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Antropologia e cognição segundo Dan Sperber

Entrevista:

antropologia e cognição segundo Dan Sperber

Paulo Sousa

(Doutorando em Antropologia/Ciências Cognitivas

CREA-École Polytechnique, Paris)

"O que pretendo sugerir com a analogia epidemiológica é que a psicologia é necessária sem ser suficiente para caracterizar e explicar os fenômenos sócio-culturais. Os fenômenos sócio-culturais são agenciamentos ecológicos de fenômenos psicológicos. Eles não correspondem a um nível autônomo da realidade, como querem os anti-reducionistas, nem dependem da simples psicologia, como gostariam os reducionistas." Dan Sperber (Paris, 25/05/97).

O antropólogo francês Dan Sperber, nascido em 1942, é atualmente Diretor de Pesquisa no CNRS, pesquisador no CREA, École Polytechnique, Paris, e professor da Universidade de Michigan, Ann Arbor. Inicialmente influenciado pelo estruturalismo, ainda que com um viés crítico que o levou a ser um de seus grandes comentadores, Dan Sperber se firma na antropologia como um importante articulador de críticas aos pressupostos teóricos da disciplina. Em 1974, publica "Le Symbolisme en Général", onde coloca em cheque as suposições semiológicas de nossa cultura ocidental. Em 1982, publica "Le Savoir des Anthropologues", onde repensa as condições de possibilidade do conhecimento antropológico. Nos últimos anos, sua obra se delineia a partir de duas frentes de pesquisa: um projeto de naturalização da antropologia, chamado de "epidemiologia das representações", sistematizado primeiramente na "Malinowski Memorial Lecture" de 1984; e, ao lado da lingüista Deirdre Wilson, o desenvolvimento de um novo modelo da comunicação humana, conhecido como "teoria da relevância".

Paulo Sousa: Quais motivos principais o levaram a seguir uma carreira de antropólogo?

Dan Sperber: Existem duas razões principais. Eu era um estudante no fim do sistema colonial e, a partir da guerra da Argélia, tornei-me um militante anticolonialista. Eu fiz uso da antropologia em primeiro lugar como um recurso intelectual para melhor compreender a situação política dos países chamados do terceiro mundo. O primeiro seminário de antropologia que freqüentei foi o de Georges Balandier na Sorbonne, antropólogo africanista que sempre reservou uma parte importante de sua obra ao estudo das sociedades tradicionais no sistema colonial. Em segundo lugar, a partir do momento em que comecei a estudar antropologia sistematicamente, eu li evidentemente a obra de Lévi-Strauss e, como muitos antropólogos da minha geração, fui, por assim dizer, por ela seduzido – mais precisamente, sua obra nos deu o sentimento de que a partir da antropologia nós podíamos colocar questões fundamentais sobre o ser humano, sobre a cultura humana, e talvez trazer respostas novas e interessantes. Mesmo sem nunca ter sido um Lévi-Straussiano ortodoxo, sua influência foi fundamental para o meu engajamento profissional na disciplina.

Paulo Sousa: Em seu trabalho, você reconhece também a influência do antropólogo Rodney Needham. Você poderia comentar a relação entre essas duas influências?

Dan Sperber: Eu estudei primeiro em Paris, depois fui estudante em Oxford entre 1963 e 1965, e, nesse período, Rodney Needham foi meu orientador. Rodney Needham é um grande intelectual e tem uma grande dedicação aos seus alunos. Eu me beneficiei muito dessa relação. Mesmo que ele tenha tido inicialmente um olhar em parte crítico sobre a obra de Lévi-Strauss e que esse aspecto crítico de seu olhar tenha se tornado cada vez mais acentuado, ao ponto de ele aparecer muitas vezes como seu adversário, não se pode esquecer que ele foi um dos introdutores e tradutores de Lévi-Strauss para o mundo inglês, que sofreu também sua influência e que, enfim, como Lévi-Strauss, é um antropólogo no sentido forte do termo – alguém que se interessa em descobrir, através do estudo da diversidade cultural, as propriedades fundamentais do ser humano e de sua capacidade para a cultura. Needham tinha exigências conceituais mais rigorosas em relação às questões colocadas pelo estruturalismo, às quais a obra de Lévi-Strauss nem sempre responde, donde o desacordo entre eles. Sobre alguns pontos desse desacordo – em particular, na análise do parentesco –, eu tendo a pensar que Needham tinha razão.

