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“Eu escrevo o quê, professor (a)?”: notas sobre os sentidos da classificação racial (auto e hetero) em políticas de ações afirmativas1 1 Uma primeira versão desse texto foi apresentada no Open Panel 23. Anthropology of contemporary states: institutions of public administration, population management and symbolic production of state centrality, durante o 18º Congresso Mundial da IUAES. Agradecemos os comentários de Antonio Carlos de Souza Lima e Laura Belén Navallo Coimbra.

“What do I write here, teacher?”: Notes on the meanings of racial classification (self and hetero) in affirmative action policies

Resumo

O artigo pretende problematizar como a regulamentação das cotas raciais - positiva como política pública de ação afirmativa ao reconhecer o racismo como estruturante das desigualdades no país - tem se revelado uma tecnologia social fundada na suspeição sistemática, gerando insegurança jurídica nas avaliações dos “pardos”, assim como o ressurgimento de critérios fenotípicos, procedimentos considerados legítimos para assegurar o direito a vaga na universidade pública, podendo resultar em um não-lugar para negros de pele clara. As análises baseiam-se nos procedimentos da Universidade Federal Fluminense durante a matrícula de aprovados no SISU em 2018 para cumprir a Lei nº. 12.990/2014 e Orientação Normativa nº 3, de 01/2016, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão que instituíram a obrigatoriedade de comissões de aferição de candidatos autodeclarados negros e indígenas.

Palavras-chave:
Autodeclaração; Heteroclassificação; Cotas étnico-raciais; Suspeição sistemática

Abstract

The article reflects the procedures of Universidade Federal Fluminense during the registration of approved students by SISU in 2018. In compliance with law nº. 12990/2014 e Orientação Normativa nº 3, de 01/08/2016, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão instituting mandatory commissions for the assessment of self-declared black and indigenous candidates, we conducted one of these examining boards. Reserving vacancies in competitions is a historical demand of black movements, creating public policies of affirmative action. It is intended to problematize how the regulation of racial quotas is positive as a public policy because it recognizes racism as structuring inequalities in Brazil. However, this proves to be a social technology based on systematic suspicion, generating legal insecurity in the evaluations of “pardos”, as well as the resurgence of phenotypic criteria, procedures considered legitimate to ensure the right to vacancy at public universities, which may result in a non-place for light-skinned blacks.

Keywords:
Self-declared; Hetero-classification; Racial quota; Systematic suspicion

INTRODUÇÃO

De acordo com o Estatuto da Igualdade Racial (Lei n° 12.288, de 20 de julho de 2010) as ações afirmativas, no Brasil, devem acontecer por meio de “programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades”. Ao criar um documento legislativo dirigido aos direitos específicos da população negra, o Estado reconheceu uma situação de vulnerabilidade social, tal como fez em relação aos idosos (2003) e crianças e adolescentes (1990). Trata-se, portanto, de uma legislação que surge como resultado de debates públicos e pressão do movimento negro, como uma tentativa de enfrentamento da discriminação racial com o objetivo de garantir a efetivação da igualdade de oportunidades e a defesa de direitos à população negra, além de combater o preconceito e o racismo.

Há outra contribuição relevante da criação da reserva de vagas na democratização do ensino, que é a possibilidade de aumentar a taxa bruta de matrículas de jovens no ensino superior e no segmento público (meta 12 do Plano Nacional de Educação) (Santos; Camilloto; Dias; 2019SANTOS, Adilson Pereira dos; CAMILLOTO, Bruno e DIAS, Hermelinda Gomes. 2019. “Heteroidentificação na Ufop: O Controle Social Impulsionando o Aperfeiçoamento da Política Pública”. Revista da ABPN , 11 (29), 15-40.), o que foi alcançado pelo Rio de Janeiro em 2018 (50,8%) 2 2 Em 2012 a taxa do RJ era 34,8%. Ver dados do https://www.observatoriodopne.org.br/indicadores/metas/12-ensino-superior/indicadores, acesso em 10 de setembro de 2020. . Faltam estudos que permitam compreender o impacto das reservas de vagas nesse processo, porém é inegável que já houve uma mudança em termos de percepção dessas medidas. Antonio Sergio Guimarães (2018) salienta que, quando as políticas começaram, pesquisas de opinião indicavam que a população rejeitava as cotas raciais, atualmente já se registra a importância das políticas raciais para a promoção da justiça social no país. Outro fato incontestável é a transformação do perfil do ensino superior, o que traz novos desafios para o funcionamento da política pública na graduação e sua expansão para a pós-graduação.

Consideramos que a reserva de vagas é parte de uma política de promoção da equidade racial, que tem impacto também na produção de conhecimento nas Ciências Sociais3 3 Foge ao escopo desse artigo uma revisão bibliográfica sobre os debates nesse campo, optamos apenas por destacar as questões que se relacionam com os dados empíricos que foram construídos a partir de nossa inserção na produção da política pública, com destaque para a necessidade de rediscussão do lugar do “mestiço” (o “pardo”) como parte de uma identidade racial comparada e sua relação com o movimento negro (Carneiro, 2004; Pereira, 2020). , seja no campo das relações raciais, ou dos processos institucionais de administração de conflitos, marcados por práticas estatais inquisitoriais e cartoriais (Kant de Lima e Miranda, 2012KANT DE LIMA, Roberto e MIRANDA, Ana Paula M. 2012. “Estado, direito e sociedade: a segurança e a ordem pública em uma perspectiva comparada”. In: DURÃO, Susana e DARCK, Marcio. (Org.). Polícia, Segurança e Ordem Pública: Perspectivas Portuguesas e Brasileiras. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.), que historicamente negaram aos negros e indígenas o status de sujeito de direitos. Nossa abordagem tem o objetivo de ressaltar os conflitos e controvérsias observados durante o processo de implantação das comissões de heteroidentificação, compreendidas como uma tecnologia social, que ao se inspirar numa lógica da suspeição sistemática pode gerar insegurança jurídica em relação às avaliações dos “pardos”, do mesmo modo que explicita politicamente um não-lugar para os negros de pele clara ao validar os critérios fenotípicos para a heteroidentificação.

AS “COTAS” NA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF)

A implantação de ações afirmativas sob a forma de reserva de vagas para estudantes de escolas públicas, bem como para negros (pretos e pardos) e indígenas ocorreu em 2007 na UFF4 4 A obrigatoriedade das cotas nas universidades públicas federais só ocorreu quando da publicação da Lei nº 12.711/2012, conhecida como “Lei das Cotas”. Salientamos que a referida legislação não menciona as possíveis situações de fraude. , mesmo ano em que a universidade aderiu ao Programa de Apoio à Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) - que propiciou uma ampliação da estrutura física da instituição, com destaque para um processo de fortalecimento da interiorização dos cursos de graduação em nove municípios do Rio de Janeiro5 5 A sede da universidade fica em Niterói, as demais unidades se encontram em Angra dos Reis, Campos dos Goytacazes, Macaé, Nova Friburgo, Petrópolis, Rio das Ostras, Santo Antônio de Pádua, Volta Redonda. , o que resultou num ajuste de procedimentