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Contingenciamento do pagamento de despesas e restos a pagar no orçamento federal do SUS

Restricción de gastos y gastos no pagados en el presupuesto federal del sistema público de salud de Brasil

Resumo

Discute-se a execução orçamentária e financeira das despesas com ações e serviços públicos de saúde (ASPS) do governo federal, no período de 2002 a 2015, especialmente quanto às implicações do contingenciamento do pagamento de despesas e de sua inscrição como restos a pagar para o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS). Observou-se que o limite de pagamento autorizado para o Ministério da Saúde nesse período foi insuficiente para pagar as despesas do órgão em cada exercício, provocando elevada inscrição de despesas como restos a pagar. Ademais, que o cancelamento de parte dos restos a pagar impactou a aplicação de recursos em ASPS, contribuindo para agravar o problema de financiamento do SUS.

Palavras-chave:
financiamento da assistência à saúde; Sistema Único de Saúde; financiamento público; orçamento fiscal; Brasil

Resumen

En este trabajo, se discute la ejecución presupuestaria y financiera con las acciones y servicios de salud pública (ASPS) del gobierno federal, de 2002 a 2015, en cuanto al impacto de la restricción de gastos y de los gastos no pagados para la financiación del sistema público de salud de Brasil (SUS). Se encontró que en este periodo el límite de pago autorizado para el Ministerio de Salud no fue suficiente para pagar los gastos de cada año, causando alto registro de gastos no pagados. Además, que la cancelación de parte de esos gastos impactó la asignación de recursos en ASPS, contribuyendo para el agravamiento del problema de financiamiento del SUS.

Palabras claves:
financiación de la atención de la salud; Sistema Único de Salud; financiación gubernamental; presupuestos; Brasil

Abstract

This article explores the execution of the Brazilian federal budget for public health programs and services (ASPS), from 2002 to 2015, analyzing the impact of the spending constraint and unpaid commitments on the public healthcare system (SUS) financing. It was found that in this period the authorized payment limit for the Ministry of Health was insufficient to pay yearly expenses, engendering significant amounts of unpaid commitments. In addition, the cancellation of part of the unpaid commitments impacts the allocation of resources in ASPS, further aggravating SUS financing difficulties.

Keywords:
healthcare financing; unified health system; financing government; budgets; Brazil

1. Introdução

O financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido tema recorrente desde sua criação entre aqueles que defendem o direito universal à saúde no Brasil. Os recursos alocados pelas três esferas de governo são considerados insuficientes para garantir o acesso a ações e serviços de saúde (ASPS), na forma prevista na Constituição Federal de 1988 (Servo et al., 2011SERVO, Luciana M. S. et al. Financiamento e gasto público de saúde: histórico e tendências. In: MELAMED, Clarice; PIOLA, Sérgio F. (Org.). Políticas públicas e financiamento federal do Sistema Único de Saúde. Brasília: Ipea, 2011. p. 85-108.; Mendes, 2013MENDES, Áquilas. A longa batalha pelo financiamento do SUS. Saúde Soc., v. 22, n. 4, p. 987-993, 2013.). Países com sistemas universais de saúde, como o SUS, têm gastos públicos com saúde próximos a 6% do produto interno bruto (PIB) (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde; Organização Pan-Americana da Saúde. Financiamento público de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2013.), mas, no Brasil, esse gasto tem se mantido abaixo de 4% do PIB (Brasil, 2017BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Conta-satélite de saúde Brasil: 2010-2015. Rio de Janeiro: IBGE, 2017.).

Adicionalmente, vem sendo registrada uma redução gradual (59,8% em 2000 para 44,7% em 2011) na participação do governo federal no financiamento do SUS (Piola et al., 2013PIOLA, Sérgio F. et al. Financiamento público da saúde: uma história à procura de rumo. Rio de Janeiro: Ipea, 2013. (Texto para Discussão, n. 1846).; Soares e Santos, 2014SOARES, Adilson; SANTOS, Nelson R. Financiamento do Sistema Único de Saúde nos governos FHC, Lula e Dilma. Saúde Debate, v. 38, n. 100, p. 18-25, 2014.) e é previsível que essa queda se acentue com a Emenda Constitucional no 95, que estabelece teto de gastos para as despesas primárias do governo federal (Vieira e Benevides, 2016VIEIRA, Fabiola S.; PIOLA, Sérgio F. Restos a pagar de despesas com ações e serviços públicos de saúde da União: impactos para o financiamento federal do Sistema Único de Saúde e para a elaboração das contas de saúde. Brasília: Ipea , 2016. (Texto para Discussão, n. 2225).). Nesse contexto, aumenta a relevância de se discutir aspectos do processo de execução orçamentária que possam influenciar a disponibilidade de recursos para o SUS. A análise das práticas orçamentárias no período entre 2002 e 2015 pretende ilustrar os aspectos mais críticos desse processo.

