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Da Bíblia de Gutenberg à COVID-19

De la Biblia de Gutenberg a la COVID-19

Resumo

O mundo após a COVID-19 será diferente do mundo de antes, não apenas do ponto de vista dos desafios econômicos, mas também na perspectiva da geopolítica. A globalização tenderá a ser revertida, com claras implicações para a posição dos vários países. O fenômeno da expansão do uso generalizado da tecnologia da informação marcará a dinâmica de vários países, inclusive do Brasil. A academia precisa refletir sobre estratégias de longo prazo para criar empregos e sustentar a empregabilidade enquanto a estrutura da economia se modifica.

Palavras-chave:
COVID-19; tecnologias de informação; administração pública

Resumem

El mundo después de la COVID-19 será diferente del anterior, no solo desde el punto de vista de los desafíos económicos, sino también desde la perspectiva de la geopolítica. La globalización tenderá a revertirse, con claras implicaciones para la posición de los distintos países. El fenómeno de expansión del uso generalizado de la tecnología de la información caracterizará la dinámica de varios países, inclusive de Brasil. La academia necesita reflexionar sobre estrategias a largo plazo para crear empleos y mantener la empleabilidad mientras la estructura de la economía se modifica.

Palabras clave:
COVID-19; tecnologías de información; administración pública

Abstract

The world after the COVID-19 pandemic will change, from the perspective of both geopolitical and economic challenges. There will be a tendency for globalization to reverse, affecting the international position of several countries. The phenomenon of expanding the heavy use of information technology will mark the dynamics of many countries, including Brazil. Therefore, academia has to reflect on long-term strategies to create and maintain jobs while the economic structure changes.

Keywords:
COVID-19; information technology; public administration

1. INTRODUÇÃO

O ano de 2020 começou com o trauma de uma terrível peste, situação que há cem anos a humanidade não enfrentava. A COVID-19, doença causada por um coronavírus novo, altamente contagioso e muitas vezes letal, espalhou-se rapidamente pelo mundo e, não havendo vacina para imunizar as populações, governos ao redor do planeta tiveram de apelar para o confinamento das pessoas para tentar deter a disseminação da doença.

O combate à doença é um problema não só médico, mas, sobretudo, de gestão pública e, como tal, deve ser tratado. Sem a existência de uma vacina ou de um remédio comprovadamente eficaz contra a doença, tornou-se primordial garantir que o sistema de saúde possa atender os casos mais graves com os tratamentos pertinentes. Uma nova expressão, “distanciamento social”, entrou no nosso jargão, com todas as nefastas implicações que tal conjunto de ações trouxe.

É a primeira vez que se tenta um experimento deste tipo, nesta escala. Ele é possível pela criação da internet e por tudo que daí adveio. Se hoje bilhões de pessoas podem ficar trancafiadas em casa é porque, mesmo que de forma restrita, têm acesso a bens e serviços, como também, em parte, ao trabalho remoto.

Afirma-se que o mundo após a COVID-19 será diferente do mundo de antes. Do ponto de vista deste artigo, tal afirmação se confirmará. Não haverá apenas uma mudança para pior na situação econômica. Isto certamente ocorrerá. A situação geopolítica mundial decerto piorará e o mundo ficará menos seguro. A globalização tenderá a ser revertida e a dependência das cadeias produtivas mundiais em relação à indústria chinesa deverá cair, freando o crescimento da China.

A mudança será profunda e de longo prazo, em virtude do aprendizado e uso forçado de softwares de comunicação múltipla com interação simultânea e capacidade de acoplar instrumentos para planejamento, execução e avaliação de tarefas.

