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Políticas, crianças e segurança no trânsito: contribuições da abordagem WPR à análise de políticas

Políticas, niños y seguridad vial: contribuciones del enfoque de WPR al análisis de políticas

Resumo:

Consideramos a atenção pública voltada à segurança da criança no trânsito tendo por base a abordagem, de inspiração foucaultiana, What’s the Problem Represented to Be?, (WPR) de Carol Bacchi. A premissa, neste estudo, reside em utilizar textos de políticas e propostas de políticas visando acessar problematizações por meio das quais somos governados. Seu potencial é relevante para que repensemos ênfases convencionais na definição de agenda e em processos de elaboração de políticas. A WPR sugere que, na internalização do discurso da segurança da criança, o ‘problema’ do trânsito não é dado a priori, mas produzido também discursivamente no contexto das políticas e propostas de políticas, com efeitos práticos sobre o cotidiano de crianças em aglomerados urbanos.

Palavras-chave:
análise de políticas; WPR; crianças; segurança no trânsito

Resumen:

Consideramos la atención pública a la seguridad infantil en el tránsito desde el enfoque inspirado en Foucault ¿Cuál es el problema que representa ser? (WPR) de Carol Bacchi, cuya premisa radica en el uso de textos de políticas y propuestas de políticas para acceder a las problematizaciones a través de las cuales estamos gobernados. Su potencial es relevante para repensar los énfasis convencionales en el establecimiento de la agenda y en los procesos de formulación de políticas. El WPR sugiere que en la internalización del discurso de seguridad de los niños, el “problema” del tránsito no se da a priori, sino que también se produce de manera discursiva en el contexto de políticas y propuestas de políticas con efectos prácticos en la vida cotidiana de los niños en las zonas urbanas.

Palabras clave:
análisis de políticas; WPR; niños, seguridad en el tránsito

Abstract

We consider public attention to child safety in traffic from the Foucault-inspired approach What’s The Problem Represented to Be? (WPR) by Carol Bacchi, whose premise lies in using policy texts and policy proposals to access problematizations through which we are governed. It highlights a potential to rethink conventional emphases in agenda setting and in policy-making processes. The WPR approach suggests that in the internalization of children’s safety discourse, the ‘problem’ of traffic is not given a priori, but is also produced discursively in the context of policies and policy proposals with practical effects on the daily lives of children in urban areas.

Keywords:
policy analysis; WPR; children; road safety

1. INTRODUÇÃO

Segundo a perspectiva da ‘história do presente’, de Foucault (1984Foucault, M. (1984). Polemics, politics and problematizations, based on an interview conducted by Paul Rabinow. In L. Davis. (Trans.), Essential works of Foucault (Vol. 1). Ethics, NY: New Press.), o trânsito é um campo de disputas e representa um ‘problema’ para a segurança de crianças em vias públicas. No crescente alerta emitido por governos e organismos multilaterais à questão da segurança no trânsito, políticas e propostas de políticas abraçam representações daquilo que é considerado o ‘problema’. Ao mesmo tempo, contudo, tais políticas produzem problemas com significados específicos que afetam aquilo que se faz ou deixa de ser feito, bem como o cotidiano (Bacchi, 2012Bacchi, C. (2012). Why Study Problematizations? Making Politics Visible. Open Journal of Political Science, 2(1), 1-8. Recuperado de http://dx.doi.org/10.4236/ojps.2012.21001).

Neste estudo, discutimos a atenção de organizações em relação à segurança da criança no trânsito, um fenômeno aqui interrogado com base na abordagem What’s The Problem Represented to Be? (WPR), de Carol Bacchi (2009Bacchi, C. (2009). Analysing policy: what’s the problem represented to be? Frenchs Forest, New South Wales: Pearson Education.). Inspirada em Michel Foucault, Bacchi defende a possibilidade do uso de políticas e/ou de propostas de políticas para acessar problematizações por meio das quais somos governados. Pensar problematicamente, para Foucault, envolve examinar como algo é questionado, analisado, classificado e regulado em períodos e circunstâncias específicas (Deacon, 2000Deacon, R. (2000). Theory as practice: Foucault’s concept of problematization. Telos, 118, 127-142.).

Designar condições perturbadoras - a exemplo do trânsito como ‘problema’ no cotidiano de crianças - confere-lhes um sentido particular que pode ser interrogado na medida em que as políticas produzem problemas com significados específicos e que afetam práticas cotidianas. De um olhar mais atento acerca do que define a agenda política, a WPR reflete sobre o formato geral das iniciativas políticas, em que estas se engajam e o que deixam de levar em conta, desafiando uma visão convencional de que as políticas simplesmente ‘tratam’ ou ‘solucionam’ problemas (Bacchi, 2016Bacchi, C. (2016, April/June). Problematizations in Health Policy: Questioning How “Problems” Are Constituted in Policies. SAGE Open, 6(2), 1-16.). Assim, interrogar problematizações governamentais por meio dessa orientação provê, entre outras possibilidades, atenção a lacunas em políticas, o que pode nortear encaminhamentos alternativos em agendas e elaboração de políticas ao sondar pressupostos não examinados.

