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Toledo, Luiz Henrique de. Lógicas no futebol

Heitor Frúgoli Jr.

Professor de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – UNESP/Araraquara

Toledo, Luiz Henrique de.

Lógicas no futebol, São Paulo, Hucitec/Fapesp, 2002, Col. Paidéia, 7, 342 p.

Recentemente passamos por uma nova Copa do Mundo, evento que, malgrado as distintas modalidades do "torcer", se aproxima da dimensão de um "fato social total" em nosso país. O quinto título obtido pela equipe brasileira ocasionou um desfecho festivo que veio a contrastar com a derrota na final da Copa anterior, na França, que pelas circunstâncias tornara-se uma espécie de "drama nacional", desdobrado em infindáveis polêmicas. A Copa recém-conquistada também atualizou questões recorrentes no universo de nosso futebol, à medida que, por um lado, contrariou muitos prognósticos pessimistas a respeito do desempenho esperado pela Seleção no torneio, e, por outro, trouxe à tona novos elementos à já clássica oposição entre a disciplina tática e o "futebol-arte", marcado pelo "improviso do craque", ainda mais porque um experiente goleador e campeão do mundo fora preterido pelo técnico da seleção, numa polêmica que envolveu pronunciamentos críticos país adentro, incluindo até palpites do presidente da República.

Mas é também sabido que o futebol não mobiliza paixões e controvérsias apenas em períodos extraordinários como esses, dada nossa longa tradição de acompanhar torneios regionais, nacionais e latino-americanos que, divulgados amplamente pela mídia, ajudam a fazer desse esporte um tema praticamente cotidiano, com ressonâncias em várias formas de sociabilidade. Essas e outras dimensões socioculturais relevantes que integram o futebol brasileiro e fazem do mesmo um fenômeno multifacetado são abordadas com desenvoltura pelo mais recente livro de Luiz Henrique de Toledo – Lógicas no futebol –, fruto de sua tese de doutorado, defendida no Departamento de Antropologia da FFLCH–USP. Por meio de um vasto tratamento empírico e bibliográfico, esse livro retoma, sintetiza e sobretudo amplia a pesquisa e reflexão empreendidas pelo autor há vários anos sobre o campo esportivo, já expressas em livros e artigos anteriores. Uma de suas principais qualidades reside no enfrentamento de um escopo amplo e articulado de questões, a começar pela necessidade de superar um enfoque tradicionalmente assentado em contextos etnográficos mais restritos – temática desafiante para a perspectiva antropológica voltada aos contextos urbanos, os quais, em geral, constituem a base a partir da qual se amplia a análise por meio de comparações ou de articulações cuidadosas entre o plano pesquisado e a sociedade mais abrangente.

Para tanto, o autor recorreu a um arcabouço conceitual arrojado, no qual o futebol é abordado como uma "estrutura simbólica permanente" (: 14), que configura um "campo esportivo" – cuja concepção é, em parte, distinta da formulada por Bourdieu (: 207-208) –, campo esse marcado basicamente por três condições típico-ideais, que podem vir a se encarnar em atores sociais específicos: os profissionais, os especialistas e os torcedores, cada qual com domínios autônomos e que estabelecem entre si um conjunto de relações e trocas, de oposições e contigüidades. Tal modelo analítico constitui, nas palavras de Toledo, "um princípio classificatório de uma dinâmica cultural extremamente complexa que é o futebol na manutenção de seu status como índice identitário", um "operador cultural" calcado justamente em sua "paradoxal falta de consenso" (: 27).

O longo capítulo que abre o livro, voltado a uma análise pormenorizada do campo dos profissionais do futebol, tem em sua primeira parte uma interessante abordagem histórica da formação desse campo. O autor investiga, entre outras coisas, a construção de um saber técnico envolvido na definição tanto das regras básicas do futebol quanto das formas de jogar, o que envolve o cruzamento de concepções corporais, simbólicas e táticas. Revela também o caráter cambiante das regras, além de interpretações particulares das mesmas, como é caso do "uso do tranco" para desarmar o adversário, que a depender do tipo está previsto como expediente lícito, mas que durante um bom tempo foi invariavelmente interpretado como faltoso pela arbitragem no Brasil, fato que é explicado por termos um futebol mais dependente dos dribles individuais (: 52-55).

Uma famosa "expressão nativa", proferida pelo jogador Didi às vésperas da Copa de 1958 – "Treino é treino, jogo é jogo" – dá nome a esse primeiro capítulo, talvez por condensar, de forma muito apropriada, aspectos que abrem importantes sendas analíticas, com base, ainda que não exclusivamente, na polaridade "estilo" versus "técnica". Embora a frase daquele jogador tivesse um contexto circunscrito - resposta a um aparente desdém, por parte da imprensa, quanto à preparação para o campeonato -, a mesma veio a se tornar emblemática em virtude da ênfase ao jogo como momento ritual revelador do papel do craque que "desequilibra a partida", cuja base é um estilo "substantivado na idéia de alma, jeito, habilidade inata, caráter nacional ou ainda determinado pelos desdobramentos sociais e simbólicos do fenômeno da raça e da miscigenação brasileiras" (: 127).

