse intercâmbio tornou-se possível depois de alguns anos com a criação do Projeto de Mobilidade Acadêmica Regional de Cursos (Marca). Participam desse programa os cursos incluídos no Sistema de Acreditação Regional de Cursos de Graduação - Sistema Arcu-SUL. Embora esteja explícito na documentação consultada que haverá respeito à legislação local e que a adesão é voluntária, buscou-se estabelecer um alinhamento/harmonização na construção das propostas.

A fim de evidenciar empiricamente a governança facilitada na área educacional, foram analisados os documentos da Comissão Regional Coordenadora de Educação Superior - fórum específico de discussão dos programas relativos à mobilidade criado em 2001 e constituído por burocratas indicados pelos países-membros. O quadro 3resume a evolução da discussão sobre a mobilidade no Mercosul com base nas atas das reuniões do referido fórum.

Quadro 3
evolução da discussão sobre mobilidade no mercosul

O Mexa foi desenvolvido a partir da definição da acreditação, da mobilidade e da cooperação no Plano Estratégico do Setor Educacional do Mercosul 2001-2005. Após um projeto piloto com as áreas de agronomia, engenharia e medicina, estabeleceu-se o mecanismo definitivo: o Sistema de Acreditação Regional de Cursos de Graduação do Mercosul (Arcu-SUL). Com a acreditação dos cursos, o passo seguinte poderia ser dado. Este é o contexto de origem do que viria a ser o Marca (Mercosul, 2018bMERCOSUL. Comisión de área de Educación Superior. Mercosul Educacional (Org.). Programa de movilidad académica regional: história. 2018b. Disponível em:<Disponível em:https://goo.gl/oNP3EZ >. Acesso em:13 fev. 2018.
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).

A discussão sobre a mobilidade acadêmica, a acreditação e a cooperação interinstitucional já estava presente desde 2001, quando a relatoria de programas bilaterais e o estudo e a observação de modelos existentes para regrar o tema ficaram a cargo das delegações brasileira, chilena e paraguaia. No ano seguinte, a delineação dos princípios norteadores do programa de mobilidade acadêmica do bloco começou e a Argentina ficou responsável pela compilação das sugestões das partes (Mercosul, 2017aMERCOSUL. Atas das Reuniões da Comissão Regional Coordenadora de Educação Superior. Documentos - Mercosul Educacional. 2001-2015. 2017a. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/7TDzke >. Acesso em:26 mar. 2017.
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).

Em 2004, a mobilidade acadêmica no bloco regional com o Marca é aprovada. Para sua execução, a Comissão Regional Coordenadora de Educação Superior fica designada como responsável. O início do intercâmbio acadêmico por meio do projeto acontece no ano de 2006 com o curso de agronomia, quando também se solicita o desenho definitivo do sistema de acreditação. Outro passo foi dado naquele ano com a proposta de mobilidade docente apresentada pela delegação brasileira. A proposta foi aprovada pela referida comissão, e a delegação brasileira assumiu a responsabilidade de coordenar o programa (Mercosul, 2017aMERCOSUL. Atas das Reuniões da Comissão Regional Coordenadora de Educação Superior. Documentos - Mercosul Educacional. 2001-2015. 2017a. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/7TDzke >. Acesso em:26 mar. 2017.
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).

O Brasil continuou seu protagonismo em relação à mobilidade docente, uma vez que apresentou resultados positivos com o programa e foi responsável pela elaboração de um fluxo de mobilidade de acordo com as áreas de interesse e financiamento encaminhadas pelos Estados-membros. Dessa forma, durante o ano de 2007, acordou-se comumente a continuidade, a expansão e a recondução brasileira à coordenação. Entretanto, por questões de indisponibilidade orçamentária, a execução ficou para 2008 (Mercosul, 2017aMERCOSUL. Atas das Reuniões da Comissão Regional Coordenadora de Educação Superior. Documentos - Mercosul Educacional. 2001-2015. 2017a. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/7TDzke >. Acesso em:26 mar. 2017.
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).

