Acessibilidade / Reportar erro

O nível de rua na pandemia: a percepção de profissionais da linha de frente da assistência social sobre a implementação de políticas

Resumo

A pandemia da COVID-19 ressaltou o papel estratégico da política de assistência social para minimizar os efeitos desta crise de saúde e de suas consequências sobre a população mais pobre e vulnerável. A partir desse entendimento, este artigo analisa a percepção de burocratas de nível de rua da rede socioassistencial brasileira sobre como a pandemia tem afetado sua atuação e seu cotidiano profissional. Com base em um survey, em consultas com representantes de serviços socioassistenciais municipais e em regulações governamentais, a pesquisa identificou que, na pandemia, esses trabalhadores se sentem desprotegidos e pouco capazes de dar respostas adequadas às demandas cada vez maiores e urgentes, além de relatarem mudanças substanciais nas suas dinâmicas de trabalho, incluindo um dos seus principais pilares de atuação, o vínculo estabelecido com os usuários dos serviços. Simultaneamente, sentem falta de apoio institucional para atuar com segurança. Esses elementos afetam diretamente a prestação dos serviços socioassistenciais e seu potencial de combater os efeitos adversos da crise.

Palavras-chave:
COVID-19; pandemia; política de assistência social; burocratas de nível de rua

Abstract

The COVID-19 pandemic highlighted the strategic role of social care policy to minimize the effects of this health crisis and its consequences on the poorest and most vulnerable population. This article analyzes the perception of street-level bureaucrats in the Brazilian social care network on how the pandemic has affected their performance and professional routine. The research was based on a survey, consultations with representatives of municipal social care services, and analysis of government regulations. The results show that social workers feel unprotected and unable to provide adequate responses to the pandemic’s increasing and urgent demands, revealing a lack of institutional support to act appropriately. The professionals also reported substantial changes in their working dynamics, particularly in their relationship with the attended population, one of the main pillars of the Brazilian social care network. These elements directly affect the provision of social care services and their potential to combat the adverse effects of the crisis.

Keywords:
COVID-19; pandemic; social care policy; street-level bureaucrats

Resumen

La pandemia de COVID-19 destacó el papel estratégico de la política de atención social para minimizar los efectos de esta crisis de salud y de sus consecuencias en la población más pobre y vulnerable. A partir de este entendimiento, este artículo analiza la percepción de los burócratas a nivel de calle en la red de atención social brasileña en relación a cómo la pandemia ha afectado su desempeño y su rutina profesional. Con base en una encuesta, en consultas con representantes de los servicios municipales de atención social y regulaciones gubernamentales, la investigación ha identificado que, en la pandemia, estos trabajadores se sienten desprotegidos e incapaces de dar respuestas adecuadas a las crecientes y urgentes demandas, además de reportar cambios sustanciales en su dinámica de trabajo, incluyendo uno de sus principales pilares de actuación, el vínculo establecido con los usuarios del servicio. Al mismo tiempo, carecen de apoyo institucional para actuar con seguridad. Estos elementos afectan directamente la prestación de servicios de atención social y su potencial para combatir los efectos adversos de la crisis.

Palabras clave:
COVID-19; pandemia; política de asistencia social; burócratas de la calle

1. INTRODUÇÃO

A pandemia da COVID-19 gerou uma crise global de saúde pública sem precedentes na história recente. Em resposta, vários países vêm desenvolvendo políticas públicas para conter o contágio, reduzir o número de mortes e amenizar os problemas sociais e econômicos decorrentes desta crise. A implementação dessas políticas requer o envolvimento de trabalhadores da linha de frente de diversas áreas, tais como a da saúde, assistência social, educação e segurança pública. Esses profissionais, também chamados de burocratas de nível de rua, são atores centrais no enfrentamento da pandemia, pois estão em contato direto com a população para prestar os serviços de emergência necessários.

Apesar desses esforços, as consequências da pandemia são expressivas e heterogêneas, com efeitos devastadores para as pessoas que vivem em áreas urbanas mais pobres e densamente povoadas, que já estão expostas a maior vulnerabilidade social (UN Habitat, 2020). Esse também é o perfil da maioria das famílias atendidas pelas políticas da assistência social.

No Brasil, a emergência da COVID-19 assume contornos mais drásticos. Em primeiro lugar, porque convive com crises políticas, econômicas e federativas, que impactam diretamente a ação das três esferas de governo no combate à pandemia. Em segundo lugar, porque o país continua sendo um dos mais desiguais do mundo, apesar dos avanços das últimas décadas (Campello, Gentili, Rodrigues, & Hoewell, 2018Campello, T., Gentili, P., Rodrigues, M., & Hoewell, G. R. (2018). Faces da desigualdade no Brasil: um olhar sobre os que ficam para trás. Saúde Debate, 42(spe3), 54-66.). Uma parcela significativa da população brasileira ainda vive em situação de vulnerabilidade socioeconômica e com acesso limitado aos direitos básicos comumente mencionados nas recomendações oficiais para a prevenção do coronavírus, tais como habitação adequada e acesso ao fornecimento de água e aos serviços de saúde. Dados preliminares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que, em 2019, havia mais de 5 milhões de domicílios (7,8% do total nacional) em aglomerados subnormais, onde residem, em geral, pessoas com condições socioeconômicas, sanitárias e habitacionais mais precárias (IBGE, 2020). Medidas de isolamento social também atingem as famílias de mais de 38 milhões de trabalhadores informais no país, ou seja, 40% da população ocupada1 1 Recuperado de https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-10/informalidade-no-mercado-de-trabalho-e-recorde-aponta-ibge .