Tal ponto de vista ajuda a constituir uma certa concepção do "jogar à brasileira", com forte ressonância principalmente no campo dos torcedores – domínio no qual se valoriza a emoção, a brincadeira, a festa, o confronto (: 270) –, mas que está no pólo oposto de uma concepção "técnica, racional e moderna" de futebol que marca cada vez mais o campo dos profissionais. Essa concepção se baseia na definição de uma continuidade estrita entre treino e jogo, na adoção de esquemas táticos e disciplinares que buscam padronizar as performances das equipes, na valorização da rotina como fator decisivo na preparação competitiva de um time – relativizando aquela definição do futebol como o momento ritual do jogo, quando tudo se definiria –, na defesa de padrões gerenciais de administração dos clubes, na cuidadosa e gradativa produção de bons jogadores através das escolinhas de futebol e das categorias de base. Ainda que exemplos concretos confirmem, aqui e ali, a eficácia da adoção de vários desses critérios da esfera profissional – nos anos 90, tivemos o caso do São Paulo Futebol Clube, símbolo do "futebol-empresa" e bicampeão mundial, e da Sociedade Esportiva Palmeiras, que obteve títulos importantes após uma parceria bem-sucedida com a multinacional Parmalat –, o fato é que persiste uma grande resistência à aceitação de tais preceitos no domínio popular, dos torcedores. Mesmo certas conquistas, como a Copa de 94, chegam a ser desvalorizadas por muitos, já que o esquema tático do técnico Parreira não permitira que tivéssemos ganho efetivamente "à brasileira". Tais questões, trabalhadas de forma sistemática por Luiz Henrique de Toledo, também emergiram nas etnografias feitas pelo autor em cursos de formação de técnicos de futebol, nos quais em vários momentos a "lógica torcedora" emergia e punha em xeque certos postulados de racionalidade defendidos pelos palestrantes, representantes do campo profissional (: 83-113). De toda forma, o livro também deixa claro como o próprio técnico muitas vezes se impõe em virtude de seu carisma, um aspecto pouco racional, como é o caso do treinador veterano e ex-jogador Zagallo, adepto supersticioso da numerologia, ou de Luxemburgo, que antes de adotar uma postura mais "moderna" de trabalho, freqüentemente recorria aos conselhos do pai-de-santo Robério de Ogum (: 109-12).

O capítulo dois se volta, por sua vez, à análise das práticas da crônica esportiva especializada, retomando sob outros ângulos o âmbito dos domínios dos torcedores, profissionais e especialistas, com enfoque privilegiado nas formas-representações que se articulam nessa última esfera.

Cabe destacar a reconstituição dos itinerários da crônica esportiva, cuja origem remonta, na década de 1920, a duas matrizes: a primeira inaugurada por Mário Rodrigues Filho, numa linha narrativa comprometida com a emoção e o imaginário popular – desenvolvida depois de forma exemplar por seu irmão, o dramaturgo Nelson Rodrigues –, e a segunda identificada a Max Valentim, introdutor de uma abordagem mais distanciada, despojada e educativa do futebol (: 160-64). Isso sem falar da criação por parte de Cásper Líbero, também naquela década, da Gazeta Esportiva – inicialmente um suplemento do jornal A Gazeta –, cuja análise permitiu ao autor avaliar tanto os impasses da criação de um "discurso esportivo" como as próprias mazelas do desenvolvimento do profissionalismo no país (: 164-69). O autor indica o surgimento posterior de cronistas cujo profissionalismo identifica-se com uma certa "domesticação da paixão", na busca de um posicionamento o mais tecnicista e o menos encantado possível sobre o futebol, ainda que no jornalismo mais popular o "clubismo" e o "bairrismo" permaneçam representando uma "ética torcedora", que teima em impregnar a "ética profissional" (: 164-74).

Mas não só a busca de uma razão distanciada marca o campo dos especialistas, pois que outra faceta constitutiva desse campo, a transmissão ao vivo dos jogos envolve a construção, através de uma cuida-dosa divisão de papéis, de uma narrativa em que a "emoção" é parte integrante do "espetáculo". Configura-se aí um tripé formado pelo narrador, cujo papel é "manter, disciplinar e, se possível, ampliar os níveis de tensão e emoção da partida em si"; o comentarista, cuja fala opinativa, "pessoal" e menos padronizada "mais se aproxima do discurso cotidiano"; e, finalmente, o repórter, a quem cabe "sentir o espetáculo" e "intervir no nível mais imediato dos acontecimentos, com pequenas aparições e rápidas perguntas, buscando sempre o inusitado" (: 201-202). Além dessa dimensão, outro domínio peculiar e também significativo dos especialistas é o das "mesas-redondas", em geral aos domingos à noite, nas quais jornalistas tecem comentários e debatem sobre os jogos ocorridos, entrevistando também profissionais (jogadores, técnicos, dirigentes etc.), dentro da esfera do chamado "futebol falado", que, segundo Toledo, se caracteriza (em que se pese diferenças entre os programas existentes) por uma forte aproximação com a lógica torcedora, dadas as menções recorrentes às formas-representações do jogar – "escola paulista", "escola carioca", "a Felipão" etc. –, como também as discussões acaloradas, falas com entonação, impressionismos, menções a fragmentos da memória futebolística e palpites de toda ordem (: 208-18).

