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Que Tchan é Esse? Indústria e produção musical no Brasil dos anos 90

RESENHA

Luís Fernando Hering Coelho

Doutorando em Antropologia Social PPGAS – UFSC

Leme, Mônica Neves. Que Tchan é Esse? Indústria e produção musical no Brasil dos anos 90, São Paulo, Annablume, 2003.

Escrito originalmente como dissertação de mestrado (Unirio, 2002), trata-se de um estudo sobre música popular brasileira com foco num de seus mais conhecidos e controvertidos produtos de massa dos últimos tempos: o grupo Gera Samba (posteriormente denominado É o Tchan), surgido na cidade de Salvador e que se tornou um fenômeno comercial nacional e internacional na segunda metade da década de 1990. O trabalho mostra sua relevância ao abordar com seriedade uma espécie de produção cultural que tende eventualmente a ser banida, por uma suposta "falta de conteúdo", do universo acadêmico. Indo na contracorrente de avaliações preconceituosas e, por assim dizer, "mercadofóbicas", Mônica Leme logra indicar, com fundamento, alguns importantes nexos sociais e simbólicos da música do É o Tchan, inserindo-a simultaneamente numa "vertente maliciosa" da música popular brasileira – cujas origens remontam, pelo menos, ao lundu do século XVIII – e numa lógica contemporânea do mercado fonográfico globalizado, revelando algumas amarras, atualizadas aqui na música do É o Tchan, do local e do global.

No primeiro capítulo – "Em busca das matrizes culturais" (p. 31- 76) , a autora delineia uma base teórica partindo das elaborações de Jesús Martin Barbero sobre a constituição da cultura de massa nas sociedades modernas como o resultado de processos históricos marcados por relações circulares entre segmentos socioculturais hegemônicos, de um lado, e populares, de outro, vendo-se a cultura de massa não como o produto de uma mera imposição dos interesses de um segmento sobre os de outro, mas como o resultado de processos dialógicos de negociação e mediação sociocultural. A noção de "realismo grotesco" – desenvolvida por Bakhtin para marcar a forma pela qual a cultura popular da Idade Média e do Renascimento diferenciava-se de uma cultura oficial de maneira contestatória, valorizando elementos como a excessividade, o nonsense e as expressões obscenas – auxilia a autora na compreensão do caráter espontâneo e irreverente que marca a produção do É o Tchan. A noção de "hibridização de culturas", desenvolvida por Canclini, é utilizada para demarcar as especificidades dos processos de modernização dos meios produtivos e da constituição das culturas de massa na América Latina, que se diferenciaria dos países do chamado Primeiro Mundo, não havendo aqui uma divisão de campos (no sentido de Bourdieu) tão nítida. Partindo dos trabalhos de Renato Ortiz sobre o processo de modernização e da instituição de uma indústria cultural no Brasil, a autora chega à questão da constituição da indústria fonográfica no País, que se estabelece em 1900 redimensionando a produção e o consumo da música popular urbana, e atinge o final do século XX integrada ao mercado global de bens culturais, articulando produções locais a um mercado mundializado. Para Leme, a modinha e o lundu, que se consolidam no século XIX como os primeiros gêneros de música popular urbana brasileira, constituem-se nas duas principais "matrizes culturais" – termo, cunhado por Barbero, que aponta para horizontes relativamente estáveis de práticas e significados que implicam uma identidade coletiva e modelam a construção de novas expressões culturais – presentes nos formatos musicais da indústria cultural brasileira contemporânea.