Nesse contexto, as políticas de assistência social brasileiras ganham mais relevância. Embora as ações e políticas destinadas a enfrentar a pandemia e o debate público estejam centradas nas áreas da saúde e da economia, a política de assistência social tem potencial significativo para minimizar as consequências negativas da crise entre os mais pobres, possibilitando medidas econômicas e sociais consistentes com este segmento populacional. Não obstante, até este momento, as respostas governamentais para minimizar os efeitos socioeconômicos negativos da pandemia entre a população mais pobre não têm sido articuladas entre os níveis de governo e as políticas existentes. Com efeito, tais respostas vêm sendo apresentadas de forma difusa e desconectada com relação ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS), ampliando os desafios relacionados à crescente demanda por políticas de assistência social e ao recente desmantelamento e redução do financiamento do SUAS.

Este artigo, portanto, tem como objetivo compreender os efeitos da pandemia do coronavírus no cotidiano profissional de burocratas de nível de rua atuantes na política de assistência social no Brasil e como isso afeta a execução da política na linha de frente. Para tanto, focou-se na percepção dos trabalhadores de nível de rua que atuam na área de assistência social, analisando-se dados de um survey online realizado entre 15 de abril e 1º de maio de 2020. O questionário foi respondido por 439 profissionais de linha de frente que atuam na prestação de serviços de assistência social em todas as regiões brasileiras. As limitações impostas pela pandemia dificultaram o desenvolvimento da pesquisa com desenho probabilístico, por isso a amostra de respondentes foi estruturada por conveniência, a partir de respostas voluntárias ao questionário. Em vista disso, os achados deste artigo não devem ser generalizados para todos os profissionais que atuam na assistência social no Brasil.

Os dados coletados pela aplicação do questionário foram complementados por informações obtidas em um debate virtual realizado no dia 16 de abril de 2020, com profissionais da área da assistência social da cidade de São Paulo e em consultas a representantes de prefeituras e regulamentações governamentais. A análise destes materiais visou compreender as condições de trabalho desses burocratas, como a pandemia os afetou e como essas novas condições mudaram a forma como os profissionais prestam os serviços e interagem com os cidadãos. Os resultados da pesquisa indicam que a pandemia exacerbou problemas pré-existentes enfrentados pelos burocratas de nível de rua, como recursos escassos, incertezas, falta de informação e de coordenação de políticas, ao mesmo tempo em que alterou a forma como alguns dos serviços são prestados, devido à necessidade de distanciamento social, impactando negativamente na implementação da política e na sua eficácia.

O artigo está estruturado em três seções, além desta introdução e das considerações finais. Inicialmente, contextualizamos o artigo em termos teóricos, apresentando brevemente o debate sobre a burocracia de nível de rua no cotidiano e na pandemia. Em segundo lugar, apresentamos a política de assistência social no Brasil, enfatizando como sua trajetória se relaciona com os trabalhadores da linha de frente. Por fim, são apresentados os resultados e análises da pesquisa.

2. BUROCRATAS DE NÍVEL DE RUA: DAS INCERTEZAS DO COTIDIANO ÀS EMERGENCIAIS

Burocratas de nível de rua (BNRs) ou trabalhadores de linha de frente são aqueles profissionais envolvidos na implementação de políticas que interagem diretamente com os cidadãos para entregar os serviços públicos (Lipsky, 2010Lipsky, M. (2010). Street-level bureaucracy. Dilemmas of the individual in public service (30th anniversary expanded edition). New York, NY: Russell Sage Foundation.). Eles têm a responsabilidade de traduzir políticas e normas genéricas em ações concretas (Dubois, 1999Dubois, V. (1999). La vie au guichet: relation administrative et traitement de la misère. Paris, France: Economica. (Collection Études Politiques).). Por estarem na linha de frente do serviço, geralmente atuam em contextos de recursos escassos, falta de informação e imprevisibilidade relacionada às reações dos cidadãos durante as interações (Brodkin, 2012Brodkin, E.Z. (2012), Reflections on Street‐Level Bureaucracy: Past, Present, and Future. Public Admin Rev., 72, 940-949. Retrieved from https://doi.org/10.1111/j.1540-6210.2012.02657.x
https://doi.org/10.1111/j.1540-6210.2012...
). As condições em que atuam os BNRs, marcadas por ambiguidades e incertezas (Matland, 1995Matland, R. E. (1995). Synthesizing the implementation literature: The ambiguity-conflict model of policy implementation. Journal of Public Administration Research and Theory, 5(2), 145-174.), abrem espaço para esses trabalhadores tomarem decisões variadas com base em sua discricionariedade (Lotta & Santiago, 2017Lotta, G. S., & Santiago, A. (2017). Autonomia e Discricionariedade: Matizando Conceitos-chave para o Estado de Burocracia. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais - BIB, 83, 21-41.). A alta discricionariedade na tomada de decisões nos permite considerar esses burocratas como formuladores de políticas, pois eles, de fato, definem o que serão as políticas públicas (Brodkin, 2012; Lipsky, 2010).