Este artigo está estruturado em mais quatro seções, além da introdução. Na seção 2, discutimos a abordagem WPR levando em conta seu potencial em auxiliar em redefinições de agendas e processos em políticas. Na seção 3, apresentamos os principais recortes da análise das problematizações apontadas neste estudo. Na seção 4, traçamos conclusões.

2. ANÁLISE DE POLÍTICAS SEGUNDO A ABORDAGEM WPR

A perspectiva foucaultiana é coerente com uma descrição do pensamento enquanto prática, e não como mero fenômeno mental, cognitivo, especulativo ou linguístico; trata-se de um processo que constitui de objetos e fenômenos, e que tem efeitos políticos específicos e identificáveis (Foucault, 1984Foucault, M. (1984). Polemics, politics and problematizations, based on an interview conducted by Paul Rabinow. In L. Davis. (Trans.), Essential works of Foucault (Vol. 1). Ethics, NY: New Press.). A abordagem WPR (What’s the Problem Represented to Be?), inspirada em Foucault, guia, no campo discursivo, uma interrogação crítica de textos de políticas e propostas de políticas em um estudo de problematizações governamentais (Bacchi, 2012Bacchi, C. (2012). Why Study Problematizations? Making Politics Visible. Open Journal of Political Science, 2(1), 1-8. Recuperado de http://dx.doi.org/10.4236/ojps.2012.21001). A relevância do estudo de políticas dessa forma reside, em especial, em seu potencial repensar ênfases convencionais na definição de agendas e em processos de elaboração de políticas. ‘Problemas’ não aguardam simplesmente por solução; são constituídos como tais no próprio contexto de processos de políticas (Bacchi, 2016Bacchi, C. (2015). Problematizations in Alcohol Policy: WHO’s “Alcohol Problems”. Contemporary Drug Problems, 42(2), 130-147.).

Em seu estudo sobre a loucura, Foucault precisou acessar arquivos - textos práticos ou prescritivos (e.g., decretos, regulamentações, registros hospitalares e de prisões, precedentes judiciais) - escritos para oferecer regras, opiniões e conselhos sobre comportamento. Tais textos são objeto de uma prática, uma vez que são desenhados para constituir o arcabouço de nossa conduta diária (Foucault, 1972Foucault, M. (1972). História da Loucura. São Paulo, SP: Perspectiva. ). Assim, o acesso a problematizações começa nas práticas, numa ‘história do presente’ que mostra um aspecto destoante ou inusitado em discursos contemporâneos baseados em um conhecimento cujo corpo visível não é propriamente teórico ou científico nem literário, mas prático e cotidiano (Foucault, 1984Foucault, M. (1984). Polemics, politics and problematizations, based on an interview conducted by Paul Rabinow. In L. Davis. (Trans.), Essential works of Foucault (Vol. 1). Ethics, NY: New Press.).

Bacchi (2012Bacchi, C. (2012). Why Study Problematizations? Making Politics Visible. Open Journal of Political Science, 2(1), 1-8. Recuperado de http://dx.doi.org/10.4236/ojps.2012.21001) esclarece que o propósito da WPR deve ser o de desmantelar objetos como essências fixas ou dadas como certas, questionando seu status natural para que sejam traçadas relações que resultam em sua emergência como objetos. A WPR implica questionar como um problema tem sido representado em um dado campo discursivo, destacando-se que as representações de ‘problemas’ em políticas limitam o que se aponta como ‘possível’ ou ‘desejável’, ou ‘impossível’ e ‘indesejável’. As dimensões de análise da WPR podem abranger seis eixos (Quadro 1).

Quadro 1
Dimensões analíticas da abordagem WPR

No âmbito de abordagens discursivas ligadas a políticas públicas, infância e mobilidade, buscamos aqui discernir como a segurança da criança no trânsito enquanto ‘problema’ é representada em políticas (linha de indagação 1), e refletir acerca do que não é problematizado, ou seja, silenciado nesta representação (linha de indagação 4).

Considerando recomendações de Bauer e Aarts (2002Bauer, M., & Aarts, B. (2002). A construção do corpus: um princípio para a coleta de dados qualitativos. In M. W. Bauer, & G. Gaskell (Eds.), Pesquisa Qualitativa com Texto, Imagem e Som: um manual prático (pp. 39-63). São Paulo, SP: Vozes. ) quanto a confiabilidade e validade em estudos qualitativos, procedemos à constituição de um corpus de pesquisa, um conjunto de 111 textos naturais, isto é, que caracterizam um estado ou variedade de discursos (cf.Sinclair, 1991Sinclair, J. (1991). Corpus, concordance, collocation. Oxford, UK: Oxford University Press.) acerca da segurança da criança no trânsito. O corpus é composto por: textos oriundos de sites ligados à segurança no trânsito (24 textos); notícias de dados governamentais (15); guias de segurança (02); relatórios técnicos sobre segurança viária (08); publicações da imprensa e portais de notícias (43); ofício de sindicato de transporte escolar (01); legislação (09); declarações de plano de ação (10).

