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Interatividade e ciclo de políticas públicas no Orçamento Participativo Digital: uma análise internacional

Interactividad y ciclo de políticas públicas en el Presupuesto Participativo Digital: un análisis internacional

Resumo

Contemporaneamente, verifica-se a apropriação de tecnologias de informação e comunicação (TIC) por iniciativas que têm como meta a participação cidadã, cujo exemplo emblemático é o orçamento participativo digital (OPD). O objetivo deste estudo foi analisar plataformas de OPD, buscando identificar seus modelos de interatividade e avaliar quão profícuas são as funcionalidades oferecidas em termos políticos no sentido de transmissão de informação política, formulação da agenda pública, emissão de opinião, negociação da diferença e tomada de decisão política. Essa análise possibilitou enquadrar as ferramentas disponibilizadas em seis níveis de interatividade, com base nas variáveis nível de controle do receptor e direção da comunicação, e identificar a quais modelos de OPD as diversas funcionalidades correspondem, bem como quais fases do processo decisório e do ciclo de políticas públicas são contempladas em cada experiência em foco. Foram desenvolvidos estudos de caso em perspectiva comparada, buscando contemplar a diversidade de formatos de OPD existentes.

Palavras-chave:
orçamento participativo digital; interatividade; participação; gestão pública orçamentária; ciclo de políticas públicas

Resumen

Contemporáneamente, se constata la apropiación de las tecnologías de la información y la comunicación por parte de iniciativas que tienen como meta la participación ciudadana, cuyo ejemplo emblemático es el Presupuesto Participativo Digital (PPD). El objetivo de este estudio fue analizar plataformas de PPD, buscando identificar sus modelos de interactividad y evaluar en términos políticos cuán ventajosas son las funcionalidades ofrecidas en el sentido de transmisión de información política, formulación de la agenda pública, emisión de opinión, negociación de la diferencia y toma de decisión política. Este análisis permitió encuadrar las herramientas disponibles en seis niveles de interactividad basados en las variables nivel de control del receptor y dirección de la comunicación, e identificar a qué modelos de PPD corresponden las diversas funcionalidades, así como qué fases del proceso de decisión y del ciclo de políticas públicas están incluidas en cada experiencia analizada. Se desarrollaron estudios de caso en perspectiva comparada, tratando de considerar la diversidad de formatos de PPD existentes.

Palabras clave:
presupuesto participativo digital; interactividad; tecnologías de la información y la comunicación; participación; gestión pública presupuestaria; ciclo de políticas públicas

Abstract

Participatory initiatives have increasingly used Information and Communication Technology, such as the Electronic Participatory Budgeting (ePB) to expand and improve participation. This research analyzes ePB platforms emphasizing interactivity aspects, as well as evaluating - in political terms - their functions regarding the dissemination of political information, sharing opinions, agenda-setting, and decision-making. This analysis examined the platforms’ tools types of interactivity based on two variables: the level of the receiver’s control and communication direction. The research identified ePB models and how the platforms’ functions are connected to each of them. The study also recognized in which phases of the decision-making process and the policy cycle the electronic participation is more likely to occur. Case studies in a comparative perspective were used to understand the variety of experiences of ePB.

Keywords:
electronic participatory budgeting; interactivity; information and communication technology; participation; public budget management; public policy cycle

1. ORÇAMENTO PARTICIPATIVO DIGITAL, E-PARTICIPAÇÃO E INTERATIVIDADE

Contemporaneamente, tem-se verificado a apropriação de tecnologias de informação e comunicação (TIC) por iniciativas que têm como meta a participação cidadã, promovendo a diversificação e a modernização dos canais participativos. Exemplo emblemático é o arranjo institucional do orçamento participativo digital (OPD), formato inovador de gestão pública orçamentária envolvendo a participação popular e o uso da internet, cujos principais objetivos são: a) incluir segmentos pouco participativos; b) reduzir os custos da participação política; e c) ampliar o acesso dos cidadãos às informações e aos processos decisórios (Coleman & Sampaio, 2016Sampaio, R. C. (2016). E-orçamentos participativos como iniciativas de e-solicitação: uma prospecção dos principais casos e reflexões sobre a e-participação. Revista de Administração Pública, 50(6), 937-958.). As principais vantagens de realizar um OPD estariam em seu menor custo, na conveniência para participar, nos resultados agregados para os gestores, na apresentação de informação interativa e clara e na possibilidade de existir um ponto central de informação (Luehrs & Heaven, 2013Luehrs, R., & Heaven, J. (2013). The future of participatory budgeting: political participation and practicable policy. In A. Delwiche, & J. J. Henderson, The participatory cultures handbook (pp. 153-162). London, England: Routledge.).

O uso das TIC nos processos de OPD pode ter grandes variações, a depender do formato que assuma. Em algumas experiências, os cidadãos apenas podem indicar temas, em outras, apenas votar, já em outras, debater as propostas apresentadas e, ainda, criar redes de relacionamento no interior das plataformas para debater e apoiar propostas. Ademais, é importante especificar que existem OPD exclusivamente on-line e também modelos híbridos que conjugam fases presenciais com fases online (Abreu & Pinho, 2014Abreu, J. C. A., & Pinho, J. A. G. (2014). Sentidos e significados da participação democrática através da internet: uma análise da experiência do orçamento participativo digital. Revista de Administração Pública, 48(4), 821-846.; Ferreira, 2012Ferreira, D. E. S. (2012). Uma análise comparada do impacto dos usos das novas tecnologias digitais na dinâmica participativa e deliberativa dos orçamentos participativos de Belo Horizonte e Recife (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG.; Miori & Russo, 2011Miori, V., & Russo, D. (2011). Integrating online and traditional involvement in participatory budgeting. Electronic Journal of e-Government, 9(1), 41-57.; Nitzsche, Pistoia, & Elsäßer, 2012Nitzsche, P., Pistoia, A., & Elsäßer, M. (2012). Development of an evaluation tool for participative e-government services: a case study of electronic participatory budgeting projects in Germany. Revista Administraţie Şi Management Public, 18, 6-25.; Sampaio, 2014Sampaio, R. C. (2014). Orçamentos participativos digitais: um mapeamento mundial das experiências já realizadas e suas contribuições para e-participação e e-democracia (Tese de Doutorado). Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA.; Sampaio & Peixoto, 2013Sampaio, R. C. (2016). E-orçamentos participativos como iniciativas de e-solicitação: uma prospecção dos principais casos e reflexões sobre a e-participação. Revista de Administração Pública, 50(6), 937-958.; Spada & Allegretti, 2013Spada, P., & Allegretti, G. (2013, August). The role of redundancy and diversification in multi-channel democratic innovations. In American Political Science Association 2013 Annual Meeting. Chicago, IL.).

Formas inovadoras de utilização das TIC contemplam o envolvimento dos cidadãos para que participem do processo ativamente e seu reconhecimento como atores do debate político. Portanto, é necessário que aqueles que implementam os processos considerem que as TIC, além de ferramentas, podem materializar a possibilidade de exercício ativo da cidadania, a depender de suas formas de uso (Coleman & Sampaio, 2016Sampaio, R. C. (2016). E-orçamentos participativos como iniciativas de e-solicitação: uma prospecção dos principais casos e reflexões sobre a e-participação. Revista de Administração Pública, 50(6), 937-958.; Pineda Nebot & Iasulaitis, 2016Pineda Nebot, C., & Iasulaitis, S. (2016, octubre). Presupuesto participativo digital: los nuevos formatos de la participación en red. In Anais do 7o Congreso Internacional en Gobierno, Administración y Políticas Públicas GIGAPP. Madrid, España.; Smith, 2009Smith, G. (2009). Democratic innovations: designing institutions for citizen participation. Cambridge, England: Cambridge University Press.). Isso não significa que mudanças no campo da técnica condicionam imediatamente transformações políticas amplas, pois os problemas da democracia não são apenas de ordem prática, passíveis de ser resolvidos pela aplicação da tecnologia (Iasulaitis, 2012Iasulaitis, S. (2012). Internet e campanhas eleitorais: experiências interativas nas cibercampanhas presidenciais do Cone Sul (Tese de Doutorado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP.). Para evitar o determinismo tecnológico é preciso reconhecer a interação complexa da política com a técnica, uma vez que o social e o técnico têm uma recorrência mútua que o pensamento técnico não é capaz de identificar (Latour, 1992Latour, B. (1992). Aramis ou l´amour des techniques. Paris, France: La Découverte.). O aparato não é causa da mudança social, mas fonte potencializadora, como enfatiza Ortiz (2000Ortiz, R. (2000). Mundialização e cultura. São Paulo, SP: Brasiliense.), pois a tecnologia se insere em contextos sociais que podem fazer seus vários potenciais não realizáveis. Os recursos tecnológicos, por si, não podem frustrar nem realizar promessas de efeitos políticos, visto que são instrumentos à disposição de agentes sociais. A internet, seus aparatos, sistemas e agentes tanto podem servir à democracia quanto ao seu contrário; ao mesmo tempo que seu uso pode potencializar a liberdade e a participação cidadã, “pode servir para reforçar o Leviatã” (Vera, 2006Vera, F. H. (2006). Tipologias y modelos de democracia electrónica. Recuperado dehttps://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/1428342.pdf
https://dialnet.unirioja.es/descarga/art...
, p. 32).

