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Pessoa e instituição: entrevista com João Baptista Borges Pereira

Pessoa e instituição – entrevista com João Baptista Borges Pereira

Stélio Marras

Doutorando em Antropologia Social – USP, Co-editor da revista Sexta-Feira

A trajetória pessoal do professor João Baptista, doutor em Ciências Humanas pela USP e professor emérito do Departamento de Antropologia da FFLCH-USP, confunde-se com a história institucional deste departamento e da Revista de Antropologia; esta que durante muito tempo figurou solitária no universo das publicações em antropologia e etnologia no Brasil, servindo talvez como o principal canal de publicação dos autores, tanto antropólogos quanto sociólogos, de maior projeção no Brasil, além de ter sido órgão oficial da Associação Brasileira de Antropologia e da Associação de Sociologia. Mas outra clara expressão desse cruzamento entre pessoa e instituição, como se verá nesta entrevista, deixa-se flagrar na figura do pioneiro Egon Schaden, de quem João Baptista recebeu uma catedrática herança, no seio da qual se incluiu este projeto pessoal de Schaden, a Revista de Antropologia, que em 2003 completa 50 anos, razão da presente edição comemorativa e desta entrevista.

Houve dois encontros com João Baptista. No primeiro, preliminar e preparatório, contei com a participação dos professores José Guilherme Magnani e Renato Queiroz, aos quais agradeço e confirmo aqui seus devidos créditos. Fiquei eu responsável pela segunda sessão com João Baptista, que então se demorou nos temas, casos e causos a respeito da Revista, mas não somente dela. Como o objeto da entrevista era a sua lembrança, a escolha aqui foi a de não separar a memória pessoal daquela da Revista e do departamento, uma vez que apareciam recorrentemente juntas na fala do entrevistado. No mesmo sentido, se não há um rigor absoluto na fixação das datas dessa história da Revista de Antropologia, isso se deve ao caráter muito mais memorialístico do que historiográfico, tal como aparece na fala de João Baptista e como procurei reproduzir nesta entrevista. Eliminar esse caráter em favor de dados precisos seria, quer me parecer, como uma traição da função própria da memória, cujo valor, que se sabe, reside noutro lugar que não o da historiografia em seu estrito senso.

1. História da Revista, história da antropologia

Eu acho que a Revista de Antropologia representa uma antropologia que durou praticamente até a década de 1950 e começo de 1960. Representa o que era então fazer antropologia no Brasil. Ela era extremamente rarefeita, você encontrava apenas alguns pontos relativamente bem cultivados, em torno dos quais se aglutinavam algumas pessoas de destaque que se confundiam com a própria disciplina. Então era possível compor uma espécie de colegiado da antropologia no Brasil. Tanto assim que a ABA era um grupo muito fechado, simplesmente porque não havia mais antropólogos para poder participar. Na USP, até 1964, só havia o Egon Schaden e a Gioconda Mussolini, que contavam com a colaboração de dois instrutores voluntários: Ruth Cardoso e Eunice Ribeiro Durham. A partir da metade da década de 1960, vindo da UNESP, chegaram Amadeu Lanna e eu. Juntando-se a nós na mesma época, vieram Thekla Hartmann, Renate Viertler e Hunaldo Beiker. Depois vieram Lux Vidal, Renato Queiroz, Carlos Serrano, Aracy Lopes e Sylvia Caiuby Novaes. E assim o grupo foi sendo ampliado até chegar ao que é atualmente.

O fundador da cadeira de Antropologia na USP foi o alemão Emilio Willems, que era um grande antropólogo e já tinha feito doutorado em Berlim. Ele chegou aqui na USP a convite do Dr. Fernando de Azevedo e criou a disciplina antropologia em 1936, mas não conseguiu desenvolvê-la muito bem, até porque a disciplina estava dividida entre duas cadeiras: antropologia e etnografia do Brasil e língua tupi. Plínio Ayrosa chefiava a etnografia e também fazia parte do conselho da Revista. Havia essa situação meio esdrúxula de se trabalhar com etnografia, e que só desapareceu quando Plínio Ayrosa se aposentou e, então, Schaden conseguiu politicamente juntar as duas cadeiras e trazer, até mesmo, o Museu Plínio Ayrosa para cá. O acervo do Museu ficou durante muitos anos aqui no Departamento, mas depois acabou sendo transferido para o Museu de Arqueologia e Etnologia, o MAE.

Considero importante destacar as profundas ligações de Schaden com universidades alemãs, principalmente com a Universidade de Bönn. E é por isso que sempre aparecem na Revista trabalhos feitos pelo pessoal de Bönn. Ele tinha também profundas ligações com missionários, alguns alemães, e chegava até a transformar esse pessoal em pesquisador. Vários enviavam material que o próprio Schaden selecionava e revisava. Ao lado disso, havia uma estreita conexão com a sociologia, numa composição com o Dr. Fernando de Azevedo, Ruy Coelho, que é doutor em antropologia, Antonio Candido e com Florestan Fernandes, em função de seus trabalhos sobre os Tupinambá, e com a Escola de Sociologia e Política, porque Willems era professor aqui e lá também.

