Acessibilidade / Reportar erro

O uso do ciberespaço pela administração pública na pandemia da COVID-19: diagnósticos e vulnerabilidades

El uso del ciberespacio por la administración pública en la pandemia de COVID-19: diagnóstico y vulnerabilidades

Resumo

A pandemia da COVID-19, por demandar isolamento social, impõe aproximação e coordenação de esforços de entes públicos e privados por intermédio da Internet e dos serviços digitais. O artigo analisa o uso e a operacionalização do ciberespaço pela Administração Pública no combate ao SARS-CoV-2 e apresenta um diagnóstico das vulnerabilidades e desafios referentes a essa crescente operacionalização. A administração pública passou a operacionalizar o ciberespaço com mais afinco a partir da década de 1990, com o e-government. Estratégias de coordenação (inter)governamental impostas pela atual conjuntura seriam impossíveis sem a intensificação da operacionalização do ciberespaço pelo aparato administrativo público, que transpõe para o domínio digital práticas e ações pouco usuais ou mesmo inéditas. Dada sua artificialidade, o ciberespaço só pode ser operacionalizado por detentores de meios para tal. A “democratização” cibernética esbarra na exclusão digital. O atual isolamento social evidencia desafios técnicos e socioeconômicos decorrentes da transposição do aparato de administração pública para o ciberespaço.

Palavras-chave:
COVID-19; administração; ciberespaço; e-government; exclusão digital

Resumen

Por exigir aislamiento social, la pandemia de COVID-19 impone la aproximación y coordinación de esfuerzos de las entidades públicas y privadas por medio de Internet y de los servicios digitales. El artículo analiza el uso y operacional actual del ciberespacio por parte de la Administración Pública en la lucha contra el virus SARS-CoV-2 y presenta un diagnóstico de las vulnerabilidades y desafíos relacionados con esta creciente utilización operacional. La administración pública comenzó a usar el ciberespacio con mayor ahínco desde la década de 1990, momento en que surgió el e-government. Las estrategias de coordinación (inter)gubernamental impuestas por la situación actual serían imposibles sin la intensificación de la utilización operacional del ciberespacio por parte del aparato administrativo público, que transpone al dominio digital prácticas y acciones poco usuales o inéditas. Dada su artificialidad, el ciberespacio solo puede ser operado por quienes tienen los medios para hacerlo. La “democratización” cibernética choca con la exclusión digital. El aislamiento social actual destaca los desafíos técnicos y socioeconómicos derivados de la transposición del aparato de la administración pública al ciberespacio.

Palabras clave:
COVID-19; administración; ciberespacio; e-government; exclusión digital

Abstract

The COVID-19 pandemic, while demanding social distancing, imposes approximation and coordination of efforts by public and private entities through the Internet and digital services. This article analyzes the use and operationalization of cyberspace by the public administration in the fight against SARS-CoV-2. It presents a diagnosis of the vulnerabilities and challenges related to this growing operationalization. The public administration began to operationalize cyberspace more vigorously from the 1990s, with e-government. Inter-governmental and governmental coordination strategies imposed by the current situation would be impossible without the intensification of the operationalization of cyberspace by the public administration apparatus, which transposes unusual and even unprecedented practices and actions to the digital domain. Given its artificiality, cyberspace can only be operated by those with the means to do so. Cyber-democratization comes up against the digital divide. The current need for social distancing highlights technical and socio-economic challenges arising from the transposition of the public administration apparatus into cyberspace.

Keywords:
COVID-19; administration; cyberspace; e-government

1. INTRODUÇÃO

Tal como épocas de guerra e necessidade impulsionam inovações (Freeman & Soete, 2008Freeman, C., & Soete, L. (2008). A Economia da inovação industrial. Campinas, SP: Editora da UNICAMP.), o isolamento social imposto pela COVID-19 traz à tona soluções e plataformas virtuais para auxiliar na digitalização da vida social, impulsionadas pela retórica política de “Guerra à COVID-19” (Bennet & Berenson, 2020Bennet, B., & Berenson, T. (2020, 19 de março). As Coronavirus Spreads, Trump Refashions Himself as a Wartime President. Time. Recuperado de https://time.com/5806657/donald-trump-coronavirus-war-china/
https://time.com/5806657/donald-trump-co...
; Nienaber & Carrel, 2020Nienaber, M., & Carrel, P. (2020, 18 de março). Merkel tells Germans: Fighting virus demands war-time solidarity. Reuters. Recuperado dehttps://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-germany/merkel-tells-germans-fighting-virus-demands-war-time-solidarity-idUSKBN2153GX
https://www.reuters.com/article/us-healt...
). A necessidade de transpor o aparato administrativo para o ciberespaço origina vulnerabilidades e desafios decorrentes das dinâmicas e lógicas do domínio cibernético que afetam eventuais estratégias no combate ao SARS-CoV-2. Com base em casos paradigmáticos, o artigo investiga implicações administrativas da transposição do aparato estatal para o ciberespaço, prática iniciada na década de 1990 que ganhou novos contornos com o advento da atual pandemia. O texto apresenta um diagnóstico das vulnerabilidades e desafios referentes à crescente operacionalização do ciberespaço pela administração pública.

Originalmente, o artigo demonstra que a exclusão digital deve ser considerada uma vulnerabilidade do ciberespaço para a elaboração de políticas públicas, ao lado de problemas técnicos tradicionais. O trabalho aponta que a COVID-19 potencializou os efeitos da exclusão digital e que esta não foi devidamente considerada pelas autoridades brasileiras na elaboração de políticas para mitigar os efeitos da pandemia.

