Acessibilidade / Reportar erro

Políticas públicas e a cidade: produzindo espaços urbanos inclusivos

Resumo

Pesquisas sobre cidades têm recebido maior atenção ao longo dos anos. Os espaços urbanos são, por um lado, um grande alvo de investimentos financeiros especulativos e mercantilização da vida, gerando dinâmicas que são muito difíceis de conter dentro das competências dos governos locais. Mas, ao mesmo tempo, as cidades também são o espaço central da vida cotidiana, onde a resistência é travada em muitos níveis para defender as condições de vida e subsistência da maioria dos cidadãos. Esse número especial reúne importantes contribuições para o debate sobre políticas públicas e a cidade que trabalham as cidades como espaços urbanos de diferença e encontro; arena das lutas discursivas e materiais; imersão contraditória de mercantilização e resistência; foco das disputas institucionais entre exclusão e participação; e espaço em constante transformação que responde à necessidade de novas tecnologias de gestão em nível local. Com base em arcabouços teóricos variados e discussões empíricas ricas, este número resgata então a noção de cidades como espaços centrais da vida cotidiana, que são particularmente importantes para proteção e emancipação em um cenário global de incerteza.

Palavras-chave:
cidades; políticas públicas; espaço urbano; direito à cidade; democracia

Abstract

Research on cities have received increased attention over the years. Urban spaces are, on the one hand, a significant target of speculative financial investments and commodification of life, generating dynamics that are very difficult to contain within the competencies of local governments. At the same time, cities are the central space of everyday life, where there is resistance at many levels seeking to defend the conditions of living and subsistence of the majority of citizens. This special issue presents exciting contributions to the debate on public policies and the city. The articles published approach cities as urban spaces of diversity and encounters; the arena of discursive and material struggles; contradictory embeddedness of commodification and resistance; the focus of institutional disputes between exclusion and participation; and finally, changing spaces that respond to the need for new management technologies at a local level. Drawing on various theoretical frameworks and rich empirical discussions, this special issue reclaims cities as central spaces of everyday life, which are particularly important for protection and emancipation in a global scenario of uncertainty.

Keywords:
cities; public policies; urban space; right to the city; democracy

Resumen

La investigación sobre las ciudades ha recibido una mayor atención a lo largo de los años. Los espacios urbanos son, por un lado, un objetivo principal de las inversiones financieras especulativas y de la mercantilización de la vida, generando dinámicas que son muy difíciles de contener dentro de las competencias de los gobiernos locales. Pero, al mismo tiempo, las ciudades son también el espacio central de la vida cotidiana, donde la resistencia se desarrolla en muchos niveles para defender las condiciones de vida y subsistencia de la mayoría de los ciudadanos. Este número especial reúne importantes contribuciones al debate sobre las políticas públicas y la ciudad que hacen avanzar a las ciudades como espacios urbanos de diferencias y encuentros, como el campo de las luchas discursivas y materiales, una inserción contradictoria de la mercantilización y la resistencia, el foco de disputas institucionales entre exclusión y participación, y finalmente un espacio cambiante que responde a la necesidad de nuevas tecnologías de gestión a nivel local. Basándose en diversos marcos teóricos y abundantes discusiones empíricas, reivindica las ciudades como espacios centrales de la vida cotidiana, que son particularmente importantes para la protección y la emancipación en un escenario global de incertidumbre.

Palabras clave:
ciudades; políticas públicas; espacio urbano; derecho a la ciudad; democracia

As cidades são a arena do encontro e da realização das esferas econômica (produção), política (redistributiva) e comunitária (relacional) de integração social (Polanyi, 1944POLANYI, Karl. The great transformation. Newa York: Rinehart and Co, 1944.), e o debate sobre políticas públicas e a cidade é, portanto, um tema central na administração pública. O pensar sobre a condição das cidades tem-se ampliado de forma constante, assim como as próprias cidades vêm crescendo em número e tamanho. Nesse sentido, os debates sobre urbanização foram amplamente reverberados em 2008 quando, segundo as Nações Unidas, a população nas cidades superou pela primeira vez as áreas rurais, e chegaria a 70% da população mundial até 2050.