A Escola de Sociologia e Política era a única que dava grau de mestre. Por isso muitos realizaram a pós-graduação naquela escola. De minha geração, eu, Carmem Junqueira, José Pastore, Fábio Barbosa da Silva, Manuel Berlinck, Beatriz Muniz de Souza, entre outros, somos mestres pela Sociologia e Política. Na verdade, toda a antiga geração obteve lá seu título de mestre. Entre outros, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Gioconda Mussolini, Oracy Nogueira, Virgínia Bicudo, Lucila Herman. Era um meio de conseguir titulação acadêmica, porque a USP só passou a oferecer cursos de pós-graduação em 1969, 1970, quando se criaram os departamentos. Antes disso, o que havia era especialização, que não tinha valor no exterior. Então, se você queria fazer um doutorado no exterior, exigia-se preliminarmente o mestrado. Por isso a pessoa, que tinha alguma expectativa de realizar doutorado lá fora, fazia antes o mestrado na Sociologia e Política, porque com aquele título ela conseguia ir para o doutorado direto. Eu, por exemplo, fiz lá, porque tinha um convite do professor Charles Wagley para me doutorar na Universidade de Columbia, desde que eu levasse o mestrado.

Como se percebe, o Conselho da Revista tinha mesmo uma composição híbrida e que, obrigatoriamente, incorporava parte da sociologia. Era muito grande, em termos institucionais, a ligação entre a antropologia e a sociologia, mas também em termos pessoais. Antonio Candido colaborou muito com a Revista. A sociologia que se aproximava mais da antropologia era uma sociologia que eu chamaria mais light, que é a sociologia de Ruy Coelho, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Antonio Candido, Asis Simão e Dr. Fernando de Azevedo. Florestan certamente vinculava-se a nós da antropologia mais por causa da temática dos trabalhos dele, do que pela lógica que orientava seus estudos.

2. Caminhos, escolhas, vocações

Quem provavelmente influenciou Florestan na escolha de sua temática foi seu orientador de mestrado, o professor Hebert Baldus, que era o grande líder, o grande intelectual da Escola de Sociologia e Política. Baldus foi também diretor do Museu Paulista, antropólogo e presidente da ABA. Ele era bom conhecedor de índios, mas não era bom antropólogo, enquanto Florestan tinha um refinamento e um rigor teóricos que seu mestre não tinha. O fôlego de Florestan era impressionante, ele escrevia numa compulsão incrível, numa gana de pesquisar, que eu acho que nunca encontrei alguém assim em minha vida.

Uma vez procurei o professor Florestan para esclarecer um ponto da trajetória dele. Perguntei-lhe o porquê do interesse dele pelo negro, já que suas pesquisas anteriores dele nada tinham a ver com esse assunto. A obra pregressa era sobre folclore, folclore urbano, aquelas famosas trocinhas do Bom Retiro; que Oliveira Viana inclusive chegou a ironizar no rodapé do trabalho dele, dizendo que sociólogo perdia tempo com as trocinhas de um bairro paulista e deixava de lado as grandes questões nacionais. E no entanto o trabalho era muito bem-feito, modelar, em minha opinião. Depois usou um tempo muito grande da vida dele para a reconstrução dos Tupinambá. Em resposta, disse-me que nunca antes havia se interessado pelo negro, nunca havia pensado no problema, até o dia em que Alfred Métraux veio a São Paulo para tentar se entender com Donald Pierson, da Sociologia e Política, e com o professor Roger Bastide, a respeito de um trabalho sobre relações raciais no Brasil, o famoso projeto da UNESCO. Houve uma pendência entre Donald Pierson e a UNESCO porque esta pagava muito pouco, e Donald Pierson não aceitou o pagamento por considerá-lo irrisório e insuficiente. Aí ficou só o Bastide, que disse que só iria aceitar se o Florestan, que trabalhava com ele, concordasse em entrar no projeto. Bastide foi falar com Florestan, explicou tudo, mas este disse que não estava interessado nesse assunto, que tinha outros projetos de vida acadêmica. Florestan me disse que o professor Bastide – muito bom, muito humilde, uma pessoa tímida – saiu da sala dele quase humilhado e foi sumindo no final do corredor. Florestan ficou olhando o mestre que se afastava e não se conteve. Num ato de emoção chamou o professor Bastide de volta e disse-lhe que aceitava. Portanto, ele entrou no estudo das relações raciais apoiado numa impulsão de ordem absolutamente afetiva, que era bem o modo do Florestan, uma pessoa explosiva, mas muito afetiva, e foi a afetividade dele que falou mais alto naquele momento. De toda maneira, ele depois declararia que aquela foi a experiência acadêmica mais gratificante que ele teve na vida intelectual. E fez aqueles dois trabalhos maravilhosos, orientou os estudos clássicos de Ianni e Fernando Henrique e depois abandonou o tema. Foi quando nós continuamos, na antropologia, numa linha de estudos de relações raciais mais próxima de Bastide do que de Florestan.

