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O planejado e o vivido: o reassentamento de famílias ribeirinhas no Pontal do Paranapanema

Rebouças, Lídia Marcelino. O planejado e o vivido: o reassentamento de famílias ribeirinhas no Pontal do Paranapanema, São Paulo, Fapesp/AnnaBlume, 2000, 193 pp.

Maria Cecília Manzoli Turatti

Doutoranda em Antropologia Social ¾ USP

A dissertação de mestrado de Lídia Marcelino Rebouças, felizmente transformada em livro, nos mostra como a energia também é objeto do campo social. Ou melhor, como em nome da geração de energia são promovidas transformações sociais que afetam as populações ribeirinhas, deslocadas compulsoriamente de seus territórios tradicionais para cederem lugar aos reservatórios hídricos e obrigadas a refazer suas vidas alhures, sob bases estranhas ao seu ethos original.

Mais que um estudo de mudança social, a autora nos apresenta uma análise de choque cultural, consubstanciado no enfrentamento de mundos distintos, portadores de redes de significação idiossincráticas. De um lado, estão os valores do "progresso", duplamente representados: na necessidade dos grandes empreendimentos energéticos e na visão dos técnicos elaboradores dos reassentamentos, defensores pois das benesses que uma nova organização mais "civilizada" trará aos caipiras ribeirinhos. De outro, estão os valores da "tradição", alicerces do modo de vida tipicamente rural dos habitantes das margens do rio, cujas referências temporais e espaciais pautam-se nos próprios ciclos da natureza.

Ao conhecer os projetos de reassentamento sob direção da CESP (Companhia Energética de São Paulo) ¾ órgão responsável pela política do setor de energia do referido Estado ¾, na região do Pontal do Paranapanema, Lídia Rebouças deparou-se com uma reclamação uníssona vinda dos reassentados: o isolamento. Partindo dessa referência, inicia a tarefa de elencar o descompasso entre o planejado ¾ pelos técnicos da CESP ¾ e o realmente vivido ¾ pelos ribeirinhos, agora reassentados.

Para tanto, a autora define como recorte de sua pesquisa a categoria espaço:

Uma forma de refletir sobre os desdobramentos de uma ação planejada no nível das relações sociais é eleger a categoria de espaço como norteadora do convívio de diferentes ordens culturais, e perceber como cada agente social envolvido atua dentro de uma rede de significados. (: 31)

O primeiro dilema posto aos ribeirinhos é o de aceitar ou não ir para o projeto de reassentamento. Aqueles que optam por integrar esta nova forma de vida o fazem, via de regra, pelo desejo de adquirir o título regularizado e definitivo de uma gleba. Tal decisão é facilmente compreensível se atentarmos para o fato de que a região estudada, o Pontal do Paranapanema, possui uma das malhas fundiárias mais complexas do estado de São Paulo, formada no bojo de sobreposições de títulos decorrentes de inúmeros processos de grilagem de terras. Não por acaso, o Pontal abriga hoje o mais conhecido "quartel-general" do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em nível nacional.

A CESP, por seu lado, assegura a propriedade da terra para os reassentados porque um dos seus apanágios é o da "fixação do homem no campo", o que significa para ela dar-lhes meio de trabalhar na agricultura. Todavia, as diretrizes da CESP caminham em paralelo à regra geral das intervenções estatais junto às populações tradicionais: impor-lhes um padrão produtivo e uma organização espacial inspirados mo mundo urbano-capitalista. Lídia Rebouças nos apresenta tais considerações, conformadoras do "olhar da CESP", a partir do exame realizado em vasta coleção de documentos e em uma série de depoimentos técnicos, ambos coligidos na estatal energética.