Esses espaços urbanos desempenham uma função-chave de concentrar a mão de obra no processo de produção e agregar infraestrutura para diminuir o custo da circulação do capital. Portanto, como vastos espaços urbanos concentram uma grande parcela da população mundial, as cidades são as locomotivas das economias nacionais e global. Além disso, as cidades concentraram a maior parte dos recursos energéticos, o que as torna um instrumento central no processo de tomada de decisão e na organização do sistema de classes (Leeds e Leeds, 2015LEEDS, Anthony; LEEDS, Elizabeth. A sociologia do Brasil urbano. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2015.:57). Assim, em lugares onde a intervenção do Estado não protegeu a cidadania e a inclusão, os custos pagos pela classe trabalhadora foram consideravelmente maiores, e incluem superlotação, moradia precária ou altos custos de deslocamento (Harvey, 2001HARVEY, David. Spaces of capital: towards a critical geography. New York: Routledge, 2001.). No Brasil, por exemplo, uma expressão notável da distribuição desequilibrada dos custos sociais é a grave questão da habitação, um problema que atinge também a maioria das metrópoles do mundo. Em 2010, o déficit habitacional brasileiro nas cidades alcançou 5,8 milhões de residências, enquanto o número de domicílios desocupados foi superior a 6 milhões (Fundação João Pinheiro, 2013FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Déficit habitacional municipal no Brasil 2010. Belo Horizonte: Centro de Estatística e Informações, 2013.), mostrando simbolicamente que o déficit poderia ser eliminado se as propriedades não fossem vistas apenas como ativos para investimentos.

A não implementação dessa solução se reflete amplamente na organização espacial da cidade, e a dimensão territorial reproduz as desigualdades socioespaciais urbanas. As favelas ocupam uma vasta extensão de muitas grandes cidades em países que passaram por processos de desenvolvimento econômico tardios (Davis, 2007DAVIS, Mike. Planet of slums. London: Verso, 2007.), compondo microssistemas culturais discriminados e mais ou menos autônomos. Da mesma forma, a população de fato desfavorecida nos EUA e na Europa ocupa guetos onde a segregação urbana mescla aspectos sociais e étnicos (Wilson, 2012WILSON, William J. The truly disadvantaged: the inner city, the underclass, and public policy. Chicago: The University of Chicago Press, 2012.). Tais contradições espaciais provocam uma disputa pela organização da cidade quando os modelos neoliberais são desafiados pelas lutas sociais que reivindicam o direito de cada cidadão à cidade (Lefebvre, 1968LEFEBVRE, Henri. The right to the city. In: LEFEBVRE, Henri. Writing on cities. Oxford: Blackwell, 2008. p. 147-159.). Os territórios marginalizados, por sua vez, tornam-se também o lócus da contestação de poder e do nascimento de uma cidadania insurgente (Hoston, 2008HOSTON, James. Insurgent citizenship: disjunctions of democracy and modernity in Brazil. New Jersey: Princeton University Press, 2008.). Assim, o acúmulo de capital e a especulação urbana são confrontados por tentativas de restaurar o poder local e reivindicar a igualdade da esfera pública.

As disputas e mudanças que estão sendo feitas nas cidades vão além da luta política de resistência à lógica da produção econômica e podem ser formadas internamente. Graças a sua função de reprodução social, as cidades oferecem as condições de manutenção da força de trabalho, condições que favorecem os encontros cotidianos e também o espaço para a reprodução da estrutura de consumo que localiza a prestação de serviços. Isso faz das cidades o local de excelência para mudanças e para a inovação social que emergem nos espaços urbanos. Projetos de economia solidária que adquirem múltiplas formas nos territórios, startups engajadas no exercício da cidadania e as lutas da economia colaborativa extrativista, representada por empresas como AirBnB e Uber, são exemplos do potencial oferecido pela cidade para mudar o cenário dos arranjos produtivos. Nessa realidade social complexa e dinâmica, formas liminares de organização (Meira, 2014MEIRA, Fábio B. Liminal organization: organizational emergence within solidary economy in Brazil. Organization, v. 21, n. 5, p. 713-729, 2014. Available at:<Available at:https://doi.org/10.1177/1350508414537621 >. Accessed on: 6 Sept. 2018.
https://doi.org/10.1177/1350508414537621...
) coexistem com novas tecnologias que criam espaços institucionais para a participação democrática (Subirats, 2015bSUBIRATS, Joan. ¿Que gestión pública para que sociedad? Revista Administración Pública Y Sociedad, v. 16, p. 5-16, 2015a.).

