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O fétido odor da morte e os aromas da vida: poética dos saberes e processo sensorial entre os Piaroa da bacia do Orinoco

Resumos

O povo piaroa, que vive às margens dos afluentes do Meio Orinoco, acredita que o movimento de todo processo corporal participa de uma ordem venenosa e primordial das coisas. Este texto explora a correspondência entre os processos sensoriais e cósmicos e as formas do povo piaroa pensar e praticar sua arte culinária. Realiza, assim, uma expedição à etnopoética. O artigo tratará da interação entre dois gêneros narrativos contrastantes o sublime e o realismo grotesco, tais como usados pelos cantadores xamânicos para revelar as múltiplas formas com que processos corporais e vida sensorial estão intimamente entrelaçados com os modos de conhecimento. A imagética do sublime evoca as belas faculdades sensuais da parte superior do corpo, enquanto a imagética do realismo grotesco trata das excreções venenosas e dos orifícios das partes baixas do corpo. Em ambos os gêneros, o processo corporal é um operador importante, mas muitas vezes ambíguo, tanto no domínio do conhecimento quanto na perda deste. Para os Piaroa, os modos de saber humanos estão sempre envolvidos com o que é tóxico e, portanto, atrelados aos processos geminados de degeneração e regeneração: o veneno, como agente de transformação, é criador da vida, mas também pode ser o seu algoz.

Amazônia; Venezuela; Piaroa; percepção sensorial; etnopoética; modos de conhecimento


The Piaroa are people, living along tributaries of the Middle Orinoco, who recognise that the dance of every bodily process participates in a poisonous, primordial design of things. This paper explores the relation of sensory processes and the cosmic to Piaroa ways of knowing and doing their arts of the culinary. In so doing it is an expedition into ethnopoetics. This article will dwell upon the interplay of two contrasting narrative genres, the sublime and grotesque realism, as used by shamanic chanters to unfold the manifold ways in which bodily processes and sensory life are intimately involved in ways of knowing. The imagery of the sublime evokes the beautiful sensual capacities of the upper body, while that of grotesque realism dwells upon the poisonous expellings, and openness, of the body's nether parts. In both genres, bodily process is an important, often ambiguous, operator in the mastery of knowledge, and also in its loss. For Piaroa, human ways of knowing are always involved in the toxic, and thus attached to the twinned processes of degeneration and regeneration: poison, as an agent of transformation, is creative of life and it also can kill.

Amazonia; Venezuela; Piaroa; sensory perception; ethnopoetics; modes of knowledge


POLÍTICA DO CONHECIMENTO

O fétido odor da morte e os aromas da vida. Poética dos saberes e processo sensorial entre os Piaroa da bacia do Orinoco

Joanna Overing

Departamento de Antropologia Social - Universidade de St. Andrews

RESUMO

O povo piaroa, que vive às margens dos afluentes do Meio Orinoco, acredita que o movimento de todo processo corporal participa de uma ordem venenosa e primordial das coisas. Este texto explora a correspondência entre os processos sensoriais e cósmicos e as formas do povo piaroa pensar e praticar sua arte culinária. Realiza, assim, uma expedição à etnopoética. O artigo tratará da interação entre dois gêneros narrativos contrastantes o sublime e o realismo grotesco, tais como usados pelos cantadores xamânicos para revelar as múltiplas formas com que processos corporais e vida sensorial estão intimamente entrelaçados com os modos de conhecimento. A imagética do sublime evoca as belas faculdades sensuais da parte superior do corpo, enquanto a imagética do realismo grotesco trata das excreções venenosas e dos orifícios das partes baixas do corpo. Em ambos os gêneros, o processo corporal é um operador importante, mas muitas vezes ambíguo, tanto no domínio do conhecimento quanto na perda deste. Para os Piaroa, os modos de saber humanos estão sempre envolvidos com o que é tóxico e, portanto, atrelados aos processos geminados de degeneração e regeneração: o veneno, como agente de transformação, é criador da vida, mas também pode ser o seu algoz.

Palavras-chave: Amazônia, Venezuela, Piaroa, percepção sensorial, etnopoética, modos de conhecimento.

ABSTRACT

The Piaroa are people, living along tributaries of the Middle Orinoco, who recognise that the dance of every bodily process participates in a poisonous, primordial design of things. This paper explores the relation of sensory processes and the cosmic to Piaroa ways of knowing and doing their arts of the culinary. In so doing it is an expedition into ethnopoetics. This article will dwell upon the interplay of two contrasting narrative genres, the sublime and grotesque realism, as used by shamanic chanters to unfold the manifold ways in which bodily processes and sensory life are intimately involved in ways of knowing. The imagery of the sublime evokes the beautiful sensual capacities of the upper body, while that of grotesque realism dwells upon the poisonous expellings, and openness, of the body's nether parts. In both genres, bodily process is an important, often ambiguous, operator in the mastery of knowledge, and also in its loss. For Piaroa, human ways of knowing are always involved in the toxic, and thus attached to the twinned processes of degeneration and regeneration: poison, as an agent of transformation, is creative of life and it also can kill.

Key-words: Amazonia, Venezuela, Piaroa, sensory perception, ethnopoetics, modes of knowledge.

Entre os Piaroa, a arte culinária compreende formas particulares de conhecimento que significam igualmente formas específicas de fazer as coisas - tais como curar doenças ou encher a floresta com animais de caça, preparar refeições e fazer filhos, belas cestas e dardos de zarabatana - e também cantar, rir, compartilhar e cuidar. Um amplo espectro de formas de conhecimento se faz necessário para as artes culinárias, muito além das óbvias atividades de pesca, caça, cultivo e preparo de alimentos.1 1 Como Gow (1989) observou, seria um erro equiparar as artes culinárias amazônicas à noção de atividades de "subsistência". As artes culinárias incluem todas aquelas habilidades de que os seres humanos precisam para viver com conforto e saúde, em comunhão com outros. Mas, acima de tudo, elas incluem o entendimento da consciência social e da inteligência moral. Um nó bem dado é sinal de virtude social. Já o nó desleixado advém da frouxidão moral. Comer bem, de maneira civilizada, é algo complicado. Para entender as formas de conhecimento dos povos amazônicos, é preciso explorar todo o panorama dos afazeres das artes culinárias. Precisamos da arqueologia dos afazeres para esclarecer as relações que há entre eles. A poética, a estética e a psicologia dos belos vínculos sociais são formas de conhecimento necessárias para a utilização segura das artes culinárias. Sem elas, tais artes se tornam perversas, perturbando o estilo de vida tranqüilo e igualitário que os Piaroa têm como humanamente correto. As artes verbais e as maneiras de rir - ambas ligadas à habilidade de gerar vínculos sociais - não são triviais ou fortuitas, mas essencialmente intrínsecas às artes da culinária.2 2 Ver Passes (2000) sobre o falar e o rir como ferramentas poderosas das artes culinárias dos Pa'ikwené. Ver Overing (2000) sobre a relação entre riso, sociabilidade e trabalho entre os Piaroa.

Embora os Piaroa prezem seu intelecto acima de todas as outras faculdades (Overing, 1985a), para eles, o agente humano consciente e intencional na terra será sempre um ator no mundo (id., 1999). Ser capaz de fazer uma coisa bem é conhecê-la. Seus deuses talvez vivam em "torres de marfim", mas os Piaroa não. O lado físico do intelecto é importante. Por exemplo, é através da corrente sanguínea que os pensamentos circulam pelo corpo, provendo cada membro e órgão com inteligência para agir.3 3 Belaunde (neste volume) observa que a noção da corporificação do conhecimento através da circulação do sangue pelo corpo deve ser corrente na Amazônia. Assim, na medida em que aumenta o conhecimento das artes culinárias, aumentam também a criatividade física e o vigor. Segundo os Piaroa, essa mescla de faculdades pessoais (intelecto, força física e também emoção) deve-se à história cósmica. É essa inter-relação existencial de intelecto com imaginação moral, aliada à dimensão do sensível,que faz a prática de sua arte culinária social algo singular e possível.

O corolário dessa concepção de inter-relação de faculdades como "formas de conhecimento" não é matéria de simples entendimento. Os povos amazônicos tendem a entender a relação constitutiva das faculdades e habilidades pessoais como interminável, impermanente e em eterna transformação.4 4 Londoño-Sulkin (neste volume) relata idéias semelhantes entre os Muinane. Ver também Lagrou (2000) sobre as idéias dos Kaxinawa acerca da corporificação de pensamentos. Segundo os Piaroa, essas conexões são às vezes benéficas, saudáveis, criativas e belas; noutras vezes são perigosas, destrutivas, doentias e feias (Overing, 1989).5 5 Ver Londoño Sulkin (2000 e neste volume) acerca de idéias semelhantes entre os Muinane. Não há uma maneira linear pela qual nos é possível desvendar como os Piaroa entendem as formas de conhecimento e os perigos de sua prática. O que podemos fazer é pinçar alguns fios para revelar suas múltiplas conexões e apreender sua síntese eternamente movediça e suas harmonizações ambíguas (ver também Mentore, neste volume).6 6 Guss (1990), ao escrever sobre os Yecuana, mostra haver relação entre essas múltiplas conexões e sínteses e a tecelagem praticada por eles.

