Acessibilidade / Reportar erro
Este documento está relacionado com:

Difusão de política na prática: o caso da regulação brasileira de medicamentos

Difusión de políticas en la práctica: el caso de la regulación brasileña de medicamentos

Resumo

O presente estudo busca contribuir para a melhor compreensão de processos de difusão de política com base em arenas transnacionais - mais especificamente, do processo de difusão que influenciou a regulação das Boas Práticas de Fabricação (BPF) de medicamentos no Brasil num contexto envolto por atores internacionais. Por meio de pesquisa qualitativa, analisamos o processo de adesão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ao arranjo de cooperação Pharmaceutical Inspection Co-operation Scheme (PIC/S), iniciado em 2010 e alcançado em 2021. Foi identificado um processo influenciado por 2 constelações de difusão, motivado por interesses da agência nacional em manter sua relevância e por atores que integram o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, no qual o modelo de equivalência e convergência regulatória do PIC/S se mostrou fundamental para a adaptação da referência internacional em nível nacional, mantendo o sistema em funcionamento. Tal processo de difusão de política ficou mais relevante nos últimos anos por ampliar a convergência regulatória e, potencialmente, tornar mais eficiente a avaliação das BPF de medicamentos pelas diversas autoridades sanitárias.

Palavras-chave:
difusão de política; Anvisa; boas práticas de fabricação de medicamentos; regulação

Resumen

El presente estudio pretende contribuir a una mejor comprensión de los procesos de difusión de políticas, más concretamente, del proceso de difusión que influyó en la regulación de las Buenas Prácticas de Fabricación (BPF) de medicamentos en Brasil, a partir de arenas transnacionales. A través de una investigación cualitativa, analizamos el proceso de adhesión de la Agencia Nacional de Vigilancia Sanitaria (Anvisa) al Esquema de Cooperación de Inspección Farmacéutica (PIC/S), iniciado en 2010 y alcanzado en 2021. Se identificó un proceso influenciado por dos constelaciones de difusión, motivado por el interés de la agencia nacional en mantener su relevancia y por los actores que componen el Sistema Nacional de Vigilancia Sanitaria, en el que el modelo de equivalencia y convergencia normativa del PIC/S resultó fundamental para la adaptación de la referencia internacional al ámbito nacional, manteniendo el sistema nacional en funcionamiento. Este proceso de difusión de políticas adquirió aún más relevancia en años recientes al ampliar la convergencia normativa y hacer potencialmente más eficiente la evaluación de las BPF de los medicamentos por parte de las distintas autoridades sanitarias.

Palabras clave:
difusión de la política; Anvisa; buenas prácticas de fabricación de medicamentos; regulación

Abstract

The present study seeks to contribute to a better understanding of policy diffusion processes, more specifically, of the diffusion process from a transnational arena that influenced the regulation of Good Manufacturing Practices (GMP) for medicinal products in Brazil in a context surrounded by international authorities. By conducting qualitative research, we analyzed the process of adhesion of the Brazilian Health Regulatory Agency (Anvisa) to the Pharmaceutical Inspection Co-operation Scheme (PIC/S), initiated in 2010 and achieved in 2021. A process influenced by two constellations of diffusion was identified, motivated by the national agency’s interests in maintaining its relevance and by actors that make up the National Sanitary Surveillance System, in which the PIC/S model of regulatory equivalence and convergence proved to be fundamental for the adaptation of the international reference to the national level, keeping the national system functioning. Such a policy diffusion process became even more relevant in the past years due to the expansion of regulatory convergence and potentially making the various health authorities’ GMP assessment of medicinal products more efficient.

Keywords:
policy diffusion; Anvisa; good manufacturing practices for medicinal products; regulation

1. INTRODUÇÃO

Diante de problemas de natureza transnacional, a adoção e a implementação de políticas públicas costumam seguir padrões de difusão internacional (Engler et al., 2021Engler, S., Brunner, P., Loviat, R., Abou-Chadi, T., Leemann, L., Glaser, A., … Kübler, D. (2021). Democracy in times of the pandemic: explaining the variation of covid-19 policies across European democracies. West European Politics, 44(5-6), 1077-1102. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/01402382.2021.1900669
https://doi.org/10.1080/01402382.2021.19...
; Gilardi, 2010Gilardi, F. (2010). Who learns from what in policy diffusion processes. American Journal of Political Science, 54(3), 650-666. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/j.1540-5907.2010.00452.x
https://doi.org/10.1111/j.1540-5907.2010...
; Simmons, Lloyd, & Stewart, 2018Simmons, B. A., Lloyd, P., & Stewart, B. M. (2018). The global diffusion of law: transnational crime and the case of human trafficking. International Organization, 72(2), 249-281. Recuperado dehttps://doi.org/10.1017/S0020818318000036
https://doi.org/10.1017/S002081831800003...
). Ou seja, globalmente, formuladores de políticas das mais diversas áreas se valem de experiências feitas por outros países e de lições aprendidas nesses contextos para pensar a política local (Eta & Mngo, 2020Eta, E. A., & Mngo, Z. Y. (2020). Policy diffusion and transfer of the Bologna Process in Africa’s national, sub-regional and regional contexts. European Educational Research Journal, 20(1), 59-82. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1474904120951061
https://doi.org/10.1177/1474904120951061...
; Krenjova & Raudla, 2018Krenjova, J., & Raudla, R. (2018). Policy diffusion at the local level: participatory budgeting in Estonia. Urban Affairs Review, 54(2), 419-447. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1078087416688961
https://doi.org/10.1177/1078087416688961...
; Montero, 2017Montero, S. (2017). Persuasive practitioners and the art of simplification: mobilizing the “Bogotá Model” through storytelling. Novos Estudos Cebrap, 36(1), 59-76. Recuperado dehttps://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010003
https://doi.org/10.25091/S0101-330020170...
).

A inserção em cadeias globais de valor também demanda a adaptação de regras para maior aceitação internacional. De modo específico, problemas sanitários que ultrapassam fronteiras nacionais, como a pandemia da COVID-19, ressaltam a importância de respostas governamentais para estratégias de regulação de medicamentos difundidas internacionalmente (Weible et al., 2020Weible, C. M., Nohrstedt, D., Cairney, P., Carter, D. P., Crow, D. A., Durnová, A. P. & Stone, D. (2020). Covid-19 and the policy sciences: initial reactions and perspectives. Policy Sciences, 53(2), 225-241. Recuperado dehttps://doi.org/10.1007/s11077-020-09381-4
https://doi.org/10.1007/s11077-020-09381...
) e a necessidade de repensar o atual marco regulatório e a política regulatória de medicamentos (Sebhatu, Wennberg, Arora-Jonsson, & Lindberg, 2020Sebhatu, A., Wennberg, K., Arora-Jonsson, S., & Lindberg, S. I. (2020). Explaining the homogeneous diffusion of covid-19 nonpharmaceutical interventions across heterogeneous countries. PNAS - Proceedings of the National Academy of Sciences, 117(35), 21201-21208. Recuperado dehttps://doi.org/10.1073/pnas.2010625117
https://doi.org/10.1073/pnas.2010625117...
).

Assim, o tema de difusão de política - conceito adotado neste artigo para contemplar diversos tipos de processos, como transferência, difusão (em sentido estrito) e circulação de política (Newmark, 2002Newmark, A. J. (2002). An integrated approach to policy transfer and diffusion. Review of Policy Research, 19(2), 151-178. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/j.1541-1338.2002.tb00269.x
https://doi.org/10.1111/j.1541-1338.2002...
; Porto de Oliveira & Faria, 2017Porto de Oliveira, O., & Faria, C. A. P. (2017). Policy Transfer, diffusion and circulation: research traditions and the state of the discipline in Brazil. Novos Estudos Cebrap, 36(1), 13-32. Recuperado dehttps://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010001
https://doi.org/10.25091/S0101-330020170...
; Porto de Oliveira & Pal, 2018Porto de Oliveira, O., & Pal, L. A. (2018). New frontiers and directions in policy transfer, diffusion and circulation research: agents, spaces, resistance, and translations. Revista de Administração Pública, 52(2), 199-220. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/0034-761220180078
https://doi.org/10.1590/0034-76122018007...
) - adquiriu destaque e tornou-se mais relevante, em especial no que se refere à regulação e à produção de medicamentos em nível local (Pepe, Novaes, & Osorio-de-Castro, 2021Pepe, V. L. E., Novaes, H. M. D., & Osorio-de-Castro, C. G. S. (2021). Covid-19 and the medicines regulation challenges in times of pandemic. Ciência e Saúde Coletiva, 26(10), 4693-4702. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1413-812320212610.11472021
https://doi.org/10.1590/1413-81232021261...
). Internacionalmente, as instituições têm caminhado para a harmonização de requisitos técnicos e a busca de soluções para as limitações de recursos financeiros e humanos destinados às ações de regulação do mercado de medicamentos (Costa, 2004Costa, E. A. (2004). Vigilância sanitária: proteção e defesa da saúde. Rio de Janeiro, RJ: Sobravime.; Gouveia, Rijo, Gonçalo, & Reis, 2015Gouveia, B. G., Rijo, P., Gonçalo, T. S., & Reis, C. P. (2015). Good manufacturing practices for medicinal products for human use. Journal of Pharmacy and Bioallied Sciences, 7(2), 87-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.4103/0975-7406.154424
https://doi.org/10.4103/0975-7406.154424...
; S. K. Jain & R. K. Jain, 2017Jain, S. K., & Jain, R. K. (2017). Evolution of GMP in pharmaceutical industry. Research Journal of Pharmacy and Technology, 10(2), 601-606. Recuperado dehttp://dx.doi.org/10.5958/0974-360X.2017.00118.4
https://doi.org/10.5958/0974-360X.2017.0...
; Rago & Santoso, 2008Rago, L., & Santoso, B. (2008). Drug regulation: history, present and future. In C. J. van Boxtel, B. Santoso, & R. I. Edwards (Eds.), Drug benefits and risks: international textbook of clinical pharmacology (2a ed., pp. 65-77). Uppsala, Sweden: Uppsala Monitoring Centre.; Vilarins, Shimizu, & Gutierrez, 2012Vilarins, G. C. M., Shimizu, H. E., & Gutierrez, M. M. U. (2012). A regulação em saúde: aspectos conceituais e operacionais. Saúde em Debate, 36(95), 640-647. Recuperado dehttps://scielosp.org/pdf/sdeb/2012.v36n95/640-647/pt
https://scielosp.org/pdf/sdeb/2012.v36n9...
).