Paulo Sousa: Nesta época você escreveu um dos grandes ensaios críticos ao estruturalismo. Você poderia dizer de maneira geral o que você pensava naquele momento e o que pensa agora sobre o estruturalismo?

Dan Sperber: É um ensaio que foi primeiro publicado em um volume coletivo, depois como um livro separado. Eu me detive em vários aspectos da obra de Lévi-Strauss. O ponto talvez mais geral é a idéia de que o que ele apresentava como uma opção metodológica era de fato um opção teórica. Lévi-Strauss defendia o que ele chamava de "método estrutural". Esse método era de fato uma heurística que foi para ele muito útil, foi uma fonte de intuições sobre toda uma série de materiais etnográficos. Entretanto, não me parece evidente que se tratasse de um método no sentido forte do termo, ou seja, de um mecanismo que pudesse ser utilizado de maneira explícita e com resultados previsíveis. A meu ver, afora Lévi-Strauss, existem poucos antropólogos que conseguiram fazer alguma coisa de importante com a aplicação do assim chamado método estrutural. Ao contrário, existe um certo número de estudos, que não citarei os nomes, que seguem passo a passo o suposto método, mas que são demasiadamente enfadonhos e não nos ensinam nada de profundo. Então, de minha parte, existia uma crítica ao método estruturalista em sua pretensão sistemática, isto é, uma dúvida quanto à sua capacidade de se tornar o método da ciência antropológica. Quanto a isso, não mudei de posição. Por outro lado, eu fui atraído e continuo a me simpatizar com um aspecto mais teórico da obra de Lévi-Strauss que foi rejeitado por grande parte de seus discípulos, o que aparece na sua obra como uma referência à mente humana – a idéia de que, entre os fatores que devem ser invocados para explicarmos os fenômenos sócio-culturais, estão estruturas universais da mente humana. A hipótese de que a própria diversidade cultural pode ser sustentada por estruturas psicológicas universais era pouco presente e, quando presente, pouco explícita na antropologia. Porém, mesmo com respeito a esse ponto, eu começava uma crítica a Lévi-Strauss que eu desenvolveria posteriormente com maiores detalhes: quando ele diz que entre os fatores importantes para se explicar a cultura humana, seja em seus pontos comuns, seja em sua diversidade, estão estruturas universais da mente humana, então, penso eu, faz-se necessário fazer psicologia de maneira séria; ora, a mente humana para Lévi-Strauss tem uma estrutura muito simples e com pouca verosimilhança psicológica. Hoje, graças ao desenvolvimento da psicologia cognitiva em particular, e das ciências cognitivas em geral, nós podemos refletir de maneira muito mais fecunda e precisa sobre as estruturas psicológicas que têm um papel na estabilização das culturas e, por consequência, ir bem mais longe do que Lévi-Strauss, ainda que através de uma via que, em certa medida, ele contribuiu a abrir1 Notas 1 Depois do ensaio/livro citado(Sperber; 1968/1973), Dan Sperber discute o estruturalismo em Sperber, 1974b: cap. 3; 1982: cap. 3 e 1996: cap. 02. .

Paulo Sousa: Essa via parece supor a possibilidade de construção de teorias gerais sobre o homem enquanto ser cultural. A tradição hermenêutica em antropologia parece negar essa suposição e, para tanto, parece enfocar o estruturalismo como se este fosse a última tentativa fracassada de perseguir essa suposição. Qual sua posição em relação a esse tipo de crítica?