As charadas que surgem desse "pinçar" podem ser inúmeras. Por exemplo, os Piaroa são um povo pacífico, amante da tranqüilidade e que se diz vegetariano - porém, seu xamã entoa em um dos cânticos: "Eu como feito o jaguar!". Os Piaroa valorizam muito suas faculdades intelectuais. Porém, o invólucro de seus belos pensamentos são contas feitas das fezes graníticas do monstro subterrâneo Tapir/Anaconda (Overing, 2004a). Essas contas de conhecimento constituem a bela decoração interior de cada Piaroa. No entanto, o cérebro dos Piaroa foi criado com o pus da sífilis primordial (id., 1986 e no prelo). Com algum temor, começo a arranhar alguns desses fios explorando mais minuciosamente suas artes verbais. Como já mencionei, essas artes verbais pertencem às artes da culinária. Como tais, são uma forma importante de saber (e fazer) para os Piaroa. As artes verbais, assim como as habilidades (ou formas de saber) do cultivo agrícola, da caça e da procriação, são corporificadas.7 7 Ver McCallum (2001) sobre o entendimento dos Kaxinawa acerca dos sexos e de suas respectivas habilidades como conhecimento corporificado. Elas também são maravilhosas e terríveis.

Assim, a seu modo, esta minha tentativa é uma jornada à etnopoética.8 8 Dell Hymes (1981, 2003) foi o criador da subdisciplina etnopoética ao demonstrar a poética dos narradores indígenas norte-americanos. Embora os jogos verbais cotidianos sejam de suma importância para o sucesso das artes culinárias, é na cantoria noturna dos grandes xamãs que encontramos as artes verbais em seu maior esplendor. A poética dos cantos xamânicos, e em particular dos gêneros usados pelos narradores, é o que me interessa aqui - isso e as outras formas de saber que envolvem as artes culinárias que tal poética revela.

O gênero usado com maior freqüência nos cânticos xamânicos é o do realismo grotesco obsceno (Overing, 2004a). Por meio dele, descobrimos uma história cósmica cheia de loucuras sensoriais, especialmente no que se refere à origem e utilização das artes culinárias. O gênero do realismo grotesco, entretanto, não é sempre usado pelos cantadores. Há narrativas que falam do lado sublime, belo e bondoso do poder. Elas também são muito importantes para a história cósmica da culinária. Por isso, o gênero do sublime deve ser entendido com respeito ao gênero do grotesco: o primeiro se entrelaça ao segundo para exprimir o contexto maior da criação cósmica. Ao entender como esses dois gêneros se relacionam, é que podemos começar a entender o conhecimento, e o uso corporal deste, do ponto de vista dos Piaroa.

O gênero do sublime

Começarei com o sublime, com um cântico sobre o deus Anemei, em que a beleza, a sabedoria e o grande poder do processo sensorial são anunciados. Aqui, a ênfase está na força de suas tão valorizadas faculdades de voz, linguagem e canto - em outras palavras, as artes verbais. O cântico fala de Anemei, um dos deuses mais poderosos dos Piaroa. Ele possui as palavras dos cantos xamânicos. É importante lembrar que essa narrativa é cantada.

Caixa de cristal da luz de Anemei 9 9 Observe o predomínio dos versos 3 e 5, um padrão que Hymes (1981) sugere ser corrente nas narrativas ameríndias.

(Versão cantada por Jose Luis, do Alto Cuao, em 1977)

Ele nasceu no miolo das sementes de algodão

dentro de Mæriweka [a casa dos deuses na montanha]

dentro de Mæriweka está a cachoeira Mæreya

Ele nasceu dentro da semente dessa cachoeira

dentro da semente de Ruwæire

Ele cresceu e viveu, um homem invisível.

Ele nunca morre.

Ele nasceu dentro da purutsokinya de Anemei [suas caixas de cristal uterina e de origem]

[aqui havia] o rugido do jaguar de Anemei (huruhuru) purutsokinya

[aqui havia] a picada de inseto de Anemei, luz intensa e brilhante

[aqui havia] a luz brilhante da pedra fossilizada de Anemei

[aqui havia] a luz brilhante de Anemei para combater os poderes da doença

Ele nasceu dentro dessas caixas de origem.

Ele dá nome aos céus

Lá nasceram os céus do avô de Anemei

Essas caixas pertencem ao avô de Anemei

Essas cachoeiras dos céus nasceram.

Anemei nasceu dentro desses céus, e neles viveu.

Ele não tinha sombra

Ele tinha sua própria luz que vinha de dentro dele

Ele tinha os sons da música

Ele tinha o pó para usar no combate à chuva

Ele tinha o poder de não contrair doenças e o poder de combater doenças.

Ele não tinha sujeira

Ele era puro

Ele não tinha sombra

Wahari [deus criador das pessoas] tinha visto o mundo inteiro com sua magia

mas ele não podia ver Anemei

Anemei vivia dentro das caixas do seu avô

Ele não tinha sujeira

Ele não tinha sombra

Anemei viveu primeiro em Nyuema [casa dos deuses na montanha]

dentro da cachoeira, Mæreya

Dentro de Ronyetuwæ

ele viveu dentro da montanha Ronyetuwæ

e dentro da montanha Rækinya'a

dentro de Rækinya'a

Ele viveu dentro da(s) montanha(s)

Ele viveu atrás da cachoeira, onde era fresco.

Quando Wahari olhou para a montanha, ele só viu a cachoeira

não havia reflexo de Anemei.

Anemei era invisível

Ele ainda vive

Ele é um homem que nunca morre

Ele pensou sobre a vida

Anemei pensou com o coração e ouviu com o coração, não fora dele.

Ele nunca morre

Ele vive junto com o mundo

Ele nunca desaparece.

Há exegese de várias fontes, por exemplo, dos cantadores. Porém, estudando sobre o vocabulário e a gramática dos Piaroa com o jovem Antonio, aprendi mais sobre as palavras do canto. Falávamos sobre um evento mítico, uma das vinhetas míticas em que Wahari, deus criador das pessoas, roubava coisas boas para os Piaroa, para criar um mundo confortável para eles. E Antonio disse o seguinte:

"Wahari viu a caixa de cristal de Anemei e a abriu. Dentro estava Anemei com toda sua luz brilhante e intensa. Todas as palavras dos cânticos (

huruhuru

) estavam lá também. Anemei fugiu levando os cânticos, mas Wahari conseguiu roubar um pouco da sua luz poderosa. Com isso ele conseguiu criar seus próprios cantos, feito uma árvore carregada de frutos, com o pouquinho de luz que ele roubou - luz impregnada com a força da brisa de detrás da cachoeira. Com um sopro, Wahari também espalhou a luz pelo mundo. Ele forjou a luz do mundo com a luz de Anemei. Essa era a Luz da Vida, e a Vida dos Cânticos (

Kaekwae whae menye

)".

As canções de Wahari, entretanto, eram grotescas, extremamente brutais, no mesmo feitio de muitas de suas outras criações, geradas durante seus acessos de suprema prepotência e paranóia, quando ele roubava para criar maravilhas para seu povo piaroa. Hoje os xamãs piaroa recebem, aos pouquinhos, os cânticos belos e puros de Anemei. Eles os recebem como um presente, uma dádiva, e têm permissão para usá-los - os cânticos que são essenciais para suas artes culinárias.

Vamos examinar de perto as palavras do cântico sobre Anemei: dentro da caixa de cristal estão a "luz preciosa" e o "ar precioso". Em primeiro lugar, a luz de Anemei é tão brilhante que não podemos nos aproximar dela. É luz que cega. Pode queimar. A luz de Anemei também é chamada de "luz da vida" (kækwæ moro) - o que é intrigante porque Kækæewæ significa "vida dos sentidos". Ela não é chamada, como se poderia esperar, de "vida de pensamentos" (ak'waru).10 10 Para maiores explicações sobre a distinção entre "vida dos sentidos" e "vida de pensamentos" segundo os Piaroa, ver Overing (1985). Aqui fica claro: o poder dos sentidos sempre desempenha um papel fundamental nos "modos de saber" dos seres humanos (ver Santos-Granero, neste volume). Em segundo, essa luz preciosa também é chamada de "vida dos cânticos" (kaekwaewhae meñye). É a vida das palavras. As faculdades sensoriais de cantar e falar tornam-se possíveis pela preciosa dádiva de luz vinda de Anemei.