Ainda que sua posição e trabalho sejam críticos, os BNRs são centrais tanto para o Estado quanto para a sociedade. Para o Estado, sua importância relaciona-se tanto à (in)capacidade de concretizar políticas e atingir metas quanto a ser a face mais visível do Estado, influenciando a opinião dos cidadãos sobre as políticas públicas e os governantes (Lipsky, 2010Lipsky, M. (2010). Street-level bureaucracy. Dilemmas of the individual in public service (30th anniversary expanded edition). New York, NY: Russell Sage Foundation.). Para a sociedade, esses burocratas são relevantes porque podem permitir ou restringir o acesso a serviços e direitos (Lipsky, 2010; Pires, 2019); determinar quem recebe o quê e quanto (Oorshot, 2005); definir elegibilidade, mas também distribuir benefícios e sanções (Lipsky, 2010). Os BNRs, portanto, possuem um alto poder alocativo que pode impactar diretamente no bem-estar da população e na forma como o Estado os trata (Dubois, 1999Dubois, V. (1999). La vie au guichet: relation administrative et traitement de la misère. Paris, France: Economica. (Collection Études Politiques).; Maynard-Moody & Musheno, 2003Maynard-Moody, S., & Musheno, M. (2003). Cops, teachers, counselors: narratives of street-level judgment. Ann Arbor, Michigan: University of Michigan Press.; Pires, 2019).

Embora a literatura sobre BNRs tenha avançado nas últimas décadas, a maioria desses estudos analisou a implementação cotidiana de políticas, em que os trabalhadores da linha de frente estabelecem padrões reconhecíveis de ação e comportamento. Poucas pesquisas avançaram no entendimento do que acontece com esses burocratas quando precisam atuar em situações de emergência, como a atual crise provocada pela pandemia da COVID-19, quando ocorre uma exacerbação das condições críticas, como a escassez de recursos, a falta de experiência prévia e de conhecimento e a necessidade urgente de respostas mais rápidas (Henderson, 2014Henderson, A. (2014). The Critical Role of Street-Level Bureaucrats in Disaster and Crisis. In R. W. Schwester. (Ed.), Handbook of Critical Incident Analysis. New York, NY: Routledge.).

Atualmente, ainda que o número de pesquisas que analisam os impactos da pandemia nas políticas públicas tenha crescido exponencialmente, poucos estudos focaram nos burocratas de nível de rua (Dunlop, Ongaro, & Baker, 2020Dunlop, C. A., Ongaro, E., & Baker, K. (2020). Researching COVID-19: A Research Agenda for Public Policy and Administration Scholars. Public Policy and Administration, 35(4), 365-383.). O que essas investigações exíguas sugerem é que a pandemia afeta as condições de trabalho do BNR pela exacerbação dos problemas estruturais. A crise cria maiores demandas, menores recursos e maiores ambiguidades que podem, ao mesmo tempo, abrir espaço para mais discricionariedade ou comprometer sua capacidade de tomar decisões (Alcadipani et al., 2020Alcadipani, R., Cabral, S., Fernandes, A., & Lotta, G. (2020). Street-level bureaucrats under COVID-19: Police officers’ responses in constrained settings, Administrative Theory & Praxis. Retrieved from https://doi.org/10.1080/10841806.2020.1771906
https://doi.org/10.1080/10841806.2020.17...
). Como proposto por Dunlop et al. (2020), para os BNRs, reunir recursos insuficientes significa exercer a discricionariedade no contexto de uma situação sem precedentes em que regras estabelecidas, rotinas ou expectativas dos colegas foram interrompidas e, em alguns casos, suspensas. A literatura recente também discute como a pandemia afeta o bem-estar do BNR e os coloca em situações de risco (Alcadipani et al., 2020) e como o BNR pode exercer um papel de liderança durante tal crise (Mishra, 2020Mishra, S. S. (2020). Do Street-Level Bureaucrats Exhibit Transformational Leadership for Influencing Sound Governance and Citizens’ Satisfaction?. International Journal of Public Administration. Retrieved from https://doi.org/10.1080/01900692.2020.1765798
https://doi.org/10.1080/01900692.2020.17...
; Tang, Cheng, & Cai, 2020Tang, N., Cheng, L., & Cai, C. (2020) Making collective policy entrepreneurship work: the case of China’s post-disaster reconstruction. Journal of Asian Public Policy, 13(1), 60-78.). No entanto, ainda há uma lacuna no entendimento de como as mudanças nas condições de trabalho devido à pandemia mudam a forma como o BNR trabalha e interage com os cidadãos. “A avaliação de como os burocratas de nível de rua têm entendido e lidado com a situação pode oferecer insights interessantes sobre os valores e motivações dos funcionários públicos” (Dunlop et al., 2020).

Considerando a escassez de literatura sobre crise e BNR em geral e especificamente sobre a pandemia da COVID-19 e BNR, este artigo visa contribuir com a literatura existente, analisando o trabalho dos BNRs durante as emergências. Como caso a ser analisado, selecionamos o trabalho dos BNRs da área de assistência social durante a crise da COVID-19 no Brasil, profissionais cujas condições de trabalho na pandemia enfrentaram todos os desafios acima mencionados: demanda crescente, falta de recursos, ambiguidades e desconhecimento sobre as novas rotinas e riscos relacionados à doença.

3. ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL E O PAPEL DOS BNR

A Constituição Federal de 1988 é muitas vezes referida como um momento decisivo para a assistência social no Brasil, tendo reconhecido esta área de política pública como um direito social integrante do sistema de seguridade social. Esse marco estabeleceu condições objetivas para estruturar, nos 30 anos seguintes, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), que organizou serviços e benefícios oferecidos aos cidadãos. Essa trajetória recente também pode ser contada a partir do desafio de romper com o passado assistencialista e abandonar a longa tradição de protagonismo das entidades privadas ditas “filantrópicas”, e, ao mesmo tempo, de reconfigurar o atendimento à população, com ações voltadas para garantir, defender e proteger seus segmentos mais empobrecidos, vulneráveis ou carentes.