Dan Sperber:Meu sentimento sobre a crítica à possibilidade de um projeto teórico para a antropologia, no sentido de como falamos de teoria nas ciências naturais, em outras palavras, à possibilidade de uma ciência natural do social, é o seguinte : os fatos sócio-culturais ou são diretamente representações ou comportam representações como um aspecto essencial, e a única maneira de nós darmos conta dessas representações, de as representar, é através de um processo interpretativo. Por consequência, não podemos escapar de uma hermenêutica no sentido restrito de trabalho interpretativo. Todas as ciências que fazem uso da interpretação como um meio fundamental para abordar ao menos uma parte de seu objeto, fazem apelo a um tipo de conhecimento que é específico. A meu ver, a questão que se coloca é a de saber se o trabalho interpretativo pode fundamentar um conhecimento teórico. Simplificando um pouco, podemos dizer que existem dois tipos de resposta na literatura. De um lado, existem aqueles que não vêem simplesmente o problema, que não se interessam pelo fato de que as representações que nós estudamos nós as interpretamos, que agem como se os dados etnográficos fossem simples, objetivos e tão facilmente manipuláveis como as medidas e descrições ordinárias. São atitudes, por exemplo, como as de Radcliffe Brown e Marvin Harris, antropólogos que não pensam existir nenhum problema particular para se desenvolver uma ciência natural do social. Por outro lado, inversamente, nós temos aqueles geralmente ligados à tradição hermenêutica – em antropologia, por exemplo, Clifford Geertz –, que vêem nesse caráter interpretativo um princípio para se fundamentar uma bifurcação radical entre as ciências sociais e as ciências naturais. Minha posição é um pouco mais complexa. Eu penso que de fato existe um problema, que o trabalho interpretativo não envolve um tipo de dado bruto, fácil de se manusear, e que isso demanda uma reflexão metodológica específica. Por outro lado, eu não penso que isso elimine a possibilidade de uma abordagem teórica no sentido naturalista do termo. Em minhas reflexões mais epistemológicas, venho tentando mostrar como reconciliar essa especificidade metodológica com a busca de um objetivo teórico mais ambicioso. Enfim, quanto a se enfocar o estruturalismo como a última tentativa fracassada desse objetivo, ou bem existe um argumento fundamental, como querem filósofos como Paul Ricouer e Charles Taylor, em favor da idéia de que existe essa bifurcação radical, e, neste caso, não importa que o estruturalismo seja ou não a última tentativa, pois todas tentativas estarão em princípio fadadas ao fracasso; ou então, como acredito, o argumento fundamental não é tão bom, e haverá outras tentativas de se desenvolver uma ciência natural do social que poderão ser bem sucedidas. O fracasso de uma empresa particular não nos indica necessariamente a impossibilidade de se desenvolver uma ciência natural do social2 Notas 1 Depois do ensaio/livro citado(Sperber; 1968/1973), Dan Sperber discute o estruturalismo em Sperber, 1974b: cap. 3; 1982: cap. 3 e 1996: cap. 02. .

Paulo Sousa: Você fez trabalho etnográfico entre os Dorze da Etiópia. Por quanto tempo esteve entre eles e qual a importância de seu trabalho de campo na elaboração do livro "Le Symbolisme en Général"?

Dan Sperber: Foram dezoito meses no total, divididos em três momentos. Existe uma relação bem precisa entre meu trabalho de campo e a elaboração desse livro. A primeira coisa que eu estudei nessa sociedade foi o sistema de interdições, tabus como nós dizemos, junto com os diferentes rituais que são realizados quando existem transgressões desses interditos; o que conforma uma dimensão cotidiana muito importante na vida dos Dorze. Na minha primeira estada, influenciado por um modelo estruturalista e semiológico da cultura, eu estava procurando duas coisas que eu não conseguia encontrar. Por um lado, uma taxonomia, uma classificação verdadeiramente regular, de todos os interditos e das respostas rituais a suas transgressões. Por outro lado, como existiam diversos símbolos nesses contextos rituais, eu procurava sua significação, ou seja, quais as mensagens que eram por eles veiculadas. Eu estava surpreso e confuso pelo fato de que meus interlocutores quase sempre não me respondiam a perguntas do gênero "por que você fez isso deste modo?", "o que significa este símbolo?". Na realidade, meu livro começou com um sonho. Depois de seis meses entre os Dorze, um dia tive uma noite super agitada na qual sonhei com esse problema interpretativo. No dia seguinte, acordei me dizendo: "mas é claro, eles têm razão, sou eu quem estou colocando questões equivocadas; é necessário repensar a natureza mesma das questões que eu coloco." Suas respostas, que me pareciam ou uma simples recusa de resposta ou a vigilância de um conhecimento esotérico, de fato eram respostas sérias, pelo menos mais sérias do que as questões que eu colocava. Então eu fiz minha bagagem e voltei a Paris. Era necessário refletir no nível fundamental, teórico. O que me levou enfim a rejeitar a legitimidade teórica do modelo semiológico na análise de fenômenos simbólicos, o que é um ponto fundamental do meu livro3 Notas 1 Depois do ensaio/livro citado(Sperber; 1968/1973), Dan Sperber discute o estruturalismo em Sperber, 1974b: cap. 3; 1982: cap. 3 e 1996: cap. 02. .