A internet e as redes sociais digitais vêm-se tornando uma “câmara de eco”, com um grande ruído do público, com inúmeras posições sendo defendidas a partir de uma pluralidade de vozes. Se experiências participativas tolhem essa capacidade de agendamento de temas e debates em torno de políticas públicas a eles relacionados, pode haver um desestímulo à participação cidadã, um sentimento de não reconhecimento por parte do governo e, consequentemente, inibição do engajamento. Como afirma Coleman (2017Coleman, S. (2017). Can the internet strengthen democracy? Cambridge, England: Polity Press.), atualmente, os cidadãos respondem com ceticismo aos políticos “mainstream” e populistas, que se arvoram a falar “em nome deles”, porque estão cansados de que falem sobre eles, agora eles também querem falar. Os cidadãos se sentem desvalorizados com a divisão estabelecida entre quem tem a palavra e quem não tem, quem pauta a política e quem é somente um “espectador passivo”. Hoje, o público tem um papel muito mais ativo nas redes sociais digitais e, quando participa da política, também pretende ter voz nesse âmbito e não apenas ouvir ou simplesmente escolher entre os temas previamente agendados pelos governantes. É nesse sentido que Coleman (2017)Coleman, S., & Sampaio, R. C. (2016). Sustaining a democratic innovation: a study of three e-participatory budgets in Belo Horizonte. Information, Communication & Society, 20(5), 754-769. questiona se a internet abre espaço para que os cidadãos flexionem seus músculos democráticos e imprimam à política uma nova configuração no sentido de criar uma democracia mais participativa e comprometida. Se por um longo tempo se aceitou que o inaudito simplesmente se desvaneceria em silêncio sombrio, agora vivemos a insurgência do inaudito. Pessoas de segmentos sociais que nunca tiveram voz, agora têm a possibilidade de também produzir conteúdos políticos, ao invés de apenas recebê-los de cima para baixo (top-down), ou seja, as regras do jogo mudaram e isso ainda choca os agentes políticos. Novas formas de falar de política estão surgindo, desafiando os códigos da administração tecnocrática. E isso coloca o desafio de criar canais participativos que estejam abertos a ouvir as demandas dos cidadãos, permitir a tematização da política pelo público, especialmente pelas parcelas que sempre estiveram apartadas dos processos democráticos e de discussão das políticas públicas e de segmentos sociais mais estigmatizados, ao contrário, haverá um abismo intransponível entre mera atenção simbólica e compreensão sensível. Por isso é que o intuito desta pesquisa é avaliar se e até que ponto o potencial interativo da internet está sendo utilizado pelos agentes políticos e se e em que medida vem impactando no tocante à melhoria das funções representativas e participativas das democracias contemporâneas.

Como orçamentos participativos são baseados, em tese, em maior empoderamento do cidadão para participar do processo de tomada de decisão orçamentária, eles naturalmente pressupõem maior interação e diálogo entre cidadãos, gestores públicos e políticos. Portanto, um aspecto fundamental para o êxito de experiências de OPD é a forma como se estabelece a interação entre governo e cidadãos, mediante uma relação bidirecional entre ambos os polos do processo, as ferramentas tecnológicas utilizadas e as funcionalidades interativas ofertadas para tanto, bem como o formato de comunicação resultante dessa interação.

A internet, tal como a conhecemos atualmente, possui recursos técnicos que potencialmente possibilitam a ampliação dos canais de participação e a modificação estrutural das formas de interação social. A interatividade é a característica mais enfatizada da Web 2.0, também denominada Web Social.

Para que um formato de comunicação seja considerado interativo, ele deve ser marcado pela troca de informação, pela conversação ou pelo diálogo (Ferber, Foltz, & Pugliese, 2007Ferber, P., Foltz, F., & Pugliese, R. (2007). Cyberdemocracy and online politics: a new model of interactivity. Bulletin of Science Technology & Society, 27(5), 391-400.), no qual o usuário pode influenciar a forma e/ou o conteúdo da apresentação ou experiência mediada (Stromer-Galley, 2013Stromer-Galley, J. (2013). Interação on-line e por que os candidatos a evitam. In F. P. A. Marques, R. C. Sampaio, & C. Aggio (Orgs.), Do clique à urna: internet, redes sociais e eleições no Brasil (Vol. 1, pp. 29-62). Salvador, BA: Ed. UFBA.). Kiousis (2002Kiousis, S. (2002). Interactivity: a concept explication. New Media & Society, 4(3), 353-383.) oferece uma definição bastante completa de interatividade, referindo-se a um ambiente mediado no qual os participantes podem se comunicar em diferentes formatos: de um para um, de um para muitos e de muitos para muitos, de forma síncrona e assíncrona, participando da troca de mensagens recíprocas (Kiousis, 2002Kiousis, S. (2002). Interactivity: a concept explication. New Media & Society, 4(3), 353-383.).

A interatividade, portanto, possibilita ao indivíduo afetar e ser afetado por outros, com a possibilidade de assumir o controle da tecnologia, logo “usuários e criadores podem tornar-se a mesma coisa” (Castells, 1999Castells, M. (1999). A sociedade em rede. São Paulo, SP: Paz e Terra., p. 51). Portanto, a interatividade dialógica é um elemento diferenciador em plataformas participativas digitais, com considerável potencial democrático (Stromer-Galley, 2000Stromer-Galley, J. (2000). On-line interaction and why candidates avoid it.Journal of Communication, 50(4): 111-132.).

Uma vez que OPD são instituições participativas desenhadas exatamente para promover essa interação mais ampla entre cidadãos e poder público, eles nos parecem objetos profícuos para a análise específica da interatividade digital. Portanto, o objetivo deste estudo é analisar plataformas de OPD, buscando identificar seu modelo de interatividade. Para tanto, avaliamos: a) em que momento do processo decisório e do ciclo das políticas públicas as ferramentas digitais permitem a inserção do cidadão; b) quais são as ferramentas interativas oferecidas pelas plataformas de OPD; c) quais e quão profícuas são as funcionalidades oferecidas pelos processos participativos1 1 Semelhante esforço foi realizado por Sampaio (2014), porém, o autor faz uma prospecção geral de casos de OPD, não apresentando análises mais aprofundadas de cada processo. Nesse sentido, nosso estudo se assemelha mais ao de Nitzsche et al. (2012), que avaliaram a utilização de ferramentas Web 2.0 em vários OPD alemães. . O intuito é identificar a quais modelos de OPD e de interatividade as diversas funcionalidades correspondem e quais fases do ciclo de políticas públicas e do processo decisório são contempladas em cada experiência analisada.

O corpus de análise foi composto pelas plataformas de OPD de uma gama de municipalidades espalhadas por América do Sul, América do Norte e Europa, a saber: Amadora (Portugal), Fortaleza (Brasil), Nova York (Estados Unidos da América - EUA), Bristol (Inglaterra), Braga (Portugal), Madrid (Espanha), Paris (França), Rosario (Argentina), Reykjavík (Islândia), Porto Alegre (Brasil), Ipatinga (Brasil), Belo Horizonte (Brasil) e Hamburgo (Alemanha).

A escolha do corpus se deu a partir do critério de contemplar diferentes tipos de experiências de OPD, com base na classificação de Sampaio (2014Sampaio, R. C. (2014). Orçamentos participativos digitais: um mapeamento mundial das experiências já realizadas e suas contribuições para e-participação e e-democracia (Tese de Doutorado). Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA.), empreendendo comparações pelo método das variações concomitantes com casos emblemáticos de OPD. O método comparativo possibilita perceber não só semelhanças, mas, especialmente, diferenças no desenvolvimento de uma mesma questão em situações culturais e sociais distintas. Nos termos de Sartori (1994Sartori, G. (1994). Comparación y método comparativo. In G. Sartori, & L. Morlino,La comparación en las ciencias sociales. Madrid: Alianza.), comparar implica fundamentalmente encontrar semelhanças e diferenças, o que pode ser feito pelo uso da classificação de semelhanças e diferenças que apresentam 2 séries de natureza análoga, tomadas de meios sociais distintos, a partir de 2 momentos inerentes ao método comparativo: um momento análogo, relacionado à identificação das similitudes entre os fenômenos, e um momento contrastivo, no qual são trabalhadas as diferenças entre os casos estudados (Przeworski & Teune, 1970Przeworski, A., & Teune, H. (1970). Logic of comparative social inquiry. Minneapolis, MN: John Wiley & Sons.), bem como as possíveis variáveis intervenientes nesse processo. Este estudo se baseia no princípio das variações concomitantes a partir da escolha de desenhos dos sistemas mais diferentes (most different systems), de modo a contemplar pelo menos um caso de cada modelo de OPD desenvolvido. Esse enfoque, denominado por Skocpol e Somers (1980Skocpol, T., & Somers, M. (1980). The uses of comparative history in macrosocial inquiry. Comparative Studies in Society and History, 22(2), 174-197.) “contraste de contexto”, consiste na comparação de dois ou mais casos, buscando colocar em evidência suas diferenças recíprocas. Skocpol e Somers (1980) propõem a noção de “ciclo de investigação”, que permite situar o uso do método comparativo dentro de um campo teórico-metodológico abrangente, composto por múltiplas estratégias de abordagem dos objetos empíricos. É inegável, no entanto, que a comprovação e formulação de determinadas hipóteses continua sendo, para a maioria dos autores, um dos principais objetivos do método comparativo.

Foram analisadas as experiências de OPD mais recentes desenvolvidas nos municípios em análise. Nos casos em que o OPD foi interrompido, adotou-se o critério de analisar a experiência mais recente. Em termos de caracterização básica das cidades:

  • .Amadora é uma cidade portuguesa de 177.407 habitantes, que implantou o OPD em 2009;

  • .Braga é uma cidade portuguesa de 181.800 habitantes, que implementou o orçamento participativo em 2014;

  • .Madrid é a capital espanhola, com 3.174.000 habitantes, onde o OPD se iniciou em 2015;

  • .Paris é a capital francesa, com 2.141.000 habitantes, e ali o OPD começou a ser desenvolvido em 2014;

  • .Bristol é um município da Inglaterra, de 535.907 habitantes, onde o orçamento participativo se iniciou em 2010;

  • .Reykjavík está situado na Islândia, conta com 122.853 habitantes e implementou o OPD a partir de 2012;

  • .Hamburgo é uma cidade alemã, de 1.810.000 habitantes, que implementou o OPD a partir de 2006;

  • .Nova York é a cidade mais populosa dos EUA, com 8.623.000 habitantes, e iniciou a experiência do orçamento participativo em 2011;

  • .Fortaleza é uma cidade brasileira de 2.643.000 habitantes, que implementou o OPD em 2015;

  • .Rosário, na Argentina, tem 1.198.528 habitantes, onde o OPD se iniciou em 2002;

  • .Porto Alegre é uma cidade brasileira de 1.409.000 habitantes, que iniciou seu processo de OPD em 2001;

  • .Ipatinga é uma cidade brasileira de 257.315 habitantes, que iniciou o OPD em 2001;

  • .E Belo Horizonte é uma cidade brasileira, de 2.500.000 habitantes, que implementou o OPD em 2006.

