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Funcionários, diplomáticos, guerreros: miradas hacia el otro en las fronteras de pampa y patagonia (siglos XVIII y XIX)

RESENHAS

Oscar Calavia Sáez

Professor do Departamento de Antropologia – UFSC

Nacuzzi, Lidia R. (comp.). Funcionários, diplomáticos, guerreros. Miradas hacia el otro en las fronteras de pampa y patagonia (siglos XVIII y XIX), Buenos Aires, Sociedad Argentina de Antropologia, 2002, 298 pp.

O extermínio das populações indígenas na República Argentina, a famosa ''conquista do deserto'', é uma história exemplar. Não só no país vizinho, onde conta como feito maior na construção de uma identidade nacional (a do único país definitivamente branco das Américas), mas também deste lado da fronteira, como alternativa genocida contra a qual a tradição protecionista brasileira ganha destaque. Há tempo, porém, que uma revisão dessa história vem mostrando que o extermínio argentino esteve longe de ser uma solução final (a percentagem de população indígena na Argentina é ainda hoje várias vezes superior à do Brasil) e que sua maior eficiência se deu no plano cognitivo, fazendo de índios tangíveis índios invisíveis e obscurecendo qualquer argumento contra a ilusória unidade da nação. Bastante errado andaria quem atribuísse a esse revisionismo algum intuito de apaziguamento: muito pelo contrário, renunciando a essa doce catarse de exagerar a crueldade de tempos já míticos, ele reduz o etnocídio a termos cuja vigência pode ser rastreada no presente.

O grupo de historiadores reunidos neste volume por Lídia Nacuzzi faz uma considerável contribuição a essa novidade, focalizando precisamente a ação dos agentes da expansão durante os séculos XVIII e XIX: chefes militares da fronteira, governadores, geógrafos e nation-builders. Personagens como Francisco de Viedma, governador do forte do Carmen de Patagones, sobre o rio Negro, quem compensa a fragilidade de sua posição com uma política de alianças e de prestígio cujos elementos ele aprende com os chefes indígenas; ou José Francisco de Amigorena, comandante de fronteira em Mendoza, que passa de uma ação militar extremamente violenta à manipulação (ainda mais mortífera) das diferenças entre os grupos indígenas, e finalmente à criação de um status quo relativamente pacífico entre as diversos povos da fronteira – um percurso acompanhado por uma familiaridade crescente do militar com a cultura e a socialidade indígena; ou Manuel José de Olascoaga, erudito e político com uma trajetória acidentada e aparentemente contraditória, que tão logo se destaca como autor de fantasias arqueológicas, que identificam no passado Mapuche as origens da nação argentina, como se transforma em arquiteto da própria ''guerra do deserto'' , ou planeja uma organização do interior argentino – cedo deturpada em função de outros interesses – em que a população de origem indígena tem um lugar importante...

Nesse exame da administração da fronteira nos deparamos com fatos que devem fazer pensar aos especialistas ou surpreender aos leigos: vemos nele como a fronteira entre Argentina e Chile, que agora é fácil interpretar como uma conseqüência natural da topografia, vem a nascer como transformação de um espaço indígena, que se organizava perpendicularmente à cordilheira, e através de um processo que se faz possível só vedando o trânsito das populações indígenas e repartindo-as entre os dois Estados em formação; como uma cultura política baseada nos tratados com as nações indígenas, inédita no resto do mundo ibero-americano, estende-se a partir da experiência chilena e o faz não por meio de recursos políticos europeus, senão das instituições políticas – e da língua Mapuche; como essa política de tratados passa lentamente de ser uma política-fim a ser uma política-meio, um expediente transitório à espera da definitiva construção nacional; como os agentes estatais que atuam em torno da ''conquista do deserto'' (na verdade, uma ''fabricação'' conceitual ou material do deserto) oscilam entre propostas de integração e de eliminação física dos indígenas, coincidindo porém na decidida exclusão das suas formas políticas e culturais; como essa disputa entre um Estado ambicioso e os povos indígenas permanece indecisa durante longo tempo.