Na luta pela inclusão e representação social, movimentos sociais progressistas e transformadores continuam a desempenhar um papel cosmopolita, tentando articular o local e o global. A globalização traz riscos que geram insegurança social nas cidades, mas também oportunidades de ação social no combate a questões estabelecidas. Por um lado, a insegurança social se forma a partir de processos como os processos seletivos de desenvolvimento territorial, o discurso neoliberal naturalizado e o crime organizado transnacional. Por outro, a insegurança global estimula as respostas principalmente no nível local. A territorialização das lutas sociais e o surgimento de inovações sociais são respostas locais às mudanças globais que afetam as cidades ao redor do mundo (Fleury, Subirats e Blanco, 2009FLEURY, Sonia; SUBIRATS, Joan; BLANCO, Ismael. Respuestas locales a inseguridades globales: innovación y cambios en Brasil y España. Barcelona: Bellaterra, 2009.). Assim, a dialética entre o local e o global permeia os debates sobre as cidades, e os efeitos da globalização serão diferentes de acordo com os processos socioinstitucionais de construção das cidades e da cidadania.

CIDADES COMO ESPAÇOS CENTRAIS DA VIDA COTIDIANA

“Se você acredita que é um cidadão do mundo {…}, não é cidadão de lugar algum”, disse a primeira-ministra britânica Theresa May em outubro de 2016. No mesmo mês, o congresso Habitat III, organizado pela ONU, foi realizado em Quito. Um congresso global sobre o local. Nos últimos anos tem havido muita discussão sobre o global, o Estado nacional e também o local. A identidade nacional se opõe à dimensão global de muitos problemas e, ao mesmo tempo, surge um novo municipalismo que exige uma posição autônoma da cidade na estrutura multinível dos governos. Os movimentos sociais e outras iniciativas que se consolidam aqui e ali estão lutando para representar essas diferentes abordagens e os diferentes impulsos emocionais que entram em jogo quando existe a necessidade de proteção de alguns contra as demandas globais de outros por justiça ou sustentabilidade ambiental.

O fato é que em Quito ficou evidente o que alguns estudiosos (Barber, 2013BARBER, Benjamin. If mayors ruled the world: dysfunctional nations, rising cities. New Haven: Yale University Press, 2013.) já haviam destacado: o local tem uma grande dimensão global. De fato, ao contrário das instituições políticas nacionais, tradições e culturas, que ainda são muito diversificadas, a agenda local (mobilidade, poluição, habitação, energia, água, espaço público etc.) mostra grandes semelhanças em todos os cantos do mundo. A presença de movimentos sociais em Quito foi, nesse sentido, muito significativa, articulando as diferentes propostas referentes a esses aspectos fundamentais da vida nas cidades (nas quais vive mais de 50% da população mundial) no conceito de “direito à cidade” (uma longa tradição desde o trabalho seminal de Lefebvre, 1968). A “Declaração Final” do Habitat III atendeu a essa demanda em sua formulação, superando assim a resistência de diferentes países.

Ao mesmo tempo, sabemos há anos que o Estado-nação não é mais o único espaço em que os movimentos sociais agem e fazem suas demandas ou expressam seus desacordos (Della Porta e Tarrow, 2005DELLA PORTA, Donatella; TARROW, Sidney (Ed.). Transnational protest and global activism. Oxford: Rowman and Littlefield, 2005.). Isso se deu por diversos fatores, externos aos países (questões transnacionais como os desafios ambientais, terrorismo global, grandes movimentos populacionais devido a conflitos armados, econômicos ou humanitários etc.) ou internos, uma vez que é difícil propor soluções estritamente nacionais aos impactos da globalização mercantil. Portanto, não é de surpreender que, à medida que a globalização econômica tenha progredido e o chamado “governo multinível” tenha se tornado mais denso, a articulação dos movimentos sociais em escala global também tenha se tornado mais densa. Enquanto alguns direitos, como questões ambientais, são reivindicados em nível global, os direitos sociais estão cada vez mais relacionados com o governo local por causa dessa descentralização. Na América Latina, a crescente reivindicação é observada não apenas pela inclusão de novos grupos populacionais, mas também pela incorporação de novos direitos de cidadania referentes à participação dos usuários nos processos de tomada de decisão e implementação de políticas (Fleury, 2003FLEURY, Sonia. La expansion de la ciudadanía. In: UNIVERSIDAD JAVERIANA (Org.). Inclusión social y nuevas ciudadanías: condiciones para la convivencia y seguridad democrática. Bogotá: Pontificia Universidad Javeriana, 2003. p. 167-194.).