Desde o início desse processo de reestruturação, o Governo Federal ocupou posição central, criando mecanismos de indução que contribuíram para expandir gradativamente a implementação dessa política em todo o país e para estimular o desenvolvimento de capacidades administrativas entre os governos locais. Nesse novo arranjo federativo, o Governo Federal assume responsabilidades relacionadas ao planejamento e financiamento das políticas intergovernamentais de assistência social, enquanto os municípios se tornam responsáveis por sua implementação direta, incluindo a gestão do trabalho de nível de arua. Após a criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), em 2005, que definiu arranjos institucionais e financeiros e instrumentos de coordenação federativa, ocorreu uma rápida expansão da rede socioassistencial. De acordo com o Censo SUAS (Ministério da Cidadania, 2020Ministério da Cidadania. (2020). Censo SUAS 2019: Bases e Resultados CRAS. Brasília, DF: Secretaria Nacional de Assistência Social, Vigilância Socioassistencial.), em 2019, 98,9% dos municípios possuíam pelo menos um serviço de assistência social instalado.

Esta rede de equipamentos públicos e os milhares de profissionais que a compõem são elementos essenciais para compreender os avanços alcançados nas últimas décadas, que incluem a redução das desigualdades sociais, a ampliação da população atendida por serviços de assistência social e o desenvolvimento de um banco de dados nacional que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda, o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). O escopo e a qualidade das informações coletadas - mais de 28 milhões de famílias cadastradas (Ministério da Cidadania 2020Ministério da Cidadania. (2020). Censo SUAS 2019: Bases e Resultados CRAS. Brasília, DF: Secretaria Nacional de Assistência Social, Vigilância Socioassistencial.) - tornou o CadÚnico uma fonte primária de informação para diversas políticas sociais e o principal instrumento para a inclusão de famílias de baixa renda em programas sociais. Sua gestão é compartilhada entre as três esferas de governo, cabendo aos profissionais dos municípios o cadastramento e atualização de seus cadastros.

Ao longo desse período de expansão da rede de assistência social, foram elaboradas normas e diretrizes que dotaram a política de certo grau de uniformidade e direcionaram tecnicamente a atuação dos BNRs responsáveis pelo atendimento ao público. Um grande avanço nesse sentido foi a publicação da Tipificação Nacional de Serviços de Assistência Social (2009). Este documento caracteriza os diferentes tipos de serviços, definindo seus objetivos, disposições e diretrizes. Em relação ao BNR, este documento busca lidar com sua discricionariedade, minimizando-a e promovendo, tanto quanto possível, maior alinhamento com o conteúdo, objetivo e resultado esperado de seu trabalho. Regras e diretrizes publicadas são frequentemente adotadas e seguidas por governos estaduais e municipais. Entretanto, todos os entes federativos podem desenvolver e seguir suas próprias regras. Esta autonomia é fundamental para adequar o funcionamento dos serviços às realidades locais, embora desafie as administrações municipais a compreender, analisar e organizar-se para enfrentar tais problemas. Esse é um dos processos em andamento, fundamental para a consolidação da política e de suas práticas. Essa situação impacta diretamente os burocratas de nível de rua, que respondem às demandas trazidas pelo público e lidam com as lacunas existentes nas diretrizes normativas de formas distintas e discricionárias.

Os serviços da assistência social estão organizados em três níveis de complexidade: básica, média e alta. Todos funcionam a partir do vínculo estabelecido entre o cidadão atendido nos serviços e o trabalhador da linha de frente, que visa fortalecer ou reconstruir os vínculos dos cidadãos em termos de conexões familiares e sociais. Nos níveis básico e médio, os serviços estão ancorados em princípios de territorialização e atenção a quem está em situação de vulnerabilidade (Tipificação Nacional de Serviços de Assistência Social, 2009). Portanto, o trabalho dos BNRs implica necessariamente 1) o estabelecimento de um vínculo que só é possível em um processo interativo, que deve ser abrangente e respeitar as particularidades de cada pessoa/família; e 2) a atuação no território, articulando instituições públicas e privadas em uma rede capaz de garantir o acesso aos direitos sociais legalmente garantidos aos cidadãos. A partir desses princípios, as diretrizes para o trabalho e os desafios diários para realizá-lo são entendidos simultaneamente.

Com a pandemia da COVID-19, os trabalhadores de nível de rua tiveram que enfrentar simultaneamente novas dificuldades e desafios historicamente presentes nos territórios e na área da assistência social. Por um lado, os profissionais da linha de frente da assistência social no Brasil têm enfrentado um aumento significativo na demanda por trabalho. Com a crise, cidadãos mais vulneráveis, como a população em situação de rua e pessoas em condições mais precárias de moradia, trabalho e renda, passaram a demandar cuidados adicionais. Um exemplo é o apoio prestado pelos BNRs para auxiliar os registros no Auxílio Emergencial, por meio do Cadastro Único, que precisou lidar com a dificuldade de atingir um contingente de mais de 42 milhões de pessoas que não estão presentes em nenhum cadastro público e que, muitas vezes, nem têm acesso à internet.