É também dele a dádiva do ar: a respiração, o hálito. A vida dos cânticos é criada por meio do ar que vem da brisa de Maereya, cachoeira de Anemei dentro da montanha.

Hakwauwha Mæreya [dentro da cachoeira Mæreya] é a denominação do som da cachoeira: respiração e audição invocadas como unidade.

Hakwauwha Mærapa [dentro de Mærapa] é o som do ar debaixo da montanha de Mæriweka. É a força do ar que existe debaixo da terra.

Assim, estamos sendo apresentados à ambigüidade espacial: o ar atrás da cachoeira, no alto da montanha. O ar debaixo da montanha.

Acrescentando ainda mais ambigüidade, os xamãs dizem que esse ar que vem da brisa da cachoeira Mæreya é também a luz da feitiçaria.É chamado mæripa moro. O cantador é protegido por essa luz que recebe de Anemei. Ela vem viver dentro do cantador. Com essa luz ele é capaz de ver que animal está doente, e com ela é capaz de ver os mundos pelos quais viaja. As imagens sugerem a permutação entre ar e luz, com o tátil e o visual transformando-se um no outro, evocando um ao outro, continuamente. Em todas as imagens dos gêneros narrativos dos Piaroa, essa permutação entre os sentidos torna-se crucial para entender a história que está sendo contada e os saberes que estão sendo explorados.11 11 Taussig, em Mimesis and Alterity (1993, p. 57-8), faz comentários relevantes sobre a permuta entre os sentidos na imagética visual e não visual.

O bondoso Anemei ainda canta. Ele cantava e canta para o povo piaroa. Ele é muito bonito e usa muitas, inúmeras contas. Onde ele cantava, há muitos lugares de belas cores. Em suas viagens xamânicas, os cantadores podem ver essa beleza. Os cantadores piaroa entoam os cânticos que Anemei cantava e ainda canta. Por causa de seus cânticos, ele é chamado Mestre de Todos os Alimentos do Mundo. E aqui outra faculdade sensorial é apresentada: o comer. Sem os cantos de Anemei, os Piaroa não poderiam comer animais. Por isso, alguns "pensadores" dizem pensar mais em Anemei do que em qualquer outro deus. Ele foi o primeiro a ver animais como vegetais. Por isso, os Piaroa podem ser vegetarianos: todas as noites, ao entoar os cânticos de Anemei, os xamãs transformam os animais de caça em batata-doce.12 12 O território dos povos piaroa se localiza no planalto das Guianas, favorável ao cultivo de batatas. As mulheres piaroa cultivam muitas variedades de batatas. Eles cantam para fazer da caça um alimento seguro, pois os animais de caça um dia foram seres humanos. (Wahari, já no final do tempo mítico, em seu ato de traição mais insano, convidou os povos da floresta para um grande banquete. Lá ele os embebedou e passou a transformá-los em animais de caça.) Esse passado humano faz que seja angustiante e perigoso usar animais de caça como alimento. As artes da culinária tornam sua ingestão segura.

Os pensadores xamânicos estão sempre aprendendo, com a ajuda de seus alucinógenos. Para aprender, o pensador precisa ouvir os variados sons da cachoeira, porque vêm de lá os cânticos dos deuses Tianawa.13 13 Os Tianawa são deuses do presente, em oposição aos deuses do tempo da criação. Para serem poderosos, eles também precisam ver os belos sons da cachoeira. Neste caso, o visual tem precedência sobre o auditivo. Não obstante, aprendemos que esse ouvir e ver - som e imagem - permutam-se para se transformar, à sua maneira, um no outro. Ver e ouvir os sons da cachoeira têm efeito sobre o mundo, como um poderoso ritual de fertilidade. O cantador competente também precisa ver e ouvir todos os sons dos animais, e também as flautas dos animais que pertencem aos avós (meio humanos) dos animais sob a terra. Fazendo isso,o cantador, assim como Anemei, torna-se o Mestre de Todos os Alimentos do Mundo. Todavia, todo ritual dos Piaroa é considerado um ritual de fertilidade, algo que é particularmente importante para os jovens do sexo masculino que tomam parte no primeiro ritual em que recebem o dom da caça. Se o iniciado for capaz de ver e ouvir, como seu mestre xamã, se ele for capaz de vivenciar a permutação entre ouvir e ver os belos sons da cachoeira e das flautas, então ele também será capaz de comer como o Mestre de Todos os Alimentos do Mundo. Esse ouvir, ver, comer e também cantar torna-se uma unidade de força sensível.

O ritual para se tornar um caçador e também para adquirir poderes xamânicos geralmente diz respeito aos homens - e são, para os homens, o que a gravidez é para as mulheres. A floresta fica fértil, abundante em animais; os homens adquirem fertilidade própria. Para os homens, assim como para as mulheres, essa fertilidade poderosa é própria do self e não deve ser comentada com terceiros. O paralelismo nos processos generativos do homem e da mulher é um tema forte na imagética das narrativas piaora e também nos seus procedimentos ritualísticos, e por isso será retomado logo mais.

Por fim, encontramos a conexão entre caçar e cantar, que é equivalente ao "poder etéreo" do huruhuru de Anemei, sua força do huruhuru. Huruhuru é traduzido de diversos modos, como voz, linguagem, som de pessoas conversando, cantando e rindo juntas. É usado para cada um deles e para todos, sem distinção - um retumbante esplendor de som. Huruhuru. É o rugido poderoso do jaguar: rugido do jaguar, a força vital das artes culinárias!

Os xamãs explicam que a laringe deles é uma flauta. Essa flauta é muito bonita e apreciada. Contém os sons dos cânticos deles. É a força vital desses cantos, a'kwarumenye, e, como tal, dota de "vida de pensamentos" os cânticos xamânicos. Sem ela, uma pessoa só consegue fazer coisas bestiais - matar e devorar por meio da "vida dos sentidos" pura e simplesmente, o típico comportamento animal. Contudo, essa flauta é chamada jaguar dos cânticos: sua força é o rugido do jaguar (a força do ar), huruhuru. Para praticar as artes culinárias, a vida dos sentidos e a vida de pensamentos devem estar conjugadas.

O espírito dos cânticos é chamado de "espírito da fome" (au tui sa): é um espírito de pensamentos poderosos e vem do hálito (como a brisa de Anemei). Quando um cantador morre, esse espírito emerge na figura de um jaguar, um predador sem "vida de pensamentos". Essa alma de jaguar que emerge do corpo do xamã guarda a bela flauta de múltiplas cores que emerge da laringe (Overing, 1993). Em vida, Tekwæ é o espírito de luta do xamã, o espírito dos alucinógenos que o cantador usa para cantar. Palavras, linguagem, cantos, risos, tudo isso é criado com a brisa da cachoeira de Anemei: huruhuru, o rugido do jaguar. Os cânticos (imenye) dados aos cantadores xamânicos por Anemei, Cheheru e Yubaeku, os maiores deuses Tianawa, são cantos de guerra, cantos do predador poderoso que pensa e age. Esses cânticos possibilitam a arte culinária, o comer civilizado.14 14 Não é apenas do corpo dos xamãs que as almas emergem como predadores na hora da morte. Na hora da morte de todos os homens e mulheres, uma multidão de almas de predador é liberada de seus corpos (ver Overing, 1993).

O canto de um xamã mora no coração. Ele pensa esses cantos no coração, a exemplo de Anemei. Pensá-los na cabeça, e não no coração, seria perigoso.

Breve comparação entre os gêneros do sublime e do grotesco

Após alguma reflexão, percebemos que a imagética etérea que representa Anemei e seus poderes tem relação direta com todas aquelas ambigüidades que são a principal característica do realismo grotesco. No cântico de Anemei, encontramos uma grande ambivalência de sentidos numa interação vertiginosa. Como Taussig (1993, p. 57) observa sobre as visões comunicadas pelos curandeiros no Alto Amazonas, há uma "mescla de sentidos esvaindo-se para as áreas de atuação uns dos outros". Para os xamãs piaroa, há uma interseção entre ver, ouvir e respirar, ao lado de experiências táteis como comer. Há a fusão da luz e do ar com a palavra cantada, e a fusão de pensamentos, palavras, cânticos e ações. Para os seres humanos vivos, essa ambivalência está sempre em jogo. Os dois gêneros estão inextricavelmente ligados de outras maneiras. Por meio de ambos, o cantador vai expondo os modos como processos corporais e vida sensorial estão intimamente ligados às formas de conhecimento. Ambos têm a ver com o uso das artes culinárias.