A parte final do primeiro capítulo consiste numa caracterização histórica da modinha e do lundu, em que são delimitadas características desses gêneros em termos textuais, musicológicos e sociais, oferecendo ao leitor letras e trechos de transcrições musicais de lundus. Leme argumenta que, se a modinha é melhor caracterizada como uma canção de caráter lírico e sentimental, o lundu – originalmente um tipo de dança – tem um caráter marcadamente satírico e malicioso, sendo musicalmente marcado por uma rítmica tendencialmente contramétrica que o inclui, assim como o samba-de-roda do Recôncavo, no paradigma do tresillo, conforme estudado por Carlos Sandroni (2001) em seu Feitiço Decente. Para a autora, essa contrametricidade provoca "uma espécie de 'conflito' estésico auditivo, que se apazigua através do corpo" (p. 71). A necessidade de restauração desse desequilíbrio seria o que gera o forte caráter de corporalidade (manifestado na dança) que marca a música de grupos como É o Tchan, constituindo-se numa das "forças de sustentação de seu sucesso na década de 1990" (idem). O capítulo é fechado com considerações sobre o estúdio musical de Salvador que lançou, além do É o Tchan, nomes como Luiz Caldas, Olodum, Timbalada e Daniela Mercury. A autora evidencia ali, apoiada em depoimentos do fundador do estúdio, um processo de localização da produção musical de massa (nesse caso, a música baiana, num deslocamento do eixo Rio–São Paulo) no qual os "produtos" são enviados praticamente prontos para a comercialização às gravadoras majors. Interessante também é notar, nos trechos transcritos das entrevistas, a associação explícita da música do É o Tchan à tradição dos lundus do Recôncavo (p. 73), o que aponta para o binômio tradição-modernidade, cuja dinâmica é, para a autora, uma das fontes do sucesso de produtos da cultura popular de massa no Brasil.

No segundo capítulo – "Breve inventário da 'vertente maliciosa' na história da música popular no Brasil" (p. 77-109) –, a autora aprofunda a localização histórica da música do É o Tchan, situando-a dentro daquilo que ela denomina a "vertente maliciosa" da música popular brasileira, cuja constituição é mapeada desde o século XVII com a obra de Gregório de Matos Guerra, o "Boca do Inferno", poeta baiano cujos versos satíricos, repletos de duplos sentidos, valeram-lhe censuras que culminaram com a deportação. No século seguinte, com o mulato brasileiro Domingos Caldas Barbosa, os lundus e as modinhas chegam aos salões da aristocracia e à Corte portuguesa, abrindo um pouco mais o espaço de diálogo entre cultura popular e de elite, como observa Leme. Apresentando trechos de letras de várias canções das épocas em estudo, a autora chama a atenção para características importantes de expressões musicais da cultura popular daquele tempo, bastante reincidentes nos lundus do século XIX e que alcançam o século XX com produções como a do É o Tchan: "A rítmica contramétrica, a linguagem de duplo sentido e a temática do mestiço, do 'negro' em contato com as 'yayás'" (p. 83). A fixação do lundu como gênero de música popular no século XIX – momento em que o País, e especialmente a cidade do Rio de Janeiro, vivia os impactos da transferência para cá da Corte portuguesa – é tratado pela autora com base na historiografia pertinente e nas letras e partituras que revelam os traços característicos desse gênero, como na obra de Laurindo Rabelo, um dos expoentes da "vertente maliciosa" do século XIX.

Na segunda metade daquele século, o Teatro de Revista e o carnaval estabelecem-se como dois dos principais locais de produção e consumo da música popular, centralizando também as discussões e controvérsias em torno de avaliações favoráveis ou não àquele tipo de arte, no seio da "mediação" entre povo e elites. O advento do século XX é marcado pela chegada da gravação mecânica ao Brasil e pela gradual consolidação da vertente maliciosa como um "campo de produção ampla" da nascente indústria fonográfica, processo que a autora acompanha enumerando obras e compositores de destaque. O É o Tchan surge (inicialmente como Gera Samba) nos subúrbios de Salvador, num contexto em que o pagode já havia conquistado uma fatia importante do mercado de discos, entre as décadas de 1980 e 1990. A parte final do capítulo é dedicada à reconstrução da história do grupo, com destaque para fatores como a atuação empresarial na "formatação do produto" (com ações como a inclusão de dançarinas, enfatizando o aspecto cênico e visual), adequando o "produto primário" à indústria fonográfica. Leme enfatiza que o sucesso nacional do É o Tchan é explicado pelo "tempero" que inclui desde a música tradicional do Recôncavo até a música carnavalesca e o pop internacional, e também por seu apelo dançante – materializado no palco pela atuação das duas dançarinas – que remete a um éthos alegre, espontâneo e irreverente. Na continuidade histórica da "vertente maliciosa", o É o Tchan aparece no contexto da cultura de massa como um sucesso empresarial meteórico, que associa um enraizamento na cultura popular a uma agência artística dotada de um agudo senso comercial.