Estruturalmente, o artigo elucida a transposição do aparato administrativo para o domínio cibernético e o histórico de e-government. Em seguida, são esmiuçados os desafios decorrentes da natureza do ciberespaço referentes à virtualização da administração governamental. Por fim, implicações de tal transposição são analisadas no tocante às vulnerabilidades técnicas e socioeconômicas, tendo como foco ações desencadeadas pelo novo coronavírus.

2. O MEIO TÉCNICO-CIENTÍFICO-INFORMACIONAL E O "E-GOVERNMENT"

A virtualização administrativa é realizada mediante o arcabouço técnico-científico-informacional dos processos de globalização que, consoante Santos (2009)Santos, M. (2009). A Natureza do Espaço (4a ed.). São Paulo, SP: Edusp., culminam no ciberespaço. Este é aqui entendido como domínio de interação humana, artificial, dotado de peculiaridades únicas (Cohen, 2007Cohen, J. E. (2007). Cyberspace as/and space. Columbia Law Review, 107(1), 210-256.; Rattray, 2009Rattray, G. J. (2009). An environmental approach to understanding cyberpower. In F. D. Kramer, S. H. Starr, & L. K. Wentz(Eds.), Cyberpower and National Security (Chap. 10, pp. 253-274). Washington, DC: National Defense University Press .; Kuehl, 2009Kuehl, D. T. (2009). From Cyberspace to Cyberpower: Defining the Problem. Washington, DC: National Defense University Press.; Medeiros, 2019Medeiros, B . (2019). Ciberespaço e Relações Internacionais: Rumo a Construção de um novo Paradigma? (Dissertação de Mestrado). Instituto Meira Mattos da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, Rio de Janeiro, RJ. Recuperado de http://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789/4175/1/MO%205928.pdf
http://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/12...
), desenvolvido mediante o interligamento de camadas físicas (pessoas e hardware) com camadas digitais (software e informações) (Libicki, 2009Libicki, M. C. (2009). Cyberdeterrence and cyberwar. Santa Monica, CA: Rand Corporation.; Ventre, 2012Ventre, D. (2012). Ciberguerra. In Academia General Militar. In La Academia General Militar, & Universidad de Zaragoza (Eds.), Seguridad global y potencias emergentes en un mundo multipolar. Madrid, España: Autor. Recuperado de https://publicaciones.defensa.gob.es/seguridad-global-y-potencias-emergentes-en-un-mundo-multipolar-4267.html
https://publicaciones.defensa.gob.es/seg...
).

Dada sua artificialidade, o ciberespaço só existe mediante sua operacionalização por indivíduos e instituições. Como o acesso à tecnologia é fator limitante para o ciberespaço, a assimetria desse acesso acaba por aumentar disparidades socioeconômicas (Ruediger, 2003Ruediger, M. A. (2003). Governança democrática na era da informação. Revista de Administração Pública, 37(6), 1257-1280.).

A manifestação mais evidente do ciberespaço é a Internet. Esta foi concebida durante a Guerra Fria pela administração pública estadunidense como uma rede de computadores interligados entre universidades e centros de pesquisa que se estendeu ao setor privado, originando o universo conhecido atualmente (Castells, 2003Castells, M. (2003). A Galáxia da Internet. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.). Com a popularização da Internet nos anos 1990, parcelas da administração pública foram progressivamente digitalizadas, no intuito de utilizar as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) como vetores de eficiência e agilidade para os fluxos de informação entre governos e seus cidadãos (Chadwick & May, 2003Chadwick, A., & May, C. (2003, 21 de março). Interaction between states and citizens in the age of the internet: “e-government” in the United States, Britain, and the European Union. Governance, 16(2), 271-300.).

Considerado no início do século XXI uma mera extensão da administração pública, com potenciais benefícios de velocidade, acessibilidade e conveniência (Jaeger, 2002Jaeger, P. T. (2002). Constitutional principles and e-government: An opinion about possible effects of federalism and the separation of powers on e-government policies. Government Information Quarterly, 19(4), 357-368.), as visões mais recentes vislumbram o e-government como a combinação entre TICs e o aparato público administrativo, com repercussões para áreas que englobam melhorias de serviços públicos, arcabouços políticos, alta qualidade e eficiência de operações governamentais, engajamento civil em processos democráticos e reformas institucionais (Dawes, 2008Dawes, S. S. (2008). The evolution and continuing challenges of e-governance. Public Administration Review, 68(s1), s86-s102.; Choi & Chandler, 2019Choi, T., & Chandler, S. M. (2020, janeiro). Knowledge vacuum: An organizational learning dynamic of how e-government innovations fail. Government Information Quarterly, 37(1). Recuperado dehttps://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0740624X17301296
https://www.sciencedirect.com/science/ar...
).