2. METODOLOGIA

Para os propósitos deste estudo, realizou-se uma composição de técnicas, resultando em um aparato metodológico específico, incluindo a experimentação do uso das plataformas de OPD, a observação das possibilidades de interações mediadas pelo computador, a coleta de dados e a análise de conteúdo em perspectiva comparada.

Foram analisadas as ferramentas e as funcionalidades existentes nas plataformas de OPD, de acordo com o formato de comunicação (síncrono ou assíncrono) e por tipos de interatividade (unidirecional, bidirecional ou em 3 vias), com base em 2 variáveis: a) nível de controle do receptor; e b) direção da comunicação. Essa análise possibilitou enquadrar as ferramentas disponibilizadas em 6 níveis de interatividade: a) monólogo; b) resposta (feedback); c) diálogo responsivo; d) discurso mútuo; e) resposta controlada; e f) discurso público (conforme modelos desenvolvidos por McMillan, 2002McMillan, S. J. (2002). A four-part model of cyber-interactivity: some cyber-places are more interactive than others.New Media and Society, 4(2), 271-291.; Ferber et al., 2007Ferber, P., Foltz, F., & Pugliese, R. (2007). Cyberdemocracy and online politics: a new model of interactivity. Bulletin of Science Technology & Society, 27(5), 391-400.).

O modelo se inicia com variações de comunicação unidirecional, como o fornecimento de informações, sendo o monólogo o tipo de comunicação essencialmente de mão única; o feedback permite participação limitada, pois não há garantia de que as mensagens enviadas irão gerar respostas, como é o caso do e-mail. O modelo prevê, ainda, formas de comunicação bidirecional, sendo o diálogo responsivo um tipo dessa forma de comunicação, no qual o remetente mantém o controle do processo; o discurso mútuo retrata o tipo em que ocorre o intercâmbio de papéis entre emissor e receptor, no qual ambas as partes enviam e recebem mensagens, mas, nesse caso, os participantes detêm maior controle sobre o processo de diálogo, sendo as salas de bate-papo e os murais ferramentas que ilustram tal formato (McMillan, 2002McMillan, S. J. (2002). A four-part model of cyber-interactivity: some cyber-places are more interactive than others.New Media and Society, 4(2), 271-291.). O modelo prevê, por fim, as formas de comunicação em 3 vias, incluindo a resposta controlada, cujo exemplo emblemático é a ferramenta de enquete, na qual é possível a participação dos usuários, mas o gestor da plataforma mantém um controle significativo sobre o conteúdo, pois as perguntas são previamente estabelecidas e a apresentação dos resultados é determinada pelos coordenadores do website. Essa forma contrasta com formatos de discurso público, como fóruns e salas de bate-papo, nos quais os participantes dispõem de oportunidade quase ilimitada para determinar o conteúdo (exceto nos casos em que se aplica moderação e exclusão de comentários ofensivos e difamatórios). A comunicação de 3 vias permite que os próprios participantes interajam entre si e influenciem terceiros, portanto, potencialmente pode fornecer mecanismos para a deliberação pública (Ferber et al., 2007Ferber, P., Foltz, F., & Pugliese, R. (2007). Cyberdemocracy and online politics: a new model of interactivity. Bulletin of Science Technology & Society, 27(5), 391-400.).

Na forma mais elementar do modelo, os gestores da plataforma de OPD são compreendidos como remetentes e os indivíduos que a utilizam apenas como receptores. Os usuários, no entanto, também podem desempenhar papéis ativos, a depender do modelo de OPD desenvolvido. Modelos de OPD com baixo grau de interatividade tenderão a disponibilizar informações sobre o processo do orçamento participativo presencial, modelos de média interatividade tenderão a disponibilizar ferramentas como enquetes, com perguntas fechadas e agendas pré-formuladas pelo governo, priorizando modelos de interatividade de resposta controlada. Finalmente, modelos de alto grau de interação usarão ferramentas como salas de bate-papo e fóruns, nos quais cidadãos e gestores públicos poderão fazer debates públicos de qualidade, no que seria definido como um modelo de discurso público (Ferber et al., 2007Ferber, P., Foltz, F., & Pugliese, R. (2007). Cyberdemocracy and online politics: a new model of interactivity. Bulletin of Science Technology & Society, 27(5), 391-400.).

Assim, com base nas variáveis direção da comunicação e nível de controle do receptor, utilizamos o modelo de análise das funcionalidades de plataformas de OPD na dimensão de ciberinteratividade ilustrado na Figura 1.

Figura 1
Modelo de interatividade

Nesse modelo, os círculos representam os papéis que os indivíduos e as plataformas desempenham no processo. As setas e os círculos sobrepostos indicam a direção da comunicação. Na forma mais elementar do modelo, os gestores da plataforma de OPD são compreendidos como remetentes e os indivíduos que a utilizam como receptores. Os usuários, no entanto, também podem desempenhar papéis ativos, a depender do formato de OPD desenvolvido.

Após a análise das ferramentas de interação disponíveis foram identificadas as funcionalidades presentes nas plataformas de OPD: a) informação; b) engajamento e mobilização; c) apresentação de propostas; d) emissão da opinião e deliberação; e e) voto, conforme sugerido por Sampaio (2016Sampaio, R. C. (2016). E-orçamentos participativos como iniciativas de e-solicitação: uma prospecção dos principais casos e reflexões sobre a e-participação. Revista de Administração Pública, 50(6), 937-958.).

As ferramentas interativas disponibilizadas guardam relação com o modelo de orçamento participativo adotado. Nesse sentido, identificou-se o formato de OPD desenvolvido e os ciclos das políticas públicas e o processo decisório que contemplam. Um processo completo de formulação de políticas públicas no OPD contemplaria as diversas fases do processo decisório: a) formação da agenda; b) formulação de políticas; c) tomada de decisão; d) implementação das políticas; e e) avaliação do processo (Brugué & Subirats, 1996Brugué, Q., & Subirats, J. (1996).Lecturas de gestión pública. Selección de textos. Madrid, España: Ministerio para las Administraciones Públicas.; Dente & Subirats, 2014Dente, B., & Subirats. J. (2014). Decisiones públicas. Barcelona, España: Ariel.; Hill, 2013Hill, M. (2013). The public policy process (6th ed.). Essex, England: Pearson Education.; Sabatier, 1999Sabatier, P. (Ed.). (1999). Theories of the policy process. Oxford, England: Westview Press.; Secchi, 2010Secchi, L. (2010). Políticas públicas. São Paulo, SP: Cengage Learning.). No entanto, nem sempre os processos de OPD contemplam todas essas fases.

Com base nesse modelo metodológico foram desenvolvidos estudos de caso em perspectiva comparada com o objetivo de identificar a arquitetura tecnológica e as funcionalidades contidas em plataformas de OPD, o que nos possibilitou não apenas comparar as diferenças entre os modelos de interatividade nos diversos tipos de experiências de OPD, mas também as diferenças e as similaridades entre os municípios e as experiências em análise.

As experiências analisadas contemplaram uma diversidade de formatos de OPD existentes e foram enquadradas conforme tipologia elaborada por Sampaio (2014Sampaio, R. C. (2014). Orçamentos participativos digitais: um mapeamento mundial das experiências já realizadas e suas contribuições para e-participação e e-democracia (Tese de Doutorado). Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA.): a) mobilização on-line e participação presencial; b) envio de sugestões on-line e participação presencial; c) envio de sugestões on-line, com participação presencial e voto on-line; d) deliberação on-line; e) deliberação on-line e voto on-line; f) participação presencial e voto on-line; g) entre e-voto e e-decisão e sugestões on-line; e h) participação presencial e controle on-line.

3. APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS

3.1 Processo decisório e ciclo das políticas públicas

Os recursos governamentais são escassos, de modo que, se entendermos política pública como aquilo que “o governo escolhe ou não fazer” (Dye, 1984Dye, T. (1984). Understanding public policy. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall.), torna-se evidente que o desenvolvimento de políticas públicas guarda relação com a eleição de prioridades por parte de um governo, uma vez que, como afirma Lowi (1972 como citado em Souza, 2006Souza, C. (2006). Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, 8(16), 20-45., p. 28), “a política pública faz a política”.

O ciclo de políticas públicas se inicia com a identificação dos problemas. Essa é uma fase estratégica, pois influencia a formação da agenda governamental, ou seja, o conjunto de assuntos sobre os quais o governo e os atores ligados a ele concentram sua atenção em determinado momento. No entanto, nem todas as experiências de OPD integraram os cidadãos na formação da agenda governamental. As experiências que contemplaram a identificação de temas e problemas pelos próprios cidadãos foram as de Reykjavík e Hamburgo.

Uma questão passa a fazer parte da agenda governamental quando desperta a atenção e o interesse dos formuladores de políticas e compõe a agenda decisional, quando passa a ser uma questão pronta para uma decisão ativa dos formuladores de políticas, ou seja, prestes a se tornar política (Kingdon, 2003Kingdon, J. (2003). Agendas, alternatives, and public policies (3a ed.). Nova York, NY: Harper Collins.). Nesse sentido, ainda no estágio pré-decisório, além da formação da agenda, foram avaliadas as possibilidades dos cidadãos se tornarem atores aptos a influenciar as decisões sobre as alternativas para a formulação das políticas, participando ativamente do processo de confluência entre os fluxos de questões e problemas, de políticas e de soluções. As experiências de Amadora, Nova York, Madrid e Paris permitiram que o cidadão escolhesse dentre os temas pré-agendados pelo governo.