As Boas Práticas de Fabricação (BPF) de medicamentos de uso humano, por exemplo, são um compilado de guias e diretrizes que devem ser seguidos durante a fabricação de produtos da área de saúde, com o objetivo de garantir a qualidade, a segurança e a eficácia (Gouveia et al., 2015Gouveia, B. G., Rijo, P., Gonçalo, T. S., & Reis, C. P. (2015). Good manufacturing practices for medicinal products for human use. Journal of Pharmacy and Bioallied Sciences, 7(2), 87-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.4103/0975-7406.154424
https://doi.org/10.4103/0975-7406.154424...
). Quando criada, em 1999, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) assumiu a atribuição pela regulação de medicamentos e, em 2010, buscou se tornar membro do Pharmaceutical Inspection Co-operation Scheme (PIC/S), um arranjo de cooperação informal entre autoridades reguladoras.

Criado em 1995, o arranjo envolve mais de 50 países-membros, no intuito de padronizar e harmonizar procedimentos de inspeção de BPF. Em janeiro de 2021, após a finalização do processo de avaliação, a Anvisa se tornou oficialmente membro do PIC/S.

Assim, buscando contribuir para a literatura em difusão de política (Hassenteufel, Benamouzig, Minonzio, & Robelet, 2017Hassenteufel, P., Benamouzig, D., Minonzio, J., & Robelet, M. (2017). Policy diffusion and translation: the case of evidence-based health agencies in Europe. Novos Estudos Cebrap, 36(1), 77-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010004
https://doi.org/10.25091/S0101-330020170...
; Porto de Oliveira & Pal, 2018Porto de Oliveira, O., & Pal, L. A. (2018). New frontiers and directions in policy transfer, diffusion and circulation research: agents, spaces, resistance, and translations. Revista de Administração Pública, 52(2), 199-220. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/0034-761220180078
https://doi.org/10.1590/0034-76122018007...
; Stone, Porto de Oliveira, & Pal, 2020Stone, D., Porto de Oliveira, O., & Pal, L. A. (2020). Transnational policy transfer: the circulation of ideas, power and development models. Policy and Society, 39(1), 1-18. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/14494035.2019.1619325
https://doi.org/10.1080/14494035.2019.16...
) e para o debate em regulação das BPF de medicamentos (A. P. J. Silva & Tagliari, 2016Silva, A. P. J., & Tagliari, P. O. P. (2016). Iniciativas de convergência regulatória em saúde nas Américas: histórico, evolução e novos desafios. Revista Panamericana de Salud Publica, 39(5), 281-287. Recuperado dehttps://iris.paho.org/handle/10665.2/28523
https://iris.paho.org/handle/10665.2/285...
; Vilarins et al., 2012Vilarins, G. C. M., Shimizu, H. E., & Gutierrez, M. M. U. (2012). A regulação em saúde: aspectos conceituais e operacionais. Saúde em Debate, 36(95), 640-647. Recuperado dehttps://scielosp.org/pdf/sdeb/2012.v36n95/640-647/pt
https://scielosp.org/pdf/sdeb/2012.v36n9...
), o presente estudo se baseia na seguinte pergunta: como a difusão de política influenciou a regulação das BPF de medicamentos no Brasil? Este trabalho busca compreender os mecanismos que explicam a difusão de política a partir de arenas transnacionais, suas especificidades e consequências para a regulação das BPF de medicamentos no contexto brasileiro.

Os resultados destacam a forte influência das arenas transnacionais no processo de difusão de política na regulação brasileira, evidenciando a interdependência entre regulações nacionais e os atores internacionais, a qual orienta o objeto da difusão, o grau de adaptação e os motivos que levaram à adequação das regras nacionais. A política implementada em âmbito nacional, ainda que parcialmente adaptada, segue parâmetros que dialogam com aquelas aplicadas por outras autoridades sanitárias que integram a arena transnacional já consolidada, caracterizada neste trabalho como uma arena transnacional fechada e com poder de chancela autoimbuído.

O artigo está estruturado em 7 seções, iniciando-se por essa introdução. Na próxima, é apresentado o referencial teórico desenvolvido sobre o tema de difusão de política. Na seção sobre a metodologia de pesquisa, são apresentados os dados coletados e é explicada a análise de conteúdo. A seção seguinte apresenta o contexto das BPF de medicamentos e inserção internacional. Os resultados detalham os achados do estudo, ao passo que, na discussão, são destacados os principais resultados à luz da teoria utilizada. Por fim, a conclusão apresenta as contribuições do estudo e propõe pesquisas futuras.

2. DIFUSÃO DE POLÍTICA

Num contexto de crescente globalização, instituições e organizações internacionais passam a ter cada vez mais influência nas políticas públicas locais (Farazmand, 2001Farazmand, A. (2001). Globalization, the state and public administration: a theoretical analysis with policy implications for developmental states. Public Organization Review, 1(4), 437-463. Recuperado dehttps://doi.org/10.1023/A:1013787932072
https://doi.org/10.1023/A:1013787932072...
; Faria, 2018). Problemas que ultrapassam a capacidade isolada de resolução de um país, como terrorismo, pandemias e biossegurança, têm impulsionado a discussão sobre o tema. Ao contrário de modelos unilaterais de governança, modelos mais abrangentes demandam uma atuação cooperativa entre atores governamentais e não governamentais, intensificando as conexões entre pessoas e Estados (Karns & Mingst, 2004Karns, M. P., & Mingst, K. A. (2004). International organizations: the politics and processes of global governance (2a ed.). London,UK: Lynne Rienner Publishers.; Weiss, 2009Weiss, T. G. (2009). What happened to the idea of world government. International Studies Quarterly, 53(2), 253-271. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/j.1468-2478.2009.00533.x
https://doi.org/10.1111/j.1468-2478.2009...
).

Na literatura, discute-se a transferência ou a difusão de uma política de forma horizontal, isto é, de um Estado para outro, ou de forma vertical, ou seja, de uma organização internacional para o Estado (Kuhlmann, Reufels, Schlichte, & Nullmeier, 2020Kuhlmann, J., Reufels, D. G., Schlichte, K., & Nullmeier, F. (2020). How social policy travels: a refined model of diffusion. Global Social Policy, 20(1), 80-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1468018119888443
https://doi.org/10.1177/1468018119888443...
). Três abordagens têm sido utilizadas para discutir esses processos: policy transfer, policy diffusion e policy circulation (Porto de Oliveira & Faria, 2017Porto de Oliveira, O., & Faria, C. A. P. (2017). Policy Transfer, diffusion and circulation: research traditions and the state of the discipline in Brazil. Novos Estudos Cebrap, 36(1), 13-32. Recuperado dehttps://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010001
https://doi.org/10.25091/S0101-330020170...
).

A primeira, em geral, descreve um processo específico que se move de uma jurisdição para outra e é tida como mais restrita/limitada, com envolvimento de poucas unidades políticas e interações, apesar de Stone (2004Stone, D. (2004). Transfer agents and global networks in the “transnationalization” of policy. Journal of European Public Policy, 11(3), 545-566. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/13501760410001694291
https://doi.org/10.1080/1350176041000169...
) propor que a transferência também pode ser mais complexa e envolver múltiplos atores. A noção de lesson drawing está inserida nessa abordagem e defende que existem diferentes formas de obter aprendizados e alterar políticas públicas com base em casos já implementados em outras jurisdições, como cópia, emulação, hibridização, síntese e inspiração (Rose, 1991).

A segunda é mais adequada a um processo de adoção coletiva de uma política (Porto de Oliveira & Faria, 2017Porto de Oliveira, O., & Faria, C. A. P. (2017). Policy Transfer, diffusion and circulation: research traditions and the state of the discipline in Brazil. Novos Estudos Cebrap, 36(1), 13-32. Recuperado dehttps://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010001
https://doi.org/10.25091/S0101-330020170...
) baseada em fatores estruturais (Newmark, 2002Newmark, A. J. (2002). An integrated approach to policy transfer and diffusion. Review of Policy Research, 19(2), 151-178. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/j.1541-1338.2002.tb00269.x
https://doi.org/10.1111/j.1541-1338.2002...
). A identificação de boas práticas e sua disseminação são processos que costumam ser analisados pela corrente de difusão (Rogers, 2003), considerando o pressuposto de que a mudança acontece “por osmose; é algo contagioso, em vez de escolhido” (Stone, 2012Stone, D. (2012). Transfer and translation of policy. Policy Studies, 33(6), 483-499. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/01442872.2012.695933
https://doi.org/10.1080/01442872.2012.69...
, p. 484). Essa corrente dá a devida atenção ao papel de ação coletiva transnacional na difusão de políticas públicas, correlacionada a atalhos cognitivos adotados por policymakers para decidir sobre políticas públicas a serem implantadas em nível local (Porto de Oliveira & Faria, 2017Porto de Oliveira, O., & Faria, C. A. P. (2017). Policy Transfer, diffusion and circulation: research traditions and the state of the discipline in Brazil. Novos Estudos Cebrap, 36(1), 13-32. Recuperado dehttps://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010001
https://doi.org/10.25091/S0101-330020170...
), levando em consideração, inclusive, a busca por conformidade a padrões internacionais (Stone, 2012Stone, D. (2012). Transfer and translation of policy. Policy Studies, 33(6), 483-499. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/01442872.2012.695933
https://doi.org/10.1080/01442872.2012.69...
).

A terceira é considerada um processo mais profuso, multidirecional, longo e vasto, em tempo e espaço, podendo implicar movimentos de idas e vindas das políticas. Tal abordagem tem um olhar atento aos atores envolvidos no processo e suas interações. O movimento transnacional de ideias, instrumentos, termos e políticas também assume papel relevante (Hassenteufel et al., 2017Hassenteufel, P., Benamouzig, D., Minonzio, J., & Robelet, M. (2017). Policy diffusion and translation: the case of evidence-based health agencies in Europe. Novos Estudos Cebrap, 36(1), 77-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010004
https://doi.org/10.25091/S0101-330020170...
; Porto de Oliveira & Faria, 2017Porto de Oliveira, O., & Faria, C. A. P. (2017). Policy Transfer, diffusion and circulation: research traditions and the state of the discipline in Brazil. Novos Estudos Cebrap, 36(1), 13-32. Recuperado dehttps://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010001
https://doi.org/10.25091/S0101-330020170...
).