Nos anos seguintes, os países se alternaram no protagonismo das questões relacionadas com os estudantes. Quanto ao intercâmbio de professores, porém, o Brasil continuou a se destacar na condução dos trabalhos. Em 2012, decidiu-se por uma reestruturação do programa e por suspender as chamadas da mobilidade docente para que fosse discutida sua inclusão no Sistema Integrado de Mobilidade (Mercosul, 2017aMERCOSUL. Atas das Reuniões da Comissão Regional Coordenadora de Educação Superior. Documentos - Mercosul Educacional. 2001-2015. 2017a. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/7TDzke >. Acesso em:26 mar. 2017.
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).

Desde 2013, o programa mudou de abordagem. Além da participação no sistema, estabeleceu-se a necessidade de projetos de cooperação interuniversitária com o envolvimento de instituições de Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Chile para fomentar intercâmbio de estudantes, coordenadores e professores das carreiras credenciadas ao Arcu-SUL. Esperava-se, com essa alteração na abordagem, que afeta docentes e discentes, um aumento nas relações estabelecidas (redes/projetos), bem como na qualidade das propostas, assegurando, assim, a consecução dos objetivos do Marca (Mercosul, 2018bMERCOSUL. Atas das Reuniões de Ministros de Educação. Documentos - Mercosul Educacional. 1992-2015. 2017b. Disponível em:<Disponível em:https://goo.gl/7TDzke >. Acesso em: 26 mar. 2017.
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).

Sobre a atualidade do programa, apesar de possuir um caráter voluntário, observa-se a participação ativa de todos os membros. A tabela 1 compila o número de instituições participantes por curso e por país. Fica evidente a adesão e o comprometimento dos países-membros com a implantação do Marca, considerando que o respeito à legislação local previsto no programa não parece ter sido usado como forma de restrição à transferência de políticas.

Tabela 1
número de instituições participantes do marca por país e por curso

Como se pode observar, as tratativas referentes à mobilidade acadêmica em âmbito mercosulino demonstram que a CRCES serviu como facilitadora no processo de transferência de políticas públicas entre os países-membros. Esse fórum possibilita o compartilhamento de experiências dos países-membros na formulação de políticas públicas e que sejam construídas, a partir delas, as propostas do bloco - em alguns casos, com maior protagonismo de um país, como é o caso do Brasil em relação à mobilidade docente. Por se tratar de uma discussão conjunta - ainda que seja utilizado o modelo de um país -, há a participação/ratificação de todos os Estados-membros. Esse modelo conjunto pode explicar a diminuição das resistências/restrições para implantação. A tabela 1 mostra que todos implantaram os acordos. Assim, a referida comissão funciona como um espaço de síntese e disseminação de políticas públicas.

A questão relativa à mobilidade discente ilustra a inspiração dos Estados-partes em outros processos para construção do modelo regional, ou seja, na síntese de políticas públicas. No que se refere à mobilidade docente, esse espaço possibilitou, também, que um dos países-membros - no caso, o Brasil - apresentasse seu modelo para exposição aos demais, defendendo-o como solução à questão comum, propiciando a transferência de política por meio da influência.

5. A FORMAÇÃO DE RECURSOS HUMANOS E O EXERCÍCIO PROFISSIONAL NA ÁREA DE SAÚDE NO MERCOSUL

O tema da formação de recursos humanos e do exercício profissional no Mercosul demanda a participação de associações profissionais e de uma expertise técnica necessária ao tratamento da agenda complexa do SGT no 11 do GMC. A formação de recursos humanos e o exercício profissional fazem parte da agenda da SDEP, ligada à Comissão de Serviços de Atenção à Saúde A agenda do SGT no 11 demanda conhecimentos especializados, o que aumenta a importância dos técnicos e das associações profissionais na condução dos trabalhos e reduz o papel dos burocratas. Como consequência, o avanço do tratamento das questões da saúde no Mercosul, em particular na SDEP, depende dos interesses dos setores profissionais envolvidos. Além disso, a SDEP é uma comissão cujo papel é assessorar o processo decisório na área específica de formação e exercício profissional, podendo construir, com base no consenso entre os Estados, projetos de resolução encaminhados ao GMC para apreciação e aprovação.

