1. Introdução
O financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido tema recorrente desde sua criação entre aqueles que defendem o direito universal à saúde no Brasil. Os recursos alocados pelas três esferas de governo são considerados insuficientes para garantir o acesso a ações e serviços de saúde (ASPS), na forma prevista na Constituição Federal de 1988 (Servo et al., 2011; Mendes, 2013). Países com sistemas universais de saúde, como o SUS, têm gastos públicos com saúde próximos a 6% do produto interno bruto (PIB) (Brasil, 2013), mas, no Brasil, esse gasto tem se mantido abaixo de 4% do PIB (Brasil, 2017).
Adicionalmente, vem sendo registrada uma redução gradual (59,8% em 2000 para 44,7% em 2011) na participação do governo federal no financiamento do SUS (Piola et al., 2013; Soares e Santos, 2014) e é previsível que essa queda se acentue com a Emenda Constitucional no 95, que estabelece teto de gastos para as despesas primárias do governo federal (Vieira e Benevides, 2016). Nesse contexto, aumenta a relevância de se discutir aspectos do processo de execução orçamentária que possam influenciar a disponibilidade de recursos para o SUS. A análise das práticas orçamentárias no período entre 2002 e 2015 pretende ilustrar os aspectos mais críticos desse processo.
2. Financiamento federal da saúde e execução orçamentária e financeira
O SUS é financiado pela aplicação de mínimos constitucionais pelas três esferas de governo. Entre 2002 e 2012, a regra de aplicação mínima de recursos com ASPS era definida pela Emenda Constitucional no 29/2000, passando, entre 2013 e 2015, a ser normatizada pela Lei Complementar no 141/2012. Entre 2002 e 2015, a base de cálculo para esse mínimo pelo governo federal eram as despesas empenhadas no ano anterior ao da execução acrescidas da variação nominal do PIB (Brasil, 2000, 2012).
No que diz respeito ao ciclo orçamentário da administração pública brasileira, ultrapassada a fase de autorização das dotações orçamentárias, são estabelecidos, por meio de decretos de contingenciamento de despesas (ou de programação orçamentária e financeira), cronogramas de desembolso e programação financeira a serem observados pelos órgãos no exercício financeiro. Estes fixam limites para movimentação, empenho e pagamento das despesas dos grupos “outras despesas correntes” (GND 3), “investimento” (GND 4) e “inversões financeiras” (GND 5) dos órgãos do Poder Executivo para o exercício corrente e para os restos a pagar (RP) de exercícios anteriores (Brasil, 2016a). Os demais GND, referentes a despesas com pessoal e encargos, juros e amortizações, em tese não podem ser contingenciados. Pouco mais de 80% do orçamento do Ministério da Saúde (MS) é constituído por grupos de natureza de despesa (GND) que podem ser objeto de contingenciamento.
Os limites de pagamento de despesas estabelecidos pelos decretos de contingenciamento forçam o órgão a inscrever e reinscrever despesas que excedem esses limites como restos a pagar (RP). Despesas empenhadas e não pagas são inscritas como RP não processados, e as despesas já liquidadas e não pagas, como RP processados (Albuquerque, Medeiros e Feijó, 2008).
O Decreto no 93.872/1986, alterado pelo Decreto no 7.654/2011, determina que a dívida passiva da União com RP prescreve em cinco anos, com exceções que incluem os RP não processados do MS, cuja validade pode ser prorrogada por meio de decreto presidencial (Gontijo e Pereira Júnior, 2010). O potencial de longevidade dos RP, bem como o elevado grau de descentralização orçamentária para estados e municípios, são uma característica própria do orçamento do MS.
Algumas peculiaridades normativas concorrem para o entendimento do papel dos RP na contabilidade governamental. No tocante aos RP inscritos, o valor não pago da despesa primária inscrito em restos a pagar no final de dezembro a cada ano contribui para reforçar o superávit primário do governo (Aquino e Azevedo, 2017). O não pagamento é, em termos fiscais, interpretado como um esforço de poupança do governo, configurando uma espécie de poupança não financeira. Dessa forma, na perspectiva de reforçar o superávit primário, vale a pena não pagar e inscrever despesas como RP.
3. Fonte de dados e procedimentos metodológicos
Para embasar a discussão proposta neste texto, dados de execução orçamentária e financeira do MS foram obtidos do sistema Siga Brasil, mantido pelo Senado Federal, para o período de 2002 a 2015 (Brasil, 2016b).