Em todas as abordagens, apesar das diferenças, a ideia é analisar os processos de adoção do conhecimento sobre políticas, arranjos administrativos, instituições, ideias e filosofias de um cenário político para o desenvolvimento de outros, incluindo as prováveis mutações associadas no processo (Dolowitz, 2017Dolowitz, D. P. (2017). Transfer and learning: one coin two elements. Novos Estudos Cebrap, 36(1), 35-56. Recuperado dehttps://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010002
https://doi.org/10.25091/S0101-330020170...
; Dolowitz & Marsh, 2000Dolowitz, D. P., & Marsh, D. (2000). Learning from abroad: the role of policy transfer in contemporary policy-making. Governance, 13(1), 5-23. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/0952-1895.00121
https://doi.org/10.1111/0952-1895.00121...
; Gilardi, Shipan, & Wüest, 2021Gilardi, F., Shipan, C. R., & Wüest, B. (2021). Policy diffusion: the issue-definition stage. American Journal of Political Science, 65(1), 21-35. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/ajps.12521
https://doi.org/10.1111/ajps.12521...
; Hassenteufel et al., 2017Hassenteufel, P., Benamouzig, D., Minonzio, J., & Robelet, M. (2017). Policy diffusion and translation: the case of evidence-based health agencies in Europe. Novos Estudos Cebrap, 36(1), 77-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010004
https://doi.org/10.25091/S0101-330020170...
). Diversos autores, como Porto de Oliveira e Faria (2017Porto de Oliveira, O., & Faria, C. A. P. (2017). Policy Transfer, diffusion and circulation: research traditions and the state of the discipline in Brazil. Novos Estudos Cebrap, 36(1), 13-32. Recuperado dehttps://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010001
https://doi.org/10.25091/S0101-330020170...
), Newmark (2002Newmark, A. J. (2002). An integrated approach to policy transfer and diffusion. Review of Policy Research, 19(2), 151-178. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/j.1541-1338.2002.tb00269.x
https://doi.org/10.1111/j.1541-1338.2002...
), bem como Eta e Mngo (2020Eta, E. A., & Mngo, Z. Y. (2020). Policy diffusion and transfer of the Bologna Process in Africa’s national, sub-regional and regional contexts. European Educational Research Journal, 20(1), 59-82. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1474904120951061
https://doi.org/10.1177/1474904120951061...
), reconhecem que tais abordagens são complementares e que sua combinação pode produzir conhecimento relevante. Por ser um conceito utilizado para abranger os demais tipos de alteração de políticas com base em políticas estabelecidos em outros contextos ou instâncias, optou-se por utilizar nesta pesquisa o termo “difusão de política” como conceito amplo, sendo o processo que conecta a política doméstica à internacional (Newmark, 2002; Porto de Oliveira & Faria, 2017; Porto de Oliveira & Pal, 2018).

Neste trabalho, no intuito de compreender como a difusão de política influenciou a regulação das BPF de medicamentos no Brasil, consideramos fundamental mobilizar algumas categorias analíticas trazidas pela literatura. Uma delas é a identificação dos atores envolvidos no processo de difusão e a natureza deles. Evans e Davies (1999Evans, M., & Davies, J. (1999). Understanding policy transfer: a multi‐level, multi‐disciplinary perspective. Public Administration, 77(2), 361-385. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/1467-9299.00158
https://doi.org/10.1111/1467-9299.00158...
), Stone (2004Stone, D. (2004). Transfer agents and global networks in the “transnationalization” of policy. Journal of European Public Policy, 11(3), 545-566. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/13501760410001694291
https://doi.org/10.1080/1350176041000169...
), além de Stone et al. (2020), destacam o papel das arenas transnacionais como redes de transferência de política formadas por grupos diversos de atores que atuam na elaboração, na promoção e na aplicação de políticas em diversas áreas.

Kuhlmann et al. (2020Kuhlmann, J., Reufels, D. G., Schlichte, K., & Nullmeier, F. (2020). How social policy travels: a refined model of diffusion. Global Social Policy, 20(1), 80-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1468018119888443
https://doi.org/10.1177/1468018119888443...
), por sua vez, inovam ao identificar “constelações de difusão” como parte do framework analítico para compreender processos de difusão, pressupondo que ela pode acontecer de um país para outro, de uma organização internacional para um país, de um país para uma organização internacional ou a partir de um regime dominante. Para além da difusão por meio de organismos internacionais ou países, também é necessário reconhecer o papel de atores não estatais - como movimentos sociais, organizações não governamentais, think tanks, empresas de consultoria multinacionais - e a atuação de redes globais de políticas públicas - global public policy networks (GPPNs).

Tais redes globais de políticas públicas são bastante atuantes na área de saúde, sendo que a literatura costuma trazer como exemplos a Global Alliance on Vaccination and Immunization (Gavi); o Global Fund to Fight Aids, Tuberculosis and Malaria; e a Global Alliance for Improved Nutrition (Gain) (Stone, 2004Stone, D. (2004). Transfer agents and global networks in the “transnationalization” of policy. Journal of European Public Policy, 11(3), 545-566. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/13501760410001694291
https://doi.org/10.1080/1350176041000169...
; Stone et al., 2020Stone, D., Porto de Oliveira, O., & Pal, L. A. (2020). Transnational policy transfer: the circulation of ideas, power and development models. Policy and Society, 39(1), 1-18. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/14494035.2019.1619325
https://doi.org/10.1080/14494035.2019.16...
). Essas redes, que, na verdade, não necessariamente assumem caráter global, pois também desenvolvem atuações regionalizadas, poderiam ser compreendidas como “comunidades de prática”, conforme descrito por Gautier, Allegri, e Ridde (2021Gautier, L., Allegri, M., & Ridde, V. (2021). Transnational networks’ contribution to health policy diffusion: a mixed method study of the performance-based financing community of practice in Africa. International Journal of Health Policy and Management, 10(6), 310-323. Recuperado dehttps://doi.org/10.34172/ijhpm.2020.57
https://doi.org/10.34172/ijhpm.2020.57...
).

Na área de saúde, também se observa um movimento no sentido de construir fóruns e mecanismos de cooperação internacionais formados por autoridades na área, incluindo as de regulação (Nolte & Groenewegen, 2021Nolte, E., & Groenewegen, P. (2021). How can we transfer service and policy innovations between health systems? (Policy Brief, n. 40). Copenhagen, Denmark: World Health Organization. Recuperado dehttps://apps.who.int/iris/rest/bitstreams/1350707/retrieve
https://apps.who.int/iris/rest/bitstream...
; A. P. J. Silva & Tagliari, 2016Silva, A. P. J., & Tagliari, P. O. P. (2016). Iniciativas de convergência regulatória em saúde nas Américas: histórico, evolução e novos desafios. Revista Panamericana de Salud Publica, 39(5), 281-287. Recuperado dehttps://iris.paho.org/handle/10665.2/28523
https://iris.paho.org/handle/10665.2/285...
). A forma de integração dos países ou das autoridades nesses fóruns transnacionais direciona o que está sendo difundido - se são ideias, paradigmas, lições, interpretações (elementos considerados soft), ou se são instrumentos, legislação e regulamentos (considerados hard) (Stone, 2004Stone, D. (2004). Transfer agents and global networks in the “transnationalization” of policy. Journal of European Public Policy, 11(3), 545-566. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/13501760410001694291
https://doi.org/10.1080/1350176041000169...
) -, assim como o grau de adaptação desses objetos (Stone, 2017Stone, D. (2017). Understanding the transfer of policy failure: bricolage, experimentalism and translation. Policy & Politics, 45(1), 55-70. Recuperado dehttps://doi.org/10.1332/030557316X14748914098041
https://doi.org/10.1332/030557316X147489...
).

Como identificado por A. P. J. Silva e Tagliari (2016Silva, A. P. J., & Tagliari, P. O. P. (2016). Iniciativas de convergência regulatória em saúde nas Américas: histórico, evolução e novos desafios. Revista Panamericana de Salud Publica, 39(5), 281-287. Recuperado dehttps://iris.paho.org/handle/10665.2/28523
https://iris.paho.org/handle/10665.2/285...
), em pesquisa sobre a regulação de práticas internacionais na área de saúde, diferentes ferramentas do diálogo internacional são usadas para superar barreiras regulatórias ou comerciais, como a harmonização, a equivalência e a convergência regulatória de medidas sanitárias e regulamentos técnicos. A harmonização é usada como forma de desenvolver consensos e padronização, processo nem sempre factível graças às particularidades dos países.

Assim, ferramentas como equivalência - adoção de medidas similares mas não iguais, satisfazendo o nível de proteção considerado adequado pelo país que originalmente estabeleceu a medida - e convergência - movimento de alinhamento técnico para possibilitar a aplicação de requisitos regulatórios locais que atendam a princípios e padrões reconhecidos internacionalmente - são opções que permitem, em certo nível, adaptar a referência internacional de maneira flexível (A. P. J. Silva & Tagliari, 2016Silva, A. P. J., & Tagliari, P. O. P. (2016). Iniciativas de convergência regulatória em saúde nas Américas: histórico, evolução e novos desafios. Revista Panamericana de Salud Publica, 39(5), 281-287. Recuperado dehttps://iris.paho.org/handle/10665.2/28523
https://iris.paho.org/handle/10665.2/285...
).

Os motivos que levam ao processo de difusão de políticas públicas são sinalizados como importante categoria de análise. Considera-se que o processo de difusão pode acontecer de maneira voluntária ou coercitiva, ou em algum nível entre esses dois extremos (Stone, 2004Stone, D. (2004). Transfer agents and global networks in the “transnationalization” of policy. Journal of European Public Policy, 11(3), 545-566. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/13501760410001694291
https://doi.org/10.1080/1350176041000169...
). Evans e Davies (1999Evans, M., & Davies, J. (1999). Understanding policy transfer: a multi‐level, multi‐disciplinary perspective. Public Administration, 77(2), 361-385. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/1467-9299.00158
https://doi.org/10.1111/1467-9299.00158...
) discutem o poder de agência daqueles que escolhem adotar determinada política pública ou a força das estruturas econômicas, tecnológicas, ideológicas e institucionais que direcionam ou forçam a adoção de determinada política, mesmo que não seja de forma coercitiva. A competição entre países, por exemplo, pode ser um dos fatores que levam à adoção de determinada política (Stone, 2017Stone, D. (2017). Understanding the transfer of policy failure: bricolage, experimentalism and translation. Policy & Politics, 45(1), 55-70. Recuperado dehttps://doi.org/10.1332/030557316X14748914098041
https://doi.org/10.1332/030557316X147489...
).