Dentro da SDEP, era reconhecida a necessidade de articulação entre seu trabalho e o do Setor Educacional do Mercosul (Paula, 2009PAULA, Aida E.-K. de. A integração social no Mercosul: as políticas de educação em saúde no Brasil e na Argentina (1991-2006). Tese (doutorado em estudos comparados sobre as Américas) - Universidade de Brasília, Brasília, 2009.:133). O trabalho conjunto deveria gerar “uma análise dos distintos instrumentos do Mercosul relativos ao movimento temporário de pessoas físicas prestadoras de serviços, a fim de determinar a necessidade de instrumentos adicionais” (Mercosul, 2017MERCOSUL. Ata da Reunião do Foro Especializado Migratório no 1/06. Memória Institucional do Mercosul, Mar del Plata, 20-23 mar.2006.d:2). O levantamento sobre as pessoas físicas diz respeito ao exercício profissional de portadores de diploma de graduação nas áreas de saúde e que estejam interessados em trabalhar em Estados-membros distintos de suas origens. Portanto, o exercício profissional constitui uma temática associada às demais áreas abordadas nas seções precedentes deste artigo, já que envolve o reconhecimento dos títulos e diplomas dos profissionais de saúde (área educacional) e as questões específicas relacionadas com as migrações intrabloco (área migratória).

De acordo com o estudo de Aida El-Khoury de Paula (2009PAULA, Aida E.-K. de. A integração social no Mercosul: as políticas de educação em saúde no Brasil e na Argentina (1991-2006). Tese (doutorado em estudos comparados sobre as Américas) - Universidade de Brasília, Brasília, 2009.:168), grupos de trabalho e profissionais oriundos de diversas áreas e instituições constituíram os espaços para a discussão, concepção e formulação das políticas na área de saúde do Mercosul. Internamente, o Brasil institucionalizou, por meio da Portaria no 929/GM (de 2 de maio de 2006), o Fórum Permanente Mercosul para o Trabalho em Saúde. Sua finalidade era apoiar a coordenação da SDEP nas reuniões ordinárias do SGT no 11. Ele formou, a partir de então, um “espaço de diálogo e cooperação entre gestores e trabalhadores da saúde” (Ministério da Saúde, 2010MINISTÉRIO DA SAÚDE. Fórum Mercosul para o Trabalho em Saúde. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2010. Disponível em:<Disponível em:https://goo.gl/MYCS5v >. Acesso em: 10 fev. 2018.
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:13) e sua coordenação ficou a cargo do Ministério da Saúde brasileiro.

O tema central da SDEP era o reconhecimento das especialidades das profissões de saúde no Mercosul. Aida El-Khoury de Paula (2009PAULA, Aida E.-K. de. A integração social no Mercosul: as políticas de educação em saúde no Brasil e na Argentina (1991-2006). Tese (doutorado em estudos comparados sobre as Américas) - Universidade de Brasília, Brasília, 2009.) analisou as atas de reuniões da Subcomissão, atuou no Ministério da Saúde brasileiro e participou da SDEP no período de 2004 a 2007. Para Aida de Paula, o exercício profissional demandava a implementação de políticas de recursos humanos acordadas por consenso na SDEP. O compromisso estabelecido sobre a livre circulação de pessoas tem repercussões no que se refere à garantia dos direitos sociais e à oferta dos profissionais de saúde. Com relação ao último aspecto, a livre atuação desses profissionais no espaço regional exigia: (i) superar problemas relacionados com os conflitos nas legislações nacionais no que se refere à regulamentação e regulação das profissões de saúde; e (ii) estabelecer mecanismos de controle, fiscalização e registro das sanções disciplinares imputadas a determinados profissionais e criar um Código de Ética para cada profissão de saúde (Paula, 2009PAULA, Aida E.-K. de. A integração social no Mercosul: as políticas de educação em saúde no Brasil e na Argentina (1991-2006). Tese (doutorado em estudos comparados sobre as Américas) - Universidade de Brasília, Brasília, 2009.).