2. Financiamento federal da saúde e execução orçamentária e financeira

O SUS é financiado pela aplicação de mínimos constitucionais pelas três esferas de governo. Entre 2002 e 2012, a regra de aplicação mínima de recursos com ASPS era definida pela Emenda Constitucional no 29/2000, passando, entre 2013 e 2015, a ser normatizada pela Lei Complementar no 141/2012. Entre 2002 e 2015, a base de cálculo para esse mínimo pelo governo federal eram as despesas empenhadas no ano anterior ao da execução acrescidas da variação nominal do PIB (Brasil, 2000BRASIL. Emenda Constitucional no 29, de 13 de setembro de 2000. Altera os arts. 34, 35, 156, 160, 167 e 198 da Constituição Federal e acrescenta artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para assegurar os recursos mínimos para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde. Diário Oficial da União, Brasília, 14 nov. 2000., 2012BRASIL. Lei Complementar no 141, de 13 de janeiro de 2012 2012. Regulamenta o §3o do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde. Diário Oficial da União, 16 jan. 2012.).

No que diz respeito ao ciclo orçamentário da administração pública brasileira, ultrapassada a fase de autorização das dotações orçamentárias, são estabelecidos, por meio de decretos de contingenciamento de despesas (ou de programação orçamentária e financeira), cronogramas de desembolso e programação financeira a serem observados pelos órgãos no exercício financeiro. Estes fixam limites para movimentação, empenho e pagamento das despesas dos grupos “outras despesas correntes” (GND 3), “investimento” (GND 4) e “inversões financeiras” (GND 5) dos órgãos do Poder Executivo para o exercício corrente e para os restos a pagar (RP) de exercícios anteriores (Brasil, 2016aBRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Decreto de programação financeira. Brasília, 2016a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/decreto-de-programacao-financeira >. Acesso em:5 fev. 2015.
http://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/...
). Os demais GND, referentes a despesas com pessoal e encargos, juros e amortizações, em tese não podem ser contingenciados. Pouco mais de 80% do orçamento do Ministério da Saúde (MS) é constituído por grupos de natureza de despesa (GND) que podem ser objeto de contingenciamento.

Os limites de pagamento de despesas estabelecidos pelos decretos de contingenciamento forçam o órgão a inscrever e reinscrever despesas que excedem esses limites como restos a pagar (RP). Despesas empenhadas e não pagas são inscritas como RP não processados, e as despesas já liquidadas e não pagas, como RP processados (Albuquerque, Medeiros e Feijó, 2008ALBUQUERQUE, Claudiano M.; MEDEIROS, Márcio B.; FEIJÓ, Paulo H. Gestão de finanças públicas. 2. ed. Brasília: Coleção de Finanças Públicas, 2008.).

O Decreto no 93.872/1986, alterado pelo Decreto no 7.654/2011, determina que a dívida passiva da União com RP prescreve em cinco anos, com exceções que incluem os RP não processados do MS, cuja validade pode ser prorrogada por meio de decreto presidencial (Gontijo e Pereira Júnior, 2010GONTIJO, Vander; PEREIRA JÚNIOR, Francisco L. Restos a pagar e o direito do credor. Estudo Técnico no 6. Brasília: Câmara dos Deputados, 2010.). O potencial de longevidade dos RP, bem como o elevado grau de descentralização orçamentária para estados e municípios, são uma característica própria do orçamento do MS.

Algumas peculiaridades normativas concorrem para o entendimento do papel dos RP na contabilidade governamental. No tocante aos RP inscritos, o valor não pago da despesa primária inscrito em restos a pagar no final de dezembro a cada ano contribui para reforçar o superávit primário do governo (Aquino e Azevedo, 2017AQUINO, André C. B.; AZEVEDO, Ricardo R. Restos a pagar e a perda da credibilidade orçamentária. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 580-595, jul./ago.2017.). O não pagamento é, em termos fiscais, interpretado como um esforço de poupança do governo, configurando uma espécie de poupança não financeira. Dessa forma, na perspectiva de reforçar o superávit primário, vale a pena não pagar e inscrever despesas como RP.