Em outros aspectos, o gênero do sublime contrasta claramente com o realismo grotesco. Por exemplo, não se vê a imagética do lúdico no sublime. No sublime, o cantador raramente usa a poética cômica, que é intrínseca à maioria das performances xamânicas orais. No realismo grotesco, o efeito "pastelão" é tão forte que o público pode facilmente visualizar, de maneira caricatural, as trapalhadas dos deuses poderosos - em contraste, no sublime, o público visualiza a placidez do etéreo Anemei. No grotesco, o público pode rir dos inevitáveis "tiros pela culatra" resultantes da prepotência, insanidade e ira dos deuses - e que no fim dificultam sobremaneira a vida dos Piaroa. Os cantadores fazem uso deliberado tanto da ironia quanto da paródia e do absurdo - categorias apreciadas também na brincadeira verbal cotidiana.

Nos cânticos, o realismo grotesco é usado para explorar os efeitos de certos apetites e processos corporais sobre as formas de conhecimento: a vagina que sangra, o ânus que defeca, o ânus que sangra, o ânus que peida, a língua que sangra, a axila que transpira, a pústula que supura, a boca que vomita. Em contraste, o gênero do sublime anuncia a possibilidade da poesia, do poder e da beleza etérea das faculdades sensuais em sua contribuição para os modos de conhecimento: os olhos que vêem, os ouvidos que ouvem, a boca que canta. O realismo grotesco está mais ou menos centrado na vida dos sentidos na medida em que eles estão associados (freqüentemente de maneira perversa) aos poderosos e venenosos processos corporais, especialmente os das partes baixas e férteis do corpo; por outro lado, o gênero do sublime está focado na vida dos sentidos na medida em que eles estão associados aos poderes férteis da parte superior do corpo, ao possibilitar, por exemplo, as artes verbais. Ambos os gêneros se preocupam com as implicações, para a condição humana, das formas potentes e atabalhoadas do poder criativo que ficaram à solta nos tempos míticos, e que hoje ainda precisam ser usadas pelos Piaroa na sua arte culinária. Esse é o dilema dos seres humanos.

A obra do gênero realismo grotesco

Existem muitas razões para o gênero do grotesco obsceno ser visto como ferramenta pedagógica poderosa para retratar, ou fazer refletir, as duras verdades da condição humana do ponto de vista dos Piaroa. Bakhtin (1968, p. 4) fala das verdades filosóficas reveladas pelo gênero, e da originalidade e do terror de sua imagética cômica. Não importa quão bizarro o mundo grotesco possa ser, ainda assim ele é nosso mundo: desvenda todos os tipos de verdade que, não fora ele, talvez não víssemos (Bakhtin, 1965; Thomson, 1975; Berger, 1997). Contém paradoxos e ironias, animais humanos e outros monstros, onde nada é claramente isto ou aquilo. Brinca com a confusão e com a interação do monstruoso com o ridículo.

Outro aspecto da imagética do grotesco abordado por Bakhtin, e que é especialmente relevante para os cânticos narrativos dos xamãs piaroa, são suas fronteiras corporais. Bakhtin (1968, p. 26) observa que no realismo grotesco o corpo é aberto. Não há fronteiras claras entre os corpos, ou entre os corpos e o mundo (ibid.). Há, isto sim, o corpo sempre inacabado, em constante criação, e o corpo como princípio de degeneração sem fim - sempre geminado com a abundância reprodutiva regenerativa. Um tema recorrente é essa fertilidade da vida física, especialmente das partes baixas do corpo (id., p. 27). Há uma insistência em orifícios ou convexidades, em genitálias, narizes, ânus (id., p. 4). Essa imagética é natural para a poética do cantador piaroa. O uso desse gênero permite ao xamã cantador, e à sua platéia, refletir sobre o caráter elusivo de seus próprios corpos estarem "abertos ao mundo". É uma imagética que lhes permite aceitar e assumir a responsabilidade pelas conseqüências de sua própria corporeidade estar sempre entrelaçada aos eventos destrutivos, violentos e estranhos narrados em sua mitologia.

Fertilidade venenosa, excreções pelos orifícios

Nas narrativas dos xamãs piaroa, a criação das grandes artes culinárias é uma história sobre o veneno, seus usos e abusos. Essa relação entre artes culinárias e toxicidade não é incomum na Amazônia. Os povos amazônicos dependem do uso hábil dos venenos. Como Guss (1990, p. 105) nos faz ver, as atividades para conseguir alimento na Amazônia são regidas pela necessidade de conhecer os venenos e ter domínio sobre eles. Mesmo as plantas cultivadas são, com freqüência, venenosas, e se faz mister possuir a habilidade de transformá-las por meio do cozimento para que o perigo seja eliminado. Para os Piaroa, os animais da selva são venenosos, e é preciso habilidades xamânicas para transformá-los em alimento comestível. Há o curare, usado na caça, e venenos para inebriar peixes. Na Amazônia, os modos de saber (as artes culinárias) estão sempre às voltas com o que é venenoso. Para escapar do óbvio e entender as teorias amazônicas do veneno, precisamos explorar questões epistemológicas, como as narrativas indígenas sobre a relação entre conhecimento e veneno.15 15 Ver Guss (1990) sobre a importância do veneno nas teorias do conhecimento e da capacidade gerativa dos Yecuana. Podemos nos perguntar como é que o poder - isto é, a capacidade de agir neste mundo como seres humanos se - relaciona ao veneno. Como o corpóreo se relaciona ao epistemológico nessa questão?

No cerne de todo esse questionamento está a relação do veneno com a fertilidade. Nas narrativas dos Piaroa, descobrimos que os poderes necessários para a criação do mundo foram, desde o começo, venenosos - fato que dá uma dramaticidade especial aos eventos dos tempos míticos. Os corpos estavam e ainda estão abertos a todo esse veneno. Venenos têm poder, são fecundos e podem matar. Eles têm um tremendo poder transformacional (Belaunde, neste volume). Em sua origem, as artes culinárias foram criadas por meio dos alucinógenos mais potentes e venenosos do universo, compostos de penugens de abutre e ferrugem extraída do núcleo do sol. Kuemoi, autor dessas criações, ficou tão intoxicado que se tornou um tirano diabólico e louco, sempre planejando seu próximo festim canibalístico (Overing, 2004a e no prelo). E, à medida que os poderes generativos das artes culinárias contaminavam cada vez mais as iniciativas da época da criação, o juízo de seus habitantes também enlouquecia. No fim, as relações sociais estavam tão envenenadas que comunidade se voltou contra comunidade, cada qual devorando a outra, por meio dos poderes culinários e predatórios de Kuemoi. Por isso, na teoria piaroa, tudo o que for fruto do poder transformador deve ser cuidadosamente purgado de seu veneno antes de se tornar benéfico para o consumo humano.

Guss (1990, p. 105-6) conta que os Yecuana vêem o veneno como um agente integrante da transformação que tanto pode ser gerador de novas formas de vida e faculdades quanto pode causar a morte. Este ponto é importante. Na teoria amazônica, essa concepção sobre o veneno tende a agrupar fortemente um feixe de idéias relacionadas às polaridades vida e morte, curar e matar, fertilidade e esterilidade, poder e fragilidade, conhecimento e ignorância. É precisamente a interação de tais polaridades, sua contínua síntese, que possui força gerativa e degenerativa. Veneno é mortal; veneno dá vida. A ambigüidade da síntese está sempre presente, como se verá no restante desta discussão.

O detalhe etnográfico é crucial para entender esses feixes de idéias, que sempre têm relação com o caráter geminado das faculdades gerativas e degenerativas. Por exemplo, Guss (1990, p. 106) observa que os Yecuana aplicam os termos para veneno e morte às imagens trançadas em cestos xamânicos, identificando o potencial vital/mortal dos itens guardados no cesto. Entre os Piaroa, a pintura facial das mulheres (que mostra que elas reconhecem o próprio processo menstrual e seu forte poder transformacional) é chamada k'erœu, que anuncia a insolação (envenenamento pela ferrugem do sol) e também as temíveis doenças da paranóia e da tirania que se abateram sobre os deuses criadores. Os abcessos sifilíticos no cérebro de um velho xamã têm a mesma denominação - iwá mæruwa (feitiçaria de sangue menstrual) - dada às belas pinturas faciais que as mulhers usam para evidenciar que estão menstruadas. Como Guss (id., 93) comenta acerca dos Yecuana: "Os seres humanos precisam incorporar [a morte] a seu próprio ser se quiserem sobreviver" - ou procriar. Para os Piaroa e os Yecuana, podemos dizer que a atividade do "cultivar-se", do "aperfeiçoar-se" é como uma sinfonia inacabada e venenosa; e, como Guss (id., 67) diz, "uma arte destinada a nunca ter fim".