Eu mesmo tive um desacordo com o Florestan Fernandes que reflete esse instante de transição temática. Quando lhe entreguei meu projeto de doutorado, ele me falou que não orientava mais teses sobre negro, pois tudo o que tinha de se escrever já fora escrito. Retruquei que sobre o meu assunto ninguém havia escrito, que era sobre comunicação de massa e relações raciais. Eu não sabia, então, que Florestan estava completando sua tese de cátedra – A integração do negro na sociedade de classes, realmente um trabalho abrangente e maravilhoso, diria mesmo uma obra-prima. Acho que ele pensava que o trabalho dele era muito abrangente e que o meu não teria nenhum sentido mais. Aí eu disse: "não, o meu trabalho é este, inclusive inspirado numa sugestão sua e de Roger Bastide". Não adiantou, ele não quis mesmo me orientar. E me perguntou se eu ficava chateado. Eu disse que sim e ele me disse que eu não estava mais chateado do que ele, porque ele havia entrado no assunto sobre negro de maneira obrigada. Foi aí que ele me contou parte da história com o Bastide e me disse que eu precisava aprender uma coisa, e me deu uma lição: "enquanto se é aluno de graduação, escolhe-se o professor, mas depois é o professor que escolhe o aluno". "Com isto", disse-me ele, "estou lhe dizendo que eu o escolho como meu orientando, desde que você mude de tema". Em seguida, sugeriu-me que estudasse uma comunidade cafeeira do interior de São Paulo, já que não havia monografia sobre tal comunidade. Justificou a sugestão, informando-me que Fernando Henrique estava trabalhando sobre o papel da acumulação do capital da lavoura de café na indústria de São Paulo. Descobri, então, que havia um projeto maior e que minha pesquisa seria parte desse projeto. Perguntou-me: "está bem assim?". Respondi-lhe: "está bem, fazer o quê?". Achei desestimulante realizar esse trabalho numa cidadezinha – Chavantes – que terminava nas fazendas de café. Realizei um survey na comunidade, preparei o projeto e o levei para Florestan. Perguntei-lhe: "está bom, professor?". Ele disse que estava bom. Aí eu rasguei o projeto na frente dele – fui acintoso mesmo –, desculpei-me e saí da sala. Florestan se etou: "mas o que é que há, ficou louco?". "Não fiquei louco não" – disse-lhe eu –, "é que não quero fazer isso". Então desci as escadas da Antropologia, encontrei o professor Egon Schaden, e perguntei se ele aceitava me orientar no doutorado. Ele disse que aceitava ser meu orientador desde que eu concordasse em ter um orientador que mais ouvisse do que falasse, porque ele não trabalhava com questões raciais. E foi um grande orientador. Ele não interferiu, me deu liberdade. O grande crítico de meu trabalho foi Oracy Nogueira – que tinha sido meu orientador no mestrado –, e lia página por página. Foi ele que segurou um pouco a minha linguagem, meio exagerada, e deu mais elegância ao meu estilo. Acabou que Schaden foi meu orientador formal e Florestan compôs minha banca de defesa. Anos depois ele publicou sua tese em inglês e na introdução ressalvou que seus resultados eram respaldados por uma pesquisa "independente", que era a minha, já publicada em livro. Enviou-me cópia da introdução, com a observação de que foi bom para ambos a minha resolução em fazer doutorado com Schaden, pois os resultados comuns a que chegamos convalidavam as duas pesquisas. Agradeci, simplesmente, e nunca mais toquei nesse assunto com ele.

Eu já estava na cadeira quando me doutorei. Depois fui fazer a livre-docência sobre italianos, porque a Antropologia não tinha livre-docente. Schaden dava aula metade do ano aqui no Brasil e metade do ano na Universidade de Bönn, como professor visitante. A Congregação tomou uma decisão: quando algum catedrático deixasse por certo tempo a Universidade, deveria deixar um tutor na cadeira. Florestan queria ser o tutor, mas mesmo o pessoal ligado a ele não o queria como tutor, e sim Ruy Coelho, que era considerado mais liberal, além de ter se doutorado em antropologia. Esse impasse criou um clima tenso. De sua parte, Schaden me chamou para perguntar como estava a minha livre-docência. Pediu-me para deixá-lo ler o que eu já havia escrito e então me disse que estava ótima. Não concordei com a opinião dele. Voltei a campo para pesquisar mais e só retornei no fim do ano com o trabalho feito. Ao defender a livre-docência, eu imediatamente iria me tornar substituto dele como catedrático. Era automático e eliminava o problema dele, referente à exigência da Congregação. Defender uma livre-docência tendo o seu catedrático significava uma coisa, mas ter uma livre-docência sem ter catedrático significaria que você se tornava praticamente um herdeiro virtual da cadeira. Uma tarde, depois que eu havia depositado a tese para defesa, Schaden nos reuniu e, sem avisar ninguém, disse que havia acabado de tomar a decisão de se aposentar. Pensei que se eu não defendesse, iriam dizer que a minha tese não era boa e, se eu a defendesse, iriam dizer que eu queria a cátedra. Mas aí não tinha como recuar e defendi a livre-docência. Schaden se aposentou imediatamente, e acho que eu e Fernando Henrique somos os únicos catedráticos sobreviventes das Ciências Sociais. A Congregação me contratou como catedrático por dois anos e meio e, depois, continuei no Departamento como professor livre-docente. Mas, por ser catedrático, tive de assumir todos os encargos de cátedra, entre os quais os orientandos dele. Por isso Thekla, Renate, Melatti, Silvio Coelho dos Santos defenderam seus doutorados comigo. A Revista de Antropologia foi parte dessa herança.

3. Herança de Schaden

A Revista de Antropologia foi um ato pessoal, heróico de Schaden. Não foi um ato institucional, porque se dependesse da instituição não haveria a Revista, nunca. Ele é que fundou a Revista, ele que a idealizou. Quando eu vim pra cá, a Antropologia era extremamente minoritária, em todos os sentidos. Tanto qualitativa como quantitativamente. Só havia a Gioconda Mussolini e o Egon Schaden. Não tinha gente, não havia professores auxiliares, mas havia a figura do instrutor voluntário, que era a seguinte: dava-se aula, como se professor fosse, durante um mês, anos às vezes, esperando que um dia saísse uma verba para ser contratado. E foi então que chegaram como voluntárias a Ruth Cardoso e a Eunice Ribeiro Durham. Eram as que trabalhavam sem nada ganhar.