Dolowitz (2006Dolowitz, D. P. (2006). Bring back the states: correcting for the omissions of globalization. International Journal of Public Administration, 29(4-6), 263-280. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/01900690500437162
https://doi.org/10.1080/0190069050043716...
) ressalta que a difusão pode estar associada a uma melhor compreensão sobre determinado tema, porém pode estar relacionada ao medo e aos riscos de ser julgado no âmbito global ou à pressão por uma ação simbólica. Dentro dos motivadores dos processos de difusão, Kuhlmann et al. (2020Kuhlmann, J., Reufels, D. G., Schlichte, K., & Nullmeier, F. (2020). How social policy travels: a refined model of diffusion. Global Social Policy, 20(1), 80-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1468018119888443
https://doi.org/10.1177/1468018119888443...
) criticam o fato de os promotores de tais processos que operam em nível micro serem constantemente negligenciados pela literatura, levando a uma redução da complexidade na compreensão de como as difusões acontecem.

Para sanar essa lacuna, os autores sugerem olhar para as pessoas atuantes no processo, para os incentivos financeiros e os recursos disponíveis, bem como para o conjunto de regras e procedimentos, visto que eles estão vinculados a ideologias específicas, muitas vezes dominantes. Por fim, conectando os atores envolvidos com as motivações, é necessário considerar que o aspecto discursivo tem caráter fundamental e que “discursos políticos não podem ser separados do atores que moldam e utilizam estratégias argumentativas a fim de legitimar e fortalecer a proposta política, convencendo outros atores” (Hassenteufel et al., 2017Hassenteufel, P., Benamouzig, D., Minonzio, J., & Robelet, M. (2017). Policy diffusion and translation: the case of evidence-based health agencies in Europe. Novos Estudos Cebrap, 36(1), 77-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010004
https://doi.org/10.25091/S0101-330020170...
, p. 81).

A última categoria analítica relevante para este trabalho se refere ao processo de implementação da difusão, que envolve os mecanismos utilizados, bem como as barreiras e/ou as facilidades encontradas no cotidiano. Evans e Davies (1999Evans, M., & Davies, J. (1999). Understanding policy transfer: a multi‐level, multi‐disciplinary perspective. Public Administration, 77(2), 361-385. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/1467-9299.00158
https://doi.org/10.1111/1467-9299.00158...
) identificaram os 12 passos necessários para processos de transferência voluntária de política: dissatisfação, busca, contato, emergência de rede de informação, cognição e recepção, emergência de rede de transferência, elite e mobilização cognitiva, interação, avaliação, decisão no fluxo da política, processo e objetivo. Os autores também identificaram os 10 passos para o processo de transferência coercitiva, que tem início com algum país ou organização internacional, forçando outro governo a adotar determinado programa.

Kuhlmann et al. (2020Kuhlmann, J., Reufels, D. G., Schlichte, K., & Nullmeier, F. (2020). How social policy travels: a refined model of diffusion. Global Social Policy, 20(1), 80-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1468018119888443
https://doi.org/10.1177/1468018119888443...
) sugerem que o processo de difusão envolve 3 diferentes estágios: percepção e tradução, cooperação e conflito, além de processo decisório coletivo. Stone et al. (2020Stone, D., Porto de Oliveira, O., & Pal, L. A. (2020). Transnational policy transfer: the circulation of ideas, power and development models. Policy and Society, 39(1), 1-18. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/14494035.2019.1619325
https://doi.org/10.1080/14494035.2019.16...
) identificam que, no cotidiano, servidores públicos como estatísticos, advogados ou pesquisadores parlamentares assumem papel central no aprendizado de lições baseadas em experiências internacionais, podendo iniciar o processo de difusão.

A partir destas categorias analíticas - atores envolvidos e escala transnacional, objeto da difusão e grau de adaptação, motivações ou promotores, bem como implementação da difusão -, o presente estudo busca compreender em profundidade o processo de difusão de políticas na regulação das BPF de medicamentos no Brasil. A seguir, apresentamos o caminho metodológico percorrido para condução desta pesquisa, seguido pela apresentação do contexto investigado.

3. METODOLOGIA

Esta pesquisa foi conduzida de maneira qualitativa, de modo que os dados foram coletados por meio de pesquisa documental e de entrevistas semiestruturadas. O estudo documental incluiu análise de documentos públicos e outros concedidos pelos responsáveis na Anvisa, incluindo procedimentos e manual da área de inspeção, legislações, relatórios de gestão, apresentações, documentos do departamento de relações internacionais relacionados ao processo de adesão ao PIC/S e informações disponíveis nos sítios eletrônicos de instituições envolvidas no processo, conforme disposto no Apêndice.

Foram realizadas 14 entrevistas semiestruturadas com respondentes qualificados (Quadro 1), contemplando representantes do setor produtivo e do setor público - integrantes do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) - que participaram diretamente do processo de atualização da regulação de BPF de medicamentos baseada no PIC/S. O objetivo foi capturar, da maneira mais abrangente possível, as diferentes experiências dos múltiplos atores envolvidos desde o início do processo. As entrevistas, realizadas em fevereiro e março de 2020, foram transcritas na íntegra.

Quadro 1
Entrevistas

A exploração dos dados se deu com o método da análise de conteúdo (Bardin, 2016Bardin, L. (2016). Análise de conteúdo. Coimbra, Portugal: Edições 70.). O objetivo foi realizar inferências ou deduções segundo mensagens obtidas na coleta de informações. Com base no referencial teórico, foram selecionadas as categorias para o exame de conteúdo, com o intuito de detalhar o processo de difusão de política, envolvendo a investigação de aspectos como a fonte da política, o grau de adaptação, como essa escolha foi realizada, quem esteve envolvido, em qual contexto ocorreu, bem como fatores facilitadores ou dificultadores da difusão. Os dados coletados foram alocados em categorias e subcategorias para análise conjunta, de modo que os resultados são descritos após a apresentação do contexto.

4. CONTEXTO: BOAS PRÁTICAS DE FABRICAÇÃO DE MEDICAMENTOS NO BRASIL E INSERÇÃO INTERNACIONAL

O uso de medicamentos de baixa qualidade é um problema global, sobretudo em países em desenvolvimento, colocando a vida de pessoas em risco e desperdiçando recursos (S. K. Jain & R. K. Jain, 2017Jain, S. K., & Jain, R. K. (2017). Evolution of GMP in pharmaceutical industry. Research Journal of Pharmacy and Technology, 10(2), 601-606. Recuperado dehttp://dx.doi.org/10.5958/0974-360X.2017.00118.4
https://doi.org/10.5958/0974-360X.2017.0...
; Wirtz et al., 2017Wirtz, V. J., Hogerzeil, H. V., Gray, A. L., Bigdeli, M., Joncheere, C. P., Ewen, M. A., … & Reich, M. R. (2017). Essential medicines for universal health coverage. The Lancet, 389(10067), 403-476. Recuperado dehttps://doi.org/10.1016/S0140-6736(16)31599-9
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(16)31...
). Nesse cenário, a regulação serve para promover acesso, qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos (Rago & Santoso, 2008Rago, L., & Santoso, B. (2008). Drug regulation: history, present and future. In C. J. van Boxtel, B. Santoso, & R. I. Edwards (Eds.), Drug benefits and risks: international textbook of clinical pharmacology (2a ed., pp. 65-77). Uppsala, Sweden: Uppsala Monitoring Centre.). De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a única maneira de assegurar a segurança e a qualidade dessas drogas é por meio de regulação e de um sistema de controle efetivo, sendo imprescindível a atuação governamental (Gouveia et al., 2015Gouveia, B. G., Rijo, P., Gonçalo, T. S., & Reis, C. P. (2015). Good manufacturing practices for medicinal products for human use. Journal of Pharmacy and Bioallied Sciences, 7(2), 87-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.4103/0975-7406.154424
https://doi.org/10.4103/0975-7406.154424...
; Wirtz et al., 2017Pharmaceutical Inspection Co-operation Scheme. (2022c, fevereiro 01). Guide to good manufacturing practice for medicinal products: annexes. Recuperado dehttps://picscheme.org/docview/4590
https://picscheme.org/docview/4590...
). Uma das principais atividades nesse campo é a regulação das BPF, que determinam os requisitos técnicos mínimos para a produção com padrões de qualidade previamente estabelecidos.

No Brasil, as BPF de medicamentos foram iniciadas em 1946. Em 1995 a regulação tornou-se mais tecnicamente detalhada, determinando o cumprimento do Guia de Boas Práticas de Fabricação para Indústrias Farmacêuticas. Mesmo assim, ao fim da década de 1990, escândalos de medicamentos falsificados e desvios de qualidade - como o caso da “pílula de farinha”, em que a farmacêutica Schering do Brasil fabricou e comercializou pílulas anticoncepcionais com amido (Santini, 2007Santini, D. (2007, novembro 10). Mães que tomaram pílula da farinha em 1998 ainda brigam por indenizações. G1. Recuperado dehttps://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL175770-5605,00.html
https://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0...
) - levaram a uma crise na vigilância sanitária (Costa, 2004Costa, E. A. (2004). Vigilância sanitária: proteção e defesa da saúde. Rio de Janeiro, RJ: Sobravime.; J. A. A. Silva, Costa, & Lucchese, 2018Silva, J. A. A., Costa, E. A., & Lucchese, G. (2018). Unified health system 30th birthday: health surveillance. Ciência e Saúde Coletiva, 23(6), 1953-1962. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1413-81232018236.04972018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018236...
).

Em 1999, por meio da Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, foi criada a Anvisa e o SNVS, composto por instituições de vigilância dos níveis federal, estadual e municipal, os quais têm responsabilidades compartilhadas.