O que vemos no início do século XXI é uma capacidade crescente de estabelecer contatos, facilitar a disseminação de ideias, combinar demandas e questões locais ou nacionais com as de natureza global, enfatizando especialmente as questões ambientais e a defesa de direitos civis e políticos básicos. A aparição dos zapatistas no México em 1994 foi um grande exemplo, ao mostrar como um movimento de resistência e alternativa em um canto do mundo teve a capacidade de apresentar uma história que tivesse dimensões globais. Os protestos ocorridos na OMC em Seattle em 1999, a grande mobilização global contra a guerra no Iraque, o Fórum Social Mundial e outras manifestações demonstraram o surgimento de uma época em que essa presença civil e social na política global ficou claramente evidente.

A literatura de movimentos sociais vem construindo a teoria dos ciclos de mobilizações, aludindo a períodos em que se manifestam certas mudanças no significado das demandas apresentadas, na forma de atuação e até em como se definem (Castells, 2004CASTELLS, Manuel. The power of identity. 2. ed. London: Blackwell, 2004.). No entanto, essa descrição pode não ressoar tanto hoje, em um período em que os chamados “novos movimentos sociais” ou “novos movimentos globais” (Calle, 2005Calle, Angel. Nuevos movimientos globales. Madrid: Popular, 2005.) mostram formas mais estáveis e constantes de se relacionar e articular em contextos ou conflitos locais. Inquestionavelmente, a mudança tecnológica ajudou enormemente nesse sentido, facilitando canais de contato mais informais e ao mesmo tempo confiáveis, lógicas de relacionamento mais horizontais, dinâmicas multipessoais e períodos de latência. Essas inovações, no entanto, não diminuíram a presença e a influência dos movimentos sociais (Subirats, 2015bSUBIRATS, Joan (Ed.). Ya nada será lo mismo: los efectos del cambio tecnológico en la política, los partidos y el activismo juvenil. Madrid: Centro Reina Sofía sobre Adolescencia y Juventud, 2015b. Available at: <Available at: http://igop.uab.cat/wp-content/uploads/2015/07/ya-nada-sera-lo-mismo.pdf >. Accessed on: 6 Sept. 2018.
http://igop.uab.cat/wp-content/uploads/2...
), confirmando que muitos dos problemas mencionados anteriormente não podem ser resolvidos de forma eficaz apenas pelo paradigma de Estado-nação.

Como observado pelo cientista político americano Benjamin Barber em suas reflexões póstumas, se imaginarmos um encontro de cinco prefeitos de cidades muito distantes umas das outras, por exemplo, Nairóbi, Seul, Paris, Boston e Melbourne, é muito provável que em pouco tempo os tópicos da conversa coincidissem rapidamente, girando em torno de problemas ambientais e de mobilidade, questões de regulação e gestão de serviços públicos, segurança urbana e limpeza, e como lidar com questões habitacionais em tempos de financeirização global e plataformas de turismo em escala também global. Não é fácil imaginar que um espaço de comunicação e sintonia rápida como o descrito aqui poderia ocorrer entre os chefes de governo dessas cinco grandes cidades, uma vez que as distâncias culturais, políticas, históricas e institucionais tornariam essa abordagem muito mais complicada. É por isso que Barber sublinhou que, embora possa parecer contraditório, o mais local acaba sendo o mais global hoje em dia. E isso dá força e significado especial à conexão entre as cidades.