Mas quando Schaden deixou a Faculdade e se aposentou, a Revista ficou um pouco à deriva, porque era dele. E no entanto ele não podia mais mantê-la porque, de uma forma ou de outra, havia um apoio institucional por trás. Foi aí que ele me pediu, quando eu havia assumido a cátedra e já estava contratado, que assumisse também a Revista, que eu chamo a herança do professor Egon Schaden. E o que constituía a herança de Egon Schaden? Manter o grupo bem unido, que éramos todos um grupo jovem.

Mas éramos todos muito jovens e tínhamos de segurar as pontas, não é? Faltou o Schaden, a Gioconda morreu logo em seguida, então ficamos nós, os jovens. E era muito difícil a competição por verbas, era difícil aumentar o número de professores e, embora o grupo fosse muito bom, era um grupo ainda inexperiente. Mas eu tive muita sorte, porque, com esse pessoal novo e muito talentoso, nós criamos, depois de 1970, a primeira pós-graduação brasileira em antropologia, que dura até hoje. Essa foi sem dúvida uma das grandes conquistas. Era para ser uma pós-graduação não de antropologia social, mas antropologia tout court, porque nós dávamos guarda-chuva ao pessoal da arqueologia, por exemplo, que não tinha condições institucionais de se desenvolver sozinho. Mas estava na moda a antropologia social e o relator do Museu Nacional disse que tinha de ser antropologia social ou nada. E essa acabou sendo uma condição da Capes. Então eu consultei o grupo e nós decidimos aceitar isso a aceitar nada. Com esse nome nós continuamos do mesmo jeito, não mudamos nada. Enfim, eu recebi muito apoio desse grupo jovem, muito sério, que em momento algum falhou.

Mas o caso é que acabei sendo herdeiro da obra e da cátedra de Schaden. Junto, na herança, Schaden me deixou como o fiel depositário da Revista de Antropologia. No período de seu surgimento, acho que ela era a única do ramo. Se não nas ciências sociais, com certeza na antropologia. Algo um pouco parecido, até onde eu me lembro, eram os Boletins Avulsos do Museu Emílio Goeldi. Havia a revista da Escola de Sociologia e Política, que se chamava Sociologia. Ela foi importante mas morreu na década de 1960. Por ela passaram grandes nomes das ciências sociais. Mas a Revista de Antropologia serviu de importante canal mesmo para autores não propriamente da antropologia. Antonio Candido, Ruy Coelho, Florestan Fernandes e Otávio Ianni, por exemplo, publicavam nela. A Revista era aberta e era praticamente o único canal de publicação.

Mas, como eu disse, a Revista de Antropologia era do Schaden, não do Departamento. Quando ele saiu, resolveu doar a Revista para o Departamento, porque ela não era institucional, embora funcionasse como se fosse. Na verdade, tanto Schaden quanto os demais que o rodeavam falavam da Revista como "a revista do Schaden". Então, com a saída dele, ela passou a ser formalmente da USP, num momento em que havia um universo de pouquíssimos periódicos e revistas. Quando ele me passou a direção do periódico, pediu para que eu não mudasse a linha editorial e a capa, que ele considerava dentro de um modelo clássico, inspirado em revistas alemãs.

Um princípio da Revista era começar todo número com um artigo de etnologia. Era norma de Egon Schaden e foi um dos compromissos que eu tive de assumir com ele. Toda a linha editorial foi pensada por Schaden. Para ele, a Revista tinha sempre de acolher resultados de pesquisa, mesmo que não fossem refinados do ponto de vista teórico. Eu acho que a Revista teve um papel importante na história da antropologia no Brasil na medida em que ele adotava, como princípio, estimular bastante a pesquisa de campo, dando sempre precedência à etnologia. Tanto assim que havia um padrão de abrir a Revista com um artigo sobre índio, e nunca sobre qualquer outra matéria. E como existiam muitos missionários, alguns tidos por Schaden como muito bons, eles enviavam os relatórios e Schaden publicava todos. Eu acho que esse foi um grande papel da Revista, o de ter trazido para o campo acadêmico esses pesquisadores relativamente anônimos. Essa linha editorial fazia com que a revista acolhesse um material que atualmente nós provavelmente não acolheríamos. É claro que naquele tempo havia poucos pesquisadores de campo, poucos antropólogos profissionais e pouca sofisticação teórica. Mas Schaden, em minha opinião, já era naquele tempo um importante teórico da etnologia.

As condições materiais de publicação da Revista eram bastante difíceis. A revisão era feita por todos os professores. A Revista não tinha dinheiro, os recursos eram parcos. Schaden não só comprava papel, mas reescrevia os artigos para deixá-los no ponto ideal; comprava selo, passava a língua, selava; e de ônibus levava, aos poucos, ao correio central, lá no Anhangabau. Uma ajuda importante foi a combinação que havia entre Schaden e Eurípedes Simões de Paula, que criou a Revista de História, dois anos antes, se não me engano. A de História e a de Antropologia são as duas revistas mais velhas da FFLCH. E Eurípedes, talvez porque sempre estivesse envolvido com sua revista, compreendia as dificuldades de Schaden e se comprometia com maquinário e impressão. Schaden tinha de dar papel e, como não tinha verba, ele tirava do próprio bolso. Lembro-me uma vez de que Schaden, em suas raras confidências, disse-me que, quando olhava seus filhos, ficava pensando se havia feito bem ou se havia feito mal, porque muitos natais passaram sem ganhar presente, já que com o dinheiro dos presentes, que poderia comprar para eles – porque ele ganhava pouco –, ele comprava papel para a Revista de Antropologia. Eu não sei como a família reagia a isso...