3. Fonte de dados e procedimentos metodológicos

Para embasar a discussão proposta neste texto, dados de execução orçamentária e financeira do MS foram obtidos do sistema Siga Brasil, mantido pelo Senado Federal, para o período de 2002 a 2015 (Brasil, 2016bBRASIL. Siga Brasil [sistema de informação]. Brasília: Senado Federal, 2016b.).

Para cálculo do mínimo constitucional, foram usados a variação nominal do PIB e o valor empenhado no ano anterior de despesas com ASPS, obtidos no Relatório Resumido de Execução Orçamentária (RREO), publicado no Diário Oficial da União. Despesas tipificadas como ASPS foram definidas na Portaria MS/GM no 2.047/2002 (Brasil, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM no 2.047, de 5 de novembro de 2002 2002. Aprova, conforme anexo desta portaria, as diretrizes operacionais para aplicação da Emenda Constitucional no 29, de 2000. Diário Oficial da União, Brasília, 7 nov. 2002.) e na Resolução CNS no 322/2003 (Brasil, 2013)BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução no 322, de 8 de maio de 2003. Aprova as seguintes diretrizes acerca da aplicação da Emenda Constitucional no 29, de 13 de setembro de 2000. Brasília, 2003. Disponível em: <Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2003/Reso322.doc >. Acesso em: 7 out. 2015.
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/...
, para o período de regulamentação dado pela EC no 29/2000, e pela própria LC no 141/2012 entre 2013 e 2015 (Brasil, 2012BRASIL. Lei Complementar no 141, de 13 de janeiro de 2012 2012. Regulamenta o §3o do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde. Diário Oficial da União, 16 jan. 2012.).

Os limites de pagamento do MS, incluindo os RP, para despesas dos grupos de natureza de despesa (GND) 3, 4 e 5 foram extraídos do site da Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda. Os RP inscritos, RP processados cancelados e RP não processados cancelados de despesas com ASPS foram obtidos do Siga Brasil, adotando-se os procedimentos descritos por Vieira e Piola (2016VIEIRA, Fabiola S.; BENEVIDES, Rodrigo P. S. Os impactos do Novo Regime Fiscal para o financiamento do Sistema Único de Saúde e para a efetivação do direito à saúde no Brasil. Brasília: Ipea, 2016. (Nota Técnica, n. 28).).

4. Execução orçamentária e financeira das despesas com ASPS do governo federal

A tabela 1 mostra que as despesas autorizadas pelo Congresso Nacional nas Leis Orçamentárias Anuais (LOA) (coluna B) excederam o mínimo constitucional (coluna A) em toda a série. A diferença entre despesas autorizadas e empenhadas (coluna D) até 2011 foi, em média, de 4,4% e quase dobrou (8,2%) a partir desse ano, com um pico em 2015. Isso indica um crescente descompasso entre montantes definidos no Congresso Nacional para o orçamento da saúde e a aplicação efetiva em saúde. Quando se examinam as despesas empenhadas (coluna C) - critério para acompanhamento da aplicação mínima -, verifica-se que, em seis dos 14 anos analisados, as despesas foram inferiores ao mínimo constitucional (coluna A).

Os RP (coluna E) tiveram um aumento expressivo em 2009 e, desde então, têm se mantido, na média, em 7,8 bilhões de reais a valores correntes. Quando se analisam os períodos de referência dos RP existentes em 2016 (coluna F), observa-se que havia pendentes ainda RP reinscritos relativos a empenhos de 2003 até 2015. Parte das despesas inscritas como RP foi cancelada ao longo dos anos (coluna G), sendo 2007 a 2009 os anos de maior cancelamento.

Os valores de RP cancelados deduzidos dos valores empenhados pelo governo federal nos anos de referência geram os valores aplicados em ASPS atualizados (coluna H), os quais, deduzidos do mínimo constitucional, equivalem ao valor aplicado a menos ou a mais que o mínimo (coluna I). Nessa análise, em nove dos 14 anos, a aplicação de recursos em ASPS foi inferior ao mínimo constitucional.

Tabela 1
Despesas com ações e serviços públicos de saúde (ASPS) do governo federal. Brasil, 2002 a 2016

A tabela 2 apresenta um resumo da execução orçamentária e financeira em face do contingenciamento de despesas do MS. O limite de pagamento (coluna A) estabelecido pelos decretos foi respeitado - excedendo as despesas pagas no exercício, inclusive os RP (coluna E) - na maioria dos anos da série analisada. Isso indica que o Ministério da Saúde não fez uso de todo o seu limite de pagamento, fato em geral ligado a obstáculos administrativos à execução financeira. Esses podem ter como origem o próprio cronograma de liberação de recursos do Tesouro Nacional para o órgão, bem como atrasos na execução dos processos de aquisição e contratação de serviços pelo Ministério da Saúde ou por Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, que afetam as transferências que o órgão efetua.

