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Contemporary art and anthropology

RESENHA

Stéphane Malysse

Professor de Arte e Antropologia na EACH – USP/Leste

Schneider, A. & Wright, C. (ed.).Contemporary art and anthropology, Oxford/Nova York, Berg, 2006, 220p.

Entre arte e antropologia: diálogos e apropriações

Ciência e arte são praticamente indissociáveis durante

as fases de observação e de meditação – para se

distinguirem nos discursos – , se aproximam nos momentos da

classificação e se separam definitivamente nos seus

resultados. (Paul Valéry)

Existe uma antropologia da arte e do fazer artístico, do

mesmo modo que existe uma antropologia que é arte, se

debatendo com as velhas teias que separam a arte da

ciência. Este livro lança o incrível desafio da combinação

das forças da Arte e da Antropologia em favor de

ambas. (Michael Taussing, quarta capa do livro)

A relação entre arte e ciência é um dos temas dos mais complexos e evolutivos, sempre dependendo do contexto histórico e do objetivo dessa "relação". Por isso, resolvi começar esta resenha do livro Contemporary art and anthropology com uma visão ampla e clássica desse problema epistemológico. Assim, para Paul Valéry, as relações entre a arte e a ciência evoluem de acordo com as diversas fases ou momentos da pesquisa, isso para, como ele o explica, "se separar definitivamente no final". Essa visão metódica é bem representativa do pensamento classificador do século XX, que demonstra que a diferença entre arte e ciência era vista da perspectiva formal: arte e ciência produzem resultados de natureza diferentes. Não há ambigüidade, não há contaminações ou aproximações de um campo para outro... Não há relações possíveis. Esse tipo de divisão radical está sendo questionado atualmente tanto pelos artistas quanto pelos antropólogos que procuram, com razão, reativar os diálogos entre ciência humana e arte, mostrando que uma relação é não somente possível mas que ela permite a combinação das forças dos dois.

De fato, hoje, quando as categorias artísticas se convertem em conceitos de antropologia, quando a arte procura ir além de uma busca ascética do visual, época também em que se afirma a necessidade de lidar com a condição humana e de reencarnar o pensamento visual na sensação da existência, a antropologia está envolvida tanto nos processos de pesquisa de campo da arte quanto nos processos de criação e expressão artística.

Trabalhando com base nesse novo contexto interdisciplinar, os organizadores do livro Contemporary art and anthropology procuram estimular novos diálogos produtivos entre a antropologia e a arte contemporânea, criando as bases para colaborações entre os dois domínios e colocando em evidência as possibilidades de compartilhar estratégias e práticas dos dois lados. Os autores pretendem mostrar, por meio de vários exemplos artísticos (Anthony Gormley, Gillian Wearing, Bill Viola, Christian Boltanski, Susan Hiller...), como as práticas artísticas contemporâneas, tanto em seus processos de apropriação quanto em seus processos criativos, podem contribuir ao saber e ao saber-fazer antropológico. Num primeiro momento, os autores procuram examinar as diferenças e as similaridades entre as metodologias artísticas e antropológicas em suas práticas de representação do Outro: como as práticas artísticas podem ampliar e apoiar as práticas antropológicas? E vice-versa?

Os autores insistem, ao longo do primeiro artigo introdutório, sobre a timidez em relação às práticas experimentais nos dois campos, e isso apesar de eles terem muito em comum: os antropólogos produzem teoria escrita, os artistas obras de arte. Os artistas usam as metodologias e teorias antropológicas como modelos, e os antropólogos dialogam às vezes com as formas de representação do Outro apresentadas pelos artistas visuais. Com base nesse diálogo prático, as diferenças entre arte e antropologia deixam de ser barreira para contribuir diretamente ao desenvolvimento e afinamento das metodologias de pesquisa nos dois campos.

Artistas e antropólogos compartilham a mesma dimensão prática de suas atividades, nas quais eles se apropriam do e representam o Outro. Tanto os artistas quanto os antropólogos trabalham com os conceitos de distância e de intimidade, uma intimidade ligada às práticas de pesquisa e às formas de descrição utilizadas. Ambos sabem lidar e se situar entre o público e o mundo, entre o dentro e o fora, entre o individual e o coletivo. Nesse sentido, a questão da apropriação se torna primordial, tanto no fazer antropológico quanto nas práticas artísticas contemporâneas. Aliás, a apropriação das diferenças culturais pela arte não é nem nova nem recente e pode ser vista como fundadora na história da antropologia.

Com base nesse paradigma compartilhado, a idéia desse livro é de ajudar os artistas a se apropriarem das metodologias e teorias dos antropólogos, e vice-versa. A questão da apropriação constitui o motor epistemológico desse ensaio coletivo, e os autores desvelam muitas formas de apropriação de metodologias e de temas de uma disciplina para outra. Comparando o diário de campo aos cadernos de esboços e anotações dos artistas, a prática de residência artística com a prática de campo antropológico, como também os usos de releituras, citações, referências pelos dois campos, os autores apontam para soluções práticas e interdisciplinares de fazer arte com antropologia e antropologia com arte.