Processos de e-government consistem na capitalização das peculiaridades do ciberespaço pela administração pública. Isto é, a utilização da desterritorialização e interconexão do ciberespaço (Medeiros, 2019Medeiros, B . (2019). Ciberespaço e Relações Internacionais: Rumo a Construção de um novo Paradigma? (Dissertação de Mestrado). Instituto Meira Mattos da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, Rio de Janeiro, RJ. Recuperado de http://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789/4175/1/MO%205928.pdf
http://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/12...
) para alcançar parcelas conectadas da sociedade, ao tempo em que a velocidade computacional e das conexões agilizam processos administrativos. Efetivamente, o e-government pode ser caracterizado como facilitador das relações entre Estado e sociedade (Ruediger, 2003Ruediger, M. A. (2003). Governança democrática na era da informação. Revista de Administração Pública, 37(6), 1257-1280.), mediante a inovação, racionalização e adoção de modelos de gestão que priorizem a disponibilização de informações e serviços para os cidadãos. Simultaneamente, o governo eletrônico abre a administração pública para a participação e controle social e estimula o exercício da cidadania (Rampelotto et al., 2015Rampelotto, A., Löbler, M. L., & Visentini, M. S. (2015). Avaliação do sítio da Receita Federal do Brasil como medida da efetividade do governo eletrônico para o cidadão. Revista de Administração Pública, 49(4), 959-984.), em conformidade com o princípio constitucional brasileiro da publicidade, previsto no Artigo 37, caput, da Constituição Federal (1988Nienaber, M., & Carrel, P. (2020, 18 de março). Merkel tells Germans: Fighting virus demands war-time solidarity. Reuters. Recuperado dehttps://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-germany/merkel-tells-germans-fighting-virus-demands-war-time-solidarity-idUSKBN2153GX
https://www.reuters.com/article/us-healt...
), e elucidado por Oliveira (1996)Oliveira, F. (1996). A Administração Pública na Constituição de 1988 (2ª Parte). Revista De Direito Administrativo, 206, 43-87. Recuperado dehttp://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/46856/45829
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/inde...
.

Por demandar meios para sua operacionalização, como dispositivos eletrônicos e redes de infraestrutura, o e-government tem potencial excludente, contrário à universalidade intrínseca do bem público. Governos costumam recorrer a métodos mistos de processos online e presenciais para mitigar a exclusão digital (Sampaio, 2016Sampaio, R. C. (2016). e-Orçamentos Participativos como iniciativas de e-solicitação: uma prospecção dos principais casos e reflexões sobre a e-Participação. Revista de Administração Pública, 50(6), 937-958.).

A preocupação com a inclusão digital, de certa forma, é refletida no Brasil pela mudança paradigmática do termo “governo eletrônico”, que se refere à informatização de processos internos à administração, para o termo “governo digital”, “cujo foco têm como centro a relação com a sociedade (visão do cidadão), a fim de tornar-se mais simples, mais acessível e mais eficiente na oferta de serviços ao cidadão por meio das tecnologias digitais” (Governo Digital, 2020Governo Digitai. (2020).Do Eletrônico ao Digital. Recuperado dehttps://www.gov.br/governodigital/pt-br/estrategia-de-governanca-digital/do-eletronico-ao-digital
https://www.gov.br/governodigital/pt-br/...
).

A realidade imposta pela COVID-19 intensifica a operacionalização do ciberespaço pelo aparato administrativo, demandando que funcionários trabalhem remotamente (Hern, 2020Hern, A. (2020, 13 de março). COVID-19 could cause permanent shift towards home working. The Guardian. Recuperado de https://www.theguardian.com/technology/2020/mar/13/covid-19-could-cause-permanent-shift-towards-home-working
https://www.theguardian.com/technology/2...
), bancos priorizem serviços digitais (Almeida, 2020Almeida, M. (2020, 24 de março). Bancos restringem atendimento e têm horários diferenciados. EXAME. Recuperado de https://exame.abril.com.br/seu-dinheiro/bancos-restringem-atendimento-e-tem-horarios-diferenciados/
https://exame.abril.com.br/seu-dinheiro/...
), lojas adaptem-se a modelos de compras online (Meyersohn, 2020Meyersohn, N. (2020, 19 de março). Coronavirus will change the grocery industry forever. CNN Business. Recuperado de https://edition.cnn.com/2020/03/19/business/grocery-shopping-online-coronavirus/index.html
https://edition.cnn.com/2020/03/19/busin...
) e a educação presencial seja modificada para continuar à distância (Star, 2020Star, M. (2020, 20 de março). Online Education Becomes Teacher’s Pet In COVID-19 Crisis. Forbes. Recuperado de https://www.forbes.com/sites/mergermarket/2020/03/20/online-education-becomes-teachers-pet-in-covid-19-crisis/#46c07aec1aa1
https://www.forbes.com/sites/mergermarke...
). Recai sobre o aparato governamental a responsabilidade de aprofundar medidas de e-government e adaptar suas comunicações e práticas para o ambiente virtual, em respeito às diferenças socioeconômicas vigentes. Contudo, a inserção social no ciberespaço é passível de exploração por uma miríade de atores capazes de operacionalizar as lógicas e peculiaridades do universo digital segundo agendas particulares.

3. A OPERACIONALIZAÇÃO DO CIBERESPAÇO, VULNERABILIDADES TÉCNICAS E DESAFIOS

Diante da digitalização do aparato administrativo e intensificação do e-government, a conservação dos arcabouços políticos e da eficiência de operações governamentais destacam-se como pontos focais para a administração pública. A manutenção das comunicações e serviços governamentais no ciberespaço é imperativa no contexto atual. Contudo, conforme a sociedade hodierna recorre ao ciberespaço, este, além de agravar diferenças sociais, torna-se vetor de disseminação de desinformação e ataques criminosos (Batista et al., 2020Batista, E., Jr., Medeiros, B., Rocha, H., & Goldoni, L. (2020). Vetores Cibernéticos da Pandemia de Covid-19. Rio de Janeiro, RJ: Observatório Militar da Praia Vermelha. Recuperado de http://ompv.eceme.eb.mil.br/masterpage_assunto.php?id=194
http://ompv.eceme.eb.mil.br/masterpage_a...
).

