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O que esperar da nova proposta de reforma administrativa: uma análise da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/20

O sexto número da RAP de 2020 é lançado no momento em que vários setores da sociedade discutem a nova reforma administrativa proposta pelo governo federal. Após um longo período de especulação, em que ideias ou temas da chamada nova reforma administrativa foram lançados a “conta-gotas”, o governo federal apresentou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/20 acompanhada da exposição de motivos, um conjunto de documentos que permite analisar e avaliar concretamente as principais ações propostas.

Reformas administrativas, ao exemplo da PEC 32, definidas como políticas de gestão pública que visam à mudança deliberada e ambiciosa do aparelho burocrático, tendem a falhar ou deixam a desejar em termos de resultados concretos de transformação burocrática (March & Olson, 1993; Peci, 2016Peci, A. (2016). Burocracia(s) e reforma(s) ou o inevitável incrementalismo reformista. Sociedade, Contabilidade e Gestão, 11(3), 140-143.). Mesmo assim, estes esforços reformistas ambiciosos persistem. Com novas, antigas ou revigoradas denominações que buscam se diferenciar umas das outras, diversos governos tendem a implantar reformas abrangentes e ambiciosas, em particular em momentos de crise (March & Olson, 1983; Rezende, 2002Rezende, F. D. C. (2002). Por que reformas administrativas falham? Revista Brasileira de Ciências Sociais, 17(50), 123-142.). Boa parte das reformas opta por ignorar que a burocracia pública é um aglomerado heterogêneo e pouco monolítico, partindo para a busca de soluções homogeneizadoras, que tentam resolver tudo de uma vez, privilegiando fórmulas legais (Nascimento, 1967Nascimento, K. (1967). Reflexões sobre estratégia de reforma administrativa. Revista de Administração Pública, 1(1), 11-50.; Peci, 2007Peci, A. (2007). Reforma regulatória brasileira dos anos 90 à luz do modelo de Kleber Nascimento. Revista de Administração Contemporânea, 11(1), 11-30. ), abrindo, assim, a porta para seu questionamento e a futura falha sistêmica.

A nova PEC claramente resulta de compromissos políticos e frustra expectativas. O conjunto das ações propostas decepciona quem enxergava na reforma uma oportunidade de redução de gastos com o funcionalismo público, uma vez que não contempla os atuais servidores, refletindo os compromissos corporativistas do presidente Jair Bolsonaro e a pressão de grupos de interesse. De igual modo, a reforma desilude os que esperavam o fim dos privilégios e das desigualdades dentro do serviço público, pois deixa de fora exatamente as parcelas mais privilegiadas do funcionalismo. Por exemplo, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2020Conselho Nacional de Justiça. (2020). Justiça em números: ano-base 2019/Conselho Nacional de Justiça. Brasília, DF: Autor.), os recursos humanos são responsáveis por 90,6% da despesa total de R$ 100,2 bilhões do Poder Judiciário. Estes gastos compreendem, além da remuneração com magistrados, servidores, inativos, terceirizados e estagiários, os demais auxílios e assistências, tais como diárias, passagens, auxílio-alimentação entre outros. Entretanto, o Poder Judiciário foi deixado fora da proposta desta reforma.

Consequentemente, emerge dos compromissos uma reforma do “possível”, ou seja, alguns diagnósticos corretos, soluções ambíguas e tentativas de centralização do poder de decisão sobre estruturas administrativas e recursos humanos no presidente da República, uma proposta inusitada no contexto do presidencialismo brasileiro.

A reforma é ambígua no que diz respeito ao instituto de estabilidade dos servidores públicos. Ela prevê que o Regime Jurídico Único seja substituído por vínculos distintos, entre os quais se destacam os Cargos Típicos de Estado e os Cargos por Prazo Indeterminado, para os quais se mantém a exigência de concurso público, dando nomes novos ao que já existe, como apontado pelo professor Carlos Ari Sundfeld. A premissa de que nem todos os cargos públicos precisariam ter o mesmo tipo de vínculo ou grau de estabilidade esbarra em problemas de ordem prática e em riscos de retrocessos históricos.

Quais são e como serão definidas as Carreiras Típicas do Estado? O que elas representam no total da força de trabalho? Existe algum planejamento dessa força de trabalho, em outras palavras, uma política estruturada de gestão de pessoas no setor público que dimensione cada vínculo para o futuro próximo ou mais longínquo? A reforma falha, a não ser sustentada por análises que buscam estimar seus impactos e suas projeções futuras.

A distinção entre serviços essenciais e não essenciais abrirá espaço para lutas e conflitos de interesse. Na história recente (1995-2003), tentativas massivas de terceirização foram consideradas irregulares pelo Tribunal de Contas da União (TCU), permitindo substituição por concursados. Carreiras inteiras, ao exemplo dos reguladores federais, foram redefinidas. Abismos salariais entre professores de ensino fundamental (em torno de R$ 3 mil) e auditores fiscais da receita (R$ 30 mil), ou refletidos nas diferenças salariais para cargos iguais, a depender do órgão, já indicam quem ganha e ainda vai ganhar nesse jogo de forças.

Por outro lado, a reforma se silencia sobre o tema de profissionalização dos cargos de alta gestão - um dos principais gargalos do setor público brasileiro. Ao contrário, a reforma prevê a acumulação de funções para carreiras não permanentes, geralmente relacionados a Cargos de Direção e Assessoramento Superior, quando o caminho deveria ser o contrário. As comparações com outras reformas consideradas bem sucedidas, ao exemplo da reforma portuguesa e com o papel da Comissão de Recrutamento e Seleção neste país, tendem a ignorar que esta comissão se dedica aos processos de seleção dos cargos de alta gestão, buscando diminuir seu nível de politização (Ferraz, 2020Ferraz, D. (2020). Administração (a)política? O retrato e os fatores de seleção do dirigente público. Revista de Administração Pública, 54(5), 1166-1187.). Também se tende a ignorar que um dos principais resultados da reforma portuguesa reside na redução do número excessivo de carreiras (mais de 1.100) para apenas 3 carreiras no regime geral e em torno de 30 no regime especial (onde fazem parte professores, médicos ou enfermeiros).