Sob responsabilidade da Anvisa, em 2001, 2003 e 2010 foram publicadas normativas de BPF de medicamentos, baseadas nos guias da OMS e com processos de inspeção para empresas fabricantes de medicamentos influenciados por autoridades sanitárias de diversos países, como Alemanha, Canadá, Dinamarca, Estados Unidos, México e Reino Unido, bem como por outras referências internacionais, como a European Medicines Agency (EMA), a OMS e o Medical Devices Single Audit Program (MDSAP). Em 2019, houve atualização desse marco regulatório, que, diferentemente dos anteriores, se baseou nos guias publicados pelo PIC/S.

O PIC/S é um arranjo internacional estabelecido por autoridades reguladoras, com foco no campo das BPF de medicamentos de uso humano e veterinário. Trata-se de uma extensão da Pharmaceutical Inspection Convention (PIC), convenção estabelecida em 1970 entre autoridades reguladoras de países europeus para o reconhecimento mútuo de inspeções em fabricantes de produtos farmacêuticos.

Em função da restrição para admissão de membros de outras localidades, em 1995, foi estabelecido o PIC Scheme (PIC/S), que passou a ser um arranjo internacional informal e não vinculante de cooperação, aberto a qualquer autoridade regulatória que tenha um sistema de BPF de medicamentos comparável com o das outras autoridades integrantes. Atualmente, 54 autoridades-membros integram o PIC/S, buscando harmonização ou convergência de procedimentos de inspeção de BPF no mundo por meio do desenvolvimento de guias técnicos e treinamento para os inspetores.

O Guia PIC/S de Boas Práticas de Fabricação é o principal documento de harmonização, oriundo inicialmente do Guia de BPF da OMS, e, posteriormente alterado para contemplar noas áreas e avanços científicos e industriais, sendo que desde 1989, é quase idêntico ao guia de BPF utilizado pela União Europeia. Dos países latino-americanos, integram o PIC/S a Administración Nacional de Medicamentos, Alimentos y Tecnología Médica (Anmat), da Argentina (adesão em 2008); a Comisión Federal para la Protección contra Riesgos Sanitarios (Cofepris), do México (adesão em 2018); e a Anvisa, do Brasil (adesão em 2021).

As principais atividades conduzidas pelo PIC/S envolvem treinamentos de inspetores, seminários anuais - nos quais também são produzidos documentos de BPF -, programa de visitas conjuntas e inspeções supervisionadas, além de troca de informações e produção de guias por meio de círculos de especialistas. Para aderir ao PIC/S, após o pedido de uma autoridade regulatória, é conduzida uma análise detalhada para verificar se o sistema de inspeção - envolvendo inspeção em si, licenciamento, sistema de qualidade, treinamento de inspetores e legislação - é comparável aos das autoridades que já fazem parte da convenção. Após visitas técnicas, o comitê responsável fará recomendações e visitas de acompanhamento para averiguar as ações corretivas. Desde 2014, adotou-se um sistema de “pré-análise”, a fim de apoiar as autoridades reguladoras na preparação à adesão ao PIC/S.

Em 2010, a Anvisa submeteu o questionário com as informações acerca do sistema brasileiro de inspeções ao secretariado do PIC/S, buscando a adesão, a qual foi concretizada somente em janeiro de 2021, após inspeção realizada em 2019. Inspetores do PIC/S e de agências sanitárias de outros países auditaram a Anvisa, vigilâncias sanitárias estaduais (Minas Gerais) e municipais (São Paulo), bem como laboratórios farmacêuticos públicos e privados. A Figura 1 apresenta uma linha do tempo com as publicações e os acontecimentos mais importantes desde a primeira regulação em BPF feita pela Anvisa até sua aprovação como membro do PIC/S.

Figura 1
Principais eventos na evolução das BPF de medicamentos desde a criação da Anvisa

5. RESULTADOS

Os dados obtidos das entrevistas e dos documentos avaliados detalham como se deu o processo de atualização da regulação brasileira das BPF de medicamentos influenciada pelo processo de difusão de políticas. Nesta seção, apresentamos esse processo com base nas seguintes categorias: objeto, fontes e grau de adaptação; motivadores do processo; facilitadores e dificultadores da implementação.

5.1 Objeto, fontes e grau de adaptação

Para adesão da Anvisa ao PIC/S, tanto o marco regulatório de BPF de medicamentos quanto o modelo de gestão da qualidade da área de inspeção (que inclui os processos de (i) inspeção sanitária em fabricantes de medicamentos, (ii) qualificação e capacitação de inspetores e (iii) gerenciamento das inspeções realizadas pelos entes do SNVS) foram alterados. As fontes usadas para as mudanças mais recentes foram o Guia PIC/S de Boas Práticas de Fabricação e procedimentos e práticas advindas de diversas autoridades sanitárias que já fazem parte do PIC/S, em especial de Estados Unidos, México e Dinamarca, além de outras referências internacionais, como o MDSAP. Em nenhum desses objetos houve harmonização total da legislação e dos processos criados com os marcos das fontes do contexto internacional, sempre havendo alguma adaptação das normativas internacionais para o cenário brasileiro.

No processo de adesão, o PIC/S procura avaliar se o mecanismo de regulação das BPF de medicamentos é equivalente entre as autoridades sanitárias que são membros do grupo, buscando convergência regulatória. Mesmo havendo o reconhecimento da necessidade de adaptações de acordo com as particularidades relacionadas a cada mercado, após um processo de negociação entre vários atores - Anvisa e setor regulado, representado por conselhos/associações/sindicatos, ou individualmente por cada empresa -, optou-se pela aprovação de um marco regulatório idêntico ao guia do PIC/S, com a contrapartida para o setor produtivo de concessão dos prazos escalonados para a adequação de alguns requisitos:

O marco regulatório do PIC/S, hoje da Anvisa, tem pouquíssimas divergências do PIC/S, quase nada. O que tem de diferente é uma seção no final da norma [...], a qual escalona quando cada requisito, que hoje seria impossível ser implementado, vai começar a ser cobrado, dando uma previsibilidade para o setor produtivo (E3).

De maneira geral, houve baixo nível de adaptação do marco regulatório de BPF de medicamentos a partir do PIC/S. Com a alteração do marco regulatório, foi elaborado pela Anvisa um documento de perguntas e respostas, buscando tornar o processo regulatório mais transparente, inclusivo, eficaz e eficiente, o que foi reconhecido como benéfico por integrantes do SNVS:

Ela [empresa] entendeu que precisa ir por um [caminho] racional, não é surpresa. Tem claro qual é a posição da agência regulatória. Acho que o principal ponto que eu citaria é a transparência no processo. [...] Hoje, a [regulação] 301 pode ter algum ponto que não é claro. Mas, se formos ao perguntas e respostas, achamos a resposta (E11).

Diferentemente, no modelo de gestão da qualidade, foram observados distintos graus de adaptação. No campo da gestão da qualidade da área de inspeção sanitária em fabricantes de medicamentos, houve alto grau de adaptação com atualizações nos processos de inspeção. A lógica de classificação das empresas após inspeções foi inspirada no modelo dos Estados Unidos, onde a concessão de certificado do cumprimento de BPF de medicamentos é inexistente, o que demandou adaptação ao cenário brasileiro (E14).

Nesse novo modelo, o enfoque do impacto do resultado da inspeção deixa de ser o certificado e passa a ser a avaliação do risco e necessidade de adoção de medidas restritivas - por exemplo, suspensão de fabricação, importação e recolhimento -, as quais podem ser aplicadas pela autoridade sanitária nos produtos e nos estabelecimentos quando identificado o descumprimento das BPF de medicamentos.

Outra inovação foi a delimitação de ação sanitária padronizada, concebendo respostas para cada tipo de irregularidade: “A gente avançou um pouco mais em relação ao modelo da FDA (Food and Drugs Administration). Ele não tem o que a gente tem em termos de ação sanitária padronizada, que tipo de não conformidade gera uma ação ou não. Isso foi criação nossa” (E5).

Um dos importantes requerimentos para adesão ao PIC/S é o programa de qualificação e capacitação dos inspetores, também parte do modelo de gestão da qualidade da área de inspeção. Para adequar o programa aos requerimentos do PIC/S, foram tomados como parâmetros os processos das autoridades sanitárias do México e da Dinamarca. Nesse aspecto, observou-se alto grau de adaptação, considerando que o programa de qualificação e capacitação de inspetores que passou a ser implementado no Brasil é consideravelmente diferente daqueles em países onde o benchmarking foi feito:

A gente intensificou as reuniões do grupo de trabalho de documentos tripartite e fez toda uma revisão principal. Dois pontos principais são o processo de qualificação e a capacitação de inspetor, que foi bastante aprimorado em relação ao que era e já tinha sido uma crítica da auditoria da Comunidade Europeia. [...] Sabendo dessa crítica, a gente fez um networking com as autoridades do México e da Dinamarca. Fizemos uma teleconferência para eles explicarem como era o processo de qualificação e capacitação de inspetor. A Dinamarca e o México são autoridades do PIC/S. [...]. A gente vai tentar chegar ao meio-termo (E6).

No campo do gerenciamento das inspeções realizadas pelos entes do SNVS, último elemento do modelo de gestão da qualidade, houve um baixo nível de adaptação em relação à fonte utilizada. Com as regulações de 2018 e 2019, foi estabelecido um novo processo de delegação das inspeções de BPF de medicamentos, que passou a ser dependente do resultado das auditorias realizadas nos entes do SNVS, conforme modelo inspirado no PIC/S e no MDSAP. A ferramenta de auditoria foi elaborada tendo por base o modelo utilizado pelo próprio PIC/S para admissão e monitoramento de seus membros (PIC/S, 2022dPharmaceutical Inspection Co-operation Scheme. (2022d, abril 19). PIC/S Audit Checklist. Recuperado dehttps://picscheme.org/docview/4647
https://picscheme.org/docview/4647...
). A justificativa é que, com o uso da mesma ferramenta, quando a adesão ao PIC/S fosse concretizada, a autoavaliação do SNVS seria conduzida antes da avaliação do PIC/S e seria possível corrigir eventuais desvios observados, permitindo-se manter como membro do PIC/S. Ainda que adotando a mesma ferramenta, foi necessário adaptar a interpretação para avaliação de cada critério de acordo com o cenário brasileiro:

[...] os critérios de auditoria foram internalizados para dar a delegação para os estados, e eles [os critérios] foram incorporados nas auditorias internas na gerência-geral de inspeção e fiscalização sanitária. São os mesmos critérios que o PIC/S adota. O que a gente fez foi dar uma interpretação daqueles critérios, considerando o cenário nacional. [...] Então, todos aqueles critérios em que a gente foi auditado pelo PIC/S, a gente incorporou para auditar os estados, informando como a gente ia avaliar (E1).