Parte das ações governamentais no atual cenário pandêmico volta-se para o combate à “infodemia”, isto é, a proliferação de informações falsas a respeito do SARS-CoV-2 por redes sociais (Cinelli et al., 2020Cinelli, M., Quattrociocchi, W., Galeazzi, A., Valensise, C.M., Brugnoli, E., Schmidt, A.L., Zola, P., Zollo, F., & Scala, A. (2020). The COVID-19 Social Media Infodemic.ArXiv, abs/2003.05004 v1, 1-18.). A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), por exemplo, teve que desmentir informações falsamente atribuídas à entidade (Fiocruz, 2020Fundação Oswaldo Cruz. (2019, 17 de março) Fiocruz esclarece informações falsas. Recuperado de https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocruz-esclarece-informacoes-falsas
https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocru...
).

Uma das formas de disseminação de notícias falsas e de ataque cibernético é o envio de links maliciosos por e-mail ou aplicativos de comunicação. No Brasil, links e sites indevidamente atribuídos às autoridades de saúde dão margem a golpes, incentivando o download de arquivos que supostamente conteriam dados sobre o SARS-CoV-2 (Mazzi, 2020Mazzi, C. (2020, 30 de março). Como reconhecer e fugir dos golpes na internet sobre coronavírus. O Globo. Recuperado de https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus-servico/como-reconhecer-fugir-dos-golpes-na-internet-sobre-coronavirus-24337658
https://oglobo.globo.com/sociedade/coron...
). Após abrir o link ou o arquivo enviado, o dispositivo era infectado. Com isso, o atacante poderia obter diversos dados, como os bancários (Kaspersky, 2020Kaspersky (2020, 13 de fevereiro). Coronavírus chega ao Brasil: Kaspersky identifica disseminação de malware usando a epidemia como isca. Recuperado de https://www.kaspersky.com.br/about/press-releases/2020_coronavirus-chega-ao-brasil
https://www.kaspersky.com.br/about/press...
).

A administração pública também é desafiada por ransomwares, softwares maliciosos que criptografam o conteúdo de um dispositivo e o liberam mediante pagamento de resgate em criptomoedas. O hospital universitário de Brno, na República Tcheca, centro de testes do novo coronavírus, sofreu um ataque de ransomware (Newman, 2020Newman, L. H. (2020, 19 de março). Coronavirus Sets the Stage for Hacking Mayhem. Wired. Recuperado de https://www.wired.com/story/coronavirus-cyberattacks-ransomware-phishing/
https://www.wired.com/story/coronavirus-...
). Criminosos conseguiram acesso ao sistema do hospital e criptografaram os bancos de dados (Arbulu, 2020Arbulu, R. (2020, 16 de março). Ciberataque faz hospital que tratava pacientes do coronavírus fechar as portas. Canal Tech. Recuperado de https://canaltech.com.br/seguranca/ciberataque-faz-hospital-que-tratava-pacientes-do-coronavirus-fechar-as-portas-161881/
https://canaltech.com.br/seguranca/ciber...
). O hospital não pagou o resgate e, como consequência, as atividades foram momentaneamente suspensas e os pacientes foram remanejados (Schwartz, 2020Schwartz, M. (2020, 16 de março). COVID-19 Complication: Ransomware Keeps Hitting Healthcare. Bankinfosecurity. Bank Info Security. Recuperado dehttps://www.bankinfosecurity.com/covid-19-complication-ransomware-keeps-hitting-hospitals-a-13941
https://www.bankinfosecurity.com/covid-1...
).

Outro exemplo recente de ataque de ransomware ocorreu no Distrito de Saúde Pública de Champaign-Urbana, em Illinois, EUA. Como a instituição possuía backup dos dados, seus serviços não foram severamente afetados com o não pagamento de resgate (Nichols, 2020Nichols, S. (2020, 12 de março). Fresh virus misery for Illinois: Public health agency taken down by… web ransomware. Great timing, scumbags. The Register. Recuperado dehttps://www.theregister.com/2020/03/12/ransomware_illinois_health/
https://www.theregister.com/2020/03/12/r...
). Os bilhões de dólares de prejuízo causado pelo ransomware WannaCry de 2017 deixou importantes lições de alfabetização digital para os entes administrativos, dentre elas a realização de constantes backups do sistema (Coughlin, 2017Coughlin, T. (2017, 14 de maio). WannaCry ransomware demonstrates the value of better security and backups. Forbes. Recuperado de https://www.forbes.com/sites/tomcoughlin/2017/05/14/wannacry-ransomware-demonstrations-the-value-of-better-security-and-backups/#2532d2d170b8
https://www.forbes.com/sites/tomcoughlin...
).

Sites públicos são alvos de cibercriminosos, que buscam vantagens mediante a criação de clones que simulam sites oficiais. Recentemente, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA sofreu um ataque de DDoS (Distributed Deny of Service) que objetivava indisponibilizar o site da instituição. Com isso, pessoas perdiam a referência oficial e tinham que procurar outra fonte de dados sobre a pandemia que poderia não ser “legítima” ou estar infectada com códigos para “roubar” dados do usuário (Morrison, 2020Morrison, S. (2020, 16 de março). What we know about the Health Department website cyberattack. Vox. Recuperado de https://www.vox.com/recode/2020/3/16/21181825/health-human-services-coronavirus-website-ddos-cyber-attack
https://www.vox.com/recode/2020/3/16/211...
).