Os dados, coletados em 2015, contemplam um recorte empírico que tem como ponto de partida disputas no cenário do transporte escolar em uma cidade brasileira (Recife, capital de Pernambuco). Com isso, resgatamos articulações locais do transporte escolar com o macroambiente de políticas concernentes à segurança da criança no trânsito. Como critério de seleção dos textos, consideramos sua relação com esse campo empírico.

Seguiu-se a de-superficialização dos textos, em uma análise do discurso (Orlandi, 2002Orlandi, E. P. (2002). Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes.) que demandou atenção a formas de conhecimento que sustentam políticas, a exemplo de premissas pedagógicas, psicológicas, estatísticas (cf. Bacchi, 2012Bacchi, C. (2012). Why Study Problematizations? Making Politics Visible. Open Journal of Political Science, 2(1), 1-8. Recuperado de http://dx.doi.org/10.4236/ojps.2012.21001, 2015Bacchi, C. (2015). Problematizations in Alcohol Policy: WHO’s “Alcohol Problems”. Contemporary Drug Problems, 42(2), 130-147.). A WPR possibilita discernir o que é apontado, nos textos, como algo que precisa ser mudado (aquilo considerado problemático), em um primeiro eixo, e destaca pressupostos não examinados ou silenciados (o que aparece como não problemático nas representações), em um segundo eixo de análise.

3. DISCUSSÃO: PROBLEMATIZAÇÕES ACERCA DA SEGURANÇA DA CRIANÇA NO TRÂNSITO

O acesso a problematizações tem como ponto de partida aquelas práticas do cotidiano que apontam algo destoante, ou pelo menos inusitado, em discursos correntes (Foucault, 1984Foucault, M. (1984). Polemics, politics and problematizations, based on an interview conducted by Paul Rabinow. In L. Davis. (Trans.), Essential works of Foucault (Vol. 1). Ethics, NY: New Press.). Em 08 de julho de 2015, o trânsito em Recife, capital pernambucana, encontrava-se novamente bastante lento, desta vez em virtude de uma carreata que cruzava a cidade. Da Zona Norte de Recife à Zona Sul, na sede do Sindicato do Transporte Escolar de Pernambuco (SINTESPE), condutores, em suas vans escolares, protestavam contra a falta de fiscalização do transporte escolar clandestino e a exigência de uso da cadeirinha para crianças nas vans, que entraria em vigor a partir de 1º de fevereiro de 2016 pelos Departamentos de Trânsito (DETRANs), em cumprimento à Resolução 533/2015 Resolução CONTRAN n. 533, de 17 de junho de 2015. (2015). Altera o § 3º do art. 1º da Resolução CONTRAN nº 277, de 28 de maio de 2008, de forma a tornar obrigatória a utilização do dispositivo de retenção para o transporte de crianças nos veículos escolares. Recuperado de https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=285940
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do Conselho Nacional de Trânsito (Contran). No mesmo mês, diversos outros estados replicaram, de forma inusitada, o protesto contra o que parecia razoável, isto é, a implementação de uma medida que aumentaria a segurança de crianças no trânsito, em especial no trajeto casa-escola.

Uma proposta de emenda à Constituição (PEC 74, 2013Proposta de Emenda à Constituição n. 74, de 2013. (2013). Dá nova redação ao art. 6º da Constituição Federal, para introduzir o transporte como direito social. Recuperado de https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/115729
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) incluiu o transporte como direito social do cidadão. O trânsito “em condições seguras” e como “direito de todos” é preconizado pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB) (§ 2º do Art. 1, CTB, Lei 9.503, 1997Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997. (1997). Código de Trânsito Brasileiro. Recuperado de https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/91797/codigo-de-transito-brasileiro-lei-9503-97
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). A ênfase à garantia da vida evidencia-se em resoluções diversas, como a Lei da Cadeirinha, a qual tornou o uso de dispositivos de retenção de crianças (DRC) obrigatório desde 2010 (Contran, Resolução 277, 2008Resolução CONTRAN n. 277, de 28 de maio de 2008. (2008). Dispõe sobre o transporte de menores de 10 anos e a utilização do dispositivo de retenção para o transporte de crianças em veículos. Recuperado de https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=108959
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). Nessa esfera, o transporte escolar é regulamentado e fiscalizado para garantir a segurança das crianças, sobretudo por sua importância para o acesso de crianças às escolas, de tal forma que ele se apresenta como política assegurada na Constituição (1988Proposta de Emenda à Constituição n. 74, de 2013. (2013). Dá nova redação ao art. 6º da Constituição Federal, para introduzir o transporte como direito social. Recuperado de https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/115729
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), na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