O ato diário de praticar as artes culinárias às vezes se assemelha ao andar na corda bamba: corpos abertos têm de suportar os venenos advindos de seus próprios processos corporais e dos processos corporais de outras pessoas na medida em que todas se reúnem para executar as tarefas diárias. Para os Piaroa, a ênfase em certos pontos tornou-se clara e coerente com base em seus cantos, nas brincadeiras verbais cotidianas e na vívida exegese. Em primeiro lugar, os processos férteis e criativos das artes culinárias exigem o manuseio engenhoso do veneno. Em segundo, com base nesse manuseio do que é venenoso, advêm a sexualidade, a fertilidade e a possível perversidade de todas as funções sensoriais e excreções corporais. Excreções corporais venenosas eram um dos tópicos principais das preocupações diárias. Nos primeiros dias do meu trabalho de campo com os Piaroa, fui advertida para não pisar nem na urina nem nas fezes de animais encontradas nas picadas abertas no meio da mata. Embora os xamãs transformem a carne animal em alimento vegetal, fazendo que a caça fique apropriada ao consumo humano, os animais também transmitem doenças aos homens por meio de suas excreções - que não são apenas urina e excrementos, mas também o sangue e o odor exalado pelas glândulas.

Os cânticos abordam com insistência a relação entre os processos de fertilidade e as doenças infecciosas. Ambos envolvem a excreção de fluidos corporais. A história a seguir, extraída de um cântico sobre Wahari e a criação das "frutas doces", brinca com temas como gravidezes estranhas, os efeitos férteis da excreção por orifícios inadequados, o sangramento fértil e a urinação fértil. O sangramento, ou excreção de sangue, aparece como veículo poderoso tanto na transmissão de fertilidade quanto na de doença.

O cântico a seguir é usado pelo xamã para tornar frutas silvestres e cultivadas próprias ao consumo humano. Sem o cântico, elas podem causar forte dor de estômago.

As frutas doces e a origem da dor de estômago

Extraído de um cântico entoado por Carlos, em Mapuræka, em 1968)

Wahari, o deus criador dos Piaroa, não conseguia obter frutas doces de Kuemoi, que era o deus criador dos frutos. Então Wahari resolveu criar suas próprias frutas. Ele fez nascer uma árvore no próprio estômago (por meio de alucinógenos que ele tomou, que tinham sido envenenados por Kuemoi). Nasceram muitas frutas boas dessa árvore. Então Wahari saiu viajando com essa árvore pelo rio Orinoco, para cima e para baixo, banqueteando-se com os frutos. Depois de comer todos que havia, ele voltou para as corredeiras logo abaixo de Puerto Ayacucho e ficou esperando que nascessem mais frutos. Nisso, uma mulher chamada Parubu Awehtuwa'hu (um espírito dos mortos) ouviu falar dessa fruta e quis prová-la. Um passarinho da beira do rio veio e contou a ela onde encontrar Wahari. Ela foi até as corredeiras e encontrou Wahari. Ela implorou que ele lhe desse uma das frutas para provar. Ela irritou Wahari, e ele respondeu: "Não! Você não pode comer nem uma sequer. Porque, toda vez que eu como uma dessas frutas, eu fico com a febre da mulher: barriga inchada, dores, sangramento" (ele estava mentindo, claro). "Essa fruta é perigosa demais pra você", disse ele. Ela insistiu, dizendo que queria provar assim mesmo. Então Wahari a estuprou. E simplesmente foi embora. Mas o caso teve repercussões. O estupro causou uma impregnação de espécies férteis. A mulher quase conseguiu o que queria porque o fruto de Wahari cresceu na barriga dela, e ela foi inchando, inchando, até urinar sangue. E aí ela não parava mais de sangrar. Sentia uma dor horrível. E saiu vagando rio acima, indo de um lugar a outro. Onde quer que ela parasse, seu sangue caía na terra: e em todos esses lugares nasceram frutas doces em profusão!

E, desde aquela época, todos que comem frutos verdes, seja do pomar, seja da mata, ficam com forte dor de estômago. Sentem uma dor horrível.

Nos tempos míticos, ninguém sabia quais seriam os resultados da ejaculação, da urinação e do sangramento férteis. Essas excreções saíam de uma variedade de orifícios e órgãos das partes baixas do corpo. No caso em questão, vemos o sangue urinado criar todas as frutas comestíveis - tanto silvestres quanto cultivadas. Nessa história, entretanto, não fica muito claro quais órgãos, precisamente, estão envolvidos. Certamente, tem-se a atividade do pênis de Wahari e do seu estômago grávido, que expeliu uma árvore frutífera. Temos a atuação do trato urinário de Parubu, mas não fica claro se a gestação ocorreu em seu estômago ou no seu útero. Também não sabemos se o estupro envolveu a vagina ou o reto. Podemos, contudo, começar a entender a conexão entre digestão e processos de gestação - um tema nada incomum em se tratando das atividades procriadoras dos deuses. Por exemplo, os etéreos deuses Tianawa passam o tempo inalando alucinógenos potentes, que, depois de digeridos/gestados em seus estômagos, são defecados como meninos-deuses. Algo semelhante ocorre na história das frutas doces, quando os alucinógenos venenosos digeridos por Wahari no estômago são transformados na sua árvore frutífera, um tipo de "árvore da vida". Nos tempos míticos não havia ato de procriação "normal".

Nessa vinheta mítica sobre a origem das frutas doces, a imagética é típica da poética do realismo grotesco. Nem tudo está evidente nesse conto, suas ambigüidades são inúmeras. Os orifícios estão abertos e as partes baixas do corpo estão bem ativas, o que dá margem a uma profusão de possibilidades férteis. Será que o estupro fez a Mulher Espírito menstruar? Ou será que ela está sofrendo um aborto? Há também o comportamento monstruoso, as estranhas atividades gerativas e a progenitura de deuses e espíritos: fatores que, combinados, denotam o caráter geminado do processo degenerativo com a abundância regenerativa.

Com o tempo, o ouvinte das narrativas xamânicas percebe que os narradores estão tecendo grandiosas sínteses fractais, eternamente mutantes, entrelaçando veneno, conduta monstruosa e processos corporais exagerados às artes culinárias. As imagens fractais de uma narrativa esclarecem a outra. O dom do grande cantador é combinar os fractais com brilhantismo: entre os cânticos, dentro dos cânticos e condensados nas evocativas palavras de múltiplas camadas do seu cântico (Overing, 1990). Por isso, a imagética do conto sobre a origem das frutas doces fica mais compreensível quando inserida no contexto de outros episódios. O cântico a seguir, sobre a origem do curare, é especialmente convincente para esse propósito, porque contém uma imagética que transforma drasticamente qualquer prévio entendimento que o ouvinte possa ter acerca do universo na época da criação. Sua poética faz amplo uso do lado mais obscuro do realismo grotesco, e ao fazê-lo revela o que há de sinistro na ordem das coisas na história dos tempos míticos. Todos os fractais narrativos que envolvem excreções de orifícios do corpo ficam intelectualmente mais ricos quando contextualizados dentro da imagética usada na narrativa da origem do curare.

O xamã Jose Luis Sucre apelidou seu canto sobre o curare de "origem do aborto", o que é significativo. É mais uma das desventuras protagonizadas por Wahari ao tentar criar sua própria arte culinária para dar ao povo piaroa. Como no caso das frutas doces, a imagética da excreção de sangue é chave fundamental na história. Assim, entorna-se mais luz sobre as complexidades extraordinárias acerca do vazamento de sangue. Como já foi observado, o sangue é responsável por fazer circular os pensamentos pelo corpo. Por isso, de uma maneira ou de outra, o sangue sempre é portador de conhecimento (ver Belaunde, 2001 e neste volume; Brown, 1985). É também muito venenoso - pelo menos a excreção de sangue é venenosa. Igualmente, o curare é um dos instrumentos mais venenosos da culinária piaroa em se tratando de corpos abertos para o mundo.

A origem do aborto

(Baseado no cântico de Jose Luis Sucre, do Baixo Cuao, em 1977)16 16 Ver também Overing (no prelo).