As cidadelas criadas pelos técnicos da CESP incorrem em uma série de rupturas com a forma pretérita de disposição e utilização do espaço. A separação entre lugar de trabalho e lugar de morada, configurada pela construção de agrovilas residenciais e pela divisão das terras aráveis em lotes agrícolas, ocorrida em dois dos três projetos investigados, subverte a lógica camponesa dos domínios casa/quintal e roça/pasto, confundindo a classificação dos espaços eminentemente femininos e masculinos. A disposição dos cômodos das casas das agrovilas fornece outro exemplo: a morada dos ribeirinhos incluía um cubículo contíguo aos fundos utilizado para o banho, enquanto as necessidades excretoras tinham lugar nos canteiros de palmas que separavam a roça e o quintal, constituindo um espaço absolutamente privado e isolado do domínio limpo da casa. As moradias da CESP incluíam um banheiro "urbano", em que o banho e a excreção compartilhavam o mesmo espaço. A solução encontrada é banhar-se em casa e construir um pequeno banheiro um tanto distante da moradia. Em outro caso relatado, os reassentados indignavam-se com a disposição horizontal das tábuas na construção das casas, forma tradicional para a construção de abrigos para animais ou ferramentas de trabalho. Agravava o quadro o fato de, tal como os mangueirões e depósitos, as casas em questão não possuíam divisórias internas. Tais oposições podem ser assim traduzidas: horizontal/sem divisórias/animal-coisa/natureza versus vertical/com divisórias/humano/cultura.

Valendo-se deste tipo de esquema interpretativo, amparada pelos estudos de Mary Douglas sobre a concepção simbólica da poluição, Lídia Rebouças entende o estranhamento dos ribeirinhos em face de sua nova existência a partir do que é "sujo", ou seja, está fora de lugar. Da mesma forma, o banheiro dentro de casa corresponde ao sistema de classificação sobre a sujeira compartilhado pelos planejadores da CESP.

O isolamento de que os reassentados se queixavam, ponto de partida de toda esta reflexão, é mais um dos resultados do impacto desestruturador do projeto da CESP sobre as antigas relações sociais travadas à beira do rio. O convívio com as cidades circunvizinhas, bastante valorizado, passa a ser raramente concretizado. Além dos reassentamentos localizarem-se a uma considerável distância dos municípios do entorno, eles encontram-se também distantes das vias de acesso, tornando-se difícil o deslocamento dos seus moradores. Por isso, as idas à cidade para participar das quermesses, visitar parentes ou namorar dão lugar às viagens exclusivamente de emergência (médico) ou de negócios (banco). A dimensão lúdica da vida, extremamente fértil nos bairros rurais tradicionais, não encontra correspondência nas agrovilas ou nos lotes agrícolas, nos quais pesa a sociabilidade forçada entre pessoas cuja vizinhança foi definida, mediante regras da CESP, por sorteio.

Seguindo-se ao relato do cabedal de descompassos surgidos para os ribeirinhos em seu novo modo de vida, a questão central do trabalho e que dá título ao livro é desvendada em sua exatidão nas últimas páginas. Fugindo da visão estática, sincrônica, presente na tradição clássica da etnologia francesa inspirada em Durkheim, Lídia Rebouças filia-se à antropologia da práxis de Marshall Sahlins e discute a reavaliação funcional dos signos executada pelos reassentados na tentativa de compreender e significar a nova realidade em que passaram a existir. A própria CESP torna-se objeto desta mesma avaliação, na medida em que busca reelaborar suas convicções a respeito do planejamento e administração dos reassentamentos.

Ressaltemos que não se deve entender esta abordagem teórica como fornecedora de justificativas ao estilo "as pessoas se ajeitam, mesmo contrariadas". É preciso enxergar nos depoimentos transcritos pela autora a dificuldade dos reassentados em reproduzir suas vidas sob novas bases materiais e organizacionais ¾ especialmente longe da água, elemento fundamental para o sucesso de suas atividades produtivas e referencial simbólico máximo de espacialidade ¾ e observar que esta obra vem se juntar à importante bibliografia antropológica contemporânea ¾ ainda deficitária ¾ que aponta as irracionalidades e injustiças cometidas quando o que está em jogo é a imposição e não o diálogo cultural.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2001
  • Data do Fascículo
    2001
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