Paulo Sousa: Aparece marcante na sua crítica ao modelo semiológico uma noção mais delimitada do que seja uma linguagem. E isso parece estar ligado a uma concepção Chomskiana do que seja a linguagem natural. Você poderia falar sobre a influência de Chomsky em seu trabalho?

Dan Sperber: Por volta de 1964, eu li "Synthatic Structures" de Chomsky e esta leitura me tocou muito. Eu me dizia : "aqui existe uma coisa realmente importante". A partir desse momento eu o li sistematicamente. Eu fui mesmo um de seus tradutores para o francês. Chomsky me convenceu em primeiro lugar de que a lingüística estruturalista defendia um modelo da linguagem natural que era equivocado. Voltando ao estruturalismo em antropologia, este supunha que existem certos tipos de estruturas bem simples e gerais descobertas pela lingüística estruturalista – os sistemas de eixos paradigmáticos e sintagmáticos, por exemplo –, que teriam uma aplicação universal, ou seja, que poderiam explicar outros fenômenos humanos que não a linguagem natural. O que nos leva ao princípio semiológico de que tudo pode ser entendido como uma linguagem, uma linguagem no sentido da lingüística estruturalista. Ora, a partir do momento que nós aceitamos a crítica de Chomsky, isto é, para começar essas estruturas não se aplicam nem à linguagem natural, é difícil aceitar que a linguística estruturalista tenha descoberto estruturas universais de todo o pensamento humano. Então, a segunda influência de Chomsky foi a de minar a base na qual se fundava o estruturalismo antropológico e grande parte do pensamento semiológico. Além disso, eu penso que, se nós levamos a sério o projeto Chomskiano, não somente não devemos nos servir da lingüistica estruturalista como um modelo de tudo que é mental, de tudo que é cultural, como também para tanto não devemos nos servir da própria lingüística. Pois o que Chomsky mostrou precisamente é que existem estruturas muito específicas que estão na base da capacidade humana de aprender a linguagem natural, estruturas que não têm origem em uma inteligência geral, estruturas que nós não encontramos em outras habilidades cognitivas. De tal modo que, se nós decidimos estudar um outro domínio cognitivo que não o da linguagem natural, não devemos exportar o modelo da gramática gerativa de Chomsky para este outro domínio. O modelo da gramática gerativa é um modelo da linguagem natural e não tem vocação para ser um modelo de tudo, de tudo que é mental, de tudo que é cultural. Na idéia de que a linguagem natural é sustentada por mecanismos bem específicos, existe a sugestão de que no fundo nós podemos ter mecanismos específicos em muitos outros domínios cognitivos, que nós podemos encontrá-los em cada domínio do conhecimento humano – na classificação das cores, na classificação dos seres vivos etc. Essa é uma sugestão que comecei a perseguir nos anos sessenta e que depois foi tomando cada vez mais importância no meu trabalho. Nisso também a visão de Chosmky foi determinante. Ele me convenceu dessa visão modularista, como nós dizemos hoje, da mente humana – a hipótese de que ela comporta um grande número de órgãos mentais, de módulos filogeneticamente determinados. Sendo assim, não devemos explicar todo tipo de comportamento humano através de um mecanismo simples e geral – uma inteligência geral semiótica ou um pensamento binário qualquer, por exemplo –, mas pela interação de um grande número de dispositivos mentais diferenciados.

Paulo Sousa: Mas os antropólogos enquanto antropólogos teriam alguma competência específica para opinar sobre a organização funcional da mente humana?

