Acessibilidade / Reportar erro

El Far, Alessandra. A encenação da imortalidade

El Far, Alessandra. A encenação da imortalidade, Rio de Janeiro, FGV/Fapesp, 2000, 144 pp.

Stélio Marras1 1 É também membro do corpo editorial da Revista Sexta Feira – Antropologia, artes e humanidades, cujo e-mail é smarras@usp.br.

Cientista social e mestre em Antropologia Social – USP

Política de letras

As letras, o público burguês e o mundo oficial se entrosavam numa harmoniosa mediania.

(Antonio Candido, 2000: 119)

Chega mais perto e contempla as palavras – sempre nos convida aquele poema de Drummond. O caso aqui é convidar para chegar mais perto e contemplar os autores das palavras. Convidar à leitura do mestrado de Alessandra El Far, orientado por Lilia K. M. Schwarcz, feito livro em 2000, editado pela Fundação Getúlio Vargas com o apoio da Fapesp. Nele, Alessandra traça uma trajetória institucional da Academia Brasileira de Letras e suas vicissitudes ao sabor da política da voga. Política republicana dos primeiros anos, com seus favores ou suas negligências, que, nestes como em outros aspectos, remanescem da mal extinta monarquia, quando se tornam gritantes pelo caráter anacrônico e deslocado que assumem no novo regime. Ao longo do texto vamos formando a imagem da instituição como nicho privilegiado de produção e reconhecimento de prestígio em plena Belle Époque brasileira. Época que seria mais bela, diriam os propagandistas e pré-candidatos a Imortais, se o Brasil pudesse finalmente fundar uma academia investida da função, por exemplo, de definir e divulgar o "bom gosto" nas letras brasileiras. É o caso de política.

No curso de 1897 a 1924, período-foco recortado pela pesquisa, acompanhamos pari passu o exame fino das dificuldades que enfrentaram os "homens de letras" para alçarem aos privilégios das elites – isto é, ao ser de elite. Acompanhamos a investigação da autora sobre os significados históricos ou sociológicos que tocaram a implantação de uma academia de letras num país que se queria civilizado. Pois para tamanha empresa civilizatória, era imperativa a criação de uma instituição que reunisse a intelligentsia humanista das belas letras (embora não só esta, ou não naquele momento), a fim de forjar uma curiosa, como diz Alessandra, "unidade de grupo", reconhecível tanto para a capitalização simbólica interna (os acadêmicos entre eles) quanto externa (os acadêmicos em relação aos não-acadêmicos, o Brasil moderno no concerto das nações ilustradas).

Neste passo de veio institucional, retoma pertinente histórico das tentativas seculares de implantação no Brasil de academias ou agrupamentos de ofício voltados ao elogio das letras e seus representantes. Como de quando nascia na Salvador de 1724, mas para logo sucumbir (tal a regra), a Academia Brasílica dos Esquecidos. Sintomático nome, profético destino – esqueceram-na. Ou de, logo depois, também na Bahia aí de 1759, a Academia dos Renascidos. Re-morreram, pois. Somente quase dois séculos adiante, sob renovado fervor de ímpeto nacionalista2 1 É também membro do corpo editorial da Revista Sexta Feira – Antropologia, artes e humanidades, cujo e-mail é smarras@usp.br. , houve por vingar, debaixo de duras penas (estas, justamente, analisadas por Alessandra), a Academia que até hoje segue.

Qual nacionalismo

Não foi à toa que, ainda nas sessões preparatórias, José Veríssimo apresentou sua proposta de fixar a grafia do topônimo Brasil, ora escrito com "s", ora com "z".

(El Far, 2000: 68)

Com z ou com s, este um brasileiro nacionalismo que então se cunhava como às avessas, ambíguo. Nesse momento em especial, parece que um bom nacional deveria esquecer sua diferença de cultura (ou, quando muito, exotizá-la – para não dizer exorcizá-la) e lembrar a identidade nacional com a universal civilização transnacional. Indispensável, quanto a esse tópico, referir-se à dialética do localismo e do cosmopolitismo minuciosamente reconhecida por Antonio Candido – sem a qual o problema do nacionalismo perde em consideração.