Em 2004, as discussões internas entre os diferentes agentes envolvidos nos trabalhos da SDEP resultaram na aprovação, baseada no consenso, da Matriz Mínima de Registro dos Profissionais de Saúde do Mercosul, conforme apontado pelo Ministério da Saúde brasileiro (Ministério da Saúde, 2010MINISTÉRIO DA SAÚDE. Fórum Mercosul para o Trabalho em Saúde. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2010. Disponível em:<Disponível em:https://goo.gl/MYCS5v >. Acesso em: 10 fev. 2018.
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:22-23) e pela pesquisa de Aida El-Khoury de Paula (2009PAULA, Aida E.-K. de. A integração social no Mercosul: as políticas de educação em saúde no Brasil e na Argentina (1991-2006). Tese (doutorado em estudos comparados sobre as Américas) - Universidade de Brasília, Brasília, 2009.). O propósito da Matriz era realizar um registro único de profissionais de saúde interessados em atuar em um Estado diferente daquele no qual se formaram. O registro seria um documento contendo dados pessoais e profissionais, incluindo as sanções a que um profissional estivesse submetido (Cardoso et al., 2013CARDOSO, Andréa L.; MACHADO, Maria H.; VIEIRA, Ana L. S. Odontologia: A regulação da profissão no âmbito do Mercosul. Revista Brasileira de Odontologia, v. 70, n. 1, p. 59-63, 2013.:61).

Uma análise das atas do SGT no 11 entre 2007 e 2015 mostra que, apesar dos avanços pontuais gerados pela Matriz para solucionar os problemas apontados anteriormente, em alguns anos (2007 a 2010) não foram registrados progressos no que se refere à sua rediscussão e à sua internalização nos Estados-partes. Apenas na segunda reunião do SGT no 11, em setembro de 2010, mencionou-se a vigência da Matriz. Em 2011, ano estabelecido para sua entrada em funcionamento, não houve qualquer menção relevante sobre a decisão. Em 2012, a SDEP encaminhou dois projetos de Resolução do tema ao GMC. Um tratava da Lista de Especialidades Médicas Comuns no Mercosul, necessária para o reconhecimento dessas especialidades nos Estados-partes. Outro tratava da Lista de Profissões de Saúde do Mercosul, reconhecidas como comuns a todos os Estados do bloco. Em outubro de 2013, a Matriz Mínima foi atualizada. A internalização das Resoluções do GMC no 07/2012 (Lista de Profissões de Saúde do Mercosul) e no 08/2012 (Lista de Especialidades Médicas Comuns do Mercosul) (Mercosul, 2017cMERCOSUL. GMC no 07/12 (Lista de Profissões de Saúde do Mercosul) e no 08/12 (Lista de Especialidades Médicas Comuns do Mercosul). 2017c. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/eaq8su >. Acesso em:27 mar. 2017.
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) foi feita pelo Uruguai em 2013 e pelo Brasil e pela Argentina em 2014.