A fase de elaboração e formulação da política pública consiste na preparação da decisão política, quando se examina o problema que foi apresentado para ser inserido na agenda e levantam-se as possíveis alternativas para sua solução. Nesse momento, inclusive, avaliam-se os custos e os possíveis efeitos de cada alternativa e são estabelecidas prioridades. Nesse sentido, verificou-se que a responsabilidade de formulação da política pública quase sempre ficava a critério do governo e, nessa fase, a população praticamente não era consultada, com exceção das experiências de Nova York, Bristol e Braga, onde os cidadãos podiam participar do processo de formulação dos projetos e elaboração dos programas. Essa é uma fase estritamente técnica, tanto no processo de OPD quanto no presencial, mas que pode ser transparente diante da cidadania.

O processo de tomada de decisão é o momento da escolha das políticas propriamente dita, que tanto pode ser realizada de modo democrático, com participação cidadã, quanto de forma monocrática, por parte do governante e de sua equipe, sendo a fase mais contemplada nos processos de OPD (Sampaio, 2016Sampaio, R. C. (2016). E-orçamentos participativos como iniciativas de e-solicitação: uma prospecção dos principais casos e reflexões sobre a e-participação. Revista de Administração Pública, 50(6), 937-958.). Algumas experiências, inclusive, iniciam o ciclo nessa fase, pois não abrem a possibilidade de participação dos cidadãos no processo de formação da agenda e de formulação da política. Nos formatos de orçamento participativo exclusivamente digital, o governo escolhe os temas e as obras previamente e submete-os à votação on-line. Nos formatos híbridos de orçamento participativo, a população participa presencialmente na escolha de obras e/ou prioridades que são submetidas à votação no processo on-line.

A implementação das políticas decididas cabe aos gestores governamentais, por se tratar de um conjunto de ações visando à consecução das obras e projetos definidos. Não obstante, a implementação de políticas públicas muitas vezes não obedece somente a critérios técnicos, mas, sobretudo, evidencia disputas ideológicas tanto no interior de um governo quanto entre grupos de interesses em uma sociedade que é plural e perpassada pelo confronto entre diferentes projetos políticos, concepções e interesses de grupos, cujas relações são, muitas vezes, marcadas por assimetrias de poder. Essa fase do processo pode ser acompanhada pela população e é fundamental para a accountability governamental. Informar o arranjo institucional para a execução, como serão organizados os recursos humanos e financeiros, materiais, dados sobre as licitações, valores, os prazos de execução e os responsáveis pelas obras e projetos, possibilita um processo sistemático de supervisão e controle social da execução de uma atividade e permite eventuais correções. Essa fase do ciclo das políticas públicas foi contemplada somente nas experiências de OPD de Nova York, Braga, Rosario, Porto Alegre, Belo Horizonte e Ipatinga, mesmo sendo uma etapa fundamental para a legitimidade do processo de OPD. A ausência dessa etapa evidencia uma tensão fundamental no cerne da política democrática entre inputs e outputs, entre demandas políticas e resultados em forma de políticas públicas. Um sistema político que encoraja a participação pública no processo político, mas ignora essa contribuição quando se trata de produzir produtos, carece de legitimidade democrática (Coleman, 2017Coleman, S. (2017). Can the internet strengthen democracy? Cambridge, England: Polity Press.).

A avaliação constitui a fase final do processo das políticas públicas e é uma importante etapa do processo, mas que não foi contemplada em nenhuma das experiências analisadas. As experiências de OPD não contemplaram a divulgação de indicadores sobre as políticas implementadas e as obras executadas, por exemplo, quantas crianças foram atendidas com a construção de um Centro de Educação Infantil, e tampouco foi realizado um balanço do processo, com o intuito de avaliar consequências previstas e não previstas e aprimorar as experiências.

Quadro 1
Ciclo do processo decisório das políticas públicas no orçamento participativo digital

3.2 Ferramentas interativas

A análise das ferramentas digitais utilizadas nas experiências de OPD demonstrou que foram priorizadas ferramentas básicas, com baixo nível de sofisticação tecnológica. Considerando que o processo de OPD, em geral, envolve votações on-line, exigiram-se cadastros dos participantes mediante fornecimento de diversas informações, em especial do número de registro eleitoral, de modo a comprovar o domicílio eleitoral dos internautas e impedir votações duplicadas. Em alguns casos, além do registro on-line era enviado um código de segurança por e-mail a ser utilizado nos momentos de votações, como nas experiências de Madrid e Belo Horizonte. O cadastro dos participantes também serviu ao propósito de identificar os comentários em propostas nas experiências de Bristol, Madrid, Rosario, Reykjavík e Hamburgo, evidenciando pessoas reais e comprometidas com um debate responsável.

Quadro 2
Ferramentas interativas presentes nas plataformas de OPD

Quase a totalidade das experiências disponibilizaram formulários de contato e outras ferramentas assíncronas, como o e-mail. Outra opção bastante utilizada foi a disponibilização de informações específicas sobre o funcionamento do processo e do orçamento por meio de links, permitindo aos cidadãos acessar relatórios de participação e dados técnicos, deslocando-se de um endereço a outro, em vários pontos das plataformas.

Todas as plataformas apresentaram motores de busca. As experiências de Amadora, Nova York, Madrid, Paris, Reykjavík, Porto Alegre, Belo Horizonte e Ipatinga utilizaram ferramentas de localização georreferenciada, exibindo mapas de unidades territoriais para localizar obras.

As experiências de Bristol e Hamburgo disponibilizaram aplicativos para a simulação orçamentária, de modo que os cidadãos pudessem compreender melhor o processo orçamentário, no caso de Bristol, e para enviarem seus próprios orçamentos simulados ao poder público, no caso de Hamburgo, para orientar as prioridades dos investimentos do Poder Executivo. Entretanto, mecanismos de voto por enquetes on-line foram adotados nas experiências de Amadora, Fortaleza, Nova York, Bristol, Braga e Hamburgo.

Verificou-se o emprego de celulares somente nas experiências de Belo Horizonte, onde se podia votar por aplicativo, e de Amadora, em Portugal, onde os participantes, após registrar seu número de celular na página do orçamento participativo, podiam votar por SMS grátis. Na experiência de Nova York havia a possibilidade de receber mensagens de texto com atualizações e informações.

Ferramentas mais sofisticadas do ponto de vista de convergência tecnológica foram aquelas empregadas na experiência de Porto Alegre, que investiu em rádio web e TV web, permitindo o acompanhamento em tempo real de atividades presenciais do processo de orçamento participativo.

As possibilidades de customização de conteúdo foram simplórias, exceto na experiência alemã de Hamburgo, que apresentou a possibilidade de resultados configurados de acordo com os interesses individuais do usuário, e de Porto Alegre, que fez uso da tecnologia RSS, que possibilitava a assinatura para receber notificação cada vez em que ocorresse mudança na página.

As ferramentas colaborativas e de formação de redes sociais digitais da Web 2.0, que podem incrementar os processos participativos, foram timidamente empregadas. A experiência que propiciou maior envolvimento dos cidadãos e individualização foi a do OPD de Hamburgo, que disponibilizou a criação de perfis de redes sociais on-line. O orçamento participativo de Nova York possibilitou o cadastramento de perfil para os representantes eleitos de cada um dos 51 distritos, com a biografia de cada conselheiro e o mapa da área de abrangência. Tais possibilidades de personalização e criação de perfis individuais de redes sociais tornam o OPD mais atrativo aos cidadãos, ao propiciar forte identificação do usuário com a plataforma na internet, fomentar relacionamentos sociais digitais, aproximar pessoas com interesses semelhantes e facilitar o debate entre elas.

A análise da utilização de redes sociais demonstrou que o microblogging Twitter foi empregado nos projetos de Nova York, Madrid, Paris, Rosario e Porto Alegre; a rede de relacionamento Facebook foi utilizada em Nova York, Madrid, Paris, Rosario, Reykjavík, Belo Horizonte e Porto Alegre; canais de compartilhamento de vídeos no YouTube foram empregados em Madrid, Rosario e Reykjavík; e o aplicativo de imagens Flickr foi utilizado em Porto Alegre. No geral, propiciar a convergência entre website e perfis em redes sociais tinha por objetivo divulgar o processo de orçamento participativo e criar engajamento com o orçamento participativo por meio das plataformas de redes sociais digitais, com destaque para a utilização do Twitter na experiência de Paris, que integrou o microblogging em suas estratégias de discussão de projetos e convencimento de voto, a partir da hashtag #NotreBudget e na experiência de Nova York, onde os tweets eram integrados à plataforma do OPD em tempo real. Estiveram ausentes redes profissionais, como o LinkedIn e de bookmarking, como Delicious. A literatura temática mostra que a utilização de redes de relacionamento fortalece exercícios colaborativos e atraem atenção de mais participantes, ampliando o engajamento (Spada & Allegretti, 2013Spada, P., & Allegretti, G. (2013, August). The role of redundancy and diversification in multi-channel democratic innovations. In American Political Science Association 2013 Annual Meeting. Chicago, IL.).

As ferramentas interativas utilizadas guardam relação com o modelo de interatividade adotado, o que será objeto de investigação nos próximos itens.