Dan Sperber: Digamos que nós antropólogos não devemos defender de maneira a priori uma hipótese sobre a organização funcional da mente humana. Enquanto antropólogos, nós devemos apenas aceitar, de um lado, que a mente humana deve ser complexa o bastante, deve ter capacidades suficientes, para que os indivíduos sejam capazes de adquirir e interiorizar as competências culturais; e aceitar, por outro lado, que a mente humana não é restritiva o bastante para a impedir a diversidade cultural. Nós temos então dois limites, um limite inferior, outro superior: a mente humana é ao menos complexa o bastante para explicar a aprendizagem, e suas estruturas não são restritivas ao ponto de impedir a diversidade cultural. Dizendo isso, vemos que sobra uma grande margem de hipóteses e, dentro desse quadro de possibilidades, não vejo qualquer razão para que um antropólogo diga de maneira a priori que a mente humana seja mais simples ou mais modular. A questão neste ponto deve ser compartilhada com as ciências cognitivas em geral, e com a psicologia cognitiva em particular, onde existem outros tipos de constrangimentos experimentais na reflexão sobre a mente humana, e onde, por isso, pode-se delimitar o inventário de hipóteses plausíveis sobre sua organização funcional. O estado atual das pesquisas, tal como eu as entendo, deixa ainda em aberto essa questão. Como disse, eu tendo a favorecer hipóteses modularistas, pois existem resultados experimentais vindos da psicologia do desenvolvimento e da performance e argumentos baseados na teoria da evolução natural que parecem apontar para esse caminho. Contudo, essa não é uma questão fechada. Pode ser que exista de minha parte, e do conjunto de pesquisadores que vão nesse caminho, uma superestima do nível de especialização do cérebro humano; e, de todo modo, mesmo se grosso modo tivermos razão, nós estamos ainda muito longe de uma descrição precisa desses módulos e de sua interação. Repetindo então, enquanto antropólogos, eu penso que não podemos ter uma posição a priori em relação a esta questão. Eu fico intrigado que mesmo antropólogos cognitivistas, que aceitam o papel de fenômenos psicológicos na constituição da cultura, tenham uma espécie de preferência a priori pelas modelizações que supõem o menos possível de diferenciação interna da mente humana. Donde uma certa atração pelos modelos conexionistas em inteligência artificial; modelos muito interessantes, mas que são acolhidos com grande entusiasmo por antropólogos como Roy D’Andrade, simplesmente porque não postulam uma estruturação interna complexa da mente humana. Talvez seja o melhor modelo, mais isso me parece mais uma reafirmação de uma ideologia de nossa disciplina que insiste em minimizar o papel de fenômenos psicológicos na compreensão dos fenômenos sócio-culturais. Não existe razão a priori nem de os minimizar nem de os exagerar. É necessário sobretudo pesquisá-los4 4 Dans Sperber argumenta contra alguns a priori antropológicos sobre a mente humana em Sperber, 1974a; e 1982: cap. 02, e articula a hipótese da modularidade mental com a aprendizagem e a diversidade cultural em Atran & Sperber, 1991; e Sperber, 1996: cap. 06. Para se conhecer um conjunto representativo de antropólogos, linguistas, psicólogos e filósofos que defendem hipóteses modularistas sobre a mente humana e as implicações que essas hipóteses têm para a explicação de fenômenos culturais, veja, por exemplo, Hirschfeld & Gelman (eds.), 1994; e Sperber & Premack (eds.), 1995. .

Paulo Sousa: Essa ênfase na relevância da psicologia para a antropologia parece sugerir um tipo de abordagem psicológica dos fatos sociais que grande parte dos cientistas sociais veria como um perigo, um perigo de reducionismo.