Wahari tentou obter um pouco de curare do louco Kuemoi, o criador do curare, mas não conseguiu. A mulher de Wahari, Kwawanyamu, filha de Kuemoi, consegue pegar um pouco do curare do pai para dar ao marido. E Wahari logo descobre que seu sogro tinha armado outra cilada pra ele. No meio do curare, o velho havia colocado uma pedra venenosa para atingir o coração da pessoa que usasse o curare. A pessoa morreria e viraria animal de caça para Kuemoi comer! Wahari ficou louco só de segurar o pacote! Alucinado, ele planeja criar seu próprio curare saindo à caça do Tucano. Ele afia os dardos da zarabatana e coloca nas pontas um alucinógeno venenoso e potente que ele descobrira na mata. Ele sai para caçar com alguns parentes e vê o Tucano sentado numa árvore, comendo frutas alegremente. Wahari atinge o Tucano com seu dardo venenoso. Ferido e entorpecido, o Tucano voa a esmo pelo mundo, apontando todos os tipos de plantas de curare. Onde quer que ele defeque e vomite, nascem plantas de curare. Depois ele volta para sua árvore e cai morto no chão.

Ao procurar o Tucano morto, Wahari fica completamente louco e possuído por um forte desejo de matar pessoas - ele quer matar o próprio irmão e seus genros. Wahari então prepara uma cilada para eles. Ele transforma o Tucano morto num monstro subterrâneo, vivo e pavoroso, o Tapir/Anaconda, para servir de instrumento para matar seus parentes. O plano de Wahari fracassa e seus parentes conseguem escapar à sua sede sanguinária, mas ficam completamente aterrorizados. Wahari então pega o Tapir/Anaconda e o transforma no Tucano morto, de novo batendo em sua cabeça com a zarabatana. Quando ele segura o Tucano pelo bico, escorre sangue pelo ânus do Tucano. Quando ele suspende o Tucano pelos pés, ele vomita sangue.

Wahari anuncia: "Todos que vierem depois de mim, sofrerão disso. Quando os homens matarem animais com curare e as pessoas comerem da carne, elas vão vomitar sangue e sangue vai escorrer do seu ânus e da sua vagina".

Ao ferir o Tucano com um dardo venenoso, Wahari cria a doença do aborto. O que o Tucano criou foi o aborto, não as plantas de curare. Da mesma maneira, na história das frutas doces, a Mulher Espírito criou a dor de estômago ao urinar sangue, não as frutas doces silvestres. Ao ser estuprada por Wahari, a Mulher Espírito foi envenenada pelo sêmen de Wahari, que tinha sido afetado pelo alucinógeno venenoso que ele tinha bebido para criar sua própria "árvore frutífera". Mais uma vez, no realismo grotesco, as coisas não são o que parecem. O cantador, Carlos, não havia clareado a parte final da história. As narrativas sobre Wahari e suas tentativas de criar a própria arte culinária na verdade são sobre a criação das doenças horríveis que as pessoas viriam a sofrer. Wahari, a princípio um deus de unidade e harmonia, transforma-se no fim num tirano estúpido ao ter sua vontade envenenada pelo alucinógeno mortal criado por Kuemoi (Overing, 2004a).

A imagética do grotesco consegue expressar em cores vivas a provação por que passa Wahari. Com o tempo, seu comportamento descamba para a arrogância e a violência: ele nega frutas à Mulher Espírito e, por fim, a violenta e a abandona. Intencionalmente mata o Tucano para criar o curare e planeja o assassinato dos próprios parentes. Foi o péssimo comportamento social de Wahari que deu início, nas outras pessoas, aos processos corporais venenosos, ainda que férteis. Nas duas narrativas, vemos que os orifícios passam a sofrer excreções irregulares (urinar sangue, expelir sangue, vomitar sangue)17 17 O vômito sai do estômago, um órgão das partes baixas na lógica piaroa. depois dos atos violentos praticados por Wahari. As imagens são de estupro fértil e assassinato fértil - atalhos degenerados para a fecundidade que acabam por culminar em descarga desastrosa.18 18 Ver Conklin (2001) sobre a "gravidez" abdominal do matador Wari, que é "impregnado" pelo sangue da vítima inimiga.

Todas as tentativas de Wahari para criar as próprias ferramentas de arte culinária fracassam. Ao invés de fogo e curare, ele termina criando as queimaduras e o aborto - além de gonorréia, paralisia, cegueira, micose, dor de garganta. Essas moléstias envenenam as faculdades sensoriais humanas e dificultam o uso construtivo dos órgãos dos sentidos. Elas sabotam as artes culinárias e as formas saudáveis de conhecimento. E foram todas essas doenças, essas perversas criações, que Wahari deu aos animais como "pensamentos" (em substituição a seus conhecimentos de arte culinária). Hoje, por meio de suas excreções, os animais impregnam as pessoas com as perversas artes culinárias de Wahari (Overing, 2004b). Os "pensamentos" animais, assim como os pensamentos humanos, circulam pelo corpo através do sangue. É por isso que o sangue animal é tão venenoso para os seres humanos: porque ele é portador do conhecimento da doença.

Podemos agora compreender melhor por que os Piaroa dão tanta importância à questão dos fluidos corporais venenosos. Eles ligam os seguintes processos corporais: (1) as excreções perversas, porém férteis, dos tempos da criação; (2) as excreções dos animais, que transmitem doenças; e (3) os dejetos dos seres humanos de hoje. Juntos, esses processos formam uma unidade sólida de teoria corpórea que lida com as faculdades sensoriais das partes baixas para urinar, defecar, vomitar e ejacular de maneira perigosa. Mais uma vez, a imagética evocada é aquela de processos intermináveis de degeneração e regeneração, de digestão e gestação.

Excreções cotidianas: o fedor da morte, os aromas da vida

A fertilidade venenosa dos fluidos corporais não é só assunto dos deuses. Um efeito colateral de viver com os outros é estar sujeito a aborver os venenos emitidos pelas excreções corporais das pessoas com quem se vive. Assim, membros de uma mesma família podem contaminar perigosamente uns aos outros, provocando doenças, prolongando convalescenças (Overing, 2004b). Na conversa do dia-a-dia e também na linguagem dos cânticos, os Piaora usam classificações lingüísticas específicas para as emissões corporais, que esclarecem esse processo de envenenamento (id., 1986 e no prelo). Nas frases do dia-a-dia, todas as excreções corporais podem ser aglomeradas num bloco só, como i'sœwa, ou ser tratadas separadamente de acordo com o orifício envolvido. Porém os Piaroa têm maneiras mais interessantes de subdividir e classificar o que sai dos orifícios do corpo. No cântico sobre o Tucano, defecar, vomitar e ejacular são denominados pelo mesmo termo: edéku ou edekwa'a, uma brincadeira com os poderes fertilizadores das excreções corporais. O sufixo usado no segundo termo, wa'a, expressa o odor fétido desses processos, o fedor da morte, o odor de um organismo moribundo. Assim como o aborto (que é o tópico do canto), o vômito, os excrementos e o sêmen têm relação com tecidos que estão morrendo, mas que são potencialmente férteis. Com efeito, a palavra para aborto, pui'kwa, também significa ejaculação! Fertilidade e morte estão sempre geminadas. O presságio da morte é seu mau cheiro. Por isso, não é de surpreender que os Piaroa digam que o que é particularmente venenoso na expulsão de fluidos corporais é seu odor de morte - odor de merda, peido, mijo, sangramento vaginal, suor e sangramento da língua.

Nas brincadeiras do dia-a-dia, há muitas piadas sobre peidos (Overing, 1986 e no prelo) ou, como dizem os Piaroa, "merda esfumaçada" (tité iso'pha), uma expressão bastante usada em piadas apimentadas para enfatizar a potência olfativa dos gases descontrolados. Entre jovens do sexo masculino, um peido pode suscitar "piadas de sogro" interessantes, como "seu sogro está cagando!", ou "ele está gritando!", ou "ele está vomitando!". Na lógica piaroa, essas excreções podem se permutar, unidas que estão por sua violência e excesso, e pela falta de domínio sobre os processos corporais. O peidorreiro pode também ser caçoado com frases do tipo "ele está vomitando o sogro!", numa referência às drogas alucinógenas que o velho usa. O sogro tem mais conhecimento que seu jovem genro, por isso suas excreções corporais conscientes - suor, urina, fezes e peidos - são perigosas para a saúde do genro, que é menos poderoso do que ele. O rapaz, ao peidar, está se livrando de tal contaminação. Esse "purgar-se dos venenos" dá força a ele, um princípio que será explicado mais adiante. De modo inverso, a "fumaça de peido" do jovem é perigosa para seus amigos, que são inadvertidamente impregnados (estuprados?) por ela. Quando os amigos respiram a fatal "merda esfumaçada" expelida pelo jovem, ocorre uma transferência do veneno (o poder generativo dos alucinógenos) do jovem para seus amigos.