A remodelação do processo de delegação das inspeções para os níveis estaduais e municipais foi identificada pelos entrevistados como uma das alterações relacionadas às atividades de BPF de medicamento mais profundas e desafiadoras, em função dos questionamentos acerca da autonomia dos entes do SNVS: “O grande desafio foi negociar com 27 autoridades sanitárias distintas, cada qual com sua autonomia e independência resguardadas pela Constituição Federal” (E2). Outra adaptação feita para o cenário brasileiro foi a periodicidade para a reavaliação do atingimento dos critérios de avaliação: “São ciclos, só que eles têm deadlines um pouco diferentes. [...] O nosso é mais curto” (E1). No PIC/S, as reavaliações são feitas a cada 5 anos; no SNVS, a cada 3. O objetivo dessas ações foi melhorar a coordenação, o controle e a padronização das ações do SNVS.

5.2 Motivadores

Com base na análise dos documentos e das entrevistas, foi possível identificar 4 motivadores que levaram a Anvisa a adaptar a legislação nacional e integrar-se ao PIC/S. Um deles partiu da percepção de falhas no que se refere à obsolescência da norma nacional, que considerava parâmetros internacionais prévios: “Acho que a gente ganha, a priori, com a harmonização, [...] não a deixar obsoleta, como acontecia com a última regulamentação que a gente tinha, a 17 [Resolução RDC nº 17, de 16 de abril de 2010], que tratava da OMS de 2003” (E7). “A gente estava com um marco bem defasado, seguia a nossa regulamentação, que ainda estava baseada na OMS de 2003” (E14). Assim, a Anvisa visava a uma melhoria do sistema nacional, tendo como base parâmetros internacionais mais atualizados.

Outra motivação demonstrada pelos entrevistados foi o interesse da Anvisa em fortalecer sua atuação e imagem internacionais: “[...] ocupar espaços internacionais relevantes era uma estratégia da agência para o fortalecimento de sua imagem” (E3). A ocupação de espaços internacionais e a participação mais ativa nos foros, com autoridades sanitárias mais robustas, tinha por objetivo qualificar a Anvisa e delinear mecanismos de convergência de requisitos e processos regulatórios.

A inserção no PIC/S, segundo os respondentes, traz muitos ganhos, visto que os membros são reconhecidos como autoridades que têm capacidade regulatória equivalente, facilitando acordos internacionais e o intercâmbio de informações com outras autoridades sanitárias, favorecendo a racionalização de recursos, facilitando a exportação de medicamentos e fortalecendo a indústria nacional: “O produto do Brasil se torna mais competitivo também para entrar em novos mercados, [...] e o que a gente tem de buscar é que nossas indústrias tenham esse fortalecimento tanto para atuar no nosso mercado quanto no mercado externo” (E7).

Esse aspecto traz legitimidade à própria Anvisa no cenário nacional, haja vista que as empresas reguladas questionavam a atuação da vigilância sanitária: “Muitas vezes, a gente vai a uma inspeção, principalmente com multinacionais, e eles entendem que a legislação é fraca, frágil. Agora, harmonizado ao PIC/S, não há como questionarem muito” (E12).

Sob a perspectiva do setor produtivo, observou-se o apoio principalmente à proposta de mudança do marco regulatório com base no PIC/S, que facilitaria a exportação de produtos brasileiros: “[...] a primeira coisa que consigo enxergar é que vai facilitar para as empresas brasileiras exportarem. [...] Esse pareamento em relação a PIC/S torna o Brasil um player bastante importante do mercado internacional” (E13).

Por fim, a harmonização da regulamentação brasileira aos parâmetros internacionais também era necessária para diminuir riscos. Um deles, segundo o respondente, seria uma potencial barreira ao comércio de medicamentos, causando impacto econômico negativo: “[...] é muito ruim para a questão econômica do setor farmacêutico se a gente não está pareado com a regulamentação internacional. [...] Vamos ficando com critério diferente e fechamos mercado” (E8). Além disso, outras consequências mencionadas envolvem um possível enfraquecimento do SNVS e do próprio setor produtivo instalado em território brasileiro, bem como a falta de padronização nas ações executadas pelos entes do SNVS.

5.3 Facilitadores e dificultadores da implementação

A principal dificuldade e o maior desafio apontados pelos entrevistados durante o processo de difusão da política para o cenário brasileiro foi o envolvimento e a própria manutenção do sistema descentralizado do SNVS: “Não há dúvida de que discutir a descentralização foi o principal desafio, porque o nosso modelo é diferente da maioria mundo” (E9). Devido à descentralização do SNVS, participaram do processo de adaptação dos objetos citados a Anvisa, as vigilâncias sanitárias estaduais e municipais, bem como representantes do setor produtivo (associações e sindicatos).

Conforme avaliação deles, a conformação do SNVS criava grandes desafios para o monitoramento e a harmonização das ações, o que levou à alteração dos critérios para delegação das atividades de inspeção. A discussão sobre os critérios para descentralização e delegação foi citada como difícil, precisou de tempo para ser amadurecida e foi reconhecida como determinante no processo (E14).

Outro ponto destacado como complicador no processo de adesão ao contexto internacional foi a descontinuidade da priorização do projeto de adesão ao PIC/S em alguns períodos. Segundo os entrevistados, essa descontinuidade se deu pela alta demanda da área técnica, pelos desafios orientados para demandas nacionais mais urgentes e pelas constantes mudanças de gestão e estrutura organizacional da Anvisa. Com o tempo, o nível regulatório do PIC/S foi se tornando cada vez mais robusto, representando uma barreira adicional à entrada da Anvisa. A adesão ao PIC/S voltou a ser priorizada no fim de 2018, e, considerando o prazo máximo de 10 anos imposto pelo próprio PIC/S para a conclusão do processo, havia um curto período para sua finalização, que se efetivaria após auditoria a ser realizada no SNVS, pelo PIC/S, e prevista para outubro de 2019.

O limitado tempo foi identificado como um empecilho, pois demandou a execução concomitante de muitas atividades e tomada de decisão sobre temas complexos, dada a obrigatoriedade do cumprimento do cronograma acordado, “e muitas atividades ocorreram simultaneamente, de forma a cumprir com o cronograma acordado com a executiva do PIC/S” (E2). “Acho que foi o pouco tempo; [...] havia todo um cronograma para ser inspecionado em outubro [...], para os inspetores virem acompanhar as inspeções aqui no Brasil. Foi bastante corrido” (E13). No entanto, esse prazo apertado também foi caracterizado como um catalisador para as mudanças na regulação das BPF: “a situação emergencial [...] acabou sendo um propulsor para conseguir fazer tudo, para conseguir implementar tudo tão rápido” (E8).

Entre os fatores identificados pelos entrevistados como facilitadores da alteração dos objetos mencionados, destaca-se o apoio político e executivo da alta gestão da Anvisa, junto com o engajamento da área técnica e dos gestores: “O grande facilitador foi que a equipe se engajou no processo. [...] Foi uma importância para os servidores que trabalhavam nesse tema. Eu diria esse foi o grande facilitador. Outro facilitador foi o compromisso da alta gestão nesse momento” (E7).

Ao longo de 2018 e 2019, foi conduzido um extenso processo de diálogo com o setor regulado, buscando engajamento e a promoção de um debate sobre os impactos da nova regulamentação:

Chamamos cada associação individualmente para uma reunião [...]. Isso foi discutido com todas as grandes associações, com alguns sindicatos. A gente buscou engajamento deles desde o começo. [...] Depois disso, a gente fez um diálogo setorial no auditório para apresentar a iniciativa mais uma vez, para discutir, fazer uma apresentação geral da base, do marco regulatório, da parte I do guia PIC/S. Na sequência, dividiu em grupos de trabalho para que cada grupo discutisse um anexo sobre um tema específico e levantando aquelas questões que poderiam ser um problema ou querendo tirar dúvidas de entendimento. [...] Depois, a gente fez uma rodada de discussões em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em Porto Alegre. [...] No final de tudo, ainda fez uma última reunião em São Paulo, com 300 pessoas no auditório, e 1900 e poucas conectadas à internet, vendo a discussão sobre como ficou cada termo (E3).

Além da atuação da Anvisa, houve intensa interação entre os diversos entes do SNVS, facilitando o processo: “Para o PIC/S, a gente se sentiu incluído no processo desde o começo”, afirma E10, um dos entes do SNVS.

6. DISCUSSÃO

Com base nos resultados, percebe-se ampla influência das arenas transnacionais (Evans & Davies, 1999Evans, M., & Davies, J. (1999). Understanding policy transfer: a multi‐level, multi‐disciplinary perspective. Public Administration, 77(2), 361-385. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/1467-9299.00158
https://doi.org/10.1111/1467-9299.00158...
; Stone, 2004Stone, D. (2004). Transfer agents and global networks in the “transnationalization” of policy. Journal of European Public Policy, 11(3), 545-566. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/13501760410001694291
https://doi.org/10.1080/1350176041000169...
; Stone et al., 2020Stone, D., Porto de Oliveira, O., & Pal, L. A. (2020). Transnational policy transfer: the circulation of ideas, power and development models. Policy and Society, 39(1), 1-18. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/14494035.2019.1619325
https://doi.org/10.1080/14494035.2019.16...
), sobretudo da arena que representa o PIC/S, afetando a regulação das BPF de medicamentos no Brasil. Duas constelações de difusão (Kuhlmann et al., 2020Kuhlmann, J., Reufels, D. G., Schlichte, K., & Nullmeier, F. (2020). How social policy travels: a refined model of diffusion. Global Social Policy, 20(1), 80-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1468018119888443
https://doi.org/10.1177/1468018119888443...
) foram fundamentais para o estabelecimento da nova política. Uma delas foi a da “organização internacional para o país”, que teve início com a tentativa de inserção da Anvisa no PIC/S e a consequente harmonização da política brasileira para atender aos critérios da convenção internacional, a qual foi complementada com a constelação de “país para país”, num processo proativo da agência brasileira em buscar países que já eram membros do PIC/S para adaptar a política para o cenário nacional, de modo que fosse aprovada pela convenção.