Nessa pesquisa centrada nos agentes coloniais ou nacionais, os índios aparecem em um segundo plano sem perder um ápice de seu protagonismo: os Pehuenches principalmente, os Puelches, os Huiliches-Ranqueles etc. compõem um universo notável por sua complexidade e dinamismo: uma rede política e diplomática baseada em assembléias deliberativas; um cambiante sistema de alianças, que em ocasiões alcançam a reunir tribos desde o entorno de Buenos Aires até a cordilheira; uma economia diversificada, que abrange, segundo os grupos, desde a caça ao guanaco e a colheita do pinhão, a manufatura e comércio de têxteis, ao virtual monopólio do comércio de sal, porém centrando-se sobretudo na exploração do gado, de recente aquisição, a qual eles podem exercer como parceiros de fazendeiros brancos (controlando por exemplo as pastagens de altura), como criadores independentes ou como ladrões no atacado, que por longo tempo abastecem o mercado chileno com as reses capturadas aos estancieiros das fronteiras pampeanas.

Para além da pitoresca bricolagem que os viajantes percebem na indumentária ou nas idéias dos índios a respeito dos brancos – é o caso de aquela índia com o rosto enfeitado com as etiquetas de uma manufatura britânica, ou dos poderes terapêuticos que um velho índio atribui à bússola de um visitante –, encontramos sociedades que têm se transformado em paralelo à dos brancos, trocando com ela um cúmulo de saberes e hábitos, e que dificilmente teriam ''sucumbido'' ao influxo da civilização se este não tivesse assumido finalmente a forma de uma rotunda violência.

Um capítulo se refere ao extenso uso que os Ranqueles dão à escrita em sua prática política (nos tratados e na abundante correspondência entre os chefes) e ao efeito desagregador que ela terá numa ordem nativa em que uma oratória sofisticada e em tempo real fundamentava as fidelidades e os acordos. Antes de ser, às vésperas do extermínio, reclassificados como selvagens, os índios serão ''amigos'' ou ''inimigos'', ''argentinos'' ou ''chilenos'', emitirão ou exigirão, de acordo com as autoridades brancas, passaportes que controlem o intenso fluxo de comerciantes, contrabandistas ou proscritos a um lado e outro da fronteira. A transformação desses povos em ''selvagens'' não foi assim fruto de um preconceito etnocêntrico, senão de um lento cálculo político. Sem chegar a ser plenamente desenvolvido no livro, o tema do estatuto jurídico dessas nações indígenas o cobre com sua sombra: no projeto original de uma lei argentina sobre o assunto, promulgada em 1867, era explícito o reconhecimento de direitos originários dessas nações, mas o texto foi oportunamente modificado, expurgando-se dele tudo o que pudesse sugerir uma interpretação dos povos indígenas como entidade política – e, portanto, sujeitos de direito internacional. Os índios não serão alheios a essas alternativas: eles mesmos oscilarão entre o confronto direto, a negociação, a integração individual na nação argentina ou a vinculação a esta como povo federado. Não faltam referências às amargas relações entre os índios que escolhem se instalar dentro do sistema e aqueles que optam ainda pela autarquia, e avaliações indígenas de um processo do qual, afinal, emergem como derrotados e não como simples vítimas.

Apesar de reunir trabalhos independentes, em graus muito diversos de elaboração, o livro é mais homogêneo do que habitualmente se espera de uma obra coletiva, estabelecendo diálogos fecundos entre as várias colaborações. Para esse fim contribui também a introdução e o epílogo de Mônica Quijada que, ultrapassando as funções protocolares que tantas vezes limitam este tipo de textos, define as importantes brechas que o livro abre nas defesas do relato clássico, e faz desta obra de historiadores uma peça importante para a compreensão da própria Antropologia na Argentina. As novidades que propõe destacar no livro (antes que, como ela sugere, sua sensatez faça delas uma evidência ou um déjà vu) podem ser rastreadas pelo uso freqüente de termos que denotam a mediação e a ambigüidade, constantes de qualquer história voluntária ou involuntariamente mestiça.

No que se refere ao Brasil, a história assim recontada não perde sua exemplaridade. Mas em lugar de fixar, a um lado e outro da fronteira, as alternativas épicas do genocídio e o amparo invitam a examinar, portas adentro, as continuidades e as complementaridades entre ambas. É um trabalho já iniciado há tempos com o reexame das políticas protecionistas brasileiras, mas que ainda tem muito a dizer sobre a constituição histórica das identidades indígenas, e sobre o jogo que até hoje se estabelece entre elas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2003
  • Data do Fascículo
    2003
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