Nota-se que os excluídos digitais têm permanente “acesso negado” aos sistemas de informação eletrônicos, razão pela qual, na prática, a exclusão digital guarda semelhanças sociais a uma das vulnerabilidades técnicas “tradicionais” do ciberespaço.

4. A TRANSPOSIÇÃO DO AMBIENTE SOCIAL PARA O CIBERESPAÇO: INOVAÇÕES, DESAFIOS, VULNERABILIDADES E LIÇÕES PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A crescente operacionalização do ciberespaço pela administração pública impulsionada pela COVID-19 engendra inovações, desafios, vulnerabilidades e lições.

Nas últimas semanas, noticiários televisivos mostram reuniões virtuais de autoridades nacionais, nas quais plataformas de videoconferência são utilizadas (Behnke, 2020Behnke, E. (2020, 13 de abril). Bolsonaro acompanha videoconferência das Forças Armadas sobre covid-19. Estadão. Recuperado de https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-acompanha-videoconferencia-das-forcas-armadas-sobre-covid-19,70003269846
https://politica.estadao.com.br/noticias...
; Matsuura, 2020Matsuura, S. (2020, 07 de abril). Populares com a quarentena, aplicativos para reuniões virtuais viram alvo de hackers. O Globo. Recuperado de https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/populares-com-quarentena-aplicativos-para-reunioes-virtuais-viram-alvo-de-hackers-24357276
https://oglobo.globo.com/economia/tecnol...
; O Estado de S. Paulo, 2020). Visando a responder demandas impostas pela pandemia, entes públicos e privados têm transferido atividades para o ciberespaço. Contudo, a utilização dessa alternativa para atividades profissionais e educacionais e para a coordenação de políticas públicas potencializa as vulnerabilidades técnicas e sociais do ciberespaço. Segundo Sampaio (2016Sampaio, R. C. (2016). e-Orçamentos Participativos como iniciativas de e-solicitação: uma prospecção dos principais casos e reflexões sobre a e-Participação. Revista de Administração Pública, 50(6), 937-958.), enquanto é necessário admitir as vantagens da participação da sociedade no ciberespaço, é preciso reconhecer as limitações existentes.

A transposição de atividades laborais presenciais para o ciberespaço enseja um tipo de exclusão social, uma vez que somente parte da sociedade consegue manter seu emprego e renda. Ao universo de cidadãos que perderam drasticamente seu sustento, o Governo Federal lançou um programa de auxílio emergencial (Decreto 10.316, de 7 de abril de 2020Decreto nº 10.316, de 07 de abril de 2020. (2020). Regulamenta a Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020, que estabelece medidas excepcionais de proteção a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (COVID-19). .) para mitigar os efeitos socioeconômicos da pandemia. Essa ação evidencia vulnerabilidades técnicas e sociais do ciberespaço.

Para cumprir as determinações do Governo, a Caixa Econômica Federal (CEF) lançou o site e o aplicativo “Caixa Auxílio Emergencial”, nos quais cidadãos assistidos pelo referido Decreto poderiam solicitar o auxílio emergencial. O banco disponibilizou uma central telefônica para esclarecimentos que, contudo, apresenta problemas (UOL, 2020Ministério da Educação. (2020, 18 de março).MEC autoriza ensino a distância em cursos presenciais. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=86441
http://portal.mec.gov.br/component/conte...
). Beneficiários do Bolsa Família estavam automaticamente cadastrados e receberiam o auxílio extra na mesma conta do programa governamental regular.

Para receber o auxílio emergencial, os demais interessados realizam cadastro no site ou aplicativo da CEF, ação que demanda posse de CPF regularizado. Com essa exigência, a desinformação, problemas técnicos e a precariedade dos canais de informação não presenciais, muitos foram às ruas, formando filas e aglomerações e contrariando as recomendações de combate à pandemia (Lara, 2020Lara, M. (2020, 15 de abril). Pará alega aglomerações e pede fim da exigência de regularização de CPF para auxílio emergencial. Estadão. Recuperado de https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,para-alega-aglomeracoes-e-pede-fim-da-exigencia-de-regularizacao-de-cpf-para-auxilio-emergencial,70003271592
https://politica.estadao.com.br/noticias...
). Mais grave, muitos brasileiros “invisíveis” não possuem CPF (Kerber, 2020Kerber, D. (2020, 08 de abril). O que significa ‘CPF em situação inválida’ no auxílio emergencial? Estadão. Recuperado de https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,o-que-significa-cpf-em-situacao-invalida-no-auxilio-emergencial,70003264940
https://economia.estadao.com.br/noticias...
).