A edição de duas Portarias (no 734/2014 e no 735/2014) no Brasil procurou dar vigência às Resoluções nos 07 e 08/2012 do GMC. Por meio delas, o Ministério da Saúde (2017aMINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria no 734/2014. 2017a. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/JPE0A6 >. Acesso em:10 out. 2017.
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e 2017bMINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria no 735/2014. 2017b. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/l8DA5b >. Acesso em:10 out. 2017.
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) reconheceu as profissões de saúde previstas nessas Resoluções. No entanto, persiste a necessidade de observação das leis brasileiras vigentes, o que significa a exigência de revalidação dos diplomas dos profissionais oriundos de outros países do Mercosul. As portarias aprovaram uma lista comum de nove profissões de saúde reconhecidas pelos Estados-partes e outra lista contendo 38 Especialidades Médicas Comuns no Mercosul. A aprovação dessas duas listas facilitou o ingresso dos profissionais de saúde no Brasil, pois houve ali o reconhecimento mútuo das profissões de saúde e das especialidades médicas. As portarias, porém, não eliminaram a legislação que exige a revalidação dos diplomas.

Em síntese, a criação de uma Matriz Mínima, atualizada em 2012 pelo projeto enviado pela SDEP e aprovada em 2013 pelo GMC, não foi suficiente para superar os limites impostos pelas legislações e normas vigentes em cada país, mas possibilitou avanços pontuais para o exercício profissional na área de saúde dentro do Mercosul. De todo modo, a Matriz Mínima surgiu a partir das interações e influências recíprocas entre os Estados, que conseguiram chegar a um consenso sobre as profissões de saúde e os requisitos fundamentais para o seu exercício dentro da SDEP.

6. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS E CONCLUSÕES FINAIS

No desenvolvimento das pesquisas empíricas apresentadas nas seções precedentes deste artigo, foi possível constatar que as transferências de políticas públicas dentro e a partir de processos de integração regional são mais complexas quando comparadas com as existentes entre Estados ou atores subnacionais. Por essa razão, a classificação sugerida por Bulmer e Padgett (2004BULMER, Simon; PADGETT, Stephen. Policy transfer in the European Union: an institutionalist perspective. British Journal of Political Science, v. 35, p. 103-126, 2004.) permite analisar as diferenças entre a experiência do Mercosul e a que ocorre na União Europeia (UE). O estudo dos autores mostrou o predomínio da governança hierárquica na UE, ou seja, a convergência de normas em áreas específicas. Trata-se da chamada europeização, conforme Graziano e Vink (2007GRAZIANO, Paolo; VINK, Maarten. Europeanization. Nova York: New Research Agendas, Palgrave, 2007.). No caso do Mercosul, observa-se o predomínio da governança facilitada, isto é, das trocas voluntárias de conhecimento e de boas práticas com base nas experiências prévias dos Estados. Nesse sentido, os casos empíricos aqui analisados evidenciaram as dificuldades do Mercosul para produzir a harmonização de normas e políticas entre os Estados-membros - a chamada “mercosulinização” -, pois cada Estado incorpora essas normas e políticas de maneiras distintas.

Dentro da classificação proposta por Bulmer e Padgett (2004BULMER, Simon; PADGETT, Stephen. Policy transfer in the European Union: an institutionalist perspective. British Journal of Political Science, v. 35, p. 103-126, 2004.), o Mercosul não se encaixaria na forma de governança hierárquica enquanto persistir o baixo grau de institucionalização observado por autores como Tullo Vigevani e colaboradores (2008VIGEVANI, Tullo et al. O papel da integração para o Brasil: universalismo, soberania e percepção das elites. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 51, n. 1, p. 5-27, 2008.) e Andrés Malamud (2003MALAMUD, Andrés. Integração regional na América Latina: teorias e instituições comparadas. In: ESTEVES, Paulo L. (Org.). Instituições internacionais: segurança, comércio e integração. Belo Horizonte: PUC/Minas, 2003. p. 325-350.). A forma de governança hierárquica implica um alto grau de institucionalização, que se expressa na existência de instituições supranacionais com capacidade de impor decisões políticas e normas aos Estados-membros. Não é o que se observa no Mercosul, no qual as instituições possuem natureza intergovernamental e envolvem a participação direta de representantes e técnicos dos executivos nacionais na formulação das decisões regionais - embora haja espaço à influência de atores da sociedade civil organizada. Além disso, no processo decisório dos órgãos fundamentais do Mercosul - o Grupo Mercado Comum e o Conselho do Mercado Comum - prevalece a tomada de decisão por consenso ou unanimidade, conforme previsto pelo art. 37 do Protocolo de Ouro Preto. Assim, foi possível observar que esse desenho institucional teve repercussões sobre a policy transfer e precisa ser considerado nas análises dessa experiência de integração. Igualmente, é necessário considerar e examinar o papel de espaços específicos criados dentro do Mercosul (como reuniões especializadas, fóruns, comissões e subcomissões), pois permitem identificar os limites e as possibilidades da policy transfer nesse bloco.