No terceiro capítulo – "Os significados da música do Tchan" (p. 111-47) – a autora, alinhando-se à concepção da música como "um modo especial de comunicação" (p. 113), faz uma incursão pelo campo da semiologia musical, partindo da idéia de "signo" conforme conceituada por Saussure e depois por Peirce e apoiando-se no senso antropológico de Blacking para enfatizar a importância da relativização da escuta para o estudo adequado da música como fenômeno sociocultural. A parte central do capítulo é constituída pelo estudo de dois sucessos do É o Tchan, baseado em elementos das metodologias propostas por Jean Jacques Nattiez e Philip Tagg. De Nattiez, a autora utiliza a concepção tripartida do fenômeno simbólico, dividido nos níveis "poiético" (de produção), "estésico" (de recepção) e "neutro" ou "imanente" (a "obra" propriamente dita). A música Ralando o Tchan (dança do ventre) é inicialmente estudada em seu nível neutro, que é comparado com o tema de uma peça de samba-de-roda do Recôncavo Baiano dentro do modelo da análise paradigmática proposta por Ruwet. A segmentação e análise das peças permitem à autora apontar para semelhanças gramaticais importantes no nível de expressão das duas peças; as diferenças (como o relativo encurtamento das frases e a diminuição de repetições, por exemplo) na música do É o Tchan são interpretadas como imposições de formato pela indústria fonográfica, como a restrição da duração das faixas do disco a aproximadamente 3 minutos. Procedendo a uma poiésis e a uma estesis indutivas (conforme o modelo de Nattiez), a autora levanta hipóteses interpretativas com a delimitação de alguns "agrupamentos sonoros de significação" – caracterizados em função de elementos como textura, instrumentação e harmonia – e remete a música do É o Tchan a horizontes simbólicos que vão do samba tradicional à música árabe e às big-bands norte-americanas. A análise do nível poiético, feita a partir dos depoimentos do produtor do grupo, destaca, uma vez mais, o enraizamento da música do É o Tchan na cultura popular e o processo de produção artística e comercial do "produto primário". A análise do nível estésico é levada a cabo a partir do depoimento de uma fã do grupo, uma carioca de 16 anos fundadora do fã-clube "100% Tchan", cuja fala enfatiza o aspecto corporal e dançante como critério central para a identificação com a música do grupo. Isso permite a Leme concluir que "a recepção por parte da fã atende à poiésis da música, em grande parte: fazer dançar através de ritmos colhidos em matrizes da música tradicional baiana, que são misturados a elementos 'mundializados', trazidos do pop internacional (aspectos cênicos)" (p. 138). Dentro do quadro teórico e analítico proposto por Philip Tagg, a autora faz, por fim, um breve estudo da música É o Tchan (pot-pourri), isolando alguns de seus musemas (termo que Tagg usa para definir as unidades mínimas de significação musical), em função dos quais a peça em questão é situada, por meio da comparação interobjetiva, dentro de um universo musical que alcança peças como o Urubatan de Pixinguinha e Baby Come Back de Eddie Grant.

Vale ressaltar, uma vez mais, o valor desse trabalho, que não "poupa" esforços diante da complexidade de seu objeto, abordando-o em seus múltiplos aspectos. A importância flagrante da "dança" na "música" do É o Tchan é reconhecida pela autora, que enfatiza a necessidade do aprofundamento dos estudos nesse sentido. Saborosamente evocada por um de seus entrevistados ("O público ou é motivado pelo romântico, que vai pelo coração, ou pelo quadril, né?" – Rangel apud Leme, p. 136), a relação, no ser humano, entre as esferas psicológica, fisiológica e social é um tema que permanece atual, para cuja importância antropológica Marcel Mauss já chamava a atenção, e que John Blacking localiza como pedra de toque para a compreensão do fenômeno musical. Essa questão, às vezes mais aparente, às vezes menos, parece permear o livro, na inquirição a respeito do sucesso do É o Tchan. Com uma pesquisa histórica rica, a análise de Leme em busca dos "significados da música do Tchan" chama a atenção pela diligência com que se aproxima do complexo problema da semanticidade da música. O livro, enfim, abre um caminho rico para novos desenvolvimentos e aprofundamentos no sentido da compreensão de questões tão interessantes como, por exemplo, a da relação, localizada aqui na música do É o Tchan, entre "contrametricidade" (enquanto um modo de organização de um parâmetro musical), "corpo" e "sucesso comercial".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    Jun 2005
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