Realizado o cadastro online, o interessado aguarda análise do Dataprev (Larghi, 2020Larghi, N. (2020, 22 de abril). Caixa possui dois aplicativos para auxílio emergencial; entenda a diferença. Valor Investe. Recuperado de https://valorinveste.globo.com/produtos/servicos-financeiros/noticia/2020/04/22/caixa-possui-dois-aplicativos-para-auxilio-emergencial-entenda-a-diferenca.ghtml
https://valorinveste.globo.com/produtos/...
). Problemas técnicos, demora e desinformação levaram novamente muitos às ruas sem necessidade (G1, 2020G1. (2020, 13 de abril). Agências da Caixa registram filas e aglomerações no Grande Recife. Recuperado de https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/04/13/agencias-da-caixa-registram-filas-e-aglomeracoes-no-grande-recife.ghtml
https://g1.globo.com/pe/pernambuco/notic...
). Depois de aprovado, o beneficiado receberia o depósito em conta da CEF ou do Banco do Brasil. Aos não possuidores de conta nesses bancos, seria enviado um código para acesso à Conta Poupança Social, gerido pelo software “Caixa TEM” (CEF, 2020Caixa Econômica Federal. (2020). Auxílio Emergencial. Recuperado de http://www.caixa.gov.br/auxilio/Paginas/default2.aspx
http://www.caixa.gov.br/auxilio/Paginas/...
). Esta última alternativa apresenta outro problema: o código tem validade de duas horas (Branco, 2020Branco, A. (2020, 02 de junho). Beneficiário tem até 2 horas para sacar o auxílio emergencial na Caixa após gerar código. Agora São Paulo. Recuperado dehttps://agora.folha.uol.com.br/grana/2020/04/beneficiario-tem-ate-2-horas-para-sacar-o-auxilio-emergencial-na-caixa-apos-gerar-codigo.shtml
https://agora.folha.uol.com.br/grana/202...
), o que é uma dificuldade para aqueles com problemas de locomoção ou de acesso à internet e/ou que utilizam aparelhos emprestados para acessar o aplicativo ou site da CEF.

Os principais problemas enfrentados pela população não residem no desenho dos sistemas da CEF, mas nos requisitos para sua utilização. Inicialmente, dados de 2019 mostram que 6,8% da população brasileira acima dos 15 anos é composta de analfabetos (Gazeta do Povo, 2020Gazeta do Povo. (2020).Taxa de analfabetismo no Brasil | Infográficos | Gazeta do Povo. Recuperado de https://infograficos.gazetadopovo.com.br/educacao/taxa-de-analfabetismo-no-brasil/
https://infograficos.gazetadopovo.com.br...
). Esses, obviamente, são excluídos do universo digital. A desigualdade de acesso é outro problema: 50% da população de zonas rurais e regiões periféricas e 16,2% das áreas urbanas não possuem acesso à Internet (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica [IBGE], 2018Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica. (2018). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD Contínua. Rio de Janeiro, RJ: Autor. Recuperado de https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/17270-pnad-continua.html?=&t=downloads
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/soc...
); ao todo, no país, apenas 70,07% da população encontra-se ativa na Internet (Internet World Stats [IWS], 2020cInternet World Stats (2020c). Internet Usage, Facebook Subscribers and Population Statistics for all the Americas World Region Countries: June 30, 2019. Recuperado de https://www.internetworldstats.com/stats2.htm
https://www.internetworldstats.com/stats...
). Além disso, interessados no auxílio ainda poderiam sofrer com problemas relacionados às regras impostas no cadastramento (GooglePlay, 2020GooglePlay (2020). Caixa | Auxílio Emergencial. Recuperado de https://play.google.com/store/apps/details?id=br.gov.caixa.auxilio&hl=pt_BR&showAllReviews=true
https://play.google.com/store/apps/detai...
) e/ou possuir dispositivos antigos incapazes de instalar o software.

A exclusão digital também se faz presente nas atividades de ensino durante a pandemia. Consoante dados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2018, 34% dos estudantes da rede pública de ensino não possuíam acesso à Internet e 55% não tinham computador (Saldaña et al., 2020Saldaña, P., Mariani, D., Yukari, D., & Sant’Anna, E. (2020, 28 de maio). Internet não chega a 34% dos alunos da rede pública que fizeram Enem. Folha S. de Paulo. Recuperado de https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/internet-nao-chega-a-34-dos-alunos-da-rede-publica-que-fizeram-enem.shtml?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/...
). A despeito desses números, após a suspensão das aulas em todo o território nacional por conta da COVID-19, o Ministério da Educação (MEC) autorizou o uso de TICs como alternativa para a continuação do ensino (MEC, 2020Ministério da Educação. (2020, 18 de março).MEC autoriza ensino a distância em cursos presenciais. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=86441
http://portal.mec.gov.br/component/conte...
).

Somente com forte pressão da sociedade o Governo concordou com o adiamento das provas do Enem deste ano (Betim, 2020Betim, F. (2020). Governo adia Enem após pressão que trouxe à tona o fosso entre ensino público e privado. El País Brasil. Recuperado dehttps://brasil.elpais.com/sociedade/2020-05-20/governo-adia-enem-apos-pressao-que-trouxe-a-tona-o-fosso-entre-ensino-publico-e-privado.html
https://brasil.elpais.com/sociedade/2020...
). A respeito das desigualdades, o Ministro da Educação teria afirmado em reunião com senadores que “o Enem não foi feito para corrigir injustiças” (Lemos, 2020Lemos, I. (2020). Em reunião com senadores, Weintraub diz que Enem não foi feito para corrigir injustiças. Folha de S. Paulo. Recuperado de https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/05/em-reuniao-com-senadores-weintraub-diz-que-enem-nao-foi-feito-para-corrigir-injusticas.shtml?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996
https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2...
). O futuro dirá se a histórica desigualdade no desempenho de estudantes de escolas públicas e privadas no Enem (G1, 2016G1. (2016, 04 de outubro). Enem mostra desigualdade entre ensino público e privado. Recuperado de http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/10/enem-mostra-desigualdade-entre-ensino-publico-e-privado.html
http://g1.globo.com/jornal-nacional/noti...
) será agravada pela atual pandemia.