Além do exposto anteriormente, os casos empíricos confirmam a análise de Mercedes Botto (2011BOTTO, Mercedes I. El Mercosur, ¿para qué sirve? Claves para el debate sobre los alcances de la integración. Buenos Aires: Ediciones Flacso/CTA, 2011.), segundo a qual as políticas nascem no ambiente doméstico dos Estados e são levadas à discussão no âmbito regional, podendo ocasionar graus variados de transferência. Essa análise contribui para explicitar um dos motivos pelos quais Brasil e Argentina foram protagonistas em determinados temas da policy transfer no Mercosul, como a mobilidade docente e a migração, respectivamente. O outro motivo é a existência de assimetrias econômicas e políticas entre os Estados-membros, que explicam a capacidade dos dois países de conduzir determinados temas da agenda de políticas públicas do Mercosul.

Nas seções precedentes deste artigo, observou-se a influência recíproca entre os Estados-membros e associados do Mercosul por meio de suas instituições específicas (o FEM, a CRCES e a SDEP). Para Bulmer e Padgett (2004BULMER, Simon; PADGETT, Stephen. Policy transfer in the European Union: an institutionalist perspective. British Journal of Political Science, v. 35, p. 103-126, 2004.:111), a influência recíproca é própria de formas de governança facilitada e tende a aumentar: (i) pela incorporação de objetivos e de diretrizes dos tratados; e (ii) por procedimentos que obrigam os Estados a reavaliar o desempenho de suas políticas públicas nacionais com base nas práticas desenvolvidas pelos seus parceiros regionais.

Na terceira seção, destacou-se o papel do Foro Especializado Migratório como espaço transnacional facilitador do processo de transferência de políticas e programas na questão migratória. Por meio das atividades e dos debates realizados no FEM, os Estados-membros e associados reconheceram a necessidade de ajustar suas legislações nacionais ao conteúdo dos Acordos de Residência. Assim, o Mercosul facilitou as mudanças das legislações migratórias no Brasil - por meio da Lei no 13.445/2017 - e no Uruguai em 2008.

Na área de educação, a CRCES funcionou como espaço para a produção de uma síntese de programas destinados a regulamentar a mobilidade discente e docente. As propostas se formaram a partir das experiências dos Estados-membros e da observação de modelos externos, ou seja, houve transferência voluntária. Nota-se um protagonismo argentino na elaboração da proposta da mobilidade discente e um protagonismo brasileiro nas tratativas referentes ao intercâmbio docente por meio de parcerias institucionais. Por sua característica intergovernamental, o Marca evidenciou que o Mercosul, por meio da CRCES, funcionou como ambiente facilitador da síntese e da disseminação de programas entre os Estados-membros.