3.3 Funcionalidades das plataformas e modelos de OPD

O Quadro 3 evidencia as diferentes funcionalidades das plataformas digitais de OPD em relação à capacidade dos participantes intervirem nos processos participativos. De acordo com a avaliação das ferramentas interativas, quase todas as plataformas de OPD valorizam informação, recebimento de propostas e mobilização, respectivamente. Portanto, são ferramentas mais voltadas, em primeiro lugar, a incrementar o conhecimento ou a atenção dos cidadãos aos processos participativos e, em segundo lugar, envolvê-los em processos participativos presenciais. Por outro lado, também não é raro que as ferramentas digitais sejam utilizadas para o recebimento de sugestões e propostas de obras, que tenderão a ser avaliadas em outras etapas do orçamento participativo. O Quadro 3 também deixa claro que a participação nas etapas de decisão de OPD são a regra e não a exceção, algo provavelmente ligado à própria lógica de empoderamento dos orçamentos participativos. Por outro lado, o uso de ambientes, ferramentas ou plataformas que incentivassem as conversações e as deliberações on-line ainda nos parecem raras, geralmente sendo utilizadas na forma de testes. Apesar de podermos atribuir esse fato a decisões políticas dos gestores dos OPD, reconhecemos que também é um resultado que pode ser explicado pela sequência entre fases on-line e presencial dos OPD, portanto, as deliberações podem ocorrer em fase presencial, algo não avaliado por nossa pesquisa.

Quadro 3
Funcionalidades das ferramentas do OPD

A análise das funcionalidades das plataformas de OPD possibilitou constatar grande variedade de modelos de OPD, que podem ser classificados na seguinte tipologia:

  • .E-voto: Fortaleza, Rosario, Belo Horizonte: Trata-se de um modelo de OPD basicamente baseado na escolha de projetos a ser realizados por meio de votação dos cidadãos. Em Belo Horizonte há um tipo exclusivamente on-line, em que todo o processo ocorre on-line, as opções já são pré-escolhidas pela prefeitura e cabe ao cidadão apenas decidir a priorização delas. Em Fortaleza e Rosario temos orçamentos participativos híbridos que são basicamente presenciais e apresentam uma fase complementar on-line, a fase do voto, que ocorre simultaneamente via internet e meios presenciais. Em Fortaleza ocorreu uma consulta participativa para a montagem do plano plurianual (PPA) da cidade para o período de 2014-2017, e, na última fase, foram utilizadas as tecnologias digitais sob a forma de urnas eletrônicas distribuídas pela cidade e também pelo voto digital.

  • .E-consulta + e-voto: Braga, Amadora, Madrid e Nova York: É um modelo híbrido em que o cidadão participa enviando sugestões e votando on-line, podendo envolver fases presenciais ou não. Braga, Madrid e Nova York combinam voto on-line e presencial, já em Amadora o processo de votação ocorre exclusivamente via internet. Após a coleta das propostas há um momento intermediário, no qual o órgão executivo analisa a viabilidade técnica das sugestões em termos de orçamento disponível, tempo, jurisprudência, fusão de propostas similares etc. Após tal processo é tornado público o resultado das obras que podem seguir para votação final. Portanto, nesse modelo, os cidadãos registram suas preferências e participam do processo de tomada de decisão dentre as opções aprovadas pelo Poder Executivo.

  • .E-consulta + e-deliberação + e-voto: Bristol, Reykjavík, Paris: É o modelo de OPD que contempla a maior variedade de funcionalidades, nas quais os cidadãos podem enviar propostas, discuti-las e, após o processo de deliberação, escolher dentre as propostas apresentadas e defendidas. A deliberação ocorre por meio de fóruns digitais e chats. A literatura especializada revela que esse modelo, embora seja um dos menos utilizados, é o mais durável, pela credibilidade que recebe, como na experiência de Berlim-Lichtenberg (Sampaio, 2014Sampaio, R. C. (2014). Orçamentos participativos digitais: um mapeamento mundial das experiências já realizadas e suas contribuições para e-participação e e-democracia (Tese de Doutorado). Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA.). Não obstante, um dos processos enquadrados nesse modelo, o de Bristol, denominado “It’s my Bristol”, ainda pode ser considerado piloto, por ter sido realizado apenas uma vez. A partir dessa tipologia, percebe-se que os modelos mais robustos de OPD no que tange às funcionalidades são aqueles que contemplam a capacidade dos participantes intervirem em todas as nuances dos processos participativos: informação, mobilização, realização de propostas, deliberação e voto.

  • .E-mobilização + e-acompanhamento: Porto Alegre e Ipatinga: São processos de orçamento participativo balizados nas etapas presenciais, que instrumentalizam a internet apenas para engajar e mobilizar participantes para as plenárias e para prestação de contas nas fases pós-decisórias, permitindo que os cidadãos acompanhem o andamento das obras votadas. Esses processos de OPD de Porto Alegre e Ipatinga se iniciaram como modelos de e-consulta, mas, com as sucessivas mudanças de gestão, foram convertidos em processos de e-mobilização e e-acompanhamento.

  • .E-consulta + e-deliberação: Hamburgo: O aspecto central desse processo é a apresentação de propostas pelo público e o debate. As propostas avaliadas como mais viáveis são consideradas pelo poder público, mas o processo não envolve uma fase de votação on-line. No caso de Hamburgo, as discussões foram centradas não somente no sentido de definir a verba de investimento, mas, sobretudo, de cortar e redimensionar gastos públicos. Houve, para tanto, o emprego da ferramenta digital de simulador orçamentário.

3.4 Tipos de interatividade

Nas diferentes tipologias interativas adotadas nas plataformas de OPD é possível observar distintos formatos de interação: de um para um, de um para muitos e de muitos para muitos, de forma síncrona ou assíncrona.

A análise da orientação da interação e da capacidade de diálogo entre governo e cidadãos-internautas nas plataformas de OPD possibilitou identificar que Porto Alegre e Ipatinga adotaram um formato de interatividade unidirecional, enquadrado no modelo de feedback, que proporciona participação limitada, na qual não há garantia de que as mensagens enviadas irão gerar respostas. A ferramenta interativa utilizada nesses casos é o e-mail, que faz com que essas plataformas não se resumam ao mero fornecimento de informações de mão única e os usuários dos websites possam assumir o papel ativo de emissores, mas inexistem diálogos bidirecionais entre gestores da plataforma e receptores, tampouco formatos que permitam que os participantes interajam entre si e que suas mensagens influenciem terceiros, como é o caso dos murais e salas de bate-papo. Não obstante, os objetivos prioritários de tais OPD são a divulgação dos processos presenciais e o acompanhamento e monitoramento da execução das obras e serviços decididos nas plenárias. Portanto, a internet é uma ferramenta complementar ao orçamento participativo presencial.

Figura 2
Tipos de interatividade

No caso de Porto Alegre, o sistema viabiliza diferentes tipos de consulta: pelo número de demanda, por ano e organismo encarregado da obra ou serviço, por região, ciclo do orçamento participativo e por questão temática, o que facilita a accountability governamental, a transparência e o controle social sobre o orçamento participativo. Durante o período de 2001 a 2003 foi possível enviar demandas via internet, mas no período analisado tal opção não estava contemplada. O ciclo de 2017 previa novamente a recepção de propostas via internet entre os meses de abril e junho, concomitantemente às reuniões preparatórias presenciais.

O OPD de Ipatinga também incorporava, entre 2001 e 2003, a possibilidade de realização da indicação de demandas pela internet, mas atualmente a estrutura decisória se baseia na participação presencial, sendo a rede eletrônica somente utilizada como ferramenta de fiscalização, por meio da qual o cidadão pode obter informações periodicamente via e-mail, mediante seleções personalizadas no website, combinando uma ou mais categorias entre nome da obra, bairro, região, tipo de obra, status e ano de aprovação. O e-mail é a ferramenta de interação entre o usuário e a prefeitura de Ipatinga e pode ser utilizado para indicar melhorias e cobrar maior eficiência administrativa, caso alguma obra não esteja com seu andamento a contento. A plataforma utiliza, ainda, ferramentas georreferenciadas, que exibem um mapa do local das obras e fotos que retratam seu andamento, além de seu estágio, valor orçado e ano de definição.

Além disso, a análise indicou que o modelo de interatividade mais utilizado nas plataformas de OPD foi o de “resposta controlada”. As experiências de OPD de Amadora, Fortaleza, Nova York, Braga, Madrid e Rosario são enquadradas nesse modelo, pois se permite a participação dos cidadãos, mas o gestor da plataforma mantém um controle significativo sobre o processo.

As ferramentas interativas priorizadas nesse modelo foram as enquetes, a partir das quais os gestores solicitavam aos internautas que escolhessem dentre temas e áreas de investimento pré-definidos. No município de Amadora, por exemplo, os temas para apresentação de propostas foram previamente estabelecidos entre Jardins, Educação, Lazer, Estradas e Outras Infraestruturas, o que restringe as possibilidades de indicação e participação popular. Esse tipo de dinâmica influencia o êxito das experiências de OPD. Essa forma de restrição transparece um interesse dos gestores pelo controle total do agendamento dos temas, o que pode inibir a participação do cidadão, caso as temáticas sociais que o mobilizam não estejam enquadradas nas áreas de investimento pré-definidas unilateralmente pelo governo.

No modelo de OPD de Amadora também foram utilizadas as ferramentas de comentários e de murais, nos quais se publicavam mensagens de modo não sincrônico e controladas por moderadores, que filtravam os comentários dos participantes que seriam publicados. As propostas dos participantes eram filtradas previamente e, ao ser liberadas, podiam influenciar terceiros, por isso, um modelo de interação de três vias, mas que não envolvia debates sincrônicos entre os próprios participantes e no qual os gestores não participavam da discussão, apenas controlavam o processo.

Nesse modelo, as propostas apresentadas pelos cidadãos passam por análise da prefeitura em termos de exequibilidade técnica e financeira, podendo ser recusadas e, geralmente, as propostas não acolhidas não são suficientemente justificadas. A exceção é o município de Amadora, cujas propostas indeferidas são publicadas na plataforma e podem receber alegações no prazo de um dia pelos proponentes por e-mail. Pela análise realizada, os indeferimentos têm sido mantidos, mesmo após a realização de alegações. Outros questionamentos são direcionados ao prazo exíguo para contestação, conforme o exemplo abaixo:

Proposta 45: Construção de um muro à volta da subestação da REFER na Rua de Díli/Av. do Ultramar, Freguesia da Mina de Água Construção de um muro a acompanhar o já existente à volta da subestação da REFER na Rua de Díli/Av. do Ultramar, Freguesia da Mina de Água.