No entanto, não raro, encontram-se na mídia relatos de acidentes envolvendo transporte escolar - “Criança morre em carro que fazia transporte escolar clandestino no Rio” (METRO, 2014) Saraiva, F. (2014). Criança morre em carro que fazia transporte escolar clandestino no Rio. Metrô. Recuperado de https://www.metrojornal.com.br/foco/2014/12/13/crianca-morre-em-carro-que-fazia-transporte-escolar-clandestino-no-rio.html
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ou “Criança morre após cair de transporte escolar em Ararendá” (G1, 2015G1. (2015). Criança morre após cair de transporte escolar em Ararendá, no Ceará. Recuperado de http://g1.globo.com/ceara/noticia/2015/12/crianca-morre-apos-cair-de-transporte-escolar-em-ararenda-no-ceara.html
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). Em 2014, a sociedade civil organizada cobrava, por meio de manifesto (encabeçado pela ONG Criança Segura), mais segurança no transporte escolar brasileiro, incluindo a padronização do transporte em micro-ônibus e sua certificação (Portal do Trânsito, 2014Portal do Trânsito. (2014). A importância da segurança no Transporte Escolar. Recuperado de http://portaldotransito.com.br/noticias/transporte-escolar/a-importanciadaseguranca-no-transporte-escolar/
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). Em 2015, contudo, viam-se centenas de condutores do transporte escolar privado protestando próximo ao Congresso Nacional; nas capitais brasileiras, manifestações dos condutores integravam este movimento de valorização do transporte escolar a partir da contestação de medidas como a padronização dos veículos.

A extensão do problema da segurança da criança no trânsito é abordada em estudos e pesquisas. No Brasil, o número de mortes por acidentes de trânsito pode ser encontrado nos dados da seguradora Líder DPVAT sobre acidentes e ocorrências com indenização envolvendo crianças. Dados acerca de crianças e jovens que morrem ou ficam feridas, vítimas de acidentes de trânsito, são divulgados à proporção que estudos buscam mensurar seu custo social decorrente. No Brasil, a cada hora cerca de vinte pessoas dão entrada em um hospital da rede pública com ferimento grave decorrente de acidente de trânsito; dentre estas, cinco morrem. Segundo o Conselho Federal de Medicina, esses acidentes resultam em custos anuais de quase R$ 3 bilhões ao Sistema Único de Saúde (SUS) (Aquino, 2019Aquino, Y. (2019, maio 25). Acidentes no trânsito deixaram mais de 1,6 milhão feridos em 10 anos. Agência Brasil. Recuperado de https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2019-05/acidentes-no-transito-deixaram-mais-de-16-milhao-feridos-em-10-anos
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; G1, 2019G1. (2019). Brasil reduz mortes no trânsito, mas não deve bater meta da ONU. Recuperado de https://g1.globo.com/especial-publicitario/inovacao-em-movimento/ccr/noticia/2019/05/22/brasil-reduz-mortes-no-transito-mas-nao-deve-bater-meta-da-onu.ghtml
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). Outros relatórios apontam problemática semelhante em muitos países, incluindo o Road Safety Annual Report (OECD/ITF, 2015Organisation for Economic Cooperation and Development. (2015). Road Safety Annual Report 2015. Paris, France: OECD Publishing. Recuperado de http://dx.doi.org/10.1787/irtad-2015-en
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) e Global Status Report on Road Safety (Organização das Nações Unidas, 2015cOrganização das Nações Unidas. (2015c). Global status report on road safety 2015. Geneva, Switzerland: World Health Organization. Recuperado de https://www.who.int/violence_injury_prevention/road_safety_status/2015/en/
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).

Textos de políticas e propostas de políticas abordam o problema. A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), por meio da Resolução 64/255 (Organização das Nações Unidas, 2010Organização das Nações Unidas. (2010). Resolução 64/255. Improving global road safety. Recuperado de https://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/64/255
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), proclamou o período de 2011 a 2020 como a Década de Ação para a Segurança no Trânsito, com Plano Global para estabilização seguido de redução do nível de mortes nas ruas e estradas globais. O Brasil e mais 192 Estados-Membros da ONU aprovaram, na Cúpula da ONU sobre o Desenvolvimento Sustentável, em Nova Iorque, a meta de “[...] proporcionar transporte seguro, sustentável e a preço acessível para todos até 2030” (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento [PNUD], 2015Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. (2015). Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Recuperado de https://nacoesunidas.org/tema/agenda2030/
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). Em 2015, na 2ª Conferência Global de Alto Nível sobre Segurança no Trânsito, ‘Tempo de Resultados’, em Brasília, mais de 130 Estados-Membros da ONU aprovaram a Declaração de Brasília sobre Segurança no Trânsito (2015a) enquanto uma campanha global, #SaveKidsLives, recolhia mais de um milhão de assinaturas para a Declaração das Crianças para a Segurança Viária (Organização das Nações Unidas, 2015bOrganização das Nações Unidas. (2015b). Declaração das Crianças para a Segurança Viária. In Anais da 2º Conferência Global de Alto Nível sobre Segurança no Trânsito: Tempo de resultados. Recuperado de https://www.unroadsafetyweek.org/en/previous-weeks/2015-save-kids-lives
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).