Veja-se que para alguns anos o déficit entre o limite de pagamento e a soma das despesas empenhadas e dos RP é maior do que a inscrição das despesas como RP no exercício seguinte. Parte da diferença é explicada pelos cancelamentos de RP. Outra situação é o pagamento em volume maior do que o limite correspondente para o exercício (coluna H). Nesse caso, ocorre que despesas pagas no último dia útil do ano não são contabilizadas no limite de pagamento do exercício corrente, mas sim do exercício subsequente. Isso justificaria a observação de que, de 2010 a 2012 e em 2015, o limite de pagamento foi menor do que as despesas pagas pelo MS. Essa prática de postergação do pagamento de despesas tem sido alvo de críticas (Alves, 2012ALVES, Gustavo H. T. O orçamento federal entre a realidade e a ficção: as armadilhas à transparência da despesa pública no Brasil. Revista da Controladoria-Geral da União, v. 7, n. 11, p. 128-54, 2015.; Pinto, 2014PINTO, Elida G. Subfinanciamento da saúde pública e (des)cumprimento pela União do regime de gasto mínimo fixado pela LC 141/2012. São Paulo: Ministério Público de Contas do Estado de Saúde - 2a Procuradoria, 2014.).

A diferença entre despesas do exercício acrescida de RP a serem pagos (coluna D) e o limite de pagamento constante do decreto de contingenciamento (coluna A) origina os RP. Essa diferença equivalia, em média, a 5% do limite de pagamento entre 2002 e 2004. Entre 2009 e 2012, atingiu a média de 22% e retornou para patamares de 15% a partir de então.

Observa-se que 7% das despesas empenhadas em 2002 foram inscritas como RP e que 28% desses RP foram sendo cancelados até 2015. Em média, o equivalente a 10% do total empenhado a cada exercício foi inscrito como RP entre 2002 e 2014, com uma faixa de variação de 7% (em 2002) a 15% (em 2009) das despesas empenhadas. Quando se corrige os RP cancelados entre 2002 e 2015 pelo IPCA a valores de 2015, obtém-se um montante de R$ 13,6 bilhões. Isso significa que as ações e serviços de saúde que esses recursos deveriam financiar contribuíram para que o governo alcançasse o mínimo constitucional sem a sua correspondente oferta.

Os grupos de natureza de despesa “investimentos” - que corresponde a 5% do orçamento do Ministério da Saúde - e as “outras despesas correntes” (referentes a despesas de custeio) - que equivalem a aproximadamente 77% do orçamento - foram responsáveis pelas maiores parcelas de cancelamento - 50,8 e 45,1%, respectivamente. Fica claro que investimentos tendem a ser objeto preferencial de cancelamentos.

Gastos com investimentos costumam ser considerados menos urgentes do que as despesas de custeio e isso pode favorecer a opção de adiá-los. Esse é um padrão que se repete para todas as funções governamentais (Santos et al., 2014SANTOS, Cláudio H. M. et al. Uma metodologia de estimação da formação bruta de capital fixo das administrações públicas brasileiras em níveis mensais para o período 2002-2010. In: SANTOS, Claudio H. M.; GOUVEIA, Raphael R. (Org.). Finanças públicas e macroeconomia no Brasil: um registro da reflexão do Ipea (2008-2014). Brasília: Ipea, 2014. p. 311-337.). Além disso, despesas empenhadas pelo governo federal muitas vezes não são efetivamente pagas por problemas nos processos licitatórios ou em função do próprio cronograma de execução dos projetos, levando ao cancelamento dos RP após alguns anos de reinscrição nos orçamentos anuais do MS.

Tabela 2
Contingenciamento de despesas do Ministério da Saúde e seu impacto sobre a capacidade de pagamento de despesas com ações e serviços públicos de saúde (ASPS) pelo órgão. Brasil, 2002 a 2015

Quanto à modalidade de aplicação, o maior volume de cancelamento no período analisado ocorreu para os RP relativos a transferências a municípios (44,3%), seguido pelos RP na modalidade aplicações diretas (26,1%) e transferências aos estados (19,9%). Em média, 41% dos RP inscritos foram relativos a transferências a municípios, 30%, a aplicações diretas, 18%, a transferências aos estados, e 7%, a transferências a instituições privadas. No conjunto dos anos, o cancelamento tendeu a ocorrer de forma proporcional ao orçamento alocado em cada uma dessas modalidades de aplicação. A exceção foram as transferências a instituições privadas, que representaram 1% do orçamento e 7% dos RP inscritos.