A discussão sobre o sangramento menstrual vai esclarecer um pouco mais essa interação do degenerativo com o re(generativo) nos processos excretores do corpo. Tanto mulheres quanto homens menstruam. A mulher tem o conhecimento transformacional para gerar bebês. É a fertilidade dos "pensamentos" dela que lhe permite gerá-los. Para adquirir poder generativo suficiente para dar à luz uma criança, é essencial que a mulher menstrue. A mulher é purificada fisicamente pela menstruação, e assim se torna fértil de maneira poderosa e correta (ver Belaunde, neste volume). Ao sangrar, sua vagina expele todos os venenos perigosos que ela havia internalizado durante o mês ao conviver com outras pessoas. O sangue menstrual é perigoso para os outros, especialmente para crianças e jovens, porque a mulher está se purificando profundamente, eliminando todos os pensamentos não domesticados emitidos pelos outros (um processo semelhante aos gases do jovem mencionado, mas muito mais potente). Uma mulher menstruada não pode cozinhar para pessoas vulneráveis, pois elas poderiam ingerir o odor venenoso do seu sangramento, e isso as impregnaria, deixando-as doentes. Para a mulher, porém, é a eliminação desse mesmo sangue que a torna forte e fértil de maneira sadia. Entra em jogo outra vez a ambigüidade dos princípios geminados de degeneração e regeneração: a excreção é procriadora, a excreção contamina.

Os xamãs me explicaram que boa parte da sua força transformacional para praticar as artes xamânicas é adquirida por meio de menstruação ritual. Ao menstruar, eles podem alcançar capacidades generativas tão potentes quanto as das mulheres para ter bebês, embora sejam capacidades diferentes e eles só menstruem de seis em seis meses. Em tal ritual, o xamã oficiante atravessa a própria língua e a língua de seus aprendizes com um ferrão de arraia. Eles menstruam pela língua, não pela vagina.19 19 Margherita Margiotti (comunicação pessoal) me disse que os Cuna falam em sucos vaginais da língua. Ver também a rica discussão de Isacsson (1993) acerca dos interessantes órgãos generativos dos Emberá. Por meio desse sangramento, eles também se limpam profundamente de todo o veneno acumulado, emanado das excreções dos outros membros da comunidade, principalmente das mulheres menstruadas. Assim como ocorre com a mulher, o sangramento dos homens dá a eles grande força, fazendo que dominem os próprios pensamentos corporificados, de modo a não causarem grande perigo aos outros durante a excreção dos próprios fluidos corporais. Também lhes dá força para executarem suas tarefas xamânicas diárias. O sangramento da língua masculina é, contudo, muito perigoso para as mulheres. Se por acaso elas virem a cerimônia, ou seja, tomarem conhecimento da cerimônia pela visão, elas podem ficar muito doentes e até morrer. Semelhante destino pode ter o homem que vir o sangue do parto ou sentir o seu odor. Jovens que tiverem contato físico com sangue menstrual podem morrer de alguma doença debilitante. Ver, cheirar, tocar - todos os meios sensoriais de adquirir conhecimento - também podem vencer ou mesmo matar a agência consciente, como diria Belaunde (neste volume). Homens e mulheres são iguais na utilidade e no risco que oferecem uns aos outros. Mulheres têm vaginas férteis. Homens têm línguas vaginais. E assim vai. Todos os orifícios são férteis: nariz, olho, boca, ouvido, vagina, ânus. Todos estão perigosamente abertos ao mundo. No realismo grotesco, esse estado de coisas é ridículo e hilariante, mas é também poderosamente generativo e extremamente arriscado.

Voltamos a um princípio fundamental da teoria piaroa que relaciona processos corporais e conhecimento às duas faces do veneno como forte agente de transformação. A excreção de fluidos venenosos pelos orifícios do corpo pode ser autofecundante para os adultos: o sangramento da vagina, o sangramento da língua, o suor das axilas, os gases do ânus. Todas essas aberturas agem como instrumentos criativos para corpos abertos. Esse tipo de excreção torna-se um operador importante no domínio do conhecimento. É o veículo pelo qual as pessoas eliminam conhecimento tóxico não domesticado, que do contrário poderia deixá-las doentes ou mesmo loucas. O xamã curandeiro oferece alucinógenos para o paciente beber ou inalar. Ao percorrer o corpo do paciente, o alucinógeno efetua uma limpeza completa. O ritual termina com o paciente vomitando ou defecando violentamente, processo que o livra das toxinas do conhecimento não domesticado. Ao mesmo tempo, as excreções de uma pessoa oferecem perigo à saúde das outras, abertas e vulneráveis que estão aos venenos das excreções da primeira. Os parentes absorvem para dentro do corpo o que algum membro dessa mesma família descartou. Se os orifícios são excretores, os sentidos dos outros são receptores: o nariz inala, os olhos vêem, a pele absorve, a boca experimenta, os ouvidos ouvem - as perigosíssimas danças dos sentidos. Ver, absorver, provar e ouvir inadvertidamente pode ser muito perigoso para a saúde, e por essa razão os rituais são realizados na floresta, longe da aldeia. Por outro lado, ver, absorver, provar e ouvir de maneira intencional e consciente - quando o intelecto trabalha com os sentidos - é o que se considera uma saudável aquisição de conhecimento na epistemologia piaroa. Os rituais piaroa, buscando fazer emergir a face regenerativa do veneno, usam procedimentos de purificação ou de aberturas controladas no corpo para permitir a entrada de venenos intencionais. No ritual de caça, jovens do sexo masculino são expostos a vespas e formigas venenosas e deliberadamente deixam-se picar por elas na testa, nas bochechas, no peito e nos braços (o corpo é aberto). O veneno desses insetos ferozes é direcionado às áreas críticas do corpo onde resistência e força consciente são necessárias para que o caçador armado de zarabatana possa exercer a contento sua atividade predatória.

A absorção pelos sentidos pode, então, ser um ato reprodutivo positivo. Para os Piaroa, muitos fatores contribuem para a criação, ou transformação, das forças vitais de uma pessoa ao longo do tempo. O ato de dotar de conhecimento é um trabalho fecundo (Overing, 1985b). Ensinar crianças a ouvir bem, ver bem e absorver bem é prepará-las para usar suas faculdades sensoriais no ambiente da floresta. Além disso, as pessoas também sentem e inalam o cheiro gostoso da comida sendo preparada e o das pessoas preparando a comida. As pessoas vêem, provam e absorvem sua beleza - e potência. A força da beleza é importante (Overing, 1989). Os sentidos trabalham em parceria com o pensamento: "pensamentos de pé" (tak'wakomenœ) são um belo processo. No dia-a-dia, as pessoas vivem rodeadas pelas belas e sábias criações dos outros - zarabatanas e armadilhas, pentes e redes, plantas da roça, crianças, riso e fala, o cântico da ruwa. Tudo a ser absorvido por obra dos sentidos e circulado pelo sangue para todas as partes do corpo.

De volta ao gênero do sublime

A capacidade de regeneração dos Piaroa é possível graças ao uso de seu conhecimento belo e purificado - o que nos devolve ao gênero do sublime, em que a linguagem é lírica e os versos são bem formulados, em que a ênfase recai sobre as belas e criativas possibilidades de vida, e não no grotesco que nos espreita virando a esquina. Enquanto a imagética do grotesco se vale forçosamente das partes baixas e ativas do corpo, o foco do sublime são os órgãos e sentidos da parte superior do corpo: olhos que vêem, ouvidos que ouvem, boca que ingere, nariz que inala, boca que sopra. No sublime há uma interação frenética entre todos os sentidos, num funcionamento vertiginoso da parte superior do corpo. Há o papel da língua, da boca e da laringe, que trabalham juntas ao falar, cantar, soprar. É nesses órgãos e faculdades sensoriais que se apóiam a linguagem e as artes verbais. Eles também representam os poderes especiais do xamã fazendo uso da brisa de Anemei: cantando, falando, soprando, entoando os "cânticos da vida" de Anemei, usando a "luz da vida" de Anemei. Usando a força do ar que há debaixo da terra. Fazendo uso, em suas viagens xamânicas, da luz ardente, brilhante e preciosa de Anemei. Inalando alucinógenos e tabaco pelo nariz, ingerindo alucinógenos pela boca, vendo outros mundos pelos olhos, ouvindo outros mundos pelos ouvidos. Órgãos e faculdades usando os potentes poderes transformacionais, dádivas da retórica e da canção.