Como campo de disputas, existem múltiplas demandas, atores, aproximações e divergências em torno das políticas para segurança no trânsito, cuja delimitação foge do escopo deste artigo. Para destacarmos contribuições da WPR na análise de políticas e propostas de políticas, a Declaração de Brasília (Organização das Nações Unidas, 2015aOrganização das Nações Unidas. (2015a). Declaração de Brasília. In Anais da 2º Conferência Global de Alto Nível sobre Segurança no Trânsito: Tempo de resultados 2015. Ministério das Relações Exteriores, Brasília, DF. Recuperado de https://www.who.int/violence_injury_prevention/road_traffic/Final_Brasilia_declaration_PT.pdf?ua=1
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), uma vez que abarca o compromisso de mais de 130 países, é alvo de nossa atenção para realçar interrogações críticas sobre o lugar das crianças em políticas de segurança no trânsito. Em seu processo de elaboração, com apresentação de comentários e sugestões ao esboço do documento, participaram Estados-Membros, agências das Nações Unidas, organizações intergovernamentais, ONGs e setor privado. Após o governo brasileiro propor uma minuta, o texto, Versão Zero (26/03/2015), teve sua consulta disponível de abril a maio de 2015 à sociedade civil; depois desta data, o processo de negociação foi intergovernamental, gerando a Versão 1 (28/05/15), Versão 2 (04/09/15) e Versão Final (19/11/15).

Esse tipo de Declaração, entre outros textos proclamados ao fim de encontros de grande porte, compõe documentos-referência que buscam espelhar a construção coletiva de conceitos fundamentais, o entendimento de questões da área e encaminhamentos derivados dessas apreensões (Pavarino, 2016Pavarino, R. V. Filho . (2016). As Declarações de Moscou e Brasília sobre a segurança no trânsito - um paralelo entre dois momentos no tema da saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 21(12), 3649-3660. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1413-812320152112.15942016
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), com efeitos práticos sobre políticas nacionais. Com suas 31 premissas (PP) e 30 objetivos (OP), o documento apresenta o ‘trânsito’ como grande questão de desenvolvimento, um problema de saúde pública e, ainda, uma das principais causas de mortes e lesões em todo o mundo. Há um destaque para o “sofrimento humano” e “custos globais”, que tornam “[...] a redução das mortes e das lesões no trânsito prioridade urgente para o desenvolvimento [...]”, ou seja, “[...] o investimento em segurança no trânsito tem impactos positivos na saúde pública e na economia” (Organização das Nações Unidas2015aOrganização das Nações Unidas. (2015a). Declaração de Brasília. In Anais da 2º Conferência Global de Alto Nível sobre Segurança no Trânsito: Tempo de resultados 2015. Ministério das Relações Exteriores, Brasília, DF. Recuperado de https://www.who.int/violence_injury_prevention/road_traffic/Final_Brasilia_declaration_PT.pdf?ua=1
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, Premissa 6).

Trata-se, ainda, de um texto prescritivo (Bacchi, 2012Bacchi, C. (2012). Why Study Problematizations? Making Politics Visible. Open Journal of Political Science, 2(1), 1-8. Recuperado de http://dx.doi.org/10.4236/ojps.2012.21001), na medida em que oferece orientações e direcionamentos sobre condutas voltadas a lidar com os aspectos problemáticos. No documento, entre outros pontos, pede-se prioridade para usuários mais vulneráveis, enfatiza-se o transporte público e não motorizado para aprimorar a segurança no trânsito, além de serem apontadas ações para gerenciar a segurança no trânsito e aprimorar a legislação e fiscalização (Quadro 2).

Quadro 2
Usos da WPR (Eixo 1) em textos de políticas de segurança no trânsito

A concepção da criança nesta representação (cf. PP3, Declaração de Brasília, 2015) é de ‘usuário do trânsito’ (OP16) em ‘situação vulnerável’ (PP11; OP16), ao lado de mulheres, pessoas com deficiência e pessoas idosas. Como principal ‘vítima’ (PP5), o texto sugere que políticas de segurança no trânsito devem ser adaptadas à proteção de vulneráveis, e a criança deve ser protegida por mecanismos de segurança, incluindo dispositivos de retenção infantil em veículos (PP22), limites de velocidade, sinalização de vias, radares com câmeras e outros mecanismos de restrição de velocidade em áreas com escolas e em zonas residenciais (OP13).

Apesar de a segurança no trânsito ser um eixo norteador, há aspectos não examinados e silenciados (Quadro 3). De antemão, planos de ação global e políticas locais decorrentes enfatizam uma linha de ação que traz como elemento essencial à segurança no trânsito “[...] a promoção de modos de transporte sustentável, em particular, transporte público e deslocamentos a pé e de bicicleta seguros” (PP19). A ênfase sobre o paradigma da sustentabilidade converge para princípios presentes na Agenda 2030 da ONU (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento [PNUD], 2015), e seus objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), os quais influenciaram premissas e objetivos no documento final. Em vários países, sobretudo na Europa, o planejamento de tráfego tem mudado, e a importância de se promover o tráfego de bicicletas e pedestres é gradualmente reconhecida em problematizações e associada a uma variedade mais ampla de instrumentos de planejamento urbano, com repercussões práticas no cotidiano de crianças.