Esse processo de adaptação da política nacional foi conduzido pela Anvisa com o intuito de tornar-se membro da arena transnacional, que se configura como um fórum de cooperação internacional formado por autoridades de regulação da área específica (Nolte & Groenewegen, 2021Nolte, E., & Groenewegen, P. (2021). How can we transfer service and policy innovations between health systems? (Policy Brief, n. 40). Copenhagen, Denmark: World Health Organization. Recuperado dehttps://apps.who.int/iris/rest/bitstreams/1350707/retrieve
https://apps.who.int/iris/rest/bitstream...
; A. P. J. Silva & Tagliari, 2016Silva, A. P. J., & Tagliari, P. O. P. (2016). Iniciativas de convergência regulatória em saúde nas Américas: histórico, evolução e novos desafios. Revista Panamericana de Salud Publica, 39(5), 281-287. Recuperado dehttps://iris.paho.org/handle/10665.2/28523
https://iris.paho.org/handle/10665.2/285...
). A difusão envolveu aspectos considerados soft, como ideias, conceitos e atitudes, e principalmente elementos considerados hard, como programas, ferramentas, estruturas e práticas (Evans & Davies, 1999Evans, M., & Davies, J. (1999). Understanding policy transfer: a multi‐level, multi‐disciplinary perspective. Public Administration, 77(2), 361-385. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/1467-9299.00158
https://doi.org/10.1111/1467-9299.00158...
; Stone, 2004Stone, D. (2004). Transfer agents and global networks in the “transnationalization” of policy. Journal of European Public Policy, 11(3), 545-566. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/13501760410001694291
https://doi.org/10.1080/1350176041000169...
).

Apesar de a harmonização integral dos instrumentos de regulação não ter sido factível em alguns aspectos, em razão das particularidades do cenário local (A. P. J. Silva & Tagliari, 2016Silva, A. P. J., & Tagliari, P. O. P. (2016). Iniciativas de convergência regulatória em saúde nas Américas: histórico, evolução e novos desafios. Revista Panamericana de Salud Publica, 39(5), 281-287. Recuperado dehttps://iris.paho.org/handle/10665.2/28523
https://iris.paho.org/handle/10665.2/285...
), o modelo de equivalência e convergência regulatória se mostrou uma valiosa ferramenta para adaptar a referência internacional ao nível nacional. Nesse caso, especificamente, o processo estabelecido de adesão ao PIC/S, por mais que não exija harmonização completa, não aceita divergências ou diferenciações muito grandes, visto que “é realizada uma avaliação detalhada para determinar se a autoridade é capaz de aplicar um sistema de inspeção comparável ao das autoridades PIC/S atuais” (PIC/S, 2022ePharmaceutical Inspection Co-operation Scheme. (2022e, setembro). PIC/S Brochure 2022. Recuperado dehttps://picscheme.org/docview/4943
https://picscheme.org/docview/4943...
, p. 4). Assim, corroborando a literatura, a forma de integração das autoridades nessa arena internacional direcionou a nova política adotada, isto é, o objeto de difusão (Stone, 2004Stone, D. (2004). Transfer agents and global networks in the “transnationalization” of policy. Journal of European Public Policy, 11(3), 545-566. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/13501760410001694291
https://doi.org/10.1080/1350176041000169...
).

Tal influência não aconteceu de modo unidirecional, por pressão de agentes externos imbuídos de poder assimétrico em relação à agência nacional. Na verdade, esse caso demonstra a relevância de problematizar as categorias que distinguem as difusões entre voluntárias ou coercitivas, deixando claro que existem nuances relacionadas ao conflito entre o poder de agência individual e a força das estruturas econômicas, tecnológicas, ideológicas e institucionais (Evans & Davies, 1999Evans, M., & Davies, J. (1999). Understanding policy transfer: a multi‐level, multi‐disciplinary perspective. Public Administration, 77(2), 361-385. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/1467-9299.00158
https://doi.org/10.1111/1467-9299.00158...
).

Ao mesmo tempo que é possível identificar nos resultados a pressão exercida pelo mercado, o potencial risco de ser julgado no âmbito global e a competição entre países que leva à adoção de determinadas políticas que incluem o país num grupo mais competitivo no setor farmacêutico (Dolowitz, 2006Dolowitz, D. P. (2006). Bring back the states: correcting for the omissions of globalization. International Journal of Public Administration, 29(4-6), 263-280. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/01900690500437162
https://doi.org/10.1080/0190069050043716...
; Evans & Davies, 1999Evans, M., & Davies, J. (1999). Understanding policy transfer: a multi‐level, multi‐disciplinary perspective. Public Administration, 77(2), 361-385. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/1467-9299.00158
https://doi.org/10.1111/1467-9299.00158...
; Stone, 2004Stone, D. (2004). Transfer agents and global networks in the “transnationalization” of policy. Journal of European Public Policy, 11(3), 545-566. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/13501760410001694291
https://doi.org/10.1080/1350176041000169...
), também é possível falar de um arranjo do próprio campo para regular sua forma de produção de medicamentos tendo por base o que conheciam de outras localidades.

Identificando pelo menos 2 grandes momentos em que houve decisão de aderir ao PIC/S - um em 2010, momento do pedido de adesão, e outro em 2018, com a priorização da adaptação do marco regulatório, dado o curto prazo - e o reconhecimento pelos burocratas de que as regulações nacionais estavam obsoletas, pode-se falar de um processo voluntário de difusão (Evans & Davies, 1999Evans, M., & Davies, J. (1999). Understanding policy transfer: a multi‐level, multi‐disciplinary perspective. Public Administration, 77(2), 361-385. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/1467-9299.00158
https://doi.org/10.1111/1467-9299.00158...
). Inclusive, a agência percebia tal situação ao ser questionada pelas empresas reguladas, que preferiam seguir normativas mais atualizadas ou validadas internacionalmente.

Ao mesmo tempo, existe algum nível de coerção ou coação, visto que o PIC/S demanda um processo de mimetização das políticas frente ao que é identificado como boa prática pelas arenas internacionais. O PIC/S não representa somente uma arena transnacional, mas também uma arena transnacional fechada, com poder de chancela imbuído pelo próprio arranjo que diferencia as autoridades sanitárias com BPF consideradas atualizadas daquelas com práticas consideradas obsoletas. Desse modo, é possível perceber o estágio da difusão chamado de percepção e tradução (Kuhlmann et al., 2020Kuhlmann, J., Reufels, D. G., Schlichte, K., & Nullmeier, F. (2020). How social policy travels: a refined model of diffusion. Global Social Policy, 20(1), 80-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1468018119888443
https://doi.org/10.1177/1468018119888443...
), em que os atores nacionais reconheceram a interdependência internacional e passaram a adquirir novos conhecimentos sobre as políticas de outros países e o modelo estabelecido pelo organismo internacional para adaptá-los ao cenário nacional.

É importante salientar, utilizando o framework desenvolvido por Kuhlmann et al. (2020Kuhlmann, J., Reufels, D. G., Schlichte, K., & Nullmeier, F. (2020). How social policy travels: a refined model of diffusion. Global Social Policy, 20(1), 80-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1468018119888443
https://doi.org/10.1177/1468018119888443...
), que, entre os promotores do processo de difusão, encontra-se a perspectiva financeira, a qual se revelou uma relevante fonte de motivação para os entrevistados. Por um lado, ficando obsoleta, é possível que a legitimidade da própria agência nacional continuasse sendo questionada pelos atores regulados e fosse acometida de uma escassez de recursos. Por outro, o setor produtivo também via a adesão ao PIC/S como uma vantagem competitiva: “Esse pareamento em relação a PIC/S torna o Brasil um player bastante importante do mercado internacional” (E14).

Em relação à última categoria de análise, que é a implementação do processo de difusão, identificamos o estágio de percepção e tradução trazido por Kuhlmann et al. (2020Kuhlmann, J., Reufels, D. G., Schlichte, K., & Nullmeier, F. (2020). How social policy travels: a refined model of diffusion. Global Social Policy, 20(1), 80-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1468018119888443
https://doi.org/10.1177/1468018119888443...
), em que é reconhecida a interdependência com o cenário internacional. Os entrevistados falam da obsolescência das normas brasileiras, e, fazendo relação com o estágio inicial da difusão voluntária trazido por Evans e Davies (1999Evans, M., & Davies, J. (1999). Understanding policy transfer: a multi‐level, multi‐disciplinary perspective. Public Administration, 77(2), 361-385. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/1467-9299.00158
https://doi.org/10.1111/1467-9299.00158...
), a insatisfação e a busca são os primeiros estágios desse processo. No entanto, tal obsolescência só é identificada a partir dessa arena transnacional, à qual os atores nacionais querem se integrar, inclusive o setor produtivo.

Assim, podemos problematizar essa percepção com a noção de difusão coercitiva, na qual existe a imposição de uma política baseada num regime específico - afinal, a noção da obsolescência não emerge de uma análise das demandas nacionais, e sim da necessidade de que as regras nacionais se alinhem às regras da arena transnacional.

Desse modo, é interessante notar que o PIC/S estabelece um processo guiado para a difusão da política pública, no qual os países devem demonstrar interesse e fazer a adaptação das políticas nacionais em prazo determinado. No caso estudado, existe o estágio de pesquisa e busca, parte do processo voluntário de difusão (Evans & Davies, 1999Evans, M., & Davies, J. (1999). Understanding policy transfer: a multi‐level, multi‐disciplinary perspective. Public Administration, 77(2), 361-385. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/1467-9299.00158
https://doi.org/10.1111/1467-9299.00158...
), mas o qual é limitado às autoridades que já conseguiram ser chanceladas para participar da arena. Corroborando com Stone (2004Stone, D. (2004). Transfer agents and global networks in the “transnationalization” of policy. Journal of European Public Policy, 11(3), 545-566. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/13501760410001694291
https://doi.org/10.1080/1350176041000169...
), os integrantes afirmam procurar lições de países culturalmente próximos, como o México. No entanto, também analisaram e aprenderam com regras de países diferentes, como a Dinamarca, buscando avançar nas regulações nacionais a partir do que os atores compreendem como cenários ideais da regulação.