No entanto, esse repentino aumento da demanda por assistência social afetou de forma heterogênea os setores que compõem essa política. Algumas organizações que trabalham com população jovem e vulnerável, como o Centro para Crianças e Adolescentes - CCA, tiveram suas atividades temporariamente suspensas, enquanto outros setores, como os envolvidos com moradores de rua e com o auxílio emergencial, tiveram que lidar com um aumento abrupto da demanda de trabalho. Além disso, a resposta governamental a este aumento inesperado na procura por serviços da assistência social foi marcada por uma desconexão entre as novas iniciativas e a rede existente. Por exemplo, o Auxílio Emergencial, concedido pelo Governo Federal, está sendo administrado pela Caixa Econômica Federal, um banco público nacional, por meio de uma plataforma online, e não pelos municípios e seus trabalhadores da linha de frente, que poderiam se mobilizar e alcançar mais facilmente a população em situação de pobreza. Outro exemplo é o Programa Cidade Solidária no município de São Paulo, uma ação de distribuição de alimentos promovida pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano que não contou com pessoal ou equipamento público nos territórios para sua operacionalização. Ambas iniciativas são limitadas no que tange à sua capacidade para alcançar a população mais vulnerável, que muitas vezes não têm acesso à internet ou está desconectada das redes de apoio político, problemas que poderiam ser minimizados se a implantação fosse acionada por meio da rede da assistência social, já estabelecida em todo o país.

Por outro lado, do ponto de vista estrutural, tal ausência da rede da assistência social na linha de frente do enfrentamento dos impactos da crise faz parte de um processo mais amplo de fragilização do SUAS no país. Quando surgiu a pandemia da COVID-19, a Política Nacional de Assistência Social já enfrentava seu próprio conjunto de desafios, que aumentaram significativamente a partir de 2016. Enquanto ainda estava em processo de consolidação (Colin et al., 2013Colin, D. R. A., Crus, J. F., Tapajós, L. M. S., & Albuquerque, S. A. (Orgs.). (2013). Coletânea de Artigos Comemorativos dos 20 Anos da Lei Orgânica de Assistência Social. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.), a política foi fortemente afetada pela aprovação da Emenda Constitucional no. 95, que estabeleceu um máximo para gastos com políticas sociais. A assistência social e outras políticas sociais foram impactadas pela redução de recursos, com graves repercussões nas administrações municipais, altamente dependentes de transferências federais. Consequentemente, a continuidade dos serviços e benefícios já existentes, bem como a expansão da rede foram ameaçados (Teixeira & Carneiro, 2019Teixeira, I. V., & Carneiro, R. (2019). A Política de Assistência Social Brasileira na Encruzilhada. SER Social, 21(45), 301-320.). Nesse processo de consolidação interrompido, a universalização da oferta dos serviços da assistência social e a estruturação de um sistema de vigilância socioassistencial ainda estavam em debate, incluindo o fortalecimento da intersetorialidade na articulação da rede de serviços sociais nos territórios e a organização de sistemas de monitoramento e avaliação. O resultado é uma constelação de fatores pré-existentes e desfavoráveis na política de assistência social: falta estrutural de recursos, aumento da demanda e respostas imediatas desconexas, associadas a todos os riscos relacionados à doença, criando um cenário crítico para os trabalhadores de nível de rua atuarem na pandemia.

4. TRABALHADORES DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NA PANDEMIA: VOZES DA LINHA DE FRENTE

Em emergências, os burocratas de nível de rua têm que lidar com o agravamento de questões cotidianas, como a escassez de recursos e de informações (Henderson, 2014Henderson, A. (2014). The Critical Role of Street-Level Bureaucrats in Disaster and Crisis. In R. W. Schwester. (Ed.), Handbook of Critical Incident Analysis. New York, NY: Routledge.; Dunlop et al., 2020Dunlop, C. A., Ongaro, E., & Baker, K. (2020). Researching COVID-19: A Research Agenda for Public Policy and Administration Scholars. Public Policy and Administration, 35(4), 365-383.). No atual contexto de pandemia, essas questões são complementadas por incertezas e pela necessidade de isolamento social. Como garantir serviços aos cidadãos se a interação direta entre eles e os trabalhadores que representam o Estado deve ser limitada, alterada ou representa um risco de contágio? A resposta a essa questão é urgente, pois os cidadãos atendidos pela assistência social vivem em contextos de alta vulnerabilidade e o apoio governamental é fundamental para o atendimento de suas necessidades básicas neste momento emergencial.

Visando explorar a atual dinâmica de trabalho dos BNRs da assistência social no contexto brasileiro de pandemia, o Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getulio Vargas (NEB/FGV EAESP) realizou um survey com trabalhadores da linha de frente em serviços da assistência social. Esta pesquisa foi realizada virtualmente entre 15/04/2020 e 01/05/2020 e contou com a participação voluntária de 439 respondentes. As perguntas foram quantitativas e qualitativas para capturar suas percepções e como eles estão lidando com a crise. Burocratas de nível de rua que trabalham nos três níveis da rede de assistência social - básica, média e alta - em serviços municipais de 16 estados do país contribuíram para esta pesquisa2 2 Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo. .

Em relação ao perfil dos profissionais que responderam aos questionários, houve concentração de respondentes atuantes na região Sudeste do país (53,99%), com destaque para o estado de São Paulo, que sozinho contabilizou pouco mais da metade de todos os participantes. Em relação ao gênero, 85,88% dos colaboradores eram mulheres, 12,76%, homens e 1,37% preferiu não declarar sua identidade de gênero. Além disso, quanto à existência de vínculos anteriores com a região em que atuam, 26,88% dos respondentes alegaram não ter nenhuma relação prévia com a área onde trabalham; 44,42% disseram ter nascido na região e 22,78% disseram ter vínculo anterior sem especificar quais. Nessa primeira rodada da pesquisa não foi possível captar outras características dos profissionais, como histórico profissional e vínculo empregatício - se eram servidores públicos ou funcionários terceirizados. Como mencionado previamente, esta pesquisa se baseou em uma amostra de conveniência, e não aleatória. Isso significa que não podemos generalizar os resultados, mas olhar para as especificidades internas ao grupo de entrevistados.