Para cálculo do mínimo constitucional, foram usados a variação nominal do PIB e o valor empenhado no ano anterior de despesas com ASPS, obtidos no Relatório Resumido de Execução Orçamentária (RREO), publicado no Diário Oficial da União. Despesas tipificadas como ASPS foram definidas na Portaria MS/GM no 2.047/2002 (Brasil, 2002) e na Resolução CNS no 322/2003 (Brasil, 2013), para o período de regulamentação dado pela EC no 29/2000, e pela própria LC no 141/2012 entre 2013 e 2015 (Brasil, 2012).
Os limites de pagamento do MS, incluindo os RP, para despesas dos grupos de natureza de despesa (GND) 3, 4 e 5 foram extraídos do site da Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda. Os RP inscritos, RP processados cancelados e RP não processados cancelados de despesas com ASPS foram obtidos do Siga Brasil, adotando-se os procedimentos descritos por Vieira e Piola (2016).
4. Execução orçamentária e financeira das despesas com ASPS do governo federal
A tabela 1 mostra que as despesas autorizadas pelo Congresso Nacional nas Leis Orçamentárias Anuais (LOA) (coluna B) excederam o mínimo constitucional (coluna A) em toda a série. A diferença entre despesas autorizadas e empenhadas (coluna D) até 2011 foi, em média, de 4,4% e quase dobrou (8,2%) a partir desse ano, com um pico em 2015. Isso indica um crescente descompasso entre montantes definidos no Congresso Nacional para o orçamento da saúde e a aplicação efetiva em saúde. Quando se examinam as despesas empenhadas (coluna C) - critério para acompanhamento da aplicação mínima -, verifica-se que, em seis dos 14 anos analisados, as despesas foram inferiores ao mínimo constitucional (coluna A).
Os RP (coluna E) tiveram um aumento expressivo em 2009 e, desde então, têm se mantido, na média, em 7,8 bilhões de reais a valores correntes. Quando se analisam os períodos de referência dos RP existentes em 2016 (coluna F), observa-se que havia pendentes ainda RP reinscritos relativos a empenhos de 2003 até 2015. Parte das despesas inscritas como RP foi cancelada ao longo dos anos (coluna G), sendo 2007 a 2009 os anos de maior cancelamento.
Os valores de RP cancelados deduzidos dos valores empenhados pelo governo federal nos anos de referência geram os valores aplicados em ASPS atualizados (coluna H), os quais, deduzidos do mínimo constitucional, equivalem ao valor aplicado a menos ou a mais que o mínimo (coluna I). Nessa análise, em nove dos 14 anos, a aplicação de recursos em ASPS foi inferior ao mínimo constitucional.
Tabela 1 Despesas com ações e serviços públicos de saúde (ASPS) do governo federal. Brasil, 2002 a 2016
Em R$ correntes | |||||||||
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Ano do empenho | Piso constitucional (mínimo) (A) | Valor autorizado na LOA (B) | Despesas com ASPS empenhadas (C) | Diferença entre o valor autorizado e as despesas empenhadas (D) = (B) - (C) | Restos a pagar inscritos (E) | Ano de referência de Restos a pagar reinscritos em 2016 (F) | Restos a pagar cancelados até dez. 2015 (G) | Valor aplicado em ASPS descontados os RP cancelados (H) = (C) - (G) | Valor aplicado a menos ou a mais que o mínimo (I) = (H) - (A) |
2002 | 23.654.072.386 | 25.863.275.274 | 24.708.886.048 | 1.154.389.226 | 1.775.608.171 | - | 500.621.283 | 24.208.264.765 | 554.192.380 |
2003 | 27.775.574.922 | 27.862.427.795 | 27.012.053.580 | 850.374.215 | 1.988.250.476 | 15.210.023 | 191.385.917 | 26.820.667.663 | -954.907.259 |
2004 | 31.368.169.963 | 33.946.102.413 | 32.505.074.531 | 1.441.027.882 | 2.835.359.333 | 27.742.489 | 709.684.457 | 31.795.390.074 | 427.220.111 |
2005 | 37.051.473.809 | 38.790.692.865 | 36.291.911.037 | 2.498.781.828 | 3.292.101.800 | 36.723.950 | 609.518.424 | 35.682.392.612 | -1.369.081.196 |