Não subestimamos, no entanto, a restrição ao poder local imposta pelas políticas globais e nacionais, bem como a pouca capacidade das cidades para disseminar a inovação local que as tornaria sustentáveis se não houver incentivos nacionais. A experiência do Orçamento Participativo em Porto Alegre é uma vitrine para essas questões (Fedozzi, 2000FEDOZZI, Luciano. O poder da aldeia gênese e história do Orçamento Participativo de Porto Alegre. Porto Alegre: Tomo, 2000.). No entanto, as imposições do contexto global podem assumir grande nível de estruturação, a ponto de terem sido identificadas e nomeadas a partir do conceito de “governança transnacional”, representando a interação entre o neoliberalismo e as ideias gerenciais (Srinivas, 2016SRINIVAS, N. Transnational governance and the trilhos urbanos: civil society resistance to the Rio Mega Events. Revista de Administração de Empresas, v. 56, n. 4, p. 438-447, 2016. Available at: <Available at: http://doi.org/10.1590/S0034-759020160407 >. Accessed on: 6 Sept. 2018.
http://doi.org/10.1590/S0034-75902016040...
). Essas também são fontes de experiências compartilhadas em cidades contemporâneas, que inspiram respostas semelhantes da sociedade civil em todo o mundo. Em sua obra principal, A grande transformação, Karl Polanyi advertiu em 1944POLANYI, Karl. The great transformation. Newa York: Rinehart and Co, 1944. que o movimento profundo de mercantilização da vida — que vinha ocorrendo ao longo do século XIX e início do século XX — gerara um “contramovimento” que representaria uma resposta a demanda por proteção contra a perda de referências sociais, bem como uma compensação pela dinâmica empobrecedora e competitiva gerada pelo capitalismo.

A renovada difusão das ideias de Polanyi tem a ver com a continuidade desses dois movimentos atualmente, e com a dificuldade dos Estados para responder às demandas de proteção contra incertezas, medos e situações de empobrecimento e exclusão geradas pelo neoliberalismo. A experiência dos estados de bem-estar social, embora tenha criado poderosos mecanismos de redistribuição, construiu um sistema hierárquico com forte conteúdo de homogeneização. Sistemas que hoje não correspondem, de um lado, à demanda de emancipação e autonomia e, de outro, ao reconhecimento da diversidade (Fraser, 2013FRASER, Nancy. A triple movement? Parsing the politics of crisis after Polanyi. New Left Review, v. 81, p. 119-132, May/June2013. Available at:<Available at:https://newleftreview.org/II/81/nancy-fraser-a-triple-movement >. Accessed on: 6 Sept. 2018.
https://newleftreview.org/II/81/nancy-fr...
). E é justamente nesse cenário que as cidades surgem como espaços em que é possível fortalecer institucionalmente a capacidade de defender as condições de vida da maioria dos cidadãos e, ao mesmo tempo, estabelecer dinâmicas de proteção e cuidado recíprocas e comunitárias, a partir da base.

CONTRIBUIÇÕES AO DEBATE

Um dos tópicos abordados pelos artigos nesta edição especial é a cooptação da cidade como mercadoria e o contramovimento que gera processos de resistência. Do ponto de vista teórico, Maria Ceci Misoczky e Clarice Misoczky de Oliveira revisitam os escritos de Henry Lefebvre para explorar as contribuições do autor e elucidar as incansáveis lutas urbanas e as práticas espaciais dos movimentos sociais. Lefebvre tem sido muito influente em diversos campos da ciência social, dos estudos organizacionais aos estudos urbanos (Dale, Kingma e Wasserman, 2018DALE, Karen; KINGMA, Sytze; WASSERMAN, Varda (Ed.). Organisational space and beyond: the significance of Henri Lefebvre for organisation studies. London: Routledge, 2018.; Lacerda, 2016LACERDA, Daniel S. The production of spatial hegemony as statecraft: an attempted passive revolution in the favelas of Rio. Third World Quarterly, v. 37, n. 6, p. 1-19, 2016. Available at: <Available at: https://doi.org/10.1080/01436597.2015.1109437 >. Accessed on: 6 Sept. 2018.
https://doi.org/10.1080/01436597.2015.11...
; Elden, 2004ELDEN, Stuart. Understanding Henri Lefebvre - theory and the possible. London; New York: Continuum, 2004.), mas suas ideias foram pouco exploradas em termos de resistência à abstração do espaço e aos espaços alternativos de possibilidade. Examinando a prática de planejamento e implantação de projetos urbanos em todo o mundo, Misoczky e Oliveira propõem que o projeto político presente em tais empreendimentos de desenvolvimento urbano também seja revelado à luz das possibilidades do urbano como espaço de diferenças e encontros, que são promovidas pelas lutas sociais que resistem a esses projetos.