Os resultados da aplicação dos questionários, combinados com dados coletados em consultas a representantes governamentais e em um debate online com BNRs atuantes em serviços da assistência social na cidade de São Paulo, realizado virtualmente pelo NEB/FGV EAESP em 16/05/2020, descrevem um cenário preocupante. Em primeiro lugar, eles apontam falhas no fornecimento de equipamento de proteção individual (EPI) para esses trabalhadores: 62% dos participantes da pesquisa não receberam o equipamento necessário para se proteger. Além dessas ausências, os atrasos também parecem contribuir para a proteção inadequada no local de trabalho: em São Paulo, os EPIs só foram disponibilizados aos BNRs mais de um mês após o início da quarentena, após a resolução de um conflito entre organizações da sociedade civil (OSCs), contratadas para implantar parte dos serviços de assistência social, e a Prefeitura sobre quem deveria ser responsável por oferecer esses insumos.

Além disso, se respostas governamentais tímidas e descoordenadas estão marcadamente presentes na história da assistência social, isso, infelizmente, não foi diferente desta vez. Por um lado, faltam orientações para os BNRs sobre os procedimentos de trabalho na crise atual: 87% dos respondentes da pesquisa não tiveram treinamento sobre como lidar com a COVID-19, 59% não sentiram apoio de seus superiores para enfrentar a pandemia e 46% não receberam orientação de seus líderes sobre como agir durante esta crise. Na cidade de São Paulo, essa situação também é delicada, já que as diretrizes de hospedagem para a rede de assistência social durante a pandemia foram estabelecidas apenas dois meses após os primeiros casos confirmados no município.

Por outro lado, a pandemia evidenciou as dificuldades da promoção de um trabalho de assistência social articulado e coordenado. Muitas das ações emergenciais em desenvolvimento estão ocorrendo em paralelo à estrutura institucional do SUAS e a cidade de São Paulo é um caso didático disso. Em grande medida, as medidas apresentadas por esta Prefeitura estão voltadas para a entrega de alimentos às comunidades vulneráveis, viabilizadas por um programa recém-criado e mencionado previamente, o Programa Cidade Solidária, que é coordenado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e implantado de forma desvinculada da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) e da rede de assistência social pré-existente. No que diz respeito à população em situação de rua, a oferta de atendimento tem se expandido um pouco, com a disponibilização de vagas de atendimento de emergência pela SMADS, a expansão de alimentos alternativos e a instalação de bebedouros e pias para facilitar a higiene. Porém, essas medidas pouco têm a ver com a necessidade dos equipamentos públicos e, sobretudo, com as necessidades dos profissionais da linha de frente e das famílias em situação de vulnerabilidade social.

Como consequência, os BNRs sentem-se pouco apoiados e despreparados para garantir a continuidade dos serviços com segurança. As respostas da pesquisa indicam que 90,5% dos entrevistados têm medo do coronavírus e quase metade deles (43%) conhecem colegas de trabalho que foram infectados ou apresentam sintomas. Diante de notificações de óbitos e desligamentos de trabalhadores da rede da assistência social por conta da COVID-19, a SMADS tem sido alvo de protestos de entidades representativas dos trabalhadores por não divulgar o número de trabalhadores infectados ou as mortes, e por não oferecer equipamentos de proteção individual nem testar esses profissionais.

Os resultados também ilustram que os BNRs vivenciam a pandemia e seus efeitos de diferentes formas, considerando o impacto da crise em cada tipo de serviço. Por exemplo, de acordo com relatos de trabalhadores da linha de frente em São Paulo, funcionários de abrigos para pessoas em situação de rua continuam trabalhando presencialmente, mesmo com o risco de contágio, e testemunham um aumento significativo da procura pelo serviço e das dificuldades dos cidadãos. Por outro lado, trabalhadores em serviços do nível de complexidade básica, como os Centros para Crianças e Adolescentes (CCA), tiveram suas atividades presenciais suspensas e só mantiveram contato remoto com os cidadãos. Essa forma de comunicação é desafiadora, pois muitas das famílias atendidas têm acesso limitado à internet. Conhecendo a realidade do público atendido, cabe a esses trabalhadores da linha de frente decidirem se ações emergenciais devem ser tomadas, como a distribuição de alimentos e artigos de higiene, e se devem manter comunicação virtual ou desenvolver algumas visitas e atividades presenciais.

Além disso, os resultados da pesquisa levantam questões sobre a capacidade desses serviços responderem ao aumento da demanda. Entre as perguntas feitas, duas demonstram isso significativamente. Na primeira, quando questionados se a crise do coronavírus alterou sua dinâmica de trabalho, 74,5% dos entrevistados responderam positivamente. A continuação desta questão, que solicitava uma explicação de como foi alterada a dinâmica de trabalho, obteve 328 respostas, que foram analisadas e codificadas em categorias. A Tabela 1 mostra as categorias mais recorrentes.

Tabela 1
Categorias mais comuns sobre como a pandemia mudou a dinâmica do trabalho

Este quadro revela que o uso de EPI não foi a mudança mais marcante na dinâmica de trabalho dos BNRs e que o atendimento presencial e a criação de vínculo com o cidadão, os pilares dos serviços da assistência social, foram profundamente afetados. As respostas mais recorrentes apontaram que os serviços estão sendo realizados remotamente (25%), foram reduzidos ou suspensos (14%) ou foram oferecidos em momentos diferentes e com menos burocratas de nível de rua, que passaram a trabalhar em escala (14%). Apenas 8% dos entrevistados indicaram que têm trabalhado mais na pandemia.