A impressão era feita aqui na gráfica antiga, em linotipo. Quando fui vice-diretor da Faculdade, cheguei a comprar um linotipo italiano, novo. Ruy Coelho foi um diretor que sempre me apoiou muito. A Fapesp, por sua vez, sensibilizou-se pela Revista e aceitou financiar o linotipo.

Durante os dez anos em que fui editor ou diretor da Revista, não houve uma mudança substancial em sua linha editorial. Continuei as normas de Schaden e sempre com aquele acolhimento, aquele caráter eclético e aberto que ele tanto estimulava. Daí a importância das resenhas. Eu aprendi com Schaden que, entre uma boa resenha descritiva e uma resenha pretensiosa, é muito melhor ficar com a resenha descritiva. E havia também o noticiário na Revista de Antropologia. Muita gente pergunta sobre o porquê desse noticiário. É que o mundo da antropologia era muito pequeno, uma comunidade pequena. Então, naquele tempo, havia os nomes fortes de cada lugar. Assim, na região amazônica tinha Eduardo Galvão no Museu Emílio Goeldi; no Recife, René Ribeiro; na Bahia, Thales de Azevedo; em São Paulo, Gioconda Mussolini e Egon Schaden; no Paraná, Loureiro Fernandes; em Santa Catarina, o mestre do professor Silvio Coelho dos Santos, professor Cabral; no Rio Grande do Sul, Francisco Salzano, embora fosse mais geneticista do que propriamente antropólogo; no Pará, Napoleão Figueiredo; no Rio de Janeiro, o professor Castro Faria junto com Darcy Ribeiro, já um nome cheio de referências, brilhante. Então a Revista noticiava, dava cobertura a essa gente toda, era um canal de expressão. Esses antropólogos mandavam notícias para a Revista e nós as publicávamos, como as reuniões da ABA, quem foi eleito representante da ABA, cursos que estavam sendo ministrados pelo Brasil afora, colocando, enfim, em evidência os nomes das pessoas que atuavam na área. Era um meio de comunicação da comunidade acadêmica. Atualmente, não tem mais sentido, porque há muitas revistas, o mundo da antropologia já é muito grande, acabou aquele sentido comunitário, pequeno.

Schaden era, em minha opinião, o homem mais internacional que havia entre nós. Tinha muito prestígio na América Latina. Quando se aposentou, ia de universidade em universidade como professor visitante, pois falava fluentemente alemão, inglês, francês, guarani e ehol. Mas chegou um ponto em que esse circuito se esgotou. Aí ele voltou ao Brasil e foi para a ECA. Lá ele criou a antropologia da comunicação. E o fantástico é que ele montou um acervo de filmes etnográficos destinado a toda América Latina. A pedido de Schaden, eu fui lá, fiz um levantamento e publiquei a relação de obras na Revista de Antropologia. De todo modo, ele tinha experiência internacional e um trânsito incrível. Sabia o que representava para o Velho Mundo, a Europa, as notícias e pesquisas de antropologia no Brasil. Há uma espécie de consumo por parte dos intelectuais europeus de coisas indígenas, da vida, da cultura e da sociedade indígena. Daí que a Revista de Antropologia acabou ganhando uma projeção internacional. Era publicada só em português, mas se havia textos em inglês, francês, ehol, Schaden publicava também. Outra coisa importante de se lembrar é o papel que a Revista teve angariando permutas com periódicos do mundo inteiro, porque nós não teríamos condições de pagar os periódicos.

Acho que não se pode pensar o Schaden sem considerar a biografia dele. A família de Schaden, descendente de alemães de Santa Catarina, cultivava a cultura alemã como ninguém. Ele não era de esquerda nem de direita. Era alemão, simplesmente. Isso é muito difícil explicar. O fato é que ele gerava enorme ambigüidade entre os alunos, porque estes eram muito fascinados pela esquerda. E Schaden era um homem que não se envolvia com questões político-ideológicas. Seu compromisso era com a antropologia. Ele e Antonio Candido davam aulas cinematográficas. Candido imitava os professores. Schaden não movia um músculo da face. Tinha um timbre muito forte. O único recurso que ele usava era o cachimbo. Fazia pausas no meio da frase, botava fumo no cachimbo, acendia-o, criava suspense e retomava a frase. Era extraordinário. Eu mesmo nunca pensei em fazer antropologia. Eu vim para a USP cursar sociologia. Mas quando eu assisti a uma aula de Schaden sobre populações pigméias da África Equatorial, minha nossa, eu saí antropólogo. Schaden me converteu.

Quando Schaden morreu, publiquei uma homenagem a ele num texto que se chama "Lembrando Egon Schaden", um texto muito mais emotivo do que outra coisa, porque eu sempre tive um apreço muito especial por ele, que era um homem aparentemente inacessível, mas, depois que se conseguia derrubar sua couraça, ele se tornava uma companhia agradabilíssima, espirituosa, inteligente. Eu o visitava freqüentemente. Fui além do relacionamento institucional com Schaden, porque os europeus seguram um pouco, mas eles gostam que você invada um pouco também sua privacidade.

