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Maria Aracy de Pádua Lopes da Silva (1949 - 2000)

Homenagem a Aracy Lopes da Silva (1949 - 2000)

Maria Aracy de Pádua Lopes da Silva

(1949 - 2000)

Lux Boelitz Vidal

Professora do Departamento de Antropologia - USP

Eu adorava as aulas de Antropologia.

(Lopes da Silva, A. & Young, 2000)

Maria Aracy nasceu em 9 de outubro de 1949, em Bauru(SP). Era a caçula de uma família de quatro irmãos. Lembro-me bem de todos eles, reunidos ao redor da mãe, dona Cecy, nos tempos da casa da rua Veneza, onde muito se estudava e também se davam festas, no fim do ano, com muita música e alegria.

Para mim, imigrante aprendiz, naquele tempo, eles representavam a típica família paulista, de classe média, do interior e da capital.

Naquela casa valorizavam-se o estudo, o ensino e as coisas simples da vida, como cozinhar, fazer tricô, bordar e cantar. Maria Aracy possuía uma voz linda de soprano e ainda adorava nadar, esporte que praticou até o fim.

Outra lembrança é o dia em que Aracy veio me visitar na casa onde morávamos, na Cardoso de Almeida, para comunicar-me o seu interesse pela antropologia e especialmente pelos Xavante, povo indígena, então pouco conhecido, e que suas irmãs, mais velhas, já haviam visitado numa viagem de estudos com professores da Faculdade, fato que muito a marcou.

Em 1967, David Maybury-Lewis havia acabado de publicar a sua monografia sobre os Akwê-Xavante. Em 1970, decidi basear o meu curso nesta obra, na época pioneira, e Aracy se ofereceu a traduzi-la, capítulo por capítulo, para facilitar a leitura dos alunos. Foi no processo dessa tarefa que se consolidou sua vocação como antropóloga, estudiosa dos Xavante e dos povos Jê.

Além de antropóloga, Aracy tinha uma inegável vocação para o magistério, a formação e orientação de alunos e neste aspecto compartilhávamos das mesmas idéias e ideais.

Aracy estudou no Colégio Assunção em São Paulo. Era, segundo suas irmãs, boa aluna e muito estudiosa. Quando estava no Segundo Normal passou um ano estudando nos Estados Unidos. Voltando ao Brasil, formou-se no Normal, atual Magistério. Foi esta formação que a acompanhou durante toda sua vida acadêmica.

Era uma exímia professora, nas aulas e no atendimento pessoal aos alunos, generosa, compreensiva e severa. Não tinha outra ambição a não ser pesquisar, escrever e ensinar.

Mais tarde se interessaria também pela Educação Indígena, formando com outros pesquisadores o Grupo de Estudos sobre Educação Indígena, do Departamento de Antropologia da USP - o MARI.

O Ensino e a "Coisa Pública" eram suas prioridades. Pouco antes de falecer, estávamos dando alguns passos no corredor do hospital, ela estava um pouco cansada mas muito serena. Em um momento parou e me confessou: "o que mais me entristece é que nunca mais poderei dar aula" e, ainda: "diga a meus alunos que não precisam me poupar tanto, podem me mandar os capítulos de suas teses".

Entre 1969 e 1973, Aracy cursou a graduação em Ciências Sociais, já se destacando pela sua competência. Em 1980, obteve o título de Doutor em Antropologia Social com a tese Nomes e amigos: da prática Xavante a uma reflexão sobre os Jê. A instituição de nominação e as práticas diferenciadas de atribuir nomes com suas implicações sociais e simbólicas, de grande interesse teórico na Antropologia Sul-Americana, acabaram levando-a a escrever trabalhos comparativos sobre o tema e mais tarde a iniciar um grande projeto de pesquisa Nomes pessoais no mundo lusófono. O caso brasileiro, financiado pelo CNPq e que infelizmente não pôde acabar.

Também se interessou em reconstituir a História Xavante e se especializou em estudos sobre Mitologia e Cosmologia Amazônicas, assunto no qual era especialista, sendo o tema que mais gostava de desenvolver nos seus cursos de etnologia brasileira.

Como todos os antropólogos de sua geração, além das atividades didáticas, acadêmicas e administrativas na Universidade, participou durante vários anos da luta pela causa indígena, defendendo os direitos dos índios, suas terras, suas línguas e culturas, elaborando ainda laudos periciais para os Xavante e Pataxo Hã Hã Hai da Bahia. Foi presidente da Comissão Pró-Índio de São Paulo, nos anos 80, quando iniciou seu conhecido trabalho sobre Educação Indígena, o que mais tarde levaria a uma reflexão acadêmica sobre Antropologia, História e Educação, projeto temático, de equipe, financiado pela FAPESP. Além de assessoria a projetos de escola indígena e associações indígenas, pretendia-se a divulgação científica para um público escolar não índio e a reciclagem de professores primários e secundários através de cursos e publicações. Aracy escreveu inúmeros artigos e coordenou várias coletâneas sobre o assunto. Quatro volumes estão no prelo pela Editora Global.