No caso do exercício profissional na área de saúde, a SDEP foi o espaço no qual se procurou construir consenso em torno da Matriz Mínima capaz de agrupar informações pessoais e profissionais dos interessados em trabalhar em outro país do Mercosul que não o seu de origem. Porém, no Brasil, as associações médicas exerceram o poder de veto ao impedir que médicos de outros países exerçam sua profissão sem a revalidação de seus diplomas. Trata-se do que Bulmer e Padgett (2004BULMER, Simon; PADGETT, Stephen. Policy transfer in the European Union: an institutionalist perspective. British Journal of Political Science, v. 35, p. 103-126, 2004.) chamam de grau de transferência abortiva. Os médicos de outros Estados do Mercosul não têm livre trânsito no Brasil, mesmo após a aprovação da Matriz Mínima e das portarias do Ministério da Saúde de 2014. Eles precisam se adequar às regras estabelecidas para os demais estrangeiros. O poder de veto das associações médicas brasileiras funcionou com base em uma questão técnica cujo tratamento não era exclusividade dos burocratas nacionais.

Em síntese, o FEM, a CRCES e a SDEP foram espaços que possibilitaram o compartilhamento de ideias, conhecimentos, programas e políticas entre os Estados-membros e associados do Mercosul e constituíram fóruns de debate entre os representantes nacionais. Eles expressam a forma de governança facilitada, que predominou no Mercosul e permitiu revisões nas políticas nacionais nas três áreas específicas analisadas neste artigo. Os países, no entanto, preservaram sua soberania. Mudanças subsequentes nas políticas nacionais foram condicionadas pelos interesses políticos e sociais de cada Estado-membro.

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  • VICHICH, Nora P. Entrevista concedida a Ludmila A. Culpi Curitiba, 10 out.2016.
  • 1
    Um dos estudos realizados no Brasil sobre essa temática foi produzido por [xref ref-type="bibr" rid="r21"]Marin (2011)MARIN, Pedro de L. Mercosul e a disseminação internacional de políticas públicas. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, v. 16, n. 58, p. 7-22, 2011.[/xref], que recorreu à classificação de Bulmer e Padgett e sugeriu utilizar o modo de governança facilitado para analisar a Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar (Reaf) do Mercosul.
  • 2
    No original em francês: “[...] lieux et espaces d’interaction (forums, colloques, séminaires, réunions, etc.) au sein desquels les acteurs transnationaux vont diffuser leurs conceptions, en étant en contact avec des acteurs nationaux”.
  • 3
    Concederam entrevista para a realização desta pesquisa: ARGENTIERI, Constanza. Representante do Instituto de Políticas Públicas e Direitos Humanos (IPPHD) do Mercosul no FEM. Curitiba, 30 nov. 2016. AUGUSTI, Federico. Diretor de Assuntos Internacionais da Direção Nacional de Migrações (DNM) argentina e representante da DNM no FEM. Curitiba, 18 nov. 2016. BARALDI, Camila. Especialista brasileira em migrações no Brasil e no Mercosul. Curitiba, 28 out. 2016. GRANJA, João Guilherme. Ex-diretor de Assuntos Estrangeiros do Ministério da Justiça; Representante do Brasil no FEM. 16 out. 2016. MUIÑO, Jorge. Diretor de Assuntos Consulares e representante do Ministério de Relações Exteriores do Uruguai no FEM. Curitiba, 30 out. 2016. VICHICH, Nora Pérez. Especialista em política migratória na Argentina e no Mercosul. Curitiba, 10 out. 2016.
  • 4
    Os casos empíricos foram apresentados nos seguintes eventos: 3o Seminário de Relações Internacionais: Graduação e Pós-graduação da Associação Brasileira de Relações (ABRI), realizado nos dias 29 e 30 de setembro de 2016 em Florianópolis (SC) (migração); III Workshop de Pesquisa em Relações Internacionais, Universidade Federal do Paraná, realizado nos dias 1o e 2 de dezembro de 2016 em Curitiba/PR (educação); e 39o Encontro Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), realizado em outubro de 2015 em Caxambu (MG) (saúde). Os autores agradecem as valiosas sugestões dos avaliadores e dos editores do dossiê da RAP, cuja contribuição possibilitou melhorar a versão fnal do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2017
  • Aceito
    09 Mar 2018
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