A segunda questão pergunta se a pandemia mudou a forma como os BNRs se relacionam com os cidadãos. A grande maioria (87%) respondeu positivamente. A próxima pergunta, que pediu que os respondentes explicassem como essas relações foram alteradas, recebeu 311 respostas, posteriormente analisadas e codificadas em categorias. A Tabela 2 apresenta as categorias mais comuns para esta questão.

Tabela 2
Categorias mais comuns sobre como a pandemia alterou as relações dos BNRs com os cidadãos

Esta tabela demonstra que, durante a crise da COVID-19, os serviços da assistência social se adaptaram rapidamente, transformando o trabalho continuado, face a face e permeado por vínculos socioafetivos com famílias vulneráveis. Parte significativa dos entrevistados (40%) indicou que, quando há reuniões presenciais, elas são marcadas pelo estabelecimento de distância física. Outros relatos sugeriram que, em muitos casos, os trabalhadores nem chegam a ter um encontro cara a cara com os cidadãos, pois estão em isolamento social (16,5%), trabalham remotamente (7%) e tiveram suas atividades reduzidas ou suspensas (4%). Um terceiro grupo de participantes relatou impactos emocionais negativos (8,6%), como medo e frustração, quanto à sua relação com os cidadãos e reconhece que o vínculo com eles ficou diferente (6%).

Em síntese, dado o contexto atual, é razoável argumentar que os burocratas de nível de rua estão despreparados e sem apoio para responder adequadamente às demandas existentes e emergentes do público por serviços de assistência social. Por um lado, essa crise tem agravado problemas relacionados à relação desses trabalhadores com os governos, como recursos insuficientes, escassez de informações e orientações. Isso aumenta a incerteza desses trabalhadores sobre seu desempenho e sua segurança (e dos cidadãos atendidos).

Por outro lado, a pandemia cria novos problemas na relação entre os cidadãos e os trabalhadores da linha de frente. Diante da necessidade de distanciamento, os BNRs sofrem para manter os vínculos construídos presencialmente. As estratégias de trabalho remoto atendem apenas parcialmente a necessidade de comunicação com as famílias atendidas. Um estudo recente indica que, entre a população das classes D e E, que inclui as famílias de renda mais baixa do país e provavelmente aquelas atendidas por serviços de assistência social, metade delas tem acesso à internet e apenas 14% têm computador em casa3 3 Recuperado de https://www.cetic.br/media/analises/tic_domicilios_2019_coletiva_imprensa.pdf . Além disso, a distância física altera a maneira rotineira de criar vínculos em reuniões presenciais. Com EPI, e nas palavras de um dos entrevistados da pesquisa, “sem apertos de mão, sem beijos, sem abraços, sem diálogos íntimos”, é preciso repensar a forma como o trabalho é feito e lidar com sentimentos ambíguos, de medo e de preocupação com o outro.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo teve como objetivo analisar o impacto da pandemia no funcionamento dos serviços de assistência social no Brasil, a partir das vozes de quem trabalha no nível da rua. O processo de fortalecimento institucional desta política, principalmente por meio do Sistema Único de Assistência Social, gerou maior padronização dos serviços, ampliou a população atendida e aumentou a capacidade de implantação dos governos municipais. Porém, ainda estava consolidando seus procedimentos e metodologias quando seu financiamento foi fortemente reduzido a partir de 2017. Neste contexto, os serviços de assistência social contêm, simultaneamente, grande potencial para minimizar os efeitos adversos da crise atual sobre a população mais vulnerável e uma atuação que, antes de se solidificar, foi enfraquecida. Metaforicamente, pode-se dizer que a própria política de assistência social avançava, mesmo com “baixa imunidade”, quando foi afetada por um surto do novo coronavírus.

Os resultados aqui apresentados indicam que esse potencial foi pouco explorado durante a pandemia. Os BNRs que atuam na prestação de serviços de assistência social estão recebendo orientações difusas e recursos e EPIs restritos. As decisões de políticos e gestores públicos afetam a forma como os profissionais da linha de frente agem durante esta crise sem precedentes e têm efeitos diretos em suas interações diárias com os cidadãos. Os trabalhadores de nível de rua também devem lidar com as novidades dos territórios em que atuam. Instalações dos serviços da proteção social básica tiveram suas atividades nos territórios suspensas e subutilizadas. Movimentos sociais e organizações locais assumiram papéis de liderança na prestação de assistência básica a famílias carentes, abrindo uma janela de oportunidade para futuras parcerias.

O ambiente em que esses BNRs atuam tornou-se mais incerto, imprevisível e permeável à sua discricionariedade. A política de assistência social e seus trabalhadores provavelmente continuarão sob intensa pressão mesmo após o fim desta crise de saúde, devido à crise econômica sem precedentes que vem afetando o país. Nesse sentido, os grandes desafios que já são enfrentados, potencialmente aumentarão em um futuro próximo. A relação com o cidadão, que, segundo os normativos da política, deve ter como objetivo a construção de vínculos e o acesso às demais políticas públicas, também foi transformada. Se tradicionalmente ela era pautada pelo contato pessoal, agora é reduzida ou metamorfoseada e assume um caráter face a face, mas sem proximidade física, ou um caráter puramente remoto e virtual.

Neste contexto complexo, três considerações emergem. Em primeiro lugar, os BNR enfrentam o medo do contágio e as dificuldades em fornecer ao público informações sobre programas e benefícios do governo, como o Auxílio Emergencial. Uma ação federativa mais ágil e preocupada com os trabalhadores da linha de frente poderia minimizar esse problema. Em segundo lugar, os serviços de assistência social estão subutilizados. Também não se deve negligenciar que a sua execução se baseia no estabelecimento de vínculos com as famílias e com os serviços dos territórios e que as condições para tal estão profundamente afetadas neste momento. Essas questões alertam para a urgência de se analisar quais são as condições e possibilidades para a assistência social contribuir para o enfrentamento da pandemia, considerando a resposta potencial na rede existente, as novas regras de convivência social e o aprofundamento da vulnerabilidade entre as famílias atendidas e os territórios em que vivem.