Dan Sperber: É uma idéia tola, um perigo um tanto mítico. Por que? Primeiro, porque se pudesse existir nesse caso uma redução de uma disciplina a outra, isto é, se houvesse a possibilidade de se fazer uma correspondência entre as generalizações das teorias sociológicas e antropológicas e as generalizações das teorias psicológicas, de traduzir a linguagem das ciências sociais na linguagem da psicologia, isto seria um acontecimento científico muito importante. Não há nada a se temer, pois nos raros casos que nós temos verdadeiras reduções em ciência, não se elimina o nível que somos capazes de reduzir. O que se estabelece são relações sistemáticas entre disciplinas e isso é evidentemente uma coisa boa, porque contribui de um modo muito essencial ao crescimento e à integração do conhecimento. Então, em primeiro lugar, se existisse uma possibilidade, ela não seria uma ameaça, mas algo de bom a ser perseguido. Em segundo lugar, em verdade não existe nenhuma possibilidade de uma redução: os fatos sócio-culturais não têm uma homogeneidade ontológica que permita construir uma ciência social que possa ser reduzida a o que quer que seja. Então geralmente se combate um inimigo imaginário, duplamente imaginário: primeiro, porque se existisse alguma coisa que lhe correspondesse não seria um inimigo; segundo, porque nada de possível lhe corresponde. O problema relevante não é o da redução, mas o da interação: o da possibilidade de se traçar pontes e passarelas entre as ciências sócio-culturais e as naturais, ou seja, o da possibilidade de colaboração entre as diversas ciências. As ciências sociais têm tendência a viver dentro de um protecionismo, de um isolamento que é reivindicado por muitos de seus pesquisadores. Os argumentos em seu favor, quando existem, são pobres e pouco convincentes. Isso é mais uma ideologia da disciplina do que uma posição racionalmente motivada. De fato, em toda antropologia existe uma psicologia. Não existe uma maneira de pensarmos os fenômenos sócio-culturais sem que façamos, ao menos implicitamente, hipóteses sobre a maneira na qual esses fenômenos se realizam, em parte, no cérebro dos atores sociais, através de processos cognitivos e afetivos. Seria muito fácil pegar qualquer monografia etnográfica ou texto teórico da antropologia e mostrar expressões que são psicológicas, expressões que contêm explicita ou implicitamente hipóteses sobre os processos cognitivos e as motivações dos atores sociais. Então, a partir do momento em que querendo ou não fazemos psicologia, podemos fazê-la bem ou mal. O problema é que quando explicitamos o conteúdo das hipóteses psicológicas que encontramos nos textos antropológicos, vemos que elas são extremamente rudimentares e pouco justificadas. Existe uma mistura de psicologia do senso comum com a psicologia cognitiva de cinqüenta anos atrás.

Paulo Sousa: No seu projeto de reconceitualizar o campo das ciências sociais através de uma epidemiologia das representações, você defende uma forte relação com a psicologia.

Dan Sperber: Com o meu projeto, o que pretendo efetivamente é ser bem mais explícito em relação às hipóteses psicológicas e sugerir uma maneira, a meu ver interessante, de como a antropologia e a psicologia podem se relacionar. É um modelo inspirado no modo como se relacionam a epidemiologia medicinal e a patologia individual. A epidemiologia medicinal não se reduz à patologia individual, mas ao mesmo tempo se articula a ela necessariamente: se estudamos a distribuição das doenças em uma população, objeto da epidemiologia medicinal, um dos fatores essenciais que devemos invocar para compreender essa distribuição é o micromecanismo de desenvolvimento da doença dentro dos indivíduos, objeto da patologia individual. Existe então uma relação de mútua relevância entre a epidemiologia do macrofenômeno coletivo e a patologia do microfenômeno individual. Eu defendo que uma relação similar de mútua relevância deve existir entre a antropologia e a psicologia. Em antropologia, nós estudamos na escala da população, nos meios ambientes complexos, como se distribuem ecologicamente um conjunto de representações mentais. Não somente representações mentais, mas toda uma série de produções públicas determinadas por essas representações – representações públicas, artefatos, comportamentos de todo gênero. Tudo isso deve ser visto em sua interação causal, ou seja, uma interação onde se alternam representações mentais, que são objeto diretamente da psicologia, e a distribuição ecológica dessas representações e de seus resultados comportamentais, que seria o objeto de uma antropologia entendida como uma epidemiologia das representações. Voltando à questão do reducionismo, o que pretendo sugerir com a analogia epidemiológica é que a psicologia é necessária sem ser suficiente para caracterizar e explicar os fenômenos sócio-culturais. Os fenômenos sócio-culturais são agenciamentos ecológicos de fenômenos psicológicos. Eles não correspondem a um nível autônomo da realidade, como querem os anti-reducionistas, nem dependem da simples psicologia, como gostariam os reducionistas. Pode-se recusar a maneira particular com que faço essa articulação, mas ninguém em antropologia está livre de uma relação com a psicologia. Não é através do silêncio que nos liberamos5 4 Dans Sperber argumenta contra alguns a priori antropológicos sobre a mente humana em Sperber, 1974a; e 1982: cap. 02, e articula a hipótese da modularidade mental com a aprendizagem e a diversidade cultural em Atran & Sperber, 1991; e Sperber, 1996: cap. 06. Para se conhecer um conjunto representativo de antropólogos, linguistas, psicólogos e filósofos que defendem hipóteses modularistas sobre a mente humana e as implicações que essas hipóteses têm para a explicação de fenômenos culturais, veja, por exemplo, Hirschfeld & Gelman (eds.), 1994; e Sperber & Premack (eds.), 1995. .