Um percentual de 58% das despesas inscritas como RP cancelados refere-se a empenhos liquidados, ou seja, em tese, os bens ou serviços já haviam sido aceitos, segundo o conceito legal de liquidação da despesa. Mas é provável que boa parte dessas despesas não tenha sido efetivamente liquidada, pois se verificou a adoção do procedimento da “liquidação forçada” para as despesas com saúde, pelo menos até 2011 (Gobetti, 2006GOBETTI, Sérgio W. Estimativa dos investimentos públicos: um novo modelo de análise da execução orçamentária aplicado às contas nacionais. 2006. Monografia (bacharel) -Escola de Administração Fazendária, Brasília.; Vieira e Piola, 2016VIEIRA, Fabiola S.; PIOLA, Sérgio F. Restos a pagar de despesas com ações e serviços públicos de saúde da União: impactos para o financiamento federal do Sistema Único de Saúde e para a elaboração das contas de saúde. Brasília: Ipea , 2016. (Texto para Discussão, n. 2225).). De todo modo, o pagamento de RP processados cancelados pode ocorrer posteriormente por reclamação do credor (Gontijo e Pereira Júnior, 2010GONTIJO, Vander; PEREIRA JÚNIOR, Francisco L. Restos a pagar e o direito do credor. Estudo Técnico no 6. Brasília: Câmara dos Deputados, 2010.). No SUS, não se sabe se os credores estão acionando a administração pública em razão desses cancelamentos.

Em resumo, o que se observou é que a programação financeira estabelecida nos decretos de contingenciamento para cumprir as metas de superávit primário inviabilizou a execução concomitante do orçamento do exercício e dos RP no período de 2002 a 2015, criando, assim, um ciclo de rolagem orçamentária dos RP, que em parte são cancelados.

Esta situação tem provocado crescimento do endividamento na administração pública e redução da credibilidade e da transparência do orçamento (Aquino e Azevedo, 2017AQUINO, André C. B.; AZEVEDO, Ricardo R. Restos a pagar e a perda da credibilidade orçamentária. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 580-595, jul./ago.2017.). No caso da saúde, ainda que os órgãos de controle venham recomendando à Presidência da República a reposição dos RP cancelados (Pinto, 2014PINTO, Elida G. Subfinanciamento da saúde pública e (des)cumprimento pela União do regime de gasto mínimo fixado pela LC 141/2012. São Paulo: Ministério Público de Contas do Estado de Saúde - 2a Procuradoria, 2014.; Brasil, 2015BRASIL. Tribunal de Contas da União. Relatório e parecer prévio sobre as contas do governo da República. Exercício de 2014. Brasília: TCU, 2015.), eles podem ser “esquecidos” com o Novo Regime Fiscal, pois, se forem repostos, diminui-se o limite disponível para despesas primárias do governo federal, uma vez que seriam aplicação adicional ao mínimo constitucional da saúde.

5. Considerações finais

Fica claro que descompassos entre despesa autorizada, empenhada e paga no ciclo orçamentário anualizado praticado no Brasil podem gerar perdas ou adiamentos relevantes da disponibilidade de recursos para o SUS. Concorrem para isso os limites insuficientes para pagamento, os cronogramas financeiros que não acompanham as necessidades da execução e problemas da própria capacidade de execução dos diversos entes que recebem os recursos descentralizados pelo Ministério da Saúde.

A incidência preferencial dos RP no GND investimento restringe as iniciativas de ampliação da capacidade de oferta de serviços pelo SUS e pode ter motivado a aprovação pela Comissão Intergestores Tripartite da separação das transferências do MS para os outros entes entre custeio e investimentos, na modalidade fundo a fundo, na tentativa de preservar os recursos para essa última finalidade.

No caso do SUS, os impactos dos RP e do contingenciamento não se resumem à criação de um “orçamento paralelo” (Aquino e Azevedo, 2017AQUINO, André C. B.; AZEVEDO, Ricardo R. Restos a pagar e a perda da credibilidade orçamentária. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 580-595, jul./ago.2017.), mas criam efetivamente um potencial para “calote institucional”.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2016
  • Aceito
    27 Abr 2017
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