O medo da contaminação pela doença colocou bilhões de pessoas em distanciamento social, o que obrigou muitas a aprenderem a utilizar ferramentas como Teams®, da Microsoft, Zoom®, Google Meet® e dezenas de outras, para a realização de reuniões. Estes instrumentos, afortunadamente, já existiam. Eles são o resultado de uma lenta e gradual evolução que vem ampliando a capacidade de comunicação transversal entre seres humanos. A massificação do seu uso, causada pela pandemia da COVID-19, começando pelas empresas e pelos sistemas de ensino, é um fenômeno importantíssimo e que terá inúmeros desdobramentos no futuro. Trata-se de algo que deverá provocar uma profunda modificação no desenvolvimento humano e na posição relativa das nações.

Na história da humanidade poucas mudanças foram tão relevantes quanto esta provavelmente o será. Todas elas têm uma característica em comum: a possibilidade de se comunicar à distância, seja no espaço ou no tempo.

A introdução do sistema de escrita, a primeira destas grandes mudanças, permitiu o registro de fatos e a sua preservação por longo período de tempo. A introdução de alfabetos representando fonemas formadores de palavras, que traduzem ideias, simplificou a escrita e ampliou seu uso. Também acostumou o cérebro humano a pensar o abstrato de forma mais natural.

No século XV, em 1439-40, Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg revolucionou a tecnologia da impressão em papel inventando a primeira impressora com flexibilidade operacional suficiente para produzir impressos e livros a um custo acessível à nascente burguesia urbana. O seu mais famoso sucesso foi certamente o que se chamou Bíblia de Gutenberg, nome pelo qual Johannes passou a ser conhecido pela História.

A oferta de impressão, crescentemente mais acessível a partir de então, foi lentamente espalhando-se, permitindo a difusão do conhecimento. Dá-se, então, um fato superveniente que causa uma verdadeira explosão: Martinho Lutero rebela-se contra a Igreja Católica e lança o Protestantismo, entre cujas características principais estava o buscar aprender a vontade de Deus diretamente da leitura da Bíblia. Oferta de impressão barata e demanda por leitura para a sua própria salvação levariam à alfabetização da parte norte da Europa e ao crescimento da troca de ideias; consequentemente, à Ciência e à Tecnologia, desenvolvidas nos séculos seguintes. Foi uma gigantesca revolução.

A partir do final da Segunda Guerra Mundial, o aumento da complexidade do funcionamento das operações humanas tem sido uma constante. Isto não foi feito de acordo com uma única natureza e decorreu tanto da evolução tecnológica quanto de mudanças sociais e políticas. Três macromovimentos com alguma superposição podem ser identificados. O primeiro movimento parte dos EUA, que investem em sua indústria bélica de forma racional, diante da crescente necessidade da otimização do uso de recursos escassos em sistemas cada vez mais complexos. O segundo movimento começa, provavelmente, logo após a segunda crise do petróleo em 1978. É uma fase de inovação em várias camadas: uso mais racional da energia, juros altos para combater a inflação nos EUA, abertura para a China. Início de uma nova onda de globalização. O crescimento do uso da informática vai influenciar toda a forma como se pratica gestão, gerando agilidade. O terceiro movimento é marcado pela penetração extensiva da comunicação móvel, por smartphones, e em um futuro muito próximo da internet das coisas, modificando radicalmente a relação entre Informação e Inteligência.

No caso brasileiro, é nítido que, na maior parte dos setores e subsetores em que a atividade econômica pode ser dividida, mal conseguimos fazer o primeiro movimento. Também, que poucos foram aquelas partes da economia que fizeram o segundo. E, ainda, sobre o terceiro movimento, pontos essenciais que deveriam de estar sendo ultimados não estão sendo realizados.

A nossa paulatina e contínua perda de produtividade relativamente às nações desenvolvidas, um processo que já dura cerca de 40 anos, tem suas raízes neste fenômeno. Isto é especialmente danoso quando se examina o setor de serviços. Hoje, representando 65% da economia, está, irremediavelmente, sendo condenado à obsolescência e apresenta baixo valor agregado.

Só no agribusiness e mais uns dois ou três subsetores, o país foi capaz de ganhar em competitividade da média do mundo desenvolvido. O que fez o crescimento da renda da classe média estagnar, levando o país a cair na chamada armadilha da renda intermediária.