2006 | 40.613.666.045 | 42.236.890.275 | 40.520.675.993 | 1.716.214.282 | 4.357.106.368 | 42.008.726 | 809.448.929 | 39.711.227.063 | -902.438.981 |
2007 | 44.275.043.408 | 47.488.689.966 | 44.051.896.820 | 3.436.793.146 | 5.603.463.981 | 188.985.510 | 1.330.410.968 | 42.721.485.852 | -1.553.557.555 |
2008 | 48.561.056.485 | 51.012.550.613 | 48.428.024.812 | 2.584.525.801 | 5.684.995.031 | 179.790.177 | 1.062.962.895 | 47.365.061.917 | -1.195.994.568 |
2009 | 54.963.098.717 | 59.425.947.559 | 58.016.587.301 | 1.409.360.258 | 8.562.061.372 | 512.361.286 | 1.378.579.078 | 56.638.008.223 | 1.674.909.506 |
2010 | 61.230.118.407 | 64.097.993.244 | 61.655.883.258 | 2.442.109.986 | 6.256.801.120 | 371.551.174 | 945.703.271 | 60.710.179.987 | -519.938.420 |
2011 | 72.128.481.132 | 74.307.027.814 | 71.986.348.320 | 2.320.679.494 | 8.411.506.344 | 842.141.407 | 928.733.013 | 71.057.615.307 | -1.070.865.826 |
2012 | 79.512.720.487 | 88.807.286.534 | 79.720.365.348 | 9.086.921.186 | 8.530.343.582 | 1.127.156.083 | 659.200.419 | 79.061.164.928 | -451.555.559 |
2013 | 82.911.207.594 | 90.161.494.440 | 83.053.255.549 | 7.108.238.891 | 7.642.873.364 | 1.071.932.777 | 386.814.320 | 82.666.441.229 | -244.766.366 |
2014 | 91.616.046.694 | 97.932.046.073 | 92.243.191.171 | 5.688.854.902 | 7.136.587.185 | 2.216.549.138 | 235.994.424 | 92.007.196.747 | 391.150.053 |
2015 | 98.313.048.464 | 110.449.163.999 | 100.460.337.118 | 9.988.826.881 | 7.880.465.468 | 7.880.465.468 | - | 100.460.337.118 | 2.147.288.654 |
2016 | - | 109.020.795.238 | - | - | - | - | - | - | - |
Fonte: Elaborada pelos autores com base em dados constantes do Demonstrativo de Despesa com Saúde do Relatório Resumido de Execução Orçamentária (RREO) de cada exercício, publicado pela Secretaria do Tesouro Nacional para a variável A e dados do Siga Brasil para as demais variáveis.
A tabela 2 apresenta um resumo da execução orçamentária e financeira em face do contingenciamento de despesas do MS. O limite de pagamento (coluna A) estabelecido pelos decretos foi respeitado - excedendo as despesas pagas no exercício, inclusive os RP (coluna E) - na maioria dos anos da série analisada. Isso indica que o Ministério da Saúde não fez uso de todo o seu limite de pagamento, fato em geral ligado a obstáculos administrativos à execução financeira. Esses podem ter como origem o próprio cronograma de liberação de recursos do Tesouro Nacional para o órgão, bem como atrasos na execução dos processos de aquisição e contratação de serviços pelo Ministério da Saúde ou por Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, que afetam as transferências que o órgão efetua.
Veja-se que para alguns anos o déficit entre o limite de pagamento e a soma das despesas empenhadas e dos RP é maior do que a inscrição das despesas como RP no exercício seguinte. Parte da diferença é explicada pelos cancelamentos de RP. Outra situação é o pagamento em volume maior do que o limite correspondente para o exercício (coluna H). Nesse caso, ocorre que despesas pagas no último dia útil do ano não são contabilizadas no limite de pagamento do exercício corrente, mas sim do exercício subsequente. Isso justificaria a observação de que, de 2010 a 2012 e em 2015, o limite de pagamento foi menor do que as despesas pagas pelo MS. Essa prática de postergação do pagamento de despesas tem sido alvo de críticas (Alves, 2012; Pinto, 2014).
A diferença entre despesas do exercício acrescida de RP a serem pagos (coluna D) e o limite de pagamento constante do decreto de contingenciamento (coluna A) origina os RP. Essa diferença equivalia, em média, a 5% do limite de pagamento entre 2002 e 2004. Entre 2009 e 2012, atingiu a média de 22% e retornou para patamares de 15% a partir de então.