Se fosse possível estabelecer uma lei de evolução da nossa vida espiritual, poderíamos talvez dizer que toda ela se rege pela dialética do localismo e do cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos. Ora a afirmação premeditada e por vezes violenta do nacionalismo literário, com veleidades de criar até uma língua diversa; ora o declarado conformismo, a imitação consciente dos padrões europeus.(Candido, 2000: 109)

Nesse Brasil de então, um bom nacional seria uma boa cópia de uma França. Também aqui de se lembrar, ou enfatizar, a importância da França exportadora de civilização, sobretudo para uma "civilização imperfeita como a nossa", conforme alardeava Lúcio de Mendonça, um dos mais importantes idealizadores da Academia, em 1896 (El Far, 2000: 109). Era, portanto, da consolidada Academia Francesa que o projeto da Brasileira forçava emprestar fonte de legitimidade e prestígio para cá seus intelectuais e escritores. Sedimentar a aura simbólica da Academia Brasileira faria com que essa fração dispersa e não raro mal vista dos artistas literatos tivesse agora um canal de inserção no top das elites do Brasil civilizado e republicano. Bom para a representação do país, melhor ainda para os escritores – representantes que seriam desse país ilustrado. Nacionalismo republicano do qual se embeveceram as letras, seja por alinhamento espontâneo às preocupações de época, seja por visar ganhos políticos. Pois aí, de uma política de letras, o caminho batido pela autora.

De tal modo que vingasse o projeto da Academia. E vingou. As letras alcançavam agora o prestígio do chic, do snob, da distinção de seus ilustres grands seigneurs. Fez bem apurar Alessandra a freqüência das elites cariocas às sessões e palestras da Academia, tomando a platéia da pompa de "deputados, senadores, banqueiros, militares de alta patente, damas da sociedade e burocratas bem-sucedidos"(: 76). Agora o grupo dos acadêmicos capitalizava-se o bastante para formar e atrair roda. No país dos medalhões, que outra prova mais cabal e irrefutável de legitimidade junto ao diminuto circuito da boa sociedade? Bem observou a autora que a encenação dos ritos solenes dos imortais cumpria não apenas o papel dos rigores de praxe acadêmica, mas, e centralmente, uma maneira de os literatos brasileiros, quase sempre mal-prestigiados, fazerem "consolidar suas bases institucionais utilizando todos os elementos caros a uma teatralização da imortalidade literária" (: 97).

A pesquisa deixa entrever que estas como estratégias de inserção nos estritos círculos elitistas não evitavam certa submissão das artes e seus signatários aos ditames da governança republicana – para a qual, aliás, a criação da Academia viria para festejar e homenagear o 7o aniversário do regime. Importante estratégia, ao que bem parece, incluía conferir ao governo da República o privilégio – de inspiração monárquica, muito provável – de eleger a primeira lista dos que merecessem a imortalidade. Não faltaram nos jornais da época as notações irônicas a respeito dessa bizarra solução de o governo proceder à escolha "dos primeiros brasões nobiliários". Subserviência ou, digamos, uso artístico do poder. Encenação, decerto. Fosse o que fosse, eram mais que bem-vindas as grandes figuras – militares, médicos renomados, juízes, diplomatas, deputados, ministros do governo – para compor, lado a lado aos escritores, a galeria dos Imortais. Para compor ou antes para comprar a idéia de uma Academia Brasileira de Letras, assim prestigiada e financiada pelas elites já instaladas no poder e no imaginário constituído. Tudo em favor da arte. Inclusive, é claro, a política.

Espírito elitista que fortemente se expressava no projeto de ponta dos acadêmicos heróicos: a padronização da língua culta contra as inadvertidas licenciosidades – entre as quais, evidentemente, as populares. Exemplo de José Veríssimo, citado pela autora, que parecia enxergar na Academia a função oficial de combater "o abuso do palavreado" ou "mil outras formas de mau gosto". Mas que seria mesmo o bom gosto? Romântico, realista, parnasiano, já pré-modernista? Questão controversa, no menos. (Sob esse aspecto, se pensamos hoje na literatura de um Guimarães Rosa tornado acadêmico, não somos impelidos a lançar risos retrospectivos?) Que fosse controversa, questão porém menos importante. Antonio Candido já notara que "elite literária, no Brasil, significou até bem pouco tempo, não refinamento de gosto, mas apenas capacidade de interessar-se pelas letras" (Candido, 2000: 86). Quer dizer que para os militantes das letras a investigação estética ocupava, se muito, segundo plano ante o investimento social. Antes de qualquer outra coisa, era a conquista do título de elite o que os militantes das letras mais almejavam ali. Coisa que praticamente independia do mérito literário em causa. Dependia de política e, digamos, de teatro. Daí que a idéia de "encenação" de Alessandra faça ressoar tanto sentido. Como teatralização, claro que a retórica assumia papel premente. Pois é aqui de se notar que essa mesma metáfora do teatro retoma a visão de Antonio Candido sobre a "continuidade da 'tradição de auditório'" entre nós enraizada, "a voga da oratória, da melodia verbal, da imagem colorida" (: 88).