4. Mal-entendido antropológico I: o causo Willems

Aliás, há uma história famosa que vale a pena saber, embora nada tenha a ver com a Revista. Willems, que foi meu professor de pós-graduação na Sociologia e Política, não conseguia disfarçar uma irritação total quando alguém, ao cumprimentá-lo, perguntava pela família, que é típico de brasileiro. Ele então virava para a pessoa e perguntava o que é que ela tinha com a família dele. Quer dizer, ele como professor era um homem público e institucional, não tinha nada a ver com a família. Ele dizia que não entendia essa invasão de privacidade no Brasil, porque, claro, na Alemanha essa distinção entre público e privado é muito mais rígida.

Certa vez, no saguão da faculdade, chegou uma aluna que acabara de ler o livro dele sobre Cunha, que é um estudo de comunidade. Ela ficou fascinada e perguntou ao professor Willems como ele havia chegado a Cunha. E ele respondeu, secamente: "de ônibus". Quer dizer, não era isso que a moça queria saber. Depois ela perguntou por que ele havia retirado o nome da cidade, Cunha, do título da segunda edição do livro. Então ele contou que, ao ser lançado o livro, os cunhenses sentiram-se profanados em sua intimidade e vieram para São Paulo, sitiaram a faculdade, querendo brigar com ele. Aí Oracy Nogueira, que é de Cunha, resolveu intermediar. Chegou lá e explicou aos exaltados conterrâneos que aquele era um trabalho científico sério. Em resposta, o prefeito disse a Oracy que ele era cunhense mas não teve nenhum gesto para evitar que Willems deixasse Cunha de cuecas na rua. Aí, para evitar problemas, ele lançou a segunda edição com o nome de Uma vila brasileira.

5. Passagem e tradição: Lévi-Strauss e Bastide

Lévi-Strauss chegou a ser professor de Schaden, mas ele não teve nenhuma relação com a Revista. Lévi-Strauss gerou pouca influência pessoal porque, na verdade, ele não veio para a Antropologia, mas para a Sociologia da USP. O que ele produziu, que constitui a grande obra de Lévi-Strauss, seu sistema interpretativo antropológico, ele fez depois de ter estado aqui, aproveitou a experiência dele aqui e os resultados dos pesquisadores brasileiros. Já a mulher dele, Dina, formou junto com vários intelectuais, inclusive Mário de Andrade, uma espécie de sociedade etnográfica do Brasil, mas Lévi-Strauss pouco ou nunca se envolveu com isso. Não é como Bastide, que tem uma presença que repercute até hoje. De Lévi-Strauss repercute muito mais sua obra. De Bastide repercute muito mais sua presença pessoal. O fato é que a passagem de Lévi-Strauss não marcou, não criou uma tradição. Pelo contrário, as pessoas que conviveram com Lévi-Strauss, como é o caso de Castro Faria, reagem muito negativamente, dizendo que era muito difícil o relacionamento com ele. Mas ele sabia usar os dados coletados pelos pesquisadores e mesmo estimulava a coleta entre as pessoas que se sentiam honradas em mandar os trabalhos para ele.

6. Etnografia, etnologia e antropologia

Isso que se observou na Revista, isto é, a diferença entre etnografia, antropologia e etnologia, explica-se por uma espécie de acordo tácito entre a cadeira de Plínio Ayrosa e a chefiada por Schaden, que era antropologia. O Plínio Ayrosa só dava etnografia do Brasil, centrada na ergologia, que é o estudo de elementos materiais da cultura. Já o Schaden tinha compromisso com antropologia física e cultural, numa linha que vinha desde Willems. A Gioconda dava antropologia física também. Ela e Schaden às vezes permutavam as disciplinas, mas, de qualquer maneira, nunca deixavam a antropologia física. Nós só deixamos a antropologia física quando não havia mais docente qualificado para dar a disciplina aqui e quando percebemos que a antropologia física no Brasil estava muito arcaica com relação à antropologia física mais de laboratório, comportamental, praticada nos grandes centros internacionais, em especial nos Estados Unidos. Era melhor não oferecer do que oferecer uma disciplina de maneira insatisfatória.

Etnologia era e é a antropologia sobre índio. Quando saía um pouquinho dos assuntos indígenas, o que se então fazia era antropologia, e não mais etnologia. Essas categorias se conservam até hoje. Mesmo que se fizesse etnografia com os índios, ainda assim se chamaria etnologia, porque na ocasião a etnografia tinha um sentido pejorativo, significando pobreza de análise. Se se queria falar que o trabalho era ruim, dizia-se que era um trabalho etnográfico. Só depois a etnografia se reabilitou e se revelou fundamental na interpretação antropológica, o que não ocorria naquele tempo.