Quadro 3
Usos da WPR (Eixo 2) em textos de políticas de segurança no trânsito

Tal ênfase contrasta, contudo, com as taxas de motorização dos países, que indicam uma expansão ininterrupta da quantidade de carros. No Brasil, em especial, em uma década (2000 a 2010) o aumento de 119% no número de veículos foi onze vezes maior que o aumento populacional. Com o aumento da frota, o Brasil já tem um automóvel para cada 4,4 habitantes. Há dez anos, a proporção era de 7,4 habitantes por carro (Denatran, 2018). Em 2017, havia 50,7 milhões de autoveículos e 15,1 milhões de motocicletas. Acidentes de trânsito são apontados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como grave questão de saúde pública, mas somente a partir do ano 2000 é que a Organização dá maior ênfase ao tema em razão da escalada significativa de traumas no trânsito, em comparação a décadas anteriores, e do aumento dos índices de motorização, sobretudo em países em desenvolvimento (Pavarino, 2016Pavarino, R. V. Filho . (2016). As Declarações de Moscou e Brasília sobre a segurança no trânsito - um paralelo entre dois momentos no tema da saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 21(12), 3649-3660. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1413-812320152112.15942016
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). Apesar de uma redução de 20,85% das mortes por acidentes de trânsito em um período de 6 anos (2011 a 2017), o Brasil permanece distante da meta, estabelecida pela ONU, de redução em 50% no número de vítimas.

Ora, o excesso de veículos motorizados em aglomerados urbanos pode obstruir a concretização de propostas de mobilidade urbana sustentável previstas em problematizações governamentais? Entendemos que a abordagem WPR, na medida em que sugere o apontamento de lacunas para um escrutínio crítico, provoca o questionamento sobre o excesso de veículos motorizados (não propriamente o veículo) levar a uma ineficiência nos fluxos urbanos. Este é um pressuposto ainda não examinado nas representações em questão, mas que tem efeitos práticos no cotidiano de crianças. A mobilidade é representada como propriedade de cidadãos ‘aptos’ em movimento, ao mesmo tempo que se aponta a necessidade de proteção diante daqueles que se movimentam de forma diferente no trânsito (Cresswell, 2013Cresswell, T. (2013). Citizenship in Worlds of Mobility. In O. Soderstrom, D. Ruedin, G. D’Amato, & F. Panese (Eds.), Critical Mobilities (pp. 105-124). London, UK: Routledge.). O direito da criança à mobilidade, no entanto, é representado de forma ambivalente.

Medidas de reordenamento do trânsito não se confundem com medidas de redução do uso de carros, isto é, a garantia de acesso a diferentes modais ou conexões intermodais não indica de forma direta a redução efetiva na aquisição ou uso de automóveis. Políticas de ‘redução’ ou ‘restrição ao uso’ de carros ainda representam uma lacuna em problematizações governamentais. Se, por um lado, identifica-se a proposição de “mecanismos de restrição de velocidade” perto de escolas e residências (Organização das Nações Unidas, 2015aOrganização das Nações Unidas. (2015a). Declaração de Brasília. In Anais da 2º Conferência Global de Alto Nível sobre Segurança no Trânsito: Tempo de resultados 2015. Ministério das Relações Exteriores, Brasília, DF. Recuperado de https://www.who.int/violence_injury_prevention/road_traffic/Final_Brasilia_declaration_PT.pdf?ua=1
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), por outro lado, políticas federais, como no Brasil, promovem a abertura de linhas de crédito e redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), que estimulam a venda de veículos sem investimentos equivalentes em infraestrutura urbana.

Há um reconhecimento, ainda, do “[...] compromisso dos Estados e da sociedade civil com a segurança no trânsito, por meio da celebração do Dia Mundial em Memória das Vítimas do Trânsito e das Semanas de Segurança no Trânsito das Nações Unidas” (PP24). Nenhuma menção é feita ao Dia Mundial Sem Carro (World Car Free Day) - criado desde 1997 na França e celebrado dia 22 de setembro em cidades do mundo todo -, que visa estimular a sociedade civil a uma reflexão sobre o uso excessivo do automóvel. A ampliação do volume de tráfego de carros faz crescer o medo de acidentes de trânsito, com efeitos práticos sobre a conduta de pedestres e ciclistas.

Importante ressaltarmos que, se o excesso de veículos motorizados em aglomerados urbanos não é claramente sinalizado como problemático, os efeitos ligados à dependência excessiva do carro pela perspectiva da saúde pública e ambiental, bem como importantes aspectos em torno da habitabilidade urbana (Pojani & Boussauw, 2014Pojani D., & Boussauw, K. (2014). Keep the children walking: active school travel in Tirana, Albania. Journal of Transport Geography, 38, 55-65.) são silenciados. Ademais, o papel do transporte escolar também não é examinado. Se considerarmos, por exemplo, que em Recife (Pernambuco) o serviço de transporte escolar prestado em vans responde por uma redução de cerca de 13 mil veículos nas portas das escolas, poderíamos indagar se o transporte escolar representaria o elemento facilitador da mobilidade urbana em propostas de políticas.