Aulas e atividades laborais foram transferidas para o ambiente virtual via plataformas de videoconferência. A operacionalização do ciberespaço mediante essas ferramentas, inclusive pela administração pública, suscita questões sobre privacidade e segurança.

Ao analisar aplicativo de videoconferência, o Citizen Lab1 1 Grupo interdisciplinar baseado na Universidade de Toronto, especializado em pesquisa e desenvolvimento de políticas referentes a TICs, direitos humanos e segurança (The Citizen Lab, 2020). destacou que as chamadas passam pelo servidor central da empresa, que assim pode ter acesso às comunicações, arquivos e vídeos compartilhados por meio da plataforma. Ademais, o grupo identificou que chaves de criptografia foram transmitidas por servidores localizados em países diferentes dos que sediam a empresa (Marczak & Scott-Railton, 2020Marczak, B., & Scott-Railton, J. (2020, 03 de abril). Move Fast and Roll Your Own Crypto: A Quick Look at the Confidentiality of Zoom Meetings. The Citizen Lab. Recuperado de https://citizenlab.ca/2020/04/move-fast-roll-your-own-crypto-a-quick-look-at-the-confidentiality-of-zoom-meetings/
https://citizenlab.ca/2020/04/move-fast-...
). Essas constatações ganham relevância porque entes públicos brasileiros usam a plataforma em questão para reuniões de trabalho. Logo, dados (potencialmente sensíveis) podem ser acessados por entes privados localizados fora do território nacional. Frisa-se que nenhum aplicativo de comunicação é 100% seguro e que problemas similares também podem ocorrer com o armazenamento de informações e arquivos “na nuvem”, que efetivamente são servidores físicos localizados em diferentes países. No mais, o caso Snowden já expôs vulnerabilidades relativas ao tráfego de informações digitais (Greenwald & MacAskill, 2013Greenwald, G., & MacAskill, E. (2013, 06 de junho). NSA Prism program taps in to user data of Apple, Google and others. The Guardian. Recuperado dehttps://www.theguardian.com/world/2013/jun/06/us-tech-giants-nsa-data
https://www.theguardian.com/world/2013/j...
).

Outra vulnerabilidade dos aplicativos de videochamadas decorre da prática na qual ciber-atacantes conseguem entrar em reuniões públicas ou descobrem o código de identificação de uma reunião privada. Após entrarem, podem escutar as comunicações ou tentar acabar com reuniões ou aulas, constrangendo participantes com mensagens racistas e/ou pornográficas (O’Flaherty, 2020O’Flaherty, K. (2020, 27 de março). Beware Zoom Users: Here’s How People Can ‘Zoom-Bomb’ Your Chat. Forbes. Recuperado de https://www.forbes.com/sites/kateoflahertyuk/2020/03/27/beware-zoom-users-heres-how-people-can-zoom-bomb-your-chat/#1124167a618e
https://www.forbes.com/sites/kateoflaher...
). Tal questão torna-se mais proeminente conforme usuários postam fotos de reuniões em redes sociais, exibindo o código de identificação da chamada, como fez o Primeiro-Ministro britânico, Boris Johnson, no final do mês de março (Corera, 2020Corera, G. (2020, 01 de abril). UK government defends PM’s use of Zoom. BBC News. Recuperado de https://www.bbc.com/news/technology-52126534
https://www.bbc.com/news/technology-5212...
).

Apesar das vulnerabilidades supracitadas, conforme demonstrado em noticiários televisivos, instituições brasileiras como o Supremo Tribunal Federal, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal continuam utilizando plataformas de videoconferências para a realização de sessões ordinárias e votações (Brígido, 2020Brígido, Carolina(2020, 30 de março). STF vai realizar primeira sessão por videoconferência dia 15. O Globo. Recuperado de https://oglobo.globo.com/brasil/stf-vai-realizar-primeira-sessao-por-videoconferencia-dia-15-24339078
https://oglobo.globo.com/brasil/stf-vai-...
). Destaca-se que os julgamentos são transmitidos pela Internet e pela TV Justiça, e que nenhuma votação do Congresso foi secreta (Ladeira, 2020Ladeira, P. (2020, 18 de março). Com ministros em idade de risco, Supremo supera resistências e prepara sessão por videoconferência. Folha de S. Paulo. Recuperado de https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/com-ministros-em-idade-de-risco-supremo-supera-resistencias-e-prepara-sessao-por-videoconferencia.shtml
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020...
).

O caso Snowden deixou importantes lições. No que se refere às iniciativas promovidas pelo Governo brasileiro no ciberespaço, destacam-se os temas “controle orçamentário” (Instrução Normativa nº 01, 2019), “segurança da informação” (Política Nacional de Segurança da Informação, Decreto n. 9.637, 2018Decreto n. 9.637, de 26 de dezembro de 2018. (2018). Dispõe sobre a governança da segurança da informação e institui a Política Nacional de Segurança da Informação. Brasília, DF.) e “confidencialidade e transparência” (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPDLei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. (2018). Dispõe sobre Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Brasília, DF.).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A operacionalização do ciberespaço pela administração pública enfrenta desafios inerentes ao domínio cibernético. É imperativo que setores públicos considerem as vulnerabilidades técnicas e sociais desse ambiente e tomem medidas para combatê-las.

A realização de cursos de capacitação e o desenvolvimento de plataformas e soluções próprias devem acompanhar medidas mais amplas de inclusão digital. Esse desafio não é inédito; sintetiza processos históricos de exclusão social.