7. Invasão da Maria Antônia

A Revista alcançou uma circulação maior no âmbito internacional do que no nacional. Daí as permutas que mantínhamos com revistas e periódicos estrangeiros. E por isso se pode imaginar como foi dramático quando houve a invasão da Maria Antônia. Nós perdemos todos os endereçamentos da Revista e isso nos deixou de mãos amarradas. A Revista ia como troca, permuta, doação, assinatura. Na ocasião, eu já chefiava a cadeira. No dia seguinte à invasão, quando cheguei, encontrei as dependências da cadeira empasteladas. Nós funcionávamos embaixo, no subsolo, que saía para um pátio interno, ligando a Faculdade de Filosofia à Faculdade de Economia, onde estava instalado o grêmio que também foi empastelado, quebrado. Não deu para voltar mais lá, arrebentaram as salas, destroçaram os livros, não se conseguia entrar mais. Foi aí que nós perdemos muita coisa. E então viemos para a Cidade Universitária. O diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Eurípedes Simões de Paula, uma figura interessantíssima, foi quem mandou um caminhão para transportar tudo que estava na Maria Antônia para a Cidade Universitária. Eu acabei recebendo coisas que não tinha e perdi coisas que tinha. Mas dentre as perdas estava o fichário da Revista de Antropologia. E como íamos fazer naquele momento? A Revista ficou sem sair não sei quanto tempo, porque não havia condição nenhuma. Acho que tem a ver com o período entre 1973 e 1977 que se notou não ter tido publicação da Revista.

Mas para resolver o problema do fichário de endereçamento, procurei o Schaden e perguntei como fazer, já que naquele tempo não tínhamos computador. Então ele me levou à sala dele, onde havia umas dez caixas, e disse que toda correspondência que ele recebera da Revista de Antropologia, desde que ele a criara, estava lá, e que, se alguém tirasse os dados de lá, seria possível recuperar o fichário. Fui à Fapesp e consegui verba para contratar uma arquivista, uma bibliotecária. Procurei a Diva Andrade, que era chefe da biblioteca recém-montada, porque nós não tínhamos biblioteca naquele tempo, e ela me disse que eu precisava de uma pessoa muito competente e com paciência oriental. Prometeu-me que iria consultar uma moça de ascendência japonesa que se chamava Kamazuko – nós a chamamos de Ka –, e que ela era ótima, tinha bom humor e era capaz de enfrentar a tarefa. Pedi a Diva que a mandasse falar comigo. Ela veio, mostrei-lhe todas as caixas, falei como seria o trabalho e perguntei se ela era capaz de fazer isso. Ela disse que sim, mas que só faria depois de passar por uma exigência sua, que era obter informações sobre mim. Eu disse a ela que nunca tinha visto empregado pesquisar informações de empregador, mas tudo bem. Ela pediu o prazo de uma semana e eu lhe dei. Aí ela saiu fazendo suas perguntas, voltou depois de uma semana e disse que aceitava o trabalho. Eu achei ótimo e perguntei se todos tinham sido favoráveis. Ela disse que apenas uma pessoa havia falado mal, mas que não iria contar quem era. E eu disse que também não queria saber. Pois bem, em um ano ela recuperou tudo e nós recomeçamos a Revista.

8. Queremos índios?

Durante o período do Regime Militar, a antropologia foi muito hostilizada pelos próprios alunos como uma disciplina pouco política, alienada, que se preocupava não com os problemas do Brasil, mas com problemas absolutamente distantes da realidade nossa. Então os alunos chegavam a invadir nossas salas de aula sobre etnologia porque não queriam saber sobre índios. E faziam manifestação com cartazes dizendo: "Não queremos índios", "Não queremos índios", "Não queremos índios". A Renate, jovem professora, sofria porque ela só trabalhava com índio. Então nós estrategicamente diminuímos as aulas de etnologia e começamos a dar mais ênfase em certos aspectos que poderiam eventualmente contemplar as expectativas dos alunos. Mas aí eles descobriram que os índios eram, realmente, um grande problema nacional. E então passaram a sair com cartazes dizendo: "Queremos índios", "Queremos índios", "Queremos índios". Daí eu falo sempre que a antropologia alterna fases "Não queremos índios" com fases "Queremos índios".

Lembro-me, por exemplo, de quando Florestan me perguntou se era verdade que Schaden havia me convidado para ser assistente dele em antropologia. Florestan era meu vizinho no Jardim Paulista, ele tinha carro e eu sempre ia de carona com ele. Nós conversávamos bastante, eu gostava dele como pessoa e intelectual, embora ele fosse muito emocional, ciclotímico, alternava demais mau humor e bom humor, mas, de qualquer maneira, eu me dava bem com ele. Então eu disse que sim, que Schaden havia me convidado. Pois Florestan ficou indignado, disse que era um prejuízo, uma perda desperdiçar meu talento com uma disciplina politicamente alienada. Quer dizer, nesse período da vida nacional, não havia mesmo o menor estímulo para a carreira em antropologia.

9. Vocação imperialista

Naquele tempo não havia uma preocupação muito grande em sistematizar a antropologia, como a antropologia urbana atualmente. Ou a idéia de uma antropologia rural, que ainda era mal formulada. Atualmente não, as áreas têm cada qual seus autores e trabalhos. Eu até fiquei surpreso, um dia, quando José Guilherme apresentou um levantamento dos trabalhos de antropologia urbana e descobri que o meu era de antropologia urbana. Nunca pensei ter feito isso na vida. Naquele tempo, para mim, eu fazia um trabalho de antropologia na cidade, embora muito mais ligado à sociologia. Mas atualmente não, hoje tem um campo muito bem definido, valorizado intelectualmente, com esquemas muito próprios de análise e de interpretação e, o que é importante, sem deixar de ser antropologia. Atualmente se faz antropologia do mundo rural e do mundo urbano, tal como o que R. Redfield dizia em relação à casa no meio do caminho. Ou ainda o urbano periférico. Eu mesmo tenho estimulado trabalhos em relação ao urbano menos periférico, como estudos sobre classe média, por exemplo. Já tenho um orientando que trabalha nessa linha. O José Guilherme também trabalha. O fato é que a antropologia se espraiou enormemente. Schaden dizia que "finalmente a antropologia havia alcançado a sua vocação, que é a de ser imperialista".