Alegação: Começo por referir que não me parece correto que depois do prazo da fase de alegações ter sido alterado, os proponentes tenham conhecimento das propostas excluídas dia 22 e possam apenas apresentar alegações até dia 23 (sic), tendo a fase de votação início logo a 24 de agosto. Mesmo assim, gostaria de referir o seguinte relativamente à proposta 45. [...] Mais uma vez a justificação da exclusão refere que a propriedade da EDP já nós sabemos e é referido na proposta. Realmente, a obra é da responsabilidade da EDP, mas como esta não a realiza, gostaríamos de contar com o apoio da Câmara, pois é uma construção dentro problema? (sic). Já reuniu com a Empresa para avaliar a intervenção? A EDP não autoriza a construção do muro?...

Resposta à alegação: A justificação para a exclusão se mantém. A área de intervenção é propriedade da EDP (Plataforma do Orçamento Participativo Digital de Amadora).

É plenamente compreensível que as propostas passem por avaliações de viabilidade técnica, mas é a justificativa transparente que propicia uma aceitação do indeferimento e mantém os cidadãos interessados na participação. Esse resultado evidencia que, apesar de serem amplamente enfatizadas justamente as ferramentas interativas da internet, a restrição aos formatos mais avançados de interatividade se mostrou a deficiência mais significativa das plataformas de OPD, o que indica que os gestores públicos ainda vêm-se mostrando desconfiados em relação à interatividade, temendo que a abertura de suas páginas permita a seus oponentes criticá-los, ou que surjam propostas inexequíveis, fazendo-os perder o controle da agenda governamental. Ocorre que os cidadãos estão profundamente céticos em relação à linguagem anódina do gerencialismo tecnocrático que permeia a política contemporânea.

A abertura institucional para a participação da sociedade civil vem-se mostrando permeada por um significativo processo de controle pelos agentes governamentais (Silva, 2012Silva, E. C. (2012). A democratização em questão: a dinâmica e os resultados da participação no orçamento participativo de Araraquara (Tese de Doutorado ). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP.). Vale ressaltar a forma como a literatura temática trata da questão do segredo como um elemento fundamental de poder do Estado, o que se reproduz na opacidade em relação à interferência da comunidade no processo de elaboração das políticas públicas, mesmo em experiências que se supõem pautadas no alargamento da democracia. Norberto Bobbio (2015Bobbio, N. (2015). Democracia e segredo. São Paulo, SP: Ed. Unesp.) chama a atenção para o fato do segredo, ao longo do tempo, estar relacionado à essência do poder. Ao longo da Idade Média, tal fenômeno não era substancialmente questionado, devido ao entendimento que se tinha do poder, algo relacionado à divindade. Com a derrocada dos Estados medievais e o advento do Estado moderno, ainda assim, esse fenômeno não desaparece, ele é incrementado. Nesse novo contexto, marcado pelo domínio do conhecimento técnico (ou especializado), tal segredo passa a ser controlado pela burocracia estatal. Ao tratar da realidade política italiana do final dos anos de 1980, quando da elaboração da obra no idioma original (o italiano), Bobbio (2015) chama a atenção para o fato da democracia não estar cumprindo seu ideal de publicidade dos atos para facilitar o acompanhamento por parte dos cidadãos.

Assim, nesse modelo de resposta controlada, as ferramentas de interação de três vias utilizadas configuraram alguns espaços para expressão de opiniões, postagem de comentários e recolha de informação, mais do que como mecanismos de debate e deliberação sobre propostas políticas.

Não obstante, cinco das experiências de OPD analisadas adotaram o modelo de interatividade de discurso público: Paris, Bristol, Reykjavík, Hamburgo e Belo Horizonte. Nessas experiências, o formato de comunicação adotado foi o de três vias, com a disponibilização de fóruns e salas de bate-papo, onde os participantes tinham possibilidade de criar conteúdo e interagir entre si. Esse tipo de ferramenta interativa da Web 2.0 fornece mecanismos para a deliberação pública (Ferber et al., 2007Ferber, P., Foltz, F., & Pugliese, R. (2007). Cyberdemocracy and online politics: a new model of interactivity. Bulletin of Science Technology & Society, 27(5), 391-400.).

Os fóruns temáticos são importantes para chamar a atenção para temas específicos que mobilizem os cidadãos e, fundamentalmente, para debater assuntos que dizem respeito a agendas de grupos que têm maiores dificuldades para fazer chegar suas preferências ao sistema político (Abreu & Pinho, 2014Abreu, J. C. A., & Pinho, J. A. G. (2014). Sentidos e significados da participação democrática através da internet: uma análise da experiência do orçamento participativo digital. Revista de Administração Pública, 48(4), 821-846.; Coleman & Sampaio, 2016Sampaio, R. C. (2016). E-orçamentos participativos como iniciativas de e-solicitação: uma prospecção dos principais casos e reflexões sobre a e-participação. Revista de Administração Pública, 50(6), 937-958.; Ferreira, 2012Ferreira, D. E. S. (2012). Uma análise comparada do impacto dos usos das novas tecnologias digitais na dinâmica participativa e deliberativa dos orçamentos participativos de Belo Horizonte e Recife (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG.). As plataformas com modelo de interatividade de discurso público possibilitaram aos governos atrair e conhecer as necessidades e opiniões de públicos segmentados. Adotando um formato de discurso público, é possível coletar ideias, relatos e dados dos cidadãos acerca de questões variadas oriundas de realidades geográficas e sociais diversas.

Em Paris foi possível verificar situações nas quais os interesses de grupos comumente excluídos do processo político foram representados, por exemplo, com a proposta vencedora de abrigos para moradores de rua, com a marca de 20.298 votos, à qual foi destinada a quantia de 5 milhões de euros.

No que tange ao formato da deliberação, nas experiências de Reykjavík e Hamburgo se verificou um genuíno debate entre representantes do governo e da população, por meio dos fóruns, com a participação dos gestores nos debates e a interação em três níveis, a troca de mensagens políticas e a reciprocidade discursiva, com possibilidade de interpelação dos agentes públicos por parte dos cidadãos. Nas experiências de Paris, Bristol e Belo Horizonte, a prioridade foram os canais de conversação civil e o debate dos cidadãos entre si, espaços onde o governo não se fazia presente. A forma como a administração integra os cidadãos e processa suas demandas e sugestões assume importância fundamental nas experiências de OPD, tanto no que concerne ao estabelecimento de processos deliberativos e fortalecimento democrático quanto para o sucesso da experiência. Devolutivas do governo são desejáveis e constituem fatores que sinalizam para os cidadãos que eles são levados a sério e têm a oportunidade de influenciar as decisões governamentais (Coleman & Sampaio, 2016Sampaio, R. C. (2016). E-orçamentos participativos como iniciativas de e-solicitação: uma prospecção dos principais casos e reflexões sobre a e-participação. Revista de Administração Pública, 50(6), 937-958.).

No fórum on-line “Better Reykjavík”, os cidadãos tinham a oportunidade de apresentar suas ideias sobre temas relacionados aos serviços e às obras da cidade de Reykjavík. O fórum era aberto para visualização e todos que tinham interesse em participar do debate, apresentar ideias, expressar sua opinião, qualificar argumentos ali apresentados, apoiando-os ou opondo-se a eles, deviam registrar-se. No momento em que um usuário apresentava uma ideia no fórum, ela era automaticamente considerada de propriedade pública dos moradores de Reykjavík e a cidade passava a ter o direito de utilização dessas ideias apresentadas. A proposta original podia ser alterada durante o processo consultivo, o que ocorria no interior das discussões on-line no fórum. Nessa experiência, o sistema de votação era bastante distinto e não funcionava por enquete, como nos demais casos, mas por ferramentas que indicam gostar ou não gostar (like ou dislike) de outras propostas apresentadas em mensagens no fórum, semelhante ao que ocorre no Facebook e no YouTube. Para curtir as propostas, bastava logar-se com a conta de perfil do Facebook, portanto, a usabilidade era muito prática.

Nas experiências de Hamburgo e Reykjavík, os moderadores assumiram papéis de gestor (organizando o fórum em torno de temas, destacando as propostas mais comentadas e indicando interlocutores para cada eixo temático), de mediadores (as propostas foram sistematizadas, gerando um relatório de participação, com as principais propostas e perfis dos participantes) e de árbitros (nesse caso apenas filtrando as mensagens no sentido de evitar confrontos não argumentativos (flames e trolls).

4. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Em primeiro lugar, ao analisar o momento de inserção das ferramentas no ciclo do processo decisório das políticas públicas nas experiências estudadas, foi possível identificar que apenas as experiências de Amadora, Nova York, Madrid e Paris permitiram que o cidadão participasse desse primeiro momento do ciclo das políticas públicas, mas escolhendo dentre os temas pré-agendados pelo governo. Na fase de formulação das políticas públicas, os governos também se mostraram refratários à participação nesse momento específico do ciclo das políticas públicas, relegando essa fase ao aspecto técnico.