Considerando que a política brasileira de vigilância sanitária é estruturada no SNVS, houve um intenso e longo estágio de negociação entre os atores envolvidos no sistema para alteração da política, os quais também foram promotores do processo de difusão (Kuhlmann et al., 2020Kuhlmann, J., Reufels, D. G., Schlichte, K., & Nullmeier, F. (2020). How social policy travels: a refined model of diffusion. Global Social Policy, 20(1), 80-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1468018119888443
https://doi.org/10.1177/1468018119888443...
). Essa alteração não buscou somente traduzir as normativas para o contexto nacional, mas também adaptá-las para que viessem a melhor atender as motivações citadas antes. Como identificado por Farazmand (2001Farazmand, A. (2001). Globalization, the state and public administration: a theoretical analysis with policy implications for developmental states. Public Organization Review, 1(4), 437-463. Recuperado dehttps://doi.org/10.1023/A:1013787932072
https://doi.org/10.1023/A:1013787932072...
) e Porto de Oliveira e Pal (2018Porto de Oliveira, O., & Pal, L. A. (2018). New frontiers and directions in policy transfer, diffusion and circulation research: agents, spaces, resistance, and translations. Revista de Administração Pública, 52(2), 199-220. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/0034-761220180078
https://doi.org/10.1590/0034-76122018007...
), a formação de alianças estratégicas e coalizões com o setor privado - nesse caso, representado pelo setor produtivo farmacêutico - e representantes do governo (diversos entes do SNVS) foram fatores importantes para o sucesso da adaptação e da implementação. Um dos principais fatores que dificultaram o processo de adesão ao PIC/S foi a diretriz da descentralização no SNVS e a autonomia de seus entes, o que converge com os achados de J. A. A. Silva et al. (2018Silva, J. A. A., Costa, E. A., & Lucchese, G. (2018). Unified health system 30th birthday: health surveillance. Ciência e Saúde Coletiva, 23(6), 1953-1962. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1413-81232018236.04972018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018236...
).

Considerando a existência e a permanência do SNVS na nova política, porém, houve uma dependência da trajetória referente ao arcabouço institucional nacional no qual as políticas internacionais foram difundidas e traduzidas, concordando com Hassenteufel et al. (2017Hassenteufel, P., Benamouzig, D., Minonzio, J., & Robelet, M. (2017). Policy diffusion and translation: the case of evidence-based health agencies in Europe. Novos Estudos Cebrap, 36(1), 77-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010004
https://doi.org/10.25091/S0101-330020170...
), ao identificarem que processos de tradução são restringidos pelas instituições herdadas das políticas anteriores. Afinal, em momento algum os entrevistados falaram que se buscou romper com o SNVS e criar um sistema centralizado.

Pode-se estimar que tal rompimento criaria um risco ou desavenças ao sistema, dificultando a inserção ao PIC/S e desafiando todo o sistema de vigilância brasileiro.

Na verdade, de forma acertada, o que houve foi uma reorganização das responsabilidades de cada ente que integra o sistema, potencialmente fortalecendo o sistema e as BPF de medicamentos, com um constante processo de discussão e pesquisa: “Com essa questão de harmonizar internacionalmente, a gente tem discussões mais técnicas. ‘Vamos entender por que é assim. Se não pode ou se pode, quais são os riscos do processo?’ Então, a gente eleva o nível da fiscalização, eleva o nível da regulamentação” (E12).

A difusão, no entanto, não se encerrou no processo de adaptação da regulação de BPF de medicamentos. No futuro, com a entrada da Anvisa como membro do PIC/S, vislumbra-se que essa arena internacional tenha papel cada vez mais decisivo na elaboração e na difusão de políticas públicas, influenciando sobremaneira a política brasileira e fortalecendo a integração do Brasil na rede global. Essa aproximação do ambiente internacional tem especial relevância no cenário de pandemia da COVID-19, que trouxe desafios à Anvisa, como apontado por Pepe et al. (2021Pepe, V. L. E., Novaes, H. M. D., & Osorio-de-Castro, C. G. S. (2021). Covid-19 and the medicines regulation challenges in times of pandemic. Ciência e Saúde Coletiva, 26(10), 4693-4702. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1413-812320212610.11472021
https://doi.org/10.1590/1413-81232021261...
), e pode ter impacto positivo nas tomadas de decisão da agência por meio do uso de informações de outras autoridades do PIC/S.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando a globalização da cadeia produtiva e de distribuição de medicamentos, a regulação das BPF desses produtos está intrinsecamente relacionada ao contexto internacional por representar uma questão que demanda ação de diferentes atores e afeta múltiplos países. A difusão de política é um dos processos que estabelecem a ponte entre as diferentes instâncias nacionais ou entre instâncias supranacionais e a gestão local, concebendo a possibilidade de haver mais de uma constelação de difusão de políticas públicas no mesmo processo (Kuhlmann et al., 2020Kuhlmann, J., Reufels, D. G., Schlichte, K., & Nullmeier, F. (2020). How social policy travels: a refined model of diffusion. Global Social Policy, 20(1), 80-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1468018119888443
https://doi.org/10.1177/1468018119888443...
).

O presente estudo buscou contribuir para a literatura sobre difusão de políticas no campo da regulação de BPF de medicamentos. As dimensões analíticas utilizadas - identificadas em Dolowitz (1996); Evans e Davies (1999Evans, M., & Davies, J. (1999). Understanding policy transfer: a multi‐level, multi‐disciplinary perspective. Public Administration, 77(2), 361-385. Recuperado dehttps://doi.org/10.1111/1467-9299.00158
https://doi.org/10.1111/1467-9299.00158...
); Stone (2004Stone, D. (2004). Transfer agents and global networks in the “transnationalization” of policy. Journal of European Public Policy, 11(3), 545-566. Recuperado dehttps://doi.org/10.1080/13501760410001694291
https://doi.org/10.1080/1350176041000169...
); Stone et al. (2018); Kuhlmann et al. (2020Kuhlmann, J., Reufels, D. G., Schlichte, K., & Nullmeier, F. (2020). How social policy travels: a refined model of diffusion. Global Social Policy, 20(1), 80-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1468018119888443
https://doi.org/10.1177/1468018119888443...
) - foram relevantes para identificar e compreender os conceitos e as complexidades no fenômeno de difusão de políticas nas arenas transnacionais. As proposições analíticas de Hassenteufel et al. (2017Hassenteufel, P., Benamouzig, D., Minonzio, J., & Robelet, M. (2017). Policy diffusion and translation: the case of evidence-based health agencies in Europe. Novos Estudos Cebrap, 36(1), 77-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010004
https://doi.org/10.25091/S0101-330020170...
) e Kuhlmann et al. (2020)Kuhlmann, J., Reufels, D. G., Schlichte, K., & Nullmeier, F. (2020). How social policy travels: a refined model of diffusion. Global Social Policy, 20(1), 80-96. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1468018119888443
https://doi.org/10.1177/1468018119888443...
foram fundamentais, possibilitando maior compreensão das constelações de difusão, estágios e promotores do processo, bem como das dimensões da tradução.

O trabalho identificou que, no caso estudado, houve forte influência da arena transnacional na regulação local e grande importância da tradução/adaptação da política e do engajamento dos atores envolvidos para viabilizar a adaptação da política para o contexto nacional. A arena transnacional fechada com poder autoimbuído de chancela - no caso, o estudo do PIC/S - se mostrou um importante meio para facilitar e direcionar a difusão de políticas globalmente (Porto de Oliveira & Pal, 2018Porto de Oliveira, O., & Pal, L. A. (2018). New frontiers and directions in policy transfer, diffusion and circulation research: agents, spaces, resistance, and translations. Revista de Administração Pública, 52(2), 199-220. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/0034-761220180078
https://doi.org/10.1590/0034-76122018007...
), mas a difusão não teria acontecido sem o interesse dos atores nacionais em se integrar a esses fóruns, tendo em vista os potencias benefícios advindos dessa adesão. Nesse contexto, identificou-se uma clara estratégia da Anvisa em se manter inserida na arena transnacional, ocupando espaços de discussão e de criação de novas regulamentações para fortalecer sua legitimidade tanto internacional quanto nacionalmente.

Mais especificamente no contexto da pandemia da COVID-19, observaram-se claros benefícios do movimento de inserção na arena transnacional. Com a publicação da Resolução RDC nº 346, de 12 de março de 2020, por exemplo, foi permitida a certificação de BPF com base nas informações provenientes de autoridades regulatórias estrangeiras do PIC/S (medicamentos) e do MDSAP (produtos para saúde), buscando manter a normalidade de abastecimento num momento em que a inspeção sanitária in loco das plantas internacionais era inviável.

Pesquisas futuras são necessárias, todavia, a fim de investigar o nível de implementação e os resultados das alterações realizadas no âmbito nacional, bem como para analisar o nível de influência das agências sanitárias nacionais, como a Anvisa, na construção das novas regulações como integrante da arena transnacional.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao ProPesquisa da FGV EBAPE por financiar parcialmente esta pesquisa.

REFERÊNCIAS

Pareceristas:

  • 7
    Denilson Bandeira Coêlho (Universidade de Brasília, Brasília / DF - Brasil) https://orcid.org/0000-0003-0125-4347
  • 8
    Glaucia Julião Bernardo (Universidade Federal do Paraná, Curitiba / PR - Brasil) https://orcid.org/0000-0002-1272-2583
  • 9
    Dois revisores não autorizaram a divulgação de suas identidades.
  • Relatório de revisão por pares: o relatório de revisão por pares está disponível neste link. https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/88614/83349

APÊNDICE

Quadro A
Legislações e documentos oficiais

Editado por

Alketa Peci (Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro / RJ - Brasil) https://orcid.org/0000-0002-0488-1744
Gabriela Spanghero Lotta (Fundação Getulio Vargas, São Paulo / SP - Brasil) https://orcid.org/0000-0003-2801-1628

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    17 Abr 2022
  • Aceito
    25 Abr 2023
Fundação Getulio Vargas Fundaçãoo Getulio Vargas, Rua Jornalista Orlando Dantas, 30, CEP: 22231-010 / Rio de Janeiro-RJ Brasil, Tel.: +55 (21) 3083-2731 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rap@fgv.br