O baixo nível de produtividade no setor de serviços é, usualmente, apresentado como consequência inevitável do baixo nível educacional. Isto é, em parte, verdade. Porém, é também consequência da baixa integração com o setor industrial e de uma abrangente incapacidade de se ter organizações focadas em ser competitivas e capazes de execução efetiva de projetos complexos. Critica-se a situação atual declarando-se que o país pretende ter um setor de serviços formado por entregadores de pizzas.

A princípio, como a educação leva décadas para ser modificada, poder-se-ia supor que tudo estaria perdido. O ponto de vista deste artigo é que existe um Quarto Movimento começando e é de capital importância que o país não fique para trás. Ele consistirá, numa evolução disruptiva no setor público e no setor de serviços, pelo aumento da produtividade.

O impacto das novas ferramentas se dará diretamente sobre a nossa forma de gerir as coisas. A forma como pensamos se alterará, criando imensas oportunidades e gigantescos desafios. A aceleração no ritmo das inovações, sobretudo aquelas realizadas por equipes, e o consequente aumento na competição serão tremendos e isto deverá acontecer de forma muito rápida. Processos serão profundamente alterados, com imensas consequências para a produtividade e o emprego.

2. OPORTUNIDADES E DESAFIOS NO AMBIENTE PÓS-PANDEMIA

A evolução dos fatos indica que, cada vez mais, o fenômeno da expansão do uso generalizado da tecnologia da informação é um fato incontestável. Tarefas são automatizadas progressivamente. Da mecanização de atividades administrativas, tais como registros contábeis, à fabricação manufatureira em milhares de atividades, humanos foram sendo substituídos por computadores. Isto não foi necessariamente ruim, o aumento de produtividade liberou mão de obra para outras tarefas e permitiu o barateamento da produção. Contudo, existem desafios que não podem ser ignorados (Leal, 2020Leal, C. I. S. (2020, maio-junho). Um problema para a gestão pública. GV-executivo, 19(3), 6-9.).

Este espaço não é adequado à análise das profundas implicações ao equilíbrio geral de uma economia, que foram originadas por uma revolução tecnológica deste tipo. Mas, assim mesmo, é preciso alertar que existe, no momento atual, uma forte pressão para a redução de custos e que o uso intensivo destas ferramentas, capazes exatamente de fazê-lo, ocorrerá. Isso poderá acarretar desemprego num instante inicial, ou melhor, poderá estender, pós-crise gerada pela pandemia da COVID-19, o tempo da sua recuperação.

Estas ferramentas aumentam o valor agregado das camadas mais altas das cadeias de comando e diminuem, pelo menos em termos relativos, o valor das mais baixas. Assim, têm, potencialmente, um efeito concentrador de renda e podem reduzir a demanda agregada de uma economia.

No entanto, de certa forma, elas criam um maior nivelamento do Brasil com o resto do mundo, uma vez que deixamos de competir com a média da nossa educação e passamos a competir com uma média de educação relativa àqueles que possuem maior nível nesse aspecto.

Num momento em que a economia mundial parecer tender a uma desglobalização, o aumento da produtividade no Brasil, um país ainda com a economia interna bastante fechada, mas exportador de alimentos, petróleo e minérios, poderia criar um relevante ciclo rápido de crescimento relativamente ao resto do mundo.

Tentar evitar esta modernização seria uma tolice. É como rejeitar computadores para manter datilógrafas. O resto do mundo vai avançar e nós temos de avançar também.

Será preciso, portanto, uma estratégia de longo prazo para criar empregos e sustentar a empregabilidade enquanto a estrutura da economia modifica-se. Este movimento não será facilmente construído. Ao contrário, muitos paradigmas educacionais, sociais e políticos vão ter de ser alterados.

REFERÊNCIA

  • Leal, C. I. S. (2020, maio-junho). Um problema para a gestão pública. GV-executivo, 19(3), 6-9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2020
  • Aceito
    03 Ago 2020
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