Além de prever a educação e a formação de motociclistas (OP19), numa perspectiva de adequação comportamental para uso das vias, destaca-se o objetivo de “[...] desenvolver e implementar programas educacionais e de formação abrangentes, inclusivos e baseados em evidências, em um contexto de educação continuada” (OP24). Os fatores de risco aí elencados são associados a probabilidade de levar “à distração ou à diminuição da capacidade do condutor” (OP4). A legislação prevista e as pesquisas seguem uma abordagem ‘baseada em evidências’ (OP4; OP8), num direcionamento para a resolução de problemas como uma forma de poder orientado à produção de sujeitos que satisfaçam as metas da política governamental (Bacchi, 2009Bacchi, C. (2009). Analysing policy: what’s the problem represented to be? Frenchs Forest, New South Wales: Pearson Education.).

Assim, o que é previsto em programas educacionais e de formação enfatiza a orientação comportamental. Nesse processo, o papel da escola na educação no trânsito não é examinado, nem é esclarecido em quais níveis da aprendizagem a ‘conscientização’ e ‘capacitação’ devem ocorrer. Um dos pressupostos da educação no trânsito é o de que hábitos, habilidades e atitudes internalizados por crianças influenciam seu comportamento futuro (quando forem adultos no trânsito), mas se este pressuposto não é observado nas políticas, indagamos, sob a perspectiva de Hillman, Adams, e Whitelegg (1990Hillman, M., Adams, J., & Whitelegg, J. (1990). One False Move: A Study of Children’s Independent Mobility. London, UK: Policy Studies Institute.), se a redução no número de mortes e lesões em acidentes de trânsito, posta como meta em problematizações governamentais, representaria vidas salvas, ou mortes adiadas.

Essa reflexão é pertinente considerando-se a ambivalência com que se representa a perspectiva da criança. Por um lado, a Declaração de Brasília traz a representação da criança como ser dependente e vulnerável, objeto das políticas. Por outro lado, na Declaração das Crianças para a Segurança Viária, construída pela ONU paralelamente à Declaração de Brasília (e apresentada durante a Conferência), a criança desponta como sujeito político que apresenta demandas quanto à segurança no trânsito: “[...] apelamos a todos os veículos que levam crianças, de todos os lugares e em todo o mundo, para serem seguros”, e “[s]e vocês nos derem um trânsito seguro agora, nós poderemos e iremos dar um bom exemplo às gerações futuras. Por favor, ouçam e ajam. Salvem a vida das crianças” (Organização das Nações Unidas, 2015bOrganização das Nações Unidas. (2015b). Declaração das Crianças para a Segurança Viária. In Anais da 2º Conferência Global de Alto Nível sobre Segurança no Trânsito: Tempo de resultados. Recuperado de https://www.unroadsafetyweek.org/en/previous-weeks/2015-save-kids-lives
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). Destaca-se que a versão em português da Declaração difere da versão em inglês. Por meio do documento, cujo processo de elaboração se deu com algum grau de participação de crianças em diferentes lugares no mundo, as crianças pedem mais segurança nos transportes (escolar, de carro, motos ou scooter) e ainda no trajeto casa-escola para que possam andar a pé. No entanto, seu entendimento é de que: “[somos] apenas crianças e nossas vozes nem sempre são ouvidas. Então, precisamos da ajuda de vocês para que medidas sejam tomadas” (Organização das Nações Unidas, 2015bOrganização das Nações Unidas. (2015b). Declaração das Crianças para a Segurança Viária. In Anais da 2º Conferência Global de Alto Nível sobre Segurança no Trânsito: Tempo de resultados. Recuperado de https://www.unroadsafetyweek.org/en/previous-weeks/2015-save-kids-lives
https://www.unroadsafetyweek.org/en/prev...
). A ideia de cidadania participativa, em que crianças se engajam na formulação de políticas e propostas (a exemplo da revisão de Planos Diretores em processos de políticas de planejamento urbano), é ambivalente no contexto das políticas de segurança no trânsito, na medida em que a criança é enfatizada como objeto das políticas e, não propriamente, como sujeito com capacidade de participação.

4. CONCLUSÕES

Em linha com Foucault, a WPR implica uma compreensão mais ampla do governo como atividade problematizadora, uma vez que inclui o Estado como ator ao lado de profissionais, especialistas, pesquisadores, entre outros, bem como o conhecimento que produzem. Ao passo que Foucault debruçou-se sobre o governo da ‘loucura’ e da ‘sexualidade’, técnicas mais convencionais de governo, como políticas de saúde e bem-estar da população, podem ser submetidas ao mesmo tipo de análise (Bacchi, 2012Bacchi, C. (2012). Why Study Problematizations? Making Politics Visible. Open Journal of Political Science, 2(1), 1-8. Recuperado de http://dx.doi.org/10.4236/ojps.2012.21001), como o caso das políticas voltadas à segurança da criança no trânsito, alvo de nossa atenção.