Nessa coletânea de artigos, alguns escritos por antropólogos como Georges E. Marcus, outros por artistas como César Paternosto, e outros apresentados sob a forma de diálogos entre artistas e antropólogos, os organizadores procuram apresentar uma nova maneira de ver e entender as práticas de representação tanto na arte quanto na antropologia. Para estimular diálogos férteis entre as duas áreas, os autores colocam em evidência as similaridades práticas entre as duas disciplinas, mostrando também as resistências de cada campo um ao outro. Em vez de discutir o que é arte e o que não é, o que é antropologia visual e o que não é (já perdemos muito tempo com isso), os autores privilegiaram uma forma bem mais produtiva de pensar essa relação complexa: complementaridade. Pensá-la em termos de diálogo, de relação, de utilização orientada na prática específica de cada uma das duas áreas. O resultado esperado seria a estimulação dos dois campos para se apropriar um do outro, usar o outro campo sem perder de vista os seus objetivos específicos. Esse excelente livro dá muitas pistas práticas, muitas possibilidades teóricas e, ao invés de fechar cada campo sobre si mesmo, ele professa uma apropriação à la carte. Só o fato de o livro ser destinado tanto aos artistas quanto aos antropólogos já diz muito sobre a validade dessa proposta, em termos de prática, criatividade de pesquisa e publicação para ambos os campos.

Ao mesmo tempo que a antropologia precisa de novas formas de lidar com imagens, criatividade e arte em geral, os artistas devem aprender a lidar de forma mais aprofundada com as teorias das diferenças culturais, já que eles insistem em usá-las. Analisando a imagem como um objeto social, o artista, enquanto antropólogo, não pode deixar de participar dos diálogos recentes entre arte e antropologia.Os autores acreditam no potencial produtivo desses novos diálogos, apostam nessas novas parcerias, pois por meio da criação de novas estratégias de representação, os antropólogos e os artistas explorarão novas possibilidades visuais para compartilhar, produzir e mostrar os seus trabalhos a pessoas das mais diversas áreas de conhecimento. O papel de um livro depende, em geral, do contexto no qual ele é lançado. Nesse caso, diria que este chegou na hora certa, pois o campo estava sendo preparado há anos... No Brasil, várias publicações participaram desse debate: o livro O fotográfico, organizado pelo professor Etienne Samain da Unicamp, foi o primeiro a reunir discussões sobre antropologia visual e fotografia numa só obra; o projeto temático Escrituras da imagem e as suas publicações, organizado por Sylvia Caiuby Novaes, segue este mesmo sentido, o de abrir um diálogo analítico e produtivo entre arte e antropologia.

Mas as resistências continuam, tanto para os antropólogos quanto para os artistas, que insistem muitas vezes em dividir os resultados numa perspectiva exclusivista como descrita por Paul Valery no início deste ensaio. Lembro-me de uma sessão de apresentação do filme Santo forte, por seu diretor Eduardo Coutinho, na qual, depois de explicar o quanto a ajuda de uma antropóloga foi essencial para a realização desse documentário, perguntei se ele fazia antropologia visual? A resposta foi radical: não sou cientista, sou um artista – como se uma coisa excluísse a outra. Num outro contexto, a apresentação do programa da EXO: arte e política, pela curadora francesa Catherine David, tentei discutir com ela o uso dos conceitos antropológicos nas práticas de curadoria de arte contemporânea. O diálogo não foi possível, pois, apesar de ela usar muitos conceitos da teoria antropológica urbana, a curadora terminou a discussão afirmando que o trabalho dela não tinha nada a ver com antropologia. Respondi então que o fato de ela usar conceitos antropológicos não fazia necessariamente dela uma antropóloga – fim do diálogo. Do lado da antropologia, é no próprio percurso acadêmico que senti as diversas resistências à arte e também as suas recentes aberturas. Por exemplo, foi muito difícil convencer a minha orientadora, Eliane de Latour da EHESS, de incluir fotografias realizadas por outros fotógrafos no corpo da minha tese de doutorado sobre a corpolatria carioca, pois ela, apesar de ser antropóloga visual, explicou-me que essas imagens não eram de natureza antropológica, uma vez que não revelavam um contexto antropológico inteiro.

Realizando meu pós-doutorado na Unicamp em Artes, Antropologia e Comunicação Visual, sob orientação do professor Etienne Samain, senti e experimentei pela primeira vez uma certa liberdade criativa em relação à apresentação final de uma pesquisa de antropologia. Com base em alguns estudos preliminares em antropologia das aparências corporais, meu projeto de pós-doutorado foi aplicar essa proposta metodológica ao domínio do multimeios e das artes visuais. Os resultados dessa pesquisa foram publicados sob a forma de um vasto banco de conhecimento hipermídia sobre as aparências corporais <http://opuscorpus. incubadora.fapesp.br>. A originalidade dessa proposta consiste em levar uma maneira de pensar o corpo de um campo (ciências humanas) a um outro (artes) e, ao mesmo tempo, pensar uma nova forma de publicação sobre o corpo: uma criação de arte digital. Estava no início de uma transformação que, rapidamente, me levou a me associar com um artista, Rodrigo Novaes, com o qual eu trabalho com as artes visuais (Malysse & Novaes, Politicagem, Festival da Cultura Inglesa, 2005).