Por fim, o capítulo três adentra nas disputas simbólicas em torno do significado do torcer, quando as etnografias anteriormente realizadas pelo autor são retomadas e repensadas, com a auxílio de novas incursões a campo as quais, tal como ocorre nos outros capítulos, permitem aprofundar tópicos relevantes dessa prática popular.

Inicialmente, o autor reconstrói a formação das torcidas, enfoque que o conduziu à questão da participação mais ampliada das camadas populares nesse esporte a despeito da tentativa de enquadramento moral por parte das elites, as quais detinham o monopólio da prática futebolística, em sua fase amadora (: 220-25). A emergência posterior das torcidas organizadas, já durante o regime militar, só pode ser compreendida, segundo o autor, a partir da relação que essas estabeleceram, como grupos de pressão, com o gerenciamento elitista dos clubes dos quais se originaram (: 228-30). Vale o tema da violência nas torcidas organizadas. Em seguida o autor discute retomando abordagens anteriores sobre esse tema, que, a meu ver têm uma certa fragilidade. Tal assunto não é central no presente livro, mas tem uma amplitude social significativa. Não cabe aqui refazer a trajetória da pesquisa anterior sobre tais torcidas (Toledo, 1996), cuja qualidade é conhecida – recebeu o prêmio da ANPOCS de melhor dissertação de mestrado de 1994 –, mas o enfoque renovado de tal tema enseja questionamentos.

Minha principal discordância diz respeito ao argumento que diz ser simplista a relação direta estabelecida entre torcidas organizadas e a prática da violência, atribuída às mesmas a partir dos anos 80. Essa associação imediata ignoraria um contexto sociocultural mais amplo, ligado sobretudo às camadas populares, caracterizado, entre outros fatores, pelo desinvestimento nas associações comunitárias, pelo crescimento do tráfico de drogas, pelo declínio das religiões afro-brasileiras aliado ao aumento de ramos evangélicos marcados por maior intolerância. O resultado desses fatores é uma fragmentação da sociabilidade que incide de forma catastrófica principalmente sobre o universo juvenil pobre, justamente aquele mais inserido, como algoz e como vítima, no universo da violência urbana, dada também a adoção deliberada de "comportamentos de risco" (: 230-40). Isso não resume toda a argumentação de Toledo, mas, ainda que concordando inteiramente com esse cenário, não haveria porque, em minha opinião, desconsiderar as torcidas organizadas como espaços sociais que também potencializam, à sua maneira, transgressões e atos violentos – ainda que se admita que as mesmas não possam ser vistas apenas por essa chave –, sem cair na armadilha de um relativismo bastante problemático.

O autor ainda explora, do ponto de vista etnográfico, uma outra dimensão significativa e recorrente no contexto urbano: o "futebol de bar", em suas várias modalidades, caracterizado pelo que ele conceitua como "sociabilidade por distanciamento", ou seja, um sistema classificatório inclusivo que por meio da dimensão lúdica põe em relação torcedores de distintos times, congraçando-os, mas ao mesmo tempo demarcando diferenças e rivalidades (: 247-53). Abre-se aqui uma nova contribuição para a compreensão do tipo de lazer praticado em bares onde predominaria um certo ethos esportivo, algo muito recorrente não apenas nas proximidades dos grandes estádios em dias de jogos, mas também nas áreas periféricas mais precárias de nossas grandes cidades, carentes de outros tipos de equipamentos culturais.

Lógicas no futebol, portanto, aborda um leque amplo de temas ligados ao nosso esporte mais popular, vários deles ensejam novas pesquisas, não apenas ligadas ao futebol, mas ao esporte em geral, em suas várias conexões com a sociedade e a cultura. Torna-se possível, com base no modelo analítico adotado, de inspiração estruturalista, compreender também vários aspectos conflitivos, cambiantes e dinâmicos desse universo. Ainda que não fosse a intenção explícita do autor, a investigação, que perpassa todo o livro sob diversas perspectivas, da tensa relação de oposição entre o que poderíamos aqui chamar de "saber popular" versus "saber técnico", abre espaço para reflexões mais gerais sobre as especificidades e dilemas de certos projetos de modernização e de racionalização, sobretudo quando confrontados com o contexto e a visão de nossas camadas populares que, aprendendo a ganhar e a perder, muitas vezes tentam seguir "driblando a vida".

Bibliografia

TOLEDO, L. H. 1996 Torcidas organizadas de futebol, Campinas, Autores Associados/ Anpocs.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2003
  • Data do Fascículo
    2002
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