Observa-se que 7% das despesas empenhadas em 2002 foram inscritas como RP e que 28% desses RP foram sendo cancelados até 2015. Em média, o equivalente a 10% do total empenhado a cada exercício foi inscrito como RP entre 2002 e 2014, com uma faixa de variação de 7% (em 2002) a 15% (em 2009) das despesas empenhadas. Quando se corrige os RP cancelados entre 2002 e 2015 pelo IPCA a valores de 2015, obtém-se um montante de R$ 13,6 bilhões. Isso significa que as ações e serviços de saúde que esses recursos deveriam financiar contribuíram para que o governo alcançasse o mínimo constitucional sem a sua correspondente oferta.
Os grupos de natureza de despesa “investimentos” - que corresponde a 5% do orçamento do Ministério da Saúde - e as “outras despesas correntes” (referentes a despesas de custeio) - que equivalem a aproximadamente 77% do orçamento - foram responsáveis pelas maiores parcelas de cancelamento - 50,8 e 45,1%, respectivamente. Fica claro que investimentos tendem a ser objeto preferencial de cancelamentos.
Gastos com investimentos costumam ser considerados menos urgentes do que as despesas de custeio e isso pode favorecer a opção de adiá-los. Esse é um padrão que se repete para todas as funções governamentais (Santos et al., 2014). Além disso, despesas empenhadas pelo governo federal muitas vezes não são efetivamente pagas por problemas nos processos licitatórios ou em função do próprio cronograma de execução dos projetos, levando ao cancelamento dos RP após alguns anos de reinscrição nos orçamentos anuais do MS.
Tabela 2 Contingenciamento de despesas do Ministério da Saúde e seu impacto sobre a capacidade de pagamento de despesas com ações e serviços públicos de saúde (ASPS) pelo órgão. Brasil, 2002 a 2015
Em R$ correntes | ||||||||
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Ano do empenho | Limite de pagamento LOA e RP* (contingenciamento) (A) | Soma das despesas com ASPS empenhadas dos GND: 3, 4 e 5 (B) | Total de RP inscritos de despesas com ASPS dos GND 3, 4 e 5 (C) | Soma das despesas do exercício e dos RP para os GND 3, 4 e 5 (D) = (B) + (C) | Soma das despesas pagas do exercício e dos RP pagos para os GND 3, 4 e 5 (E) | Diferença entre despesas do exercício + RP e despesas pagas, incluindo RP (F) = (D) - (E) | Resultado do exercício considerando o limite de pagamento e o total de despesas (G) = (A) - (D) | Resultado do exercício considerando o limite de pagamento e as despesas pagas (H) = (A) - (E) |
2002 | 22.020.079.000 | 21.734.961.450 | 2.012.332.130 | 23.747.293.580 | 21.641.881.165 | 2.105.412.414 | -1.727.214.580 | 378.197.835 |
2003 | 24.037.787.600 | 23.676.395.615 | 1.962.834.126 | 25.639.229.741 | 22.998.574.696 | 2.640.655.045 | -1.601.442.141 | 1.039.212.904 |
2004 | 30.266.942.000 | 28.695.034.233 | 2.065.031.605 | 30.760.065.837 | 27.579.439.253 | 3.180.626.585 | -493.123.837 | 2.687.502.747 |
2005 | 33.267.273.000 | 33.004.362.446 | 3.064.373.564 | 36.068.736.011 | 31.684.584.920 | 4.384.151.090 | -2.801.463.011 | 1.582.688.080 |
2006 | 35.733.750.406 | 35.800.293.804 | 4.028.433.436 | 39.828.727.239 | 33.753.470.588 | 6.075.256.651 | -4.094.976.833 | 1.980.279.818 |
2007 | 37.958.009.000 | 39.275.114.343 | 5.881.811.106 | 45.156.925.449 | 37.219.812.986 | 7.937.112.463 | -7.198.916.449 | 738.196.014 |
2008 | 44.449.736.000 | 42.756.447.360 | 7.537.308.863 | 50.293.756.222 | 40.327.976.976 | 9.965.779.246 | -5.844.020.222 | 4.121.759.024 |
2009 | 47.876.506.000 | 51.322.711.566 | 9.601.734.891 | 60.924.446.457 | 46.852.345.487 | 14.072.100.970 | -13.047.940.457 | 1.024.160.513 |
2010 | 52.189.615.000 | 54.129.788.691 | 13.177.267.418 | 67.307.056.109 | 54.323.458.605 | 12.983.597.503 | -15.117.441.109 | -2.133.843.605 |
2011 | 57.879.618.000 | 63.717.161.007 | 12.517.714.428 | 76.234.875.435 | 60.495.685.416 | 15.739.190.018 | -18.355.257.435 | -2.616.067.416 |
2012 | 68.327.412.000 | 71.200.300.603 | 13.970.080.582 | 85.170.381.186 | 69.130.382.154 | 16.039.999.032 | -16.842.969.186 | -802.970.154 |
2013 | 74.445.610.000 | 74.253.107.705 | 14.827.018.446 | 89.080.126.150 | 73.578.344.389 | 15.501.781.761 | -14.634.516.150 | 867.265.611 |
2014 | 84.643.171.201 | 82.944.282.440 | 14.243.901.288 | 97.188.183.728 | 83.001.094.821 | 14.187.088.907 | -12.545.012.527 | 1.642.076.380 |
2015 | 86.991.129.000 | 90.940.466.983 | 13.339.827.565 | 104.280.294.548 | 88.982.681.364 | 15.297.613.185 | -17.289.165.548 | -1.991.552.364 |
Fonte: Elaborada pelos autores com base em dados do Siga Brasil. * As despesas dos seguintes grupos: 1 - pessoal e encargos sociais; 2 - juros e encargos da dívida; e 6 - amortização da dívida estão excluídos destes limites.