Já no processo de tomada de decisão, nosso estudo evidencia que a maioria das experiências se pautou, em termos digitais, pela possibilidade do envio de sugestões de obras pela população e na possibilidade do cidadão participar ativamente da tomada de decisão do processo via votação on-line. Em certos casos, isso significou uma votação exclusivamente on-line como parte de um orçamento participativo puramente digital enquanto em outros se tratou apenas de uma fase de um processo híbrido mais complexo, no qual boa parte do processo participativo se dava presencialmente e apenas a votação ocorreu on-line. Isso também fica evidente quando a pesquisa demonstra que em apenas cinco dos casos havia ferramentas de deliberação e discussão on-line, mostrando que o debate e a negociações sobre as obras não se deu nos ambientes on-line. E, em certos casos, mesmo quando havia a ferramenta on-line para a discussão, não havia evidências de como as municipalidades fariam usos dessas discussões ou sequer se as levariam em conta, ressaltando o excessivo controle do poder público sobre o processo decisório, mesmo havendo o esforço da realização de um OPD. Cabe destacar que os modelos que seguiam o exemplo paradigmático de Porto Alegre priorizavam o orçamento participativo presencial, por isso não disponibilizavam ferramentas para uma participação digital de modo mais robusto. Esse aspecto será aprofundado adiante.

No que tange à fase de implementação das políticas, as experiências de OPD analisadas também deixaram a desejar, o que evidencia um descompasso entre demandas políticas e resultados na forma de políticas públicas. Fechando a análise da inserção das ferramentas digitais no processo decisório das políticas públicas, identificou-se que nenhum dos governos das experiências analisadas se dispôs a permitir que os cidadãos avaliassem os resultados da participação digital, seus resultados e possíveis indicadores.

Vale destacar que nossos resultados evidenciam combinações intrigantes. A maior parte dos OPD analisados deu a chance dos participantes realizarem intervenções na fase de tomada de decisão das políticas públicas, porém, sob um modelo de resposta controlada, no qual não havia uma efetiva interação entre cidadãos e governos. Isso implica dizer que se tratou de uma e-participação pouco baseada em debates e, portanto, geralmente reduzida ao ato de votar em certas obras.

No que tange aos modelos de interatividade, foi possível constatar que a maioria dos casos foi considerada uma interatividade de três vias. O formato de interatividade tão elementar de Ipatinga e Porto Alegre, o de feedback, merece uma análise específica. Embora a literatura temática de e-participação aponte na direção de explicar esses casos afirmando que se tratam de OPD mais baseados em quesitos informacionais do que participativos (Sampaio & Peixoto, 2013Sampaio, R. C., & Peixoto, T. (2013). OP e tecnologia: falsos dilemas e verdadeiras complexidades. In N. Dias (Org.), Esperança democrática: 25 anos de orçamentos participativos no mundo (pp. 401-414). São Brás de Alportel, Portugal: Associação In Loco.), uma vez que priorizavam dar informações on-line a respeito do processo presencial (e assim fortalecê-lo), outras variáveis explicativas se originam de nossa investigação e é a respeito delas que passamos a discorrer.

Com base em nosso estudo, podemos explicar o uso das ferramentas e diferentes modelos de interatividade com base na arquitetura de participação do modelo de orçamento participativo adotado. A partir de nossa investigação empírica de casos de diversos continentes, identificamos três modelos de OPD. O primeiro modelo, OPD de ativismo de orçamento participativo, surge a partir do modelo paradigmático do orçamento participativo presencial desenvolvido em Porto Alegre a partir de 1989, que tem por características possuir fins redistributivos, de partilha de poder e definição conjunta com a população da aplicação da verba de investimento em termos de obras e políticas públicas. Essa experiência, amplamente estudada pela literatura, torna-se referência mundial ao ser premiada com o Habitat II da Organização das Nações Unidas (ONU). Em 2001, a experiência presencial é complementada pelo OPD com a finalidade de incorporar segmentos médios da sociedade, uma vez que tais estratos não participavam das reuniões presenciais. Essa experiência inspira outras que passam a ser desenvolvidas no Brasil e mundo afora. Da nossa amostra de casos, essa experiência inspira os modelos de OPD de Ipatinga (de 2001), Rosário (de 2002Stromer-Galley, J., & Foot, K. A. (2002). Citizen perceptions of online interactivity and implications for political campaign communication. Journal of Computer Mediated Communication, 8(1).), Amadora (de 2009), Belo Horizonte (de 2013), Braga (de 2014) e Fortaleza (de 2015).

Com o passar dos anos, e por vários motivos, a literatura aponta (Azevedo, 2019Azevedo, U. F. (2019). Análise do declínio do número de implementações e do aumento do abandono das experiências de orçamento participativo no Brasil (2004-2016) (Dissertação de Mestrado). Universidade de Campinas, Campinas, SP.; Bezerra, 2017Bezerra, C. P. (2017, maio). Por que o Orçamento Participativo entrou em declínio no Brasil? Mudanças na legislação fiscal e seu impacto sobre a estratégia partidária. In Anais do 7o Seminário Discente da Pós-Graduação em Ciência Política da USP. São Paulo, SP.; Fedozzi & Martins, 2012Fedozzi, L. J., & Martins, A. L. (2012, outubro). Novas instituições participativas, processos de elitização e o orçamento participativo de Porto Alegre. In Anais do 35o Encontro Anual da Anpocs. Caxambu, MG.), a experiência de Porto Alegre sofre uma inflexão, um desgaste. O continente europeu, que até então importava o modelo de Porto Alegre, movimento que Giovanni Allegretti denomina “o retorno das caravelas”, passa a desenvolver modelos próprios (Sintomer, Herzberg, Röcke, & Allegretti, 2012Sintomer, Y., Herzberg, C., Röcke, A., & Allegretti, G.(2012). Transnational models of citizen participation: the case of participatory budgeting. Journal of Public Deliberation, 8(2), 1-32.). O primeiro a ser desenvolvido no continente europeu é o modelo de OPD de modernização da gestão pública.

O OPD de modernização da gestão pública se baseia nos preceitos da Nova Gestão Pública (NGP) e tem outra lógica de participação e distintas prioridades (Aberbach & Rockman, 1999Aberbach, J., & Rockman, B. (1999). Reinventar el gobierno: problemas y perspectivas. Gestión y Análisis de Políticas Públicas, 15, 3-17.; Aucoin, 1990Aucoin, P. (1990). Administrative reform in public management: paradigms, principles, paradoxes and pendulums. Governance: International Journal of Policy and Administration, 3(2), 115-137.; Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo [CLAD], 1999Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo. (1999). Una nueva gestión pública para América Latina. Revista del CLAD Reforma y Democracia, 13.; Hood, 1991Hood, C. (1991). A public management for all seasons. Public Administration, 69(1), 3-19.; Ramió Matas, 2001Ramió Matas, C. (2001). El problema de la implantación de la nueva gestión pública en las administraciones públicas latinas: modelo de Estado y cultura institucional. Revista del CLAD Reforma y Democracia, 21.). O objetivo primordial é modernizar a gestão pública seguindo preceitos ultraliberais, a partir da incorporação das inovações do mercado à política, aí incluído o uso das TIC. Esse modelo não tem fins redistributivos e o uso da ferramenta se torna um fim em si, já que o intuito maior não é a participação para definição da verba de investimento e os efeitos redistributivos que esse processo gera ao incluir os segmentos mais vulneráveis, mas o aspecto comunicativo, o que pode aumentar a legitimidade dos governos e, ao mesmo tempo, permitir que disponham de valiosos termômetros da opinião pública. Deve-se enfatizar que os países europeus têm um índice de exclusão digital bem menor em comparação aos países da América Latina, o que torna esse modelo mais estratégico para aquele contexto2 2 Indicadores de acesso à internet por países de acordo com os casos analisados: Alemanha = 92%; França = 88%; Espanha = 86%; Islândia = 99%; Portugal = 75%; Reino Unido = 95% (The Economist; Intelligence Unit, 2019). . Dentro desse modelo se enquadram as experiências de Hamburgo (de 2006) e Bristol (de 2010), nas quais o aspecto central foi a apresentação de propostas pelo público e o debate, onde somente aquelas avaliadas como mais viáveis eram consideradas pelo poder público, mas o processo não envolvia uma fase de votação on-line. No caso de Hamburgo, as discussões se centraram não somente no sentido de definir a verba de investimento, mas, sobretudo, de cortar, enxugar a máquina e redimensionar gastos públicos. Houve, para tanto, o emprego da ferramenta digital de simulador orçamentário.

Além desse modelo, o continente europeu cria um terceiro modelo, o OPD de ativismo digital. Oriundo de um movimento que discutia a importância da internet, dos softwares livres e amplo uso das ferramentas digitais, desenvolve-se a experiência de Reykjavík. Como projeto de ativistas digitais, surgiu em 2011, após uma forte crise econômica na Islândia. Mais adiante, o governo da cidade o incorporou (em 2012). Esse modelo é premiado pela ONU, o que lhe rende ampla publicidade e passa a inspirar outras experiências de OPD, agora exclusivamente projetadas com uma arquitetura para a participação on-line e não como um complemento à participação presencial, como era o modelo de Porto Alegre. Ao surgir, esse modelo influencia experiências de OPD do continente americano, como a de Nova York, criada em 2011, não na cidade toda, apenas em alguns distritos; não obstante, esse modelo passa a funcionar como um híbrido dos modelos de ativismo de orçamento participativo com ativismo digital. O modelo de Reykjavík vai tomando força no continente europeu e influenciou o desenvolvimento do OPD de Paris, em 2014, que toma por modelo essa experiência e nem menciona o modelo brasileiro de Porto Alegre, e também do OPD de Madrid, que passa a ser desenvolvido a partir de 2015, e desemboca na plataforma Consul, sendo premiada pela ONU. A partir de então, o próprio modelo de Porto Alegre passou a olhar para essa experiência para se recuperar de seu processo de desgaste, mas barra na ausência de expertise técnica para levar a bom termo a experiência sob o ponto de vista das ferramentas digitais, o que alguns autores já relataram analisando alguns modelos (Abreu & Pinho, 2014Abreu, J. C. A., & Pinho, J. A. G. (2014). Sentidos e significados da participação democrática através da internet: uma análise da experiência do orçamento participativo digital. Revista de Administração Pública, 48(4), 821-846.; Coleman & Sampaio, 2016Sampaio, R. C. (2016). E-orçamentos participativos como iniciativas de e-solicitação: uma prospecção dos principais casos e reflexões sobre a e-participação. Revista de Administração Pública, 50(6), 937-958.; Miori & Russo, 2011Miori, V., & Russo, D. (2011). Integrating online and traditional involvement in participatory budgeting. Electronic Journal of e-Government, 9(1), 41-57.; Nitzsche et al., 2012Nitzsche, P., Pistoia, A., & Elsäßer, M. (2012). Development of an evaluation tool for participative e-government services: a case study of electronic participatory budgeting projects in Germany. Revista Administraţie Şi Management Public, 18, 6-25.) que há, ainda, pouca expertise e criatividade nas atividades participativas de OPD em termos de funcionalidade de ferramentas e na interatividade entre gestores públicos, políticos e cidadãos. Para além desses aspectos, com base na análise desses modelos de orçamento participativo que balizam a experiência digital, esta investigação nos leva a outras explicações, que serão desenvolvidas no tópico conclusivo deste artigo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo avaliou plataformas on-line de OPD em treze diferentes municipalidades espalhadas por diversos continentes com o objetivo de analisar a apropriação das TIC nos processos de participação cidadã em discussões orçamentárias e os diferentes modelos de interatividade apresentados. Para tanto, foram estudados: a) o momento de inserção das ferramentas no ciclo do processo decisório das políticas públicas; b) a disposição de ferramentas interativas; e c) as funcionalidades de tais ferramentas no processo participativo.