Paulo Sousa: Na outra parte de seu trabalho, com a lingüista Deirdre Wilson, vocês criaram um programa de pesquisa, chamado de "teoria da relevância", onde se propõe um novo modelo para a comunicação humana. Você poderia falar um pouco sobre o desenvolvimento desse trabalho e sua repercussão atual?

Dan Sperber: Quando escrevi "Le Symbolisme en Général", havia um capítulo sobre o simbolismo verbal; ele se tornou tão grande que resolvi separá-lo e transformá-lo em um artigo que se chamou "Rudiments de Rhétorique Cognitive". Deirdre Wilson estava nesse momento terminando o doutorado em lingüística no MIT com o Chomsky. Ambos estávamos interessados no papel de fatores contextuais na comunicação lingüística: ela, a partir da relação entre semântica e pragmática, eu, a partir da relação entre retórica e pragmática. Decidimos então escrever um artigo que fizesse a síntese dessas duas perspectivas e que estabelecesse as continuidades e descontinuidades entre semântica, retórica e pragmática. Entretanto, esse nosso projeto inicial se transformou em dezenas de artigos, no livro "Relevance: communication and cognition", que é a primeira grande síntese de nosso trabalho, e em outro livro que está para sair. Meu interesse mais geral por esse trabalho, que consiste em desenvolver uma teoria da comunicação humana fundamentada nas ciências cognitivas, vem do papel que têm os modelos da comunicação nas teorias da cultura. Toda descrição dos fenômenos sócio-culturais comporta, junto com uma psicologia, uma certa idéia da comunicação humana. A cultura é transmitida em grande parte através do viés da comunicação e a questão é saber como os seres humanos se comunicam. Pode-se ter uma concepção de que, qualquer que seja o tipo de comunicação humana, ela funciona como uma espécie de xerox. Qualquer que seja a operação desse mecanismo, ele garantiria a cópia de pensamentos, a cópia dos conteúdos mentais do comunicador no destinatário. Se assim fosse o caso, o mecanismo comunicacional não teria muita importância para a antropologia, já que o efeito da transmissão cultural se torna de antemão garantido. É um pouco algo desse gênero que está presente no modelo semiológico e na teoria formal da informação, o que nós generalizamos chamando de modelo do código da comunicação humana – o emissor transmite uma mensagem através de um sinal que chega através de um canal a um receptor, sendo que existe um código compartilhado que garante a réplica da mensagem codificada pelo emissor na mensagem decodificada pelo receptor. Nos parece que esse é um modelo equivocado, pois a comunicação humana não é uma atividade que falha apenas quando existe um ruído no canal da comunicação, mas é sobretudo uma atividade com riscos e fracassos constantes. Além disso, não é verdade que a comunicação humana vise sistematicamente a réplica dos pensamentos de um locutor em um destinatário. A comunicação parece mais uma espécie de coordenação entre os indivíduos que pode ser mais ou menos rigorosa, mais ou menos frouxa. Para fazer uma analogia, pense na maneira como se coordenam soldados que marcham simultaneamente. Existe uma regra compartilhada que faz com que os passos de cada um aconteçam de maneira exatamente idêntica. Pense agora na coordenação existente entre pessoas que passeiam juntas. Uma pessoa pode acelerar, se distanciar, ou parar para observar algo que não interessa às outras; seus passos não têm necessidade de serem idênticos, mesmo se em alguns momentos o são; uma pessoa pode determinar em um algum momento o ritmo da caminhada e isso pode se inverter, sem que nenhuma decisão regrada tenha sido tomada de início. Ora, o modelo do código da comunicação humana, nós poderíamos dizer, supõe que o mecanismo comunicativo faça com que as pessoas se comuniquem, como soldados, sempre no mesmo passo, existindo uma identidade no movimento, mas no movimento da troca dos pensamentos. Um dos temas que desenvolvemos de maneira bastante técnica no nosso trabalho, e que exprimo aqui metaforicamente, é que existem graus de coordenação diferentes na comunicação humana, seja no nível da comunicação explícita ou da comunicação implícita. Ora, se reconhecemos que existe uma variedade de objetivos na comunicação, que o sucesso também é variável, e que de todo modo a cópia não é um caso típico, então o papel da comunicação na transmissão cultural se torna mais interessante: em vez de ser vista como um simples suporte da transmissão cultural, como um canal pelo qual o conteúdo passa ileso sem se transformar, a comunicação passa a ser vista como um processo em que os conteúdos culturais são susceptíveis de serem filtrados, modificados, retidos, eliminados. E, desse modo, os mecanismos psicológicos que condicionam essas transformações do conteúdo informacional na transmissão cultural passam também a ser relevantes. Então, uma das principais motivações desse meu trabalho com a Deirdre Wilson e um dos interesses que espero tenha, é de contribuir para uma compreensão dos fenômenos culturais a partir da compreensão desse fator fundamental que é a comunicação humana. Evidentemente, ao fazermos esse trabalho, eu me engajei em diversos domínios que não têm uma ambição especificamente antropológica, mas têm a ver com as necessidades do domínio que chamamos hoje de "pragmática" – no qual procura-se estudar como o conhecimento da linguagem e o conhecimento do contexto interagem na compreensão dos enunciados. É um domínio muito interessante, e nele a teoria da relevância é um programa de pesquisa com grande repercussão, pois existem pessoas trabalhando nos seus quadros em vários lugares: não somente nos Estados Unidos e na Europa, mas também no Japão, na Coréia, na China etc. Existe inclusive uma rede na internet para se discutir a teoria. Entretanto, esse meu interesse pela pragmática está totalmente conectado com meu projeto de epidemiologia das representações, pois, para se explicar a distribuição de representações em uma população, é fundamental uma boa compreensão dos mecanismos da transmissão cultural, e, logo, uma boa compreensão da comunicação humana6 6 A leitura fundamental para se compreender a teoria da relevância é Sperber & Wilson, 1986/1995, porém, uma introdução menos técnica está em Blakemore, 1992. No posfácio da edição revisada (1995), delineiam-se os desenvolvimentos da teoria desde 1986 e revêem-se algumas de suas hipóteses. O endereço do grupo de discussão do programa de pesquisa é relevance@ling.ucl.ac.uk . Dan Sperber procura articular a teoria da relevância com a epidemiologia das representações em Sperber, 1996. .