Com base nesse mesmo debate lançado por Lefebvre (2008LEFEBVRE, Henri. The right to the city. In: LEFEBVRE, Henri. Writing on cities. Oxford: Blackwell, 2008. p. 147-159.), mas escolhendo uma abordagem diferente, Morgana Krieger e Esther Madelein Leblanc usam a teoria política do discurso (TPD) para examinar a disputa em relação ao direito à cidade. As autoras observam os debates desencadeados pelas manifestações nacionais de 2013 e analisam os diferentes significados expressos nos discursos reproduzidos por diferentes grupos que disputam a arena pública. Elas argumentam que a ideia de direito à cidade promovida pelos movimentos sociais permanece contra-hegemônica e em grande parte encurralada em uma relação antagônica com a atual hegemonia produzida na cidade, o que não impede, no entanto, que os atores avaliados interajam discursivamente e proponham novas práticas para a produção do espaço urbano.

No entanto, o estabelecimento de disputas urbanas com mudança ou reforço da hegemonia na cidade não representaria a resolução de suas contradições. Nayara Silva de Noronha demonstra empiricamente que a luta social pela moradia na favela de Heliópolis, no Brasil, coexiste com práticas de reprodução do mercado imobiliário. A autora revela que a relação aparentemente dicotômica entre mercantilização e resistência existe antes na afirmação mútua, e a concretude complexa do direito à moradia nas favelas engloba relações simultâneas entre a luta social e as práticas de mercado, que se opõem e se favorecem mutuamente.

As lutas urbanas discutidas nos debates sobre a cidade entendida como mercadoria também contemplam a democratização do poder local, que revitaliza a cidade com o envolvimento dos cidadãos no exercício da democracia ativa por meio da participação e da inclusão. Em outro trabalho realizado na favela de Heliópolis, Hugo Fanton Ribeiro da Silva discute como a conformação histórica do território é produzida pelos interesses do bloco hegemônico, e mesmo quando condições favoráveis de representação emergem, a aliança com setores das classes dominantes pode levar à cooptação de movimentos subalternos, consolidando a hegemonia anterior e favorecendo a especulação imobiliária.

Em outro caso da imersão entre o direito à cidade e a democracia participativa, Eduardo Torre e Paulo Amarante discutem a questão da exclusão da loucura da vida social. A institucionalização do insano levou à construção da loucura como erro, incapacidade, inferioridade e periculosidade, o que afastou as pessoas em sofrimento mental do horizonte da vida social, excluindo-as do direito ao trabalho, lazer, cultura e espaços de inserção social e representação política, portanto, da participação no pacto social. Os autores oferecem então uma nova concepção de loucura e diferença, na qual diversos sujeitos têm direito à cidade e à participação social.

No entanto, a América Latina oferece vários exemplos de democracia participativa, e Felipe Addor examina dois casos simbólicos e amplamente estudados, as experiências de Cotacachi no Equador e Torres na Venezuela, para propor cinco fatores que devem ser considerados fundamentais para o avanço e a difusão de experiências democráticas: retomar a discussão sobre democracia, territorialização da democracia, a necessidade de transformar o Estado, a interação entre democracia e capitalismo e um projeto político democrático regional. Tais fatores são derivados da análise da agência e do espaço público e podem servir como diretrizes para desafiar o modelo neoliberal de governança na América Latina.

Por fim, os trabalhos de Mariana Brandão e Luiz Antonio Joia exploram a inovação social urbana que responde à necessidade de novas tecnologias de gestão em nível local para lidar com os desafios dos espaços urbanos contemporâneos. Eles oferecem uma rica análise empírica da implementação de um projeto de cidade inteligente e, sob a ótica da teoria ator-rede, criticam o “tecnocentrismo” das empresas de cidades inteligentes. Os autores argumentam que a influência do contexto é crucial para a análise.

Nos anos recentes de crescimento desenfreado da economia financeira e imobiliária, as cidades simplesmente foram vistas como espaços privilegiados de acumulação de capital e especulação financeira. Os artigos desta edição especial, com base em discussões teóricas e empíricas, reivindicam a cidade como espaços centrais da vida cotidiana, e espaços de disputa em constante construção.