Esses processos sensuais são poderosamente generativos. A faculdade de inalar faz do nariz um instrumento poderoso nas artes xamânicas - a narina do xamã é o "canal vaginal do nariz" (tshímu i'sæ'hu).20 20 Ver Isacsson (1993) sobre o conceito do "nariz vaginal" entre os Emberá. A vagina e o canal vaginal da mulher são ditos keri i'sæ´'hu. Nas duas instâncias, a referência à passagem é feminizada pelo sufixo hu, que fala do poder transformacional da inalação xamânica de alucinógenos. Alucinógenos são fecundos - o xamã fica intencionalmente impregnado. Igualmente, pessoas comuns sentem o aroma da comida e são prazerosamente impregnadas. O órgão do nariz é uma passagem valiosa para adquirir conhecimento.

O cântico de Anemei é especificamente sobre as extraordinárias possibilidades transformacionais que estão ligadas às artes verbais do xamã, a vida de suas palavras, seu canto e suas viagens - e a fonte de tais poderes belos e brilhantes é a caixa de cristal uterina de Anemei. Esses são também os poderes mais perigosos que os seres humanos podem usar, os mais próximos àqueles dos deuses em seus deslizes mais destrutivos. As palavras dos cantos podem ser de Anemei, mas elas também constituem cantos de guerra de uma vida de predação, e simplesmente concedem o poder das artes culinárias da maneira como Kuemoi, deus louco e predador, as criou. A imagética evoca não apenas o sublime, mas também a vida de um poderoso predador, cuja boca devora carne. O que o xamã está adquirindo é o poder do jaguar, o rugido do jaguar e a comida do jaguar.

Todos esses poderes predatórios do jaguar são belos enquanto permanecem nas mãos de Anemei, dentro de suas caixas de cristal que guardam luz, canto e brisa. Esses poderes estão seguros porque Anemei vive sozinho. Ele nunca teve de lidar com outras criaturas. Ele não é um ser gregário, social. Ele não tem apetite nas partes baixas. Ele não come. Ele não peida, não vomita, nem defeca. Ele não tem vontade de usar sua força predatória. Suas faculdades sensoriais estão relacionadas à parte superior do corpo: ele passa a eternidade a entoar seus belos cânticos, eternamente purificando a sua força. Apesar de seu poder pessoal, ele nunca participa socialmente dos processos criativos de regeneração e degeneração. Como sua vida é fisiologicamente restrita, ele não tem gula. Como ele não vive com niguém, ninguém pode envenenar sua tranqüilidade. Ele nunca quer matar; nunca cobiça o bem alheio. Ele nunca anseia por sexo ou poder. Ele é totalmente auto-suficiente. Anemei não é um ser humano e não tem capacidade de viver uma vida humana, que é social. Ele não tem motivo para abusar de seus belos poderes.

O cantador xamã, dentro do que lhe é possível como ser humano, procura emular Anemei. Assim como Anemei, o cantador pensa seus cânticos com o coração. Toda noite ele purifica, com a luz de Anemei, os cânticos que ele entoa, tornando-os belos e seguros para serem usados. A flauta de sua garganta contém os cânticos belos e sábios de Anemei - os cânticos do predador, que se tornam poderosos graças à força do rugido do jaguar, huruhuru. Como interpretar a função do sangramento da língua vaginal desse cantador xamânico, algo que não é atributo de Anemei? Será que está relacionada ao uso que Anemei faz da força do jaguar nos seus cânticos? Ou representa a boca devoradora e sangrenta do jaguar da floresta? Nada disso. Mais exatamente, a língua menstrual se refere diretamente ao uso humano das habilidades culinárias. A menstruação do xamã serve como ferramenta humana consciente e social a possibilitar o uso civilizado das criações tóxicas de Kuemoi. O mesmo pode ser dito sobre a menstruação das mulheres. Nos dois casos o indivíduo, seja ele homem ou mulher, não apenas se torna fértil, mas, sobre tudo, adquire força para usar seu crescente poder generativo de maneira sábia e socialmente responsável. É necessário ter pleno domínio do poder generativo para praticar as artes culinárias humanizadas. Quando o xamã menstrua, ele purga o veneno de Kuemoi que, como xamã, ele não foi capaz de eliminar dos cantos potentes de Anemei. Por causa desse procedimento, ele não devora - em vida - como o jaguar da floresta.

Ao usar o gênero do realismo grotesco, os cantadores na verdade estão questionando a segurança das forças de Anemei quando nas mãos de seres humanos que vivem, comem e fornicam! Huruhuru o rugido do jaguar, a brisa do jaguar - é a imagem mais pungente e ambígua para a condição humana. Huruhuru: pessoas falando, pessoas rindo, pessoas cantando, pessoas comendo - pessoas interagindo umas com as outras. Essa é uma situação existencial que dá espaço para o humor obsceno do realismo grotesco. A imagem de Anemei é de pureza e tranqüilidade, uma imagem de perfeição, um estado de existência nunca alcançável por simples mortais. Mas isso nem seria desejável. Anemei vive sozinho. Anemei não come nem faz amor. Para os Piaroa, a sabedoria está em compreender as mensagens do realismo grotesco obsceno, com sua comicidade, corporeidade, ambigüidade - suas mensagens de morte e regeneração. As artes culinárias venenosas tanto são facilitadoras de uma comunidade de relações sociais quanto destruidoras dessa mesma vida, dessa mesma sociabilidade. Eis a tragédia da insensatez cósmica. Relações sociais fecundas precisam ser muito bem trabalhadas: elas precisam ser conscientes.

Notas

Bibliografia

Aceito em novembro de 2005.

Tradução de Telma Franco Diniz.

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  • TAUSSIG, Michael 1993 Mimesis and Alterity: A Particular History of the Senses, New York/London, Routledge.
  • THOMSON, P. 1972 The Grotesque, Methuen & Co.
  • 1
    Como Gow (1989) observou, seria um erro equiparar as artes culinárias amazônicas à noção de atividades de "subsistência".
  • 2
    Ver Passes (2000) sobre o falar e o rir como ferramentas poderosas das artes culinárias dos Pa'ikwené. Ver Overing (2000) sobre a relação entre riso, sociabilidade e trabalho entre os Piaroa.
  • 3
    Belaunde (neste volume) observa que a noção da corporificação do conhecimento através da circulação do sangue pelo corpo deve ser corrente na Amazônia.
  • 4
    Londoño-Sulkin (neste volume) relata idéias semelhantes entre os Muinane. Ver também Lagrou (2000) sobre as idéias dos Kaxinawa acerca da corporificação de pensamentos.
  • 5
    Ver Londoño Sulkin (2000 e neste volume) acerca de idéias semelhantes entre os Muinane.
  • 6
    Guss (1990), ao escrever sobre os Yecuana, mostra haver relação entre essas múltiplas conexões e sínteses e a tecelagem praticada por eles.
  • 7
    Ver McCallum (2001) sobre o entendimento dos Kaxinawa acerca dos sexos e de suas respectivas habilidades como conhecimento corporificado.
  • 8
    Dell Hymes (1981, 2003) foi o criador da subdisciplina etnopoética ao demonstrar a poética dos narradores indígenas norte-americanos.
  • 9
    Observe o predomínio dos versos 3 e 5, um padrão que Hymes (1981) sugere ser corrente nas narrativas ameríndias.
  • 10
    Para maiores explicações sobre a distinção entre "vida dos sentidos" e "vida de pensamentos" segundo os Piaroa, ver Overing (1985).
  • 11
    Taussig, em
    Mimesis and Alterity (1993, p. 57-8), faz comentários relevantes sobre a permuta entre os sentidos na imagética visual e não visual.
  • 12
    O território dos povos piaroa se localiza no planalto das Guianas, favorável ao cultivo de batatas. As mulheres piaroa cultivam muitas variedades de batatas.
  • 13
    Os Tianawa são deuses do presente, em oposição aos deuses do tempo da criação.
  • 14
    Não é apenas do corpo dos xamãs que as almas emergem como predadores na hora da morte. Na hora da morte de todos os homens e mulheres, uma multidão de almas de predador é liberada de seus corpos (ver Overing, 1993).
  • 15
    Ver Guss (1990) sobre a importância do veneno nas teorias do conhecimento e da capacidade gerativa dos Yecuana.
  • 16
    Ver também Overing (no prelo).
  • 17
    O vômito sai do estômago, um órgão das partes baixas na lógica piaroa.
  • 18
    Ver Conklin (2001) sobre a "gravidez" abdominal do matador Wari, que é "impregnado" pelo sangue da vítima inimiga.
  • 19
    Margherita Margiotti (comunicação pessoal) me disse que os Cuna falam em sucos vaginais da língua. Ver também a rica discussão de Isacsson (1993) acerca dos interessantes órgãos generativos dos Emberá.
  • 20
    Ver Isacsson (1993) sobre o conceito do "nariz vaginal" entre os Emberá.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      Nov 2005
    • Recebido
      Nov 2005
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