Discutimos que a abordagem WPR incorpora a sugestão de Foucault sobre a possibilidade de detectar padrões em problematizações, revelando modos ou estilos de governo que moldam vidas e subjetividades (Bacchi, 2012Bacchi, C. (2012). Why Study Problematizations? Making Politics Visible. Open Journal of Political Science, 2(1), 1-8. Recuperado de http://dx.doi.org/10.4236/ojps.2012.21001). Tendo por base usos da WPR, abordamos problematizações governamentais em que a ideia de ‘segurança’ apresenta-se como aspecto central. Como destaca Packer (2003Packer, J. (2003). Disciplining Mobility: Governing and Safety. In: Z. Bratich, J. Packer, & C. Mccarthy (Eds.), Foucault, Cultural Studies and Governmentality (pp. 135-161). Albany, NY: State University of New York Press.), parece impossível viver e não sentir os efeitos de um discurso da segurança sobre nossas vidas. A segurança enquanto discurso produz ‘verdades’ (Foucault, 1980Foucault, M. (1980). Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings 1972-1977. New York, NY: Pantheon.) que afetam o cotidiano - aí se inclui a relação da criança com o espaço urbano.

Na medida em que as estatísticas fornecem índices de acidentes de trânsito e de suas vítimas, a mobilidade urbana é problematizada nas políticas e propostas de políticas associada aos riscos que ela traz, e, nesse caso, a ideia de ‘segurança da criança’ se coloca como solução principal. Nesta direção, conhecimentos de especialistas são usados na produção de normas que apoiam políticas direcionadas a garantir o bem-estar da população. Packer (2003Packer, J. (2003). Disciplining Mobility: Governing and Safety. In: Z. Bratich, J. Packer, & C. Mccarthy (Eds.), Foucault, Cultural Studies and Governmentality (pp. 135-161). Albany, NY: State University of New York Press., p. 136) explica que “[...] uma vez solidificada, essa orientação se dispersa em uma vasta gama de contextos normativos, legitimando formas de governança e auto-governança que têm pouca relação com alguma problematização específica”. Múltiplas organizações, governamentais e não governamentais, supranacionais e multilaterais, participam dessa legitimação da segurança pessoal como um bem social (Packer, 2003Packer, J. (2003). Disciplining Mobility: Governing and Safety. In: Z. Bratich, J. Packer, & C. Mccarthy (Eds.), Foucault, Cultural Studies and Governmentality (pp. 135-161). Albany, NY: State University of New York Press.).

Os espaços em que nos movemos, muitos dos quais forjados por definições legais e políticas, são sempre significativos e, conforme menciona Cresswell (2013Cresswell, T. (2013). Citizenship in Worlds of Mobility. In O. Soderstrom, D. Ruedin, G. D’Amato, & F. Panese (Eds.), Critical Mobilities (pp. 105-124). London, UK: Routledge.), seus sentidos são constituídos por meio de arranjos particulares de poder. A inserção da criança em problematizações governamentais como ser vulnerável e dependente requer que os demais usuários prestem mais atenção a ela, e demanda uma transferência da responsabilidade por sua segurança a outros atores e organizações. Boa parte das normas de conduta em políticas de segurança no trânsito está associada a questões envolvendo segurança corporal, as quais são particularmente relevantes para pedestres e ciclistas. Mas, coerente com a perspectiva de Hillman, Adams, e Whitelegg (1990Hillman, M., Adams, J., & Whitelegg, J. (1990). One False Move: A Study of Children’s Independent Mobility. London, UK: Policy Studies Institute.), os ‘lapsos’ associados a distrações, ritmo lento ou impulsos - geralmente relacionados às crianças e aos demais públicos ‘vulneráveis’ das políticas - podem ser punidos com lesões ou até mesmo morte no tráfego pesado de aglomerados urbanos.

Há, ainda, aspectos comportamentais que refletem um desejo de se evitar o perigo, uma sensação de insegurança que em geral não constam nas estatísticas. Em contraposição à lógica de deslocamento que caracterizava o cotidiano de muitas crianças em décadas anteriores, alguns efeitos práticos de lógicas contemporâneas de mobilidade disciplinada incluem o crescente monitoramento do deslocamento de crianças, bem como sua segregação em espaços que lhe são destinados como ‘apropriados’. A WPR contribui para mostrar que, na internalização do discurso da segurança da criança, o problema do trânsito não é meramente dado a priori, mas é também produzido discursivamente no contexto das políticas e propostas de políticas, com efeitos práticos sobre o cotidiano das crianças em cidades.

AGRADECIMENTOS

Gostaríamos de agradecer à CAPES pela concessão de bolsa de estudos, e à FACEPE por bolsa para apoiar os esforços de cooperação acadêmica entre universidades nos Estados Unidos e no Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    02 Out 2019
  • Aceito
    13 Ago 2020
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