Se, como o explica Joseph Kosuth, "o artista é o modelo do antropólogo engajado", um dos melhores exemplos, no Brasil, dessas potencialidades produtivas e críticas de diálogos entre arte e antropologia é, a meu ver, a obra de Kiko Goifman. Este, no CD-Rom Valetes em slow motion (1998), apresenta um ambiente noir, ambiente que lhe influenciou certamente na realização de seu novo filme 33, com base numa pesquisa de campo em antropologia, realizada em três instituições: o Centro Reeducacional de Neves/MG, o 5o Distrito Policial de Campinas e a Penitenciária 1 de Campinas. Nesse CD, navegamos dentro de uma cadeia de forma interativa. A cada instante, ficamos atentos aos vídeos, sons, textos e falas que ajudam o navegador a penetrar nesse universo "fechado", produzindo uma sensação de aprisionamento. Estamos, como no caso das obras de Chris Marker, em relação íntima com imagens-afeição, neste caso, imagens duras, falas dolorosas e observações contundentes. São eventos multimeios que não deixam um segundo o leitor-voyeur fora da cadeia. O peso da prisão e dos presos estão em todos os microeventos pautados pelo CD. O mais interessante desse trabalho é a criação multimeios realizada em total acordo com os resultados da pesquisa antropológica. Segundo o artista-antropólogo, não se deve "acreditar na objetividade intrínseca, ontológica à imagem, na descrição de dada realidade, já que escolhas e manipulações são características do ato de pesquisa, independente da forma de abordagem dos sujeitos estudados, marcada pela lógica da visualidade e oralidade ou escrita" (Goifman, 1998).

De fato, esse CD-Rom consegue descrever de forma sensível o universo das prisões, em que a atenção do navegador está estimulada de forma engenhosa pela arquitetura de navegação do CD e pela riqueza de depoimentos, vídeos e outros dados de pesquisa. Verdadeiro pan-óptico digital, o CD-Rom abre as possibilidades de tratamento dos dados de campo e aproveita as possibilidades dos multimeios para descrever as particularidades do tempo vivenciado na prisão. Obras de arte, monografias de antropologia, toda a produção documentária de Kiko Goifman consegue combinar as forças dos dois campos sem se perder nos limbos de uma teoria não engajada, pois desde o primeiro trabalho até seu último filme, Atos dos homens (2006), ele demonstrou uma grande capacidade de usar antropologia em sua prática artística sem nunca deixar de ser considerado antropólogo: ele foi homenageado na última sessão do Encontro Nacional da Anpocs (2006).

Para concluir esta resenha sobre a relação entre arte e antropologia, não posso deixar de citar um outro livro essencial para entrar nesse debate. A publicação em 1992 de Art and agency, por Alfred Gell, reconfigurou e reanimou profundamente essas relações. Para Gell, os objetos de arte nos fazem imaginar as diversas intenções ligadas à sua produção, e as obras são representadas como se tivessem intenções próprias. Considerando os objetos de arte como indicadores do que as pessoas que os fabricaram ou usaram tinham em mente, Gell mostra que, em qualquer obra de arte, se encontram diversas redes de intencionalidades (ou Agency em inglês). Essa passagem de uma estética para uma intenção artística abre uma pista verdadeiramente antropológica para discutir a arte e praticar a antropologia: qual é a lógica do homem na arte? Sem dúvida, este novo livro ajudará a responder a esse enigma, mostrando até que ponto as respostas de hoje estão nos diálogos interdisciplinares, nos encontros de pessoas de formação diferentes e com propostas distintas...

Bibliografia

BANKS, M. & MORPHY, H. (Ed.) 1997 Rethinking visual anthropology, London, Yale University Press.

BLOCH, M. 1999 "Une nouvelle théorie de l'art", Terrain, 32, Le Beau.

CAIUBY NOVAES, S. (Org.) 2004 Escrituras da imagem, São Paulo, Edusp/Fapesp.

GELL, A. 1992 Art and agency: an anthropological theory, Oxford, Clarendon Press.

GOIFMAN, K. 1998 Valetes em slow motion – a morte do tempo na prisão: imagens e textos, Campinas, Unicamp.

MALYSSE, S. 2000 "Um olho na mão: imagens e representações de Salvador nas fotografias de Pierre Verger", Revista Afro-Asia, n. 24, p. 325-66.,

_____. 2003 "Um ensaio de antropologia visual do corpo ou como pensar em imagens o corpo visto?", in Garcia, W. (org.). Corpo&Imagem, São Paulo, Arte e Ciência.

_____. 2005 Opus corpus: antropologia das aparências corporais, in <http://opuscorpus.incubadora.fapesp.br>. Publicação on-line realizada em colaboração com a produtora Paleo TV.

SAMAIN, E. (Org.) 1998 O fotográfico, São Paulo, Fapesp/Hucitec.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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