Quanto à modalidade de aplicação, o maior volume de cancelamento no período analisado ocorreu para os RP relativos a transferências a municípios (44,3%), seguido pelos RP na modalidade aplicações diretas (26,1%) e transferências aos estados (19,9%). Em média, 41% dos RP inscritos foram relativos a transferências a municípios, 30%, a aplicações diretas, 18%, a transferências aos estados, e 7%, a transferências a instituições privadas. No conjunto dos anos, o cancelamento tendeu a ocorrer de forma proporcional ao orçamento alocado em cada uma dessas modalidades de aplicação. A exceção foram as transferências a instituições privadas, que representaram 1% do orçamento e 7% dos RP inscritos.
Um percentual de 58% das despesas inscritas como RP cancelados refere-se a empenhos liquidados, ou seja, em tese, os bens ou serviços já haviam sido aceitos, segundo o conceito legal de liquidação da despesa. Mas é provável que boa parte dessas despesas não tenha sido efetivamente liquidada, pois se verificou a adoção do procedimento da “liquidação forçada” para as despesas com saúde, pelo menos até 2011 (Gobetti, 2006; Vieira e Piola, 2016). De todo modo, o pagamento de RP processados cancelados pode ocorrer posteriormente por reclamação do credor (Gontijo e Pereira Júnior, 2010). No SUS, não se sabe se os credores estão acionando a administração pública em razão desses cancelamentos.
Em resumo, o que se observou é que a programação financeira estabelecida nos decretos de contingenciamento para cumprir as metas de superávit primário inviabilizou a execução concomitante do orçamento do exercício e dos RP no período de 2002 a 2015, criando, assim, um ciclo de rolagem orçamentária dos RP, que em parte são cancelados.
Esta situação tem provocado crescimento do endividamento na administração pública e redução da credibilidade e da transparência do orçamento (Aquino e Azevedo, 2017). No caso da saúde, ainda que os órgãos de controle venham recomendando à Presidência da República a reposição dos RP cancelados (Pinto, 2014; Brasil, 2015), eles podem ser “esquecidos” com o Novo Regime Fiscal, pois, se forem repostos, diminui-se o limite disponível para despesas primárias do governo federal, uma vez que seriam aplicação adicional ao mínimo constitucional da saúde.
5. Considerações finais
Fica claro que descompassos entre despesa autorizada, empenhada e paga no ciclo orçamentário anualizado praticado no Brasil podem gerar perdas ou adiamentos relevantes da disponibilidade de recursos para o SUS. Concorrem para isso os limites insuficientes para pagamento, os cronogramas financeiros que não acompanham as necessidades da execução e problemas da própria capacidade de execução dos diversos entes que recebem os recursos descentralizados pelo Ministério da Saúde.
A incidência preferencial dos RP no GND investimento restringe as iniciativas de ampliação da capacidade de oferta de serviços pelo SUS e pode ter motivado a aprovação pela Comissão Intergestores Tripartite da separação das transferências do MS para os outros entes entre custeio e investimentos, na modalidade fundo a fundo, na tentativa de preservar os recursos para essa última finalidade.
No caso do SUS, os impactos dos RP e do contingenciamento não se resumem à criação de um “orçamento paralelo” (Aquino e Azevedo, 2017), mas criam efetivamente um potencial para “calote institucional”.