Ao analisar o momento de inserção das ferramentas no ciclo do processo decisório das políticas públicas foi possível identificar que os governos não se mostraram dispostos a ser agendados pela população a partir das ferramentas do OPD. Já a fase de formulação das políticas públicas ficou subsumida aos códigos da administração tecnocrática; ocorre que, como bem coloca Coleman (2017Coleman, S. (2017). Can the internet strengthen democracy? Cambridge, England: Polity Press.), os cidadãos estão profundamente céticos em relação à linguagem anódina do gerencialismo tecnocrático que permeia a política contemporânea. No que se refere ao processo de tomada de decisão, tivemos diferentes modelos, inclusive combinações, gerando formatos híbridos. Em relação à fase de implementação das políticas, nosso estudo evidenciou uma tensão fundamental no cerne da política democrática entre inputs e outputs. Como afirma Coleman (2017), um sistema político que encoraja a participação pública no processo político, mas ignora essa contribuição quando se trata de produzir produtos, carece de legitimidade democrática. Por fim, a análise da inserção das ferramentas digitais no processo decisório das políticas públicas identificou que a fase de avaliação foi completamente desconsiderada, ou seja, nenhum dos governos se dispôs a ser avaliado.

Nossos resultados apontaram combinações intrigantes, pois OPD evidenciam que é possível haver casos em que os instrumentos digitais não favorecem o nível mais sofisticado de interação, mas, ainda assim, há grande empoderamento dos participantes para tomar as decisões, o que evidencia um grande descompasso entre o técnico e o político. Esse aspecto nos leva ao segundo objetivo de nossa investigação, que foi avaliar o modelo de interatividade, tendo-se verificado formas mais simples e controladas de interação até níveis mais sofisticados de debate público entre cidadãos e gestores públicos, porém, a maioria dos casos foi considerada uma interatividade de 3 vias, nas quais cidadãos e agentes públicos e políticos puderam se relacionar. Das 13 municipalidades estudadas, 6 foram classificadas de “resposta controlada” e 5 como “discurso público”, o nível mais alto de interação.

Um aspecto comum a todas as experiências foi o controle. Algumas mais, outras menos, todas as experiências buscaram permitir que o governo controlasse o processo de participação. A literatura nos mostra que a interação on-line pode expor candidatos, políticos e/ou governantes a uma forma de escrutínio geralmente indesejada (Stromer-Galley, 2013Stromer-Galley, J. (2013). Interação on-line e por que os candidatos a evitam. In F. P. A. Marques, R. C. Sampaio, & C. Aggio (Orgs.), Do clique à urna: internet, redes sociais e eleições no Brasil (Vol. 1, pp. 29-62). Salvador, BA: Ed. UFBA.). No entanto, cabe inserir nessa equação que o fato de tornar os mecanismos mais transparentes pode implicar não apenas perder o controle, mas, fundamentalmente, perder (ou diminuir) o poder que, às vezes, utiliza-se de mecanismos que tornam processos e redes invisíveis e, por isso, coniventes com atos obscuros e nem sempre lícitos; por isso o interesse na manutenção do “segredo” e da opacidade dos processos de participação cidadã (Bobbio, 2015Bobbio, N. (2015). Democracia e segredo. São Paulo, SP: Ed. Unesp.). Uma instituição transparente, ao contrário de uma opaca, “é aquela em que não se veda o olhar, não há acessos blindados ou governos invisíveis, arcanos e mistérios, razões que não podem ser compartilhadas (as velhas razões de Estado) (Gomes, Amorim, & Almada, 2018Gomes, W., Amorim, P. K. D. F., & Almada, M. P. (2018). Novos desafios para a ideia de transparência pública. E-Compós, 21(2).). Ao analisar as experiências institucionais de participação da comunidade, como as de OPD, verifica-se que tanto a abertura quanto o controle são faces da mesma moeda. Os desenhos institucionais que criam as possibilidades de maior transparência das ações governamentais são os mesmos que mantêm o foco no controle institucional sobre o processo participativo.

Esses aspectos teóricos ajudam a explicar que 2 modelos foram enquadrados em nível de interação de feedback, 6 foram enquadrados em resposta controlada e 5 se enquadraram em discurso público, e mesmos nesses casos onde se verificou a intenção de envolver os cidadãos, procurou-se estabelecer os termos desse envolvimento. Portanto, verificou-se uma e-retórica por parte dos governos, mas, na prática, prevaleceu um éthos de institucionalismo centralizado, o que representa uma limitação no que se refere à revitalização da democracia, uma vez que as instituições representativas são distantes e ininteligíveis para o cidadão comum, e experiências robustas de OPD podem fazê-lo sentir-se parte integrante do processo democrático e, consequentemente, aumentar a legitimidade da democracia (Coleman, 2017Coleman, S. (2017). Can the internet strengthen democracy? Cambridge, England: Polity Press.).

A partir de nossa investigação empírica de casos de diversos continentes, identificamos três grandes modelos de OPD: a) OPD de ativismo de orçamento participativo; b) OPD de modernização da gestão pública; e c) OPD de ativismo digital. Pela análise dos dados e dos contextos (Mitozo & Marques, 2019Mitozo, I., & Marques, F. (2019). Context matters! Looking beyond platform structure to understand citizen deliberation on Brazil’s Portal e-Democracia. Policy & Internet, 11, 1-21.), a variável explicativa que emergiu para explicar os diferentes modelos de interatividade verificados foi a da arquitetura de participação do modelo de orçamento participativo adotado, que surgiu a partir da contextualização e historicização de nossos objetos de pesquisa, bem como de sua classificação em modelos que nos permitissem não apenas compreender o invólucro (as ferramentas), mas o conteúdo (o modelo de participação), fazendo-nos sair da aparência e adentrar a essência da questão. Portanto, para explicar o uso das ferramentas e o modelo de interatividade, investigamos o modelo de OPD, o modelo de orçamento participativo e o modelo de participação e democracia nos quais se sustentavam. Desse modo, encontramos outra explicação para os diferentes modelos de interatividade no OPD, além da ausência de expertise técnica e da priorização de quesitos informacionais em detrimento dos participativos, que são apontados pela literatura temática. Nossos achados de pesquisa nos levam a enfatizar que, por trás desses diferentes modelos de OPD, há diferentes modelos de orçamento participativo, distintos formatos de participação e de democracia defendidos e, assim, o que cada modelo prioriza: se os fins redistributivos, a partilha de poder, a modernização da gestão pública, a incorporação das inovações do mercado à política, os aspectos comunicativos, a legitimação de governos e políticos ou o ativismo e a participação digital. Isso explica porque determinada experiência faz uso de algumas ferramentas e de outras não, insere a população em determinados ciclos das políticas públicas e em outros não.

Concluímos, portanto, que não convém associar o potencial das novas tecnologias com a revitalização das instituições e práticas democráticas, pois as ferramentas não são causa da mudança política, mas fonte potencializadora, pois estão sujeitas a diversos tipos de uso e para distintas finalidades, além do mais, a tecnologia se insere em contextos sociais que podem tornar seus vários potenciais não realizáveis. Assim, os modelos de participação que sustentam a lógica do uso importam mais do que as ferramentas em si.

Com esta pesquisa, não buscamos esgotar as explicações para o fenômeno da participação digital e as experiências em apreço, pois se trata de um campo de estudos ainda recente, mas contribuir com um debate que merece ser aprofundado na área do saber na qual se insere, mas partindo do reconhecimento de uma interação complexa da política com a técnica.

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    Semelhante esforço foi realizado por Sampaio (2014), porém, o autor faz uma prospecção geral de casos de OPD, não apresentando análises mais aprofundadas de cada processo. Nesse sentido, nosso estudo se assemelha mais ao de Nitzsche et al. (2012), que avaliaram a utilização de ferramentas Web 2.0 em vários OPD alemães.
  • 2
    Indicadores de acesso à internet por países de acordo com os casos analisados: Alemanha = 92%; França = 88%; Espanha = 86%; Islândia = 99%; Portugal = 75%; Reino Unido = 95% (The Economist; Intelligence Unit, 2019The Economist; Intelligence Unit(2019). The Inclusive Internet Index 2019. Recuperado de https://theinclusiveinternet.eiu.com/assets/external/downloads/3i-executive-summary.pdf
    https://theinclusiveinternet.eiu.com/ass...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2018
  • Aceito
    14 Ago 2019
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