Por fim, um dos efeitos dessa lacuna de serviços e, portanto, sobre a atuação dos BNRs, parece ser o aumento da discricionariedade desses trabalhadores na pandemia, que podem responder com vocação e heroísmo (Maynard-Moody & Musheno, 2003Maynard-Moody, S., & Musheno, M. (2003). Cops, teachers, counselors: narratives of street-level judgment. Ann Arbor, Michigan: University of Michigan Press.) ou com foco em sua segurança e inação. No nosso caso, em um contexto de medo e falta de apoio institucional, parece que os BNR têm privilegiado a inação e sua segurança. Ao final, o difícil contexto em que esses cuidadores estão atuando torna alguns deles impossibilitados de cuidar.

REFERENCES

  • Alcadipani, R., Cabral, S., Fernandes, A., & Lotta, G. (2020). Street-level bureaucrats under COVID-19: Police officers’ responses in constrained settings, Administrative Theory & Praxis Retrieved from https://doi.org/10.1080/10841806.2020.1771906
    » https://doi.org/10.1080/10841806.2020.1771906
  • Brodkin, E.Z. (2012), Reflections on Street‐Level Bureaucracy: Past, Present, and Future. Public Admin Rev, 72, 940-949. Retrieved from https://doi.org/10.1111/j.1540-6210.2012.02657.x
    » https://doi.org/10.1111/j.1540-6210.2012.02657.x
  • Campello, T., Gentili, P., Rodrigues, M., & Hoewell, G. R. (2018). Faces da desigualdade no Brasil: um olhar sobre os que ficam para trás. Saúde Debate, 42(spe3), 54-66.
  • Colin, D. R. A., Crus, J. F., Tapajós, L. M. S., & Albuquerque, S. A. (Orgs.). (2013). Coletânea de Artigos Comemorativos dos 20 Anos da Lei Orgânica de Assistência Social Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
  • Dubois, V. (1999). La vie au guichet: relation administrative et traitement de la misère Paris, France: Economica. (Collection Études Politiques).
  • Dunlop, C. A., Ongaro, E., & Baker, K. (2020). Researching COVID-19: A Research Agenda for Public Policy and Administration Scholars. Public Policy and Administration, 35(4), 365-383.
  • Henderson, A. (2014). The Critical Role of Street-Level Bureaucrats in Disaster and Crisis. In R. W. Schwester. (Ed.), Handbook of Critical Incident Analysis New York, NY: Routledge.
  • Lipsky, M. (2010). Street-level bureaucracy. Dilemmas of the individual in public service (30th anniversary expanded edition). New York, NY: Russell Sage Foundation.
  • Lotta, G. S., & Santiago, A. (2017). Autonomia e Discricionariedade: Matizando Conceitos-chave para o Estado de Burocracia. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais - BIB, 83, 21-41.
  • Matland, R. E. (1995). Synthesizing the implementation literature: The ambiguity-conflict model of policy implementation. Journal of Public Administration Research and Theory, 5(2), 145-174.
  • Maynard-Moody, S., & Musheno, M. (2003). Cops, teachers, counselors: narratives of street-level judgment Ann Arbor, Michigan: University of Michigan Press.
  • Ministério da Cidadania. (2020). Censo SUAS 2019: Bases e Resultados CRAS Brasília, DF: Secretaria Nacional de Assistência Social, Vigilância Socioassistencial.
  • Mishra, S. S. (2020). Do Street-Level Bureaucrats Exhibit Transformational Leadership for Influencing Sound Governance and Citizens’ Satisfaction?. International Journal of Public Administration Retrieved from https://doi.org/10.1080/01900692.2020.1765798
    » https://doi.org/10.1080/01900692.2020.1765798
  • Oorshot, W. (2008). Solidarity towards immigrants in European welfare states. International Journal of Social Welfare, 17(1), 3-14.
  • Tang, N., Cheng, L., & Cai, C. (2020) Making collective policy entrepreneurship work: the case of China’s post-disaster reconstruction. Journal of Asian Public Policy, 13(1), 60-78.
  • Teixeira, I. V., & Carneiro, R. (2019). A Política de Assistência Social Brasileira na Encruzilhada. SER Social, 21(45), 301-320.
  • Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. (2009). Resolução CNAS nº 109 de 11 de novembro de 2009 Brasília, DF: Conselho Nacional de Assistência Social.
  • UN Habitat. (2020, April). UN-Habitat COVID-19 Response Plan Retrieved from https://unhabitat.org/sites/default/files/2020/04/final_un-habitat_covid-19_response_plan.pdf
    » https://unhabitat.org/sites/default/files/2020/04/final_un-habitat_covid-19_response_plan.pdf
  • 1
    Recuperado de https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-10/informalidade-no-mercado-de-trabalho-e-recorde-aponta-ibge
  • 2
    Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo.
  • 3
    Recuperado de https://www.cetic.br/media/analises/tic_domicilios_2019_coletiva_imprensa.pdf
  • [Versão traduzida]

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2020

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2020
  • Aceito
    08 Set 2020
Fundação Getulio Vargas Fundaçãoo Getulio Vargas, Rua Jornalista Orlando Dantas, 30, CEP: 22231-010 / Rio de Janeiro-RJ Brasil, Tel.: +55 (21) 3083-2731 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rap@fgv.br