REFERENCES

  • BARBER, Benjamin. If mayors ruled the world: dysfunctional nations, rising cities. New Haven: Yale University Press, 2013.
  • Calle, Angel. Nuevos movimientos globales Madrid: Popular, 2005.
  • CASTELLS, Manuel. The power of identity 2. ed. London: Blackwell, 2004.
  • DALE, Karen; KINGMA, Sytze; WASSERMAN, Varda (Ed.). Organisational space and beyond: the significance of Henri Lefebvre for organisation studies. London: Routledge, 2018.
  • DAVIS, Mike. Planet of slums London: Verso, 2007.
  • DELLA PORTA, Donatella; TARROW, Sidney (Ed.). Transnational protest and global activism Oxford: Rowman and Littlefield, 2005.
  • ELDEN, Stuart. Understanding Henri Lefebvre - theory and the possible. London; New York: Continuum, 2004.
  • FEDOZZI, Luciano. O poder da aldeia gênese e história do Orçamento Participativo de Porto Alegre Porto Alegre: Tomo, 2000.
  • FLEURY, Sonia. La expansion de la ciudadanía. In: UNIVERSIDAD JAVERIANA (Org.). Inclusión social y nuevas ciudadanías: condiciones para la convivencia y seguridad democrática. Bogotá: Pontificia Universidad Javeriana, 2003. p. 167-194.
  • FLEURY, Sonia; SUBIRATS, Joan; BLANCO, Ismael. Respuestas locales a inseguridades globales: innovación y cambios en Brasil y España. Barcelona: Bellaterra, 2009.
  • FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Déficit habitacional municipal no Brasil 2010 Belo Horizonte: Centro de Estatística e Informações, 2013.
  • FRASER, Nancy. A triple movement? Parsing the politics of crisis after Polanyi. New Left Review, v. 81, p. 119-132, May/June2013. Available at:<Available at:https://newleftreview.org/II/81/nancy-fraser-a-triple-movement >. Accessed on: 6 Sept. 2018.
    » https://newleftreview.org/II/81/nancy-fraser-a-triple-movement
  • HARVEY, David. Spaces of capital: towards a critical geography. New York: Routledge, 2001.
  • HOSTON, James. Insurgent citizenship: disjunctions of democracy and modernity in Brazil. New Jersey: Princeton University Press, 2008.
  • LACERDA, Daniel S. The production of spatial hegemony as statecraft: an attempted passive revolution in the favelas of Rio. Third World Quarterly, v. 37, n. 6, p. 1-19, 2016. Available at: <Available at: https://doi.org/10.1080/01436597.2015.1109437 >. Accessed on: 6 Sept. 2018.
    » https://doi.org/10.1080/01436597.2015.1109437
  • LEEDS, Anthony; LEEDS, Elizabeth. A sociologia do Brasil urbano Rio de Janeiro: Fiocruz, 2015.
  • LEFEBVRE, Henri. The right to the city. In: LEFEBVRE, Henri. Writing on cities Oxford: Blackwell, 2008. p. 147-159.
  • MEIRA, Fábio B. Liminal organization: organizational emergence within solidary economy in Brazil. Organization, v. 21, n. 5, p. 713-729, 2014. Available at:<Available at:https://doi.org/10.1177/1350508414537621 >. Accessed on: 6 Sept. 2018.
    » https://doi.org/10.1177/1350508414537621
  • POLANYI, Karl. The great transformation Newa York: Rinehart and Co, 1944.
  • SRINIVAS, N. Transnational governance and the trilhos urbanos: civil society resistance to the Rio Mega Events. Revista de Administração de Empresas, v. 56, n. 4, p. 438-447, 2016. Available at: <Available at: http://doi.org/10.1590/S0034-759020160407 >. Accessed on: 6 Sept. 2018.
    » http://doi.org/10.1590/S0034-759020160407
  • SUBIRATS, Joan. ¿Que gestión pública para que sociedad? Revista Administración Pública Y Sociedad, v. 16, p. 5-16, 2015a.
  • SUBIRATS, Joan (Ed.). Ya nada será lo mismo: los efectos del cambio tecnológico en la política, los partidos y el activismo juvenil. Madrid: Centro Reina Sofía sobre Adolescencia y Juventud, 2015b. Available at: <Available at: http://igop.uab.cat/wp-content/uploads/2015/07/ya-nada-sera-lo-mismo.pdf >. Accessed on: 6 Sept. 2018.
    » http://igop.uab.cat/wp-content/uploads/2015/07/ya-nada-sera-lo-mismo.pdf
  • WILSON, William J. The truly disadvantaged: the inner city, the underclass, and public policy. Chicago: The University of Chicago Press, 2012.
  • {Versão traduzida}

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    06 Set 2018
  • Aceito
    17 Out 2018
Fundação Getulio Vargas Fundaçãoo Getulio Vargas, Rua Jornalista Orlando Dantas, 30, CEP: 22231-010 / Rio de Janeiro-RJ Brasil, Tel.: +55 (21) 3083-2731 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rap@fgv.br