A reforma diagnostica, de modo adequado, distorções no serviço público brasileiro, mas não apresenta soluções viáveis para sua superação. Aumentos retroativos, férias superiores a 30 dias ao ano, aposentadoria compulsória como punição, redução de jornada sem redução de remuneração ou centenas de carreiras com remunerações absolutamente heterogêneas resultaram de um complexo sistema infraconstitucional, capturado por alguns interesses corporativistas na burocracia de alto escalão, e refletem a falta de racionalidade administrativa.

As distorções criaram um sistema paralelo de incentivos que afasta alguns segmentos da burocracia, principalmente de alto escalão, do interesse público. A descentralização do processo decisório de criação de órgãos e carreiras, tornou tais exceções uma regra e levou à perda da visão do “governo como um todo”. Esse sistema descentralizado e caótico legal precisa ser substituído por um lócus decisório racional, mais centralizado, responsável pelo planejamento de estruturas organizacionais e políticas de recursos humanos. Mas a proposta de concessão de autonomia para o presidente da República tomar decisões sobre essas questões será frustrada. O Legislativo não delegará a nenhum presidente esse poder de decisão.

A gestão por desempenho, por sua vez, demanda o alinhamento do desempenho de políticas públicas, com as instituições e as pessoas que contribuem para o alcance deste desempenho: o principal desafio da gestão de desempenho em administração pública. Esta forma de gestão também depende de maior discricionariedade na revisão do sistema de incentivos que alinha o desempenho dos burocratas com as organizações e as políticas para as quais contribuem. A reforma é correta no diagnóstico de que não existe gestão e avaliação por resultados sem autonomia gerencial, acertando ao prever a vinculação da gestão por resultados com modificações na Lei Orçamentária. Mas a Lei Orçamentária recentemente encaminhada ao Congresso prevê essa rubrica única? Ou as discussões correram paralelamente, ilustrando os silos que existem no próprio governo?

Por fim, a reforma decepciona a não reconhecer que normas sobre as dimensões que se discutem já estão contempladas no arcabouço legal desde o Decreto-Lei 200/1967, mas são sistematicamente descumpridas há décadas. Sem combater essas forças, nem tão ocultas, que institucionalizam as distorções, a “montanha” de PEC, PLP e PL não gerará os efeitos almejados pelo documento encaminhado ao Congresso.

Sem esse conjunto de definições que traduzirá a estabilidade e a meritocracia burocrática na prática, é impossível avaliar se a reforma coibirá a captura da burocracia pública para fins políticos ou corporativos e se garantirá a continuidade de políticas públicas. Afinal, a estabilidade burocrática é uma das principais instituições consolidadas no contexto de pós-democratização do país. Pesquisas comparativas confirmam a contribuição de uma burocracia estável e selecionada de forma meritocrática para a boa governança e o combate à corrupção (Dahlström & Lapuente, 2017Dahlström, C., & Lapuente, V. (2017). Organizing leviathan: Politicians, bureaucrats, and the making of good government. Cambridge, UK: Cambridge University Press.). A necessidade de reformar e melhorar a burocracia pública no país precisa reconhecer sua heterogeneidade e as suas diversas fontes de captura, alinhando a burocracia com os interesses da sociedade. A proposta não pode apenas ameaçar as poucas institucionalidades consolidadas no contexto de democratização.

Além desta breve reflexão sobre a reforma administrativa, o editorial destaca o número especial temático Agenda setting: mudanças e a dinâmica das políticas públicas, editado pelos professores Felipe Brasil e Bryan D. Jones. O número especial reúne 12 contribuições de pesquisadores nacionais e internacionais, contribuindo para os crescentes estudos sobre agenda setting, processos de mudanças e dinâmicas das políticas públicas. Esperamos que a colaboração dos pesquisadores nacionais e internacionais materializada nesse número possa sustentar uma agenda crescente de pesquisa e redes de cooperação interinstitucional, refletindo os objetivos da estratégia de internacionalização da RAP.

Desejo a todos uma ótima leitura!

Alketa Peci

Editora-chefe

REFERÊNCIAS

  • Conselho Nacional de Justiça. (2020). Justiça em números: ano-base 2019/Conselho Nacional de Justiça Brasília, DF: Autor.
  • Dahlström, C., & Lapuente, V. (2017). Organizing leviathan: Politicians, bureaucrats, and the making of good government Cambridge, UK: Cambridge University Press.
  • Ferraz, D. (2020). Administração (a)política? O retrato e os fatores de seleção do dirigente público. Revista de Administração Pública, 54(5), 1166-1187.
  • Nascimento, K. (1967). Reflexões sobre estratégia de reforma administrativa. Revista de Administração Pública, 1(1), 11-50.
  • Peci, A. (2016). Burocracia(s) e reforma(s) ou o inevitável incrementalismo reformista. Sociedade, Contabilidade e Gestão, 11(3), 140-143.
  • Peci, A. (2007). Reforma regulatória brasileira dos anos 90 à luz do modelo de Kleber Nascimento. Revista de Administração Contemporânea, 11(1), 11-30.
  • Rezende, F. D. C. (2002). Por que reformas administrativas falham? Revista Brasileira de Ciências Sociais, 17(50), 123-142.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2020
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