10. Experiência sensível da diferença

Eu mesmo venho de uma vida acadêmica e de uma experiência híbrida, porque orientei trabalhos e participei de bancas em etnologia, embora eu nunca tenha feito trabalho sistemático com os tribais. Então, a opinião que tenho é que, independentemente de o aluno fazer antropologia urbana ou rural, ele deve um dia visitar uma aldeia indígena. Nem é preciso ficar muito tempo, às vezes poucos dias. Nunca me esqueço da primeira vez em que eu fui aos índios Carajá. Cheguei lá, havia um menino agachado fazendo um trabalho de cestaria e aí eu descobri duas coisas. Primeiro, que o índio não fala olhando para você. Falar olhando no rosto, como nós estamos fazendo agora, é algo muito ocidental. Segundo, ele me perguntou se eu era homem ou mulher. Fiquei surpreso, porque achava que eu estava portando todos os símbolos, signos e sinais de homem, mas a leitura dele não permitia saber se eu era homem ou mulher. Eu disse então que eu era homem e ele falou que também era homem. E então me perguntou se eu era homem velho ou se menino ainda. Aí eu vi que não poderia responder e fiz a ele a mesma pergunta. Ele disse assim: "eu sou menino hoje, mas amanhã eu já sou homem velho". Aí eu perguntei: "mas como é que você vai virar homem?". E ele disse: "Vou casar amanhã". Em outras palavras, aqui nós casamos porque crescemos, mas lá nós crescemos porque casamos. É o contrário. Isso é tão simples, mas para mim foi tão surpreendente, apesar de minha experiência de campo com grupos nacionais. É algo que burila sua sensibilidade. Estamos acostumados com as nossas diferenças, mas esse tipo de diferença só se pode perceber, sentir, quando se está lá. É um banho de antropologia.

11. Mal-entendido antropológico II: o causo Pedro Castro

Nós fomos ao grupo Javaé, lá no Araguaia. Amadeu Lanna, eu e Pierre Clastres. Amadeu havia encontrado Clastres em Paris, fizeram amizade e ele veio convidado para dar um curso como professor visitante, que durou mais ou menos um mês. Depois é que fomos juntos ao braço direito do Araguaia, onde estão os Javaé. Naquele tempo era uma aventura, levamos três ou quatro dias para chegar. Viajamos de carro, depois de cesna, que é um avião monomotor, e depois de canoa. Clastres queria fazer observação, registrar, enquanto Amadeu Lanna e eu tínhamos mais interesse na experiência. Isso deve ter sido em 1965.

Quando nós saímos daqui, ele era Pierre Clastres. Mas quando chegamos lá, para os caipiras todos, ele virou Pedro Castro. Ficamos na casa de uma fazenda que, por sinal, tinha como um dos sócios o Dr. Dante Pazzanesi, que era sogro de Amadeu Lanna e tinha essa fazenda de gado que ficava perto do braço direito do Araguaia, a uns dois ou três quilômetros dos Javaé. É por isso que nós dizíamos que Amadeu Lanna era o único antropólogo que tinha índios dentro de casa. Então nós estávamos lá e havia uma senhora que cuidava da casa. Ela nos hospedou e nos acolheu, arrumando as coisas, cozinhando.

Tudo ia bem até que um dia, quando chegamos para almoçar, a mulher disse que não ia mais ficar ali. Nós ficamos apavorados porque naquela imensidão não havia ninguém e a mulher, que era o nosso único apoio, ia embora. Então eu perguntei: "mas por quê?". E ela disse: "porque o seu Pedro Castro foi muito deselegante comigo, muito grosseiro". Mas, que estranho, pensei: Pierre não é grosseiro, apesar de ser muito francês. Então ela explicou que ele dissera a ela que a comida dela era péssima. Mas Pierre Clastres não iria falar isso, pensei. De qualquer maneira, cheguei a Pierre e falei da situação em que ele havia nos colocado, que a mulher dissera que ele falara mal da comida dela e que agora ela ia embora. Então ele explicou que havia feito exatamente aquilo que nós falamos que ele deveria fazer aqui no Brasil, que era concordar com tudo o que se dissesse. Mas nos esquecemos de falar para ele que o nosso caipira tem um ritual de inversão, de dizer que não está boa a coisa que ele oferece e você replica dizendo que está boa sim. O café está fraco e você fala que está ótimo. Então, quando ela menosprezou a própria comida, ao invés de ele falar que estava boa, ele concordou dizendo que ela tinha razão, a comida estava realmente ruim. Depois, na hora de dormir, foi a mesma coisa: ela disse que não tinha arrumado muito bem a cama e ele concordou. Mas era para fazer o contrário, não é? Quer dizer, aquilo era uma sutileza da cultura rústica brasileira que, claro, ele não tinha obrigação de saber. Aí nós desfizemos o mal-entendido, explicamos a ela que Pedro Castro não entendeu porque era de outra "raça". Felizmente ela aceitou a explicação e continuou conosco. Foi muito gozado e uma experiência muito interessante, porque tomamos conhecimento de uma sutileza que faz parte de nossa vida, mas que, normalmente, no dia a dia, não a percebemos.

Entrevista concedida em outubro de 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2004
  • Data do Fascículo
    2003
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