Relembrando suas leituras prediletas, na infância e quando mãe de duas filhas pequenas, Aracy escreveu um livro para crianças Histórias de verdade, ilustrado pela artista plástica Carolina Young, que está na 3a edição.

Em 1980, Aracy viajou para os Estados Unidos, como professor visitante no Departamento de Antropologia da Universidade de Harvard, em Cambridge. Lá, teve a oportunidade de encontrar, em seminários programados, colegas do mundo inteiro, podendo ainda se dedicar com mais calma a leituras teóricas das quais resultou o trabalho "Tradições, inovações e criatividade: a análise comparativa de cosmologias vistas como processo", publicado no Anuário Antropológico 88. Foi naquela época que iniciou suas pesquisas sobre Mito, História e Sociedade, um dos temas também desenvolvidos em seus cursos.

Em Boston teve a felicidade de conhecer Daniel Levcovitz, matemático brasileiro que fazia pós-doutorado no MIT. Casaram-se e tiveram duas filhas: Cecy e Isabela de 15 e 10 anos respectivamente.

A convivência familiar era de suma importância para Aracy. Em 1997, quando o casal decidiu sair de São Paulo e morar em São Carlos, no interior, uma das razões da mudança teria sido estar mais próximos das meninas, num ambiente saudável e menos estressante.

Em 1998, após esta mudança, Aracy começou a dar aulas de Antropologia na Universidade Estadual de Campinas, sem deixar de atender alunos e tocar projetos do MARI na USP.

Na USP, no dia a dia do departamento suas atividades administrativas foram marcantes. Entre 1995 e 1997, ela foi coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e organizadora dos Seminários "Sexta do Mês" com inúmeros conferencistas convidados. Sua atuação como membro do Comitê Assessor de Ciências Sociais junto ao CNPq também foi importante. Desenvolveu ainda inúmeras atividades educativas de assessoria para órgãos públicos.

Sua produção acadêmica foi das mais expressivas, abordando muitos dos temas mais relevantes da etnologia amazônica, chegando a 54 publicações, sendo 8 livros, 16 capítulos de livros e 6 artigos em periódicos. Ao todo orientou 31 alunos. Estas cifras vêm mostrar a dedicação de professores em Etnologia Brasileira do Departamento de Antropologia da USP. A Universidade, infelizmente, nem sempre soube reconhecer este trabalho, desvalorizando, por falta de contratação de professores, uma área tão expressiva da Antropologia, acarretando uma descontinuidade da produção científica. Chegou finalmente a fadiga, a sobrecarga, a falta de tempo para cuidar da saúde e suas nefastas conseqüências. Para poder trabalhar, pesquisar, escrever e orientar com mais dedicação e melhores resultados foi preciso se aposentar. Mas a doença já estava instalada.

David Maybury-Lewis acaba de mandar-nos um longo fax, lembrando a amiga e a colega de trabalho:

" Guardo a memória tão forte da Aracy, viva e sorridente, como ela estava tão recentemente quando Pia e eu a visitamos em São Carlos. Sabíamos muito bem que Aracy estava lutando, mas viajamos convictos de que ela estava ganhando a luta. A convicção baseava-se em sua atitude. Ela falava com calma de sua doença e encarava com otimismo a sua vida. Falávamos com alegria dos tempos que ela passou conosco na Universidade de Harvard. Falamos sobretudo do futuro. Aracy e eu pertencemos ao grupo pequeno dos Xavantólogos e ela falava das pesquisas a serem feitas e dos trabalhos que ela tinha em andamento. Mas não era somente a fala dela que inspirou nosso otimismo. Este baseava-se em sua coragem e no seu sorriso. Era o sorriso mais luminoso, mais abrangente e mais sincero que já conheci. Depois de tanto otimismo, a notícia de sua morte repentina foi um choque para nós, como também deve ter sido para sua família e para os muitos amigos. Mas a nossa tristeza se mistura com orgulho. Estamos orgulhosos de ter tido uma "parente" tão amável e amada. Que ela descanse em paz - 26/10/00, Harvard".

São estas as palavras de tristeza, mas reconfortantes, para a família, os amigos e colegas que, numerosos, não paravam de telefonar e se manifestar.

A última vez que estive com Aracy no hospital, ela estava serena e querendo notícias de todos. Aproveitei para lhe mostrar as últimas fotografias que havia tirado no Oiapoque, norte do Amapá, nas aldeias indígenas da região. Comentávamos inúmeros detalhes, como sempre costumávamos fazer e, como sempre, ríamos muito, como duas colegiais - o que nunca deixamos de ser -, como se nada, nunca, pudesse nos separar.

Bibliografia

LOPES DA SILVA, A. & YOUNG, C.

2000 Histórias de verdade, 3 ed., São Paulo, Global.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Mar 2001
  • Data do Fascículo
    2000
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