A pesquisa faz girar em torno da Academia nomes que, por distância estética ou política, normalmente não os associamos contemporâneos. Surpreender essa contemporaneidade causará ao leitor um prazer à parte – como a correspondência entre Joaquim Nabuco e Machado de Assis. Ou ver alinhavados, por força dos debates a respeito da fundação da Academia, os personagens de Coelho Neto, José Veríssimo, Olavo Bilac, José do Patrocínio, Machado de Assis, Visconde de Taunay, Barão de Loreto, Eduardo Prado, Joaquim Nabuco, Artur Azevedo, Raimundo Correia, Araripe Júnior, Valentim Magalhães, Filinto de Almeida, Graça Aranha, Adolfo Caminha, Inglês de Souza, Luís Murat, Osório Duque Estrada, Rui Barbosa, Medeiros de Albuquerque, Sílvio Romero, Aluísio Azevedo, entre outros. Oportunidade também para aquilatar a importância que alcançou no panorama intelectual da época – como veículos de publicação, fermento formador e ponto de encontro das rodas ilustres – editoras e livrarias como a Garnier, a Laemmert e a Francisco Alves, o Jornal do Commercio, o Jornal do Brasil, a Revista Brasileira, mesmo o IHGB e os favores do Império de D. Pedro II com seus projetos, entretanto, não raro inconclusos.

Extensão e hiato

Mais perto dos autores que das palavras, contemplamos no livro o trabalho de uma sociologia dos escritores tecida com base nos episódios da Academia. Esta a extensão da pesquisa – uma sociologia dos escritores, mas não uma sociologia da arte. Equivale a dizer que não poderemos, para falar com Antonio Candido, "chegar mais perto de uma interpretação dialética" (: 18). Tal exigiria concatenação do duplo ponto de vista, social e estético, que, só assim atingindo a estrutura das obras, produz o devido conhecimento integrado, cuja fatura final é essa de reiluminar mutuamente arte e sociedade. Aqui o hiato de uma pesquisa cujo objeto reside, é verdade, nos autores; mas autores de literatura, e sobre a qual se deve considerar o mérito intrínseco. Isto não simplesmente para alargar abrangência a outros assuntos, mas para melhor dizer do mesmo, constituindo integralmente o ponto de vista de uma sociologia da arte. Integração enfim indispensável no estudo dessa matéria. Entre sociologia e letras, a chamada do crítico para superar "o hiato freqüentemente aberto entre a investigação histórica e as orientações estéticas"(: 192)

Quer dizer que para superar esse hiato seria inevitável perguntar-se sobre a concretização que alcançou a "tríade indissolúvel" – conforme Antonio Candido – na "relação inextricável, do ponto de vista sociológico, entre a obra, o autor e o público" (: 38). Inevitável então a investigação a respeito dos fatores internos do conjunto das obras que, por provável, terão influenciado na política de implantação da Academia de Letras. Influenciado, ao mesmo tempo, nas representações das elites da época – já que estas, como parece assinalar a própria autora, eram por excelência o público alvo a que cumpria arrebatar a política dos "homens de letras". Cotejando as relações dinâmicas entre autor, público e obra, era seguir o método de Antonio Candido para considerar "na estética e na sociologia da arte uma atenção mais viva para este dinamismo da obra, que esculpe na sociedade as suas esferas de influência, cria o seu público, modificando o comportamento dos grupos e definindo relações entre os homens" (: 74).

O mesmo método permitira, por exemplo, aprofundar a mencionada relação entre o nacionalismo da hora e o projeto da Academia. Se, como diz Antonio Candido, a "vocação patriótico-sentimental" presente nas letras foi o que o público "sempre tendeu a exigi-la como critério de aceitação e reconhecimento do escritor" (: 81), pode-se adivinhar a importância que esse traço de conteúdo das obras terá assumido nas discussões políticas acerca do projeto da Academia. Exposição de uma face que revela sua outra complementar.

Feita a ressalva desse hiato entre estética e ciências sociais – sobretudo quando o objeto destas toca à matéria daquela –, o convite inicial só se reforça. Apenas que tenhamos clareza quanto à extensão da pesquisa. Como seja, não será preciso folhear muito as páginas de Alessandra para se descobrir que seu alcance já não é pouco.

Notas

2 Sobre a relação entre literatura no Brasil e nativismo ou nacionalismo, indispensável ver, Antonio Candido (1975 e 2000).

Bibliografia

CANDIDO, A.

1975 Formação da literatura brasileira – momentos decisivos, 2 vol., São Paulo, Edusp/Itatiaia.

2000 "Literatura e cultura de 1900 a 1945 (Panorama para estrangeiros)", in Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária, 8. ed., São Paulo, T. A. Queiroz.

  • 1
    É também membro do corpo editorial da Revista
    Sexta Feira – Antropologia, artes e humanidades, cujo e-mail é
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Nov 2002
    • Data do Fascículo
      2002
    Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista.antropologia.usp@gmail.com