2 A posição metodológica de Dans Sperber sobre o trabalho interpretativo é delineada em Sperber, 1982: cap. 1 e 1996: caps. 1 e 2.

3 A abordagem de Dan Sperber sobre o simbolismo está desenvolvida em Sperber, 1974; 1975a; 1975b e 1979.

5 Para uma apresentação geral do projeto de epidemiologia das representações e seu potencial explicativo, ver Sperber, 1985 e 1996.

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1995 Causal cognition: a multidisciplinary debate. Oxford University Press: Oxford.

  • Notas

    1 Depois do ensaio/livro citado(Sperber; 1968/1973), Dan Sperber discute o estruturalismo em Sperber, 1974b: cap. 3; 1982: cap. 3 e 1996: cap. 02.
  • 4
    Dans Sperber argumenta contra alguns a priori antropológicos sobre a mente humana em Sperber, 1974a; e 1982: cap. 02, e articula a hipótese da modularidade mental com a aprendizagem e a diversidade cultural em Atran & Sperber, 1991; e Sperber, 1996: cap. 06. Para se conhecer um conjunto representativo de antropólogos, linguistas, psicólogos e filósofos que defendem hipóteses modularistas sobre a mente humana e as implicações que essas hipóteses têm para a explicação de fenômenos culturais, veja, por exemplo, Hirschfeld & Gelman (eds.), 1994; e Sperber & Premack (eds.), 1995.
  • 6
    A leitura fundamental para se compreender a teoria da relevância é Sperber & Wilson, 1986/1995, porém, uma introdução menos técnica está em Blakemore, 1992. No posfácio da edição revisada (1995), delineiam-se os desenvolvimentos da teoria desde 1986 e revêem-se algumas de suas hipóteses. O endereço do grupo de discussão do programa de pesquisa é
    relevance@ling.ucl.ac.uk . Dan Sperber procura articular a teoria da relevância com a epidemiologia das representações em Sperber, 1996.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Mar 2000
    • Data do Fascículo
      1998
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