Os problemas relacionados ao ensino por plataformas digitais e as dificuldades no acesso ao benefício emergencial do Governo Federal deixam relevantes lições para a administração pública: a exclusão digital é uma face nefasta da operacionalização do ciberespaço. Como visto, apenas 70% da população brasileira é ativa na Internet (Pop.AI).

Sobre o auxílio emergencial, as experiências de países de realidade digital e/ou social semelhante ao Brasil pouco oferecem como alternativa. Segundo Ozili (2020), no continente africano, apenas Nigéria (Pop.AI 61,2%, IWS, 2020aInternet World Stats (2020a). Internet Penetration in Africa. Recuperado de https://www.internetworldstats.com/stats1.htm
https://www.internetworldstats.com/stats...
) e Malauí (Pop.AI 14,2%, IWS, 2020aInternet World Stats (2020a). Internet Penetration in Africa. Recuperado de https://www.internetworldstats.com/stats1.htm
https://www.internetworldstats.com/stats...
) têm programas de auxílio emergencial de renda. O governo nigeriano realiza a distribuição de aproximadamente USD 52,00 para famílias registradas no National Social Register of Poor and Vulnerable Households via transferência bancária (Human Rights Watch [HRW], 2020). A Índia (Pop.AI 40,6%, IWS, 2020dInternet World Stats (2020d). Internet Usage in Asia. Recuperado dehttps://www.internetworldstats.com/stats3.htm
https://www.internetworldstats.com/stats...
) adota modelo parecido, distribuindo USD 6,60 para mulheres cadastradas no Programa Jan Dhan, mediante depósito em conta bancária (The Economic Times, 2020The Economic Times. (2020). COVID-19: Govt to transfer financial assistance only through DBT mechanism. Recuperado de https://economictimes.indiatimes.com/news/politics-and-nation/covid-19-govt-to-transfer-financial-assistance-only-through-dbt-mechanism/articleshow/75185835.cms
https://economictimes.indiatimes.com/new...
). Ambos os programas são similares à transferência que ocorre no Brasil para os beneficiários do Bolsa Família. A Argentina, que tem 93% da Pop.AI (IWS, 2020cInternet World Stats (2020c). Internet Usage, Facebook Subscribers and Population Statistics for all the Americas World Region Countries: June 30, 2019. Recuperado de https://www.internetworldstats.com/stats2.htm
https://www.internetworldstats.com/stats...
), adotou medidas semelhantes à brasileira: cadastramento totalmente online dos beneficiários e pagamento direto em conta bancária (Argentina, 2020Argentina. (2020). Ingreso familiar de emergencia. Buenos Aires, AR: Autor. Recuperado de https://www.argentina.gob.ar/economia/medidas-economicas-COVID19/ingresofamiliardeemergencia
https://www.argentina.gob.ar/economia/me...
).

O Brasil poderia ter adotado soluções mistas praticadas por Estados igualmente afetados pela pandemia, conforme sintetizado no quadro seguinte:

QUADRO 1
DISTRIBUIÇÃO DE AUXÍLIOS EMERGENCIAIS

Apesar de possuírem elevado percentual de Pop.AI, nenhum dos países listados confiou tanto no ciberespaço para o pagamento do auxílio emergencial quanto o Brasil. O cadastramento via local de trabalho (Reino Unido e Espanha), base de dados da Receita Federal (EUA) ou Previdência Social (Itália), e o recebimento via Correios (EUA), folha de pagamento (Reino Unido e Espanha) ou depósito em conta de preferência do beneficiado (EUA, Reino Unido e Itália) poderiam minimizar os problemas enfrentados por muitos brasileiros. Questões sociais, como a informalidade, dificultariam a reprodução integral dessas medidas no país.

As vulnerabilidades do ciberespaço para a administração pública são técnicas e sociais e, em países de elevada desigualdade social, são mais difíceis de sanar. Ainda que seja impossível prever o mundo após o isolamento social, analogamente ao combate infeccioso, é possível vislumbrar que uma maior exposição do aparato administrativo à realidade cibernética engendre práticas e hábitos que levarão à criação de “anticorpos cibernéticos”. Com isso, setores governamentais não somente se tornariam mais conscientes das vulnerabilidades que emanam do domínio cibernético, mas poderiam combatê-las e evitá-las em seu trabalho cotidiano.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Grupo interdisciplinar baseado na Universidade de Toronto, especializado em pesquisa e desenvolvimento de políticas referentes a TICs, direitos humanos e segurança (The Citizen Lab, 2020The Citizen Lab. (2020). About the Citizen Lab - The Citizen Lab. Recuperado de https://citizenlab.ca/about/
    https://citizenlab.ca/about/...
    ).
  • O artigo faz parte dos esforços do projeto de pesquisa Ciência, Tecnologia e Inovação em Defesa: Cibernética e Defesa Nacional aprovado pelo edital 27/2018, Programa de Apoio ao Ensino e à Pesquisa Científica e Tecnológica em Defesa Nacional - PRÓ-DEFESA.
  • 3
    Os autores agradecem a leitura crítica da Prof.ª Dr.ª Karina Rodrigues e os aportes dos revisores da RAP e obviamente os eximem de qualquer falha porventura apresentada no artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2020
  • Aceito
    19 Jun 2020
Fundação Getulio Vargas Fundaçãoo Getulio Vargas, Rua Jornalista Orlando Dantas, 30, CEP: 22231-010 / Rio de Janeiro-RJ Brasil, Tel.: +55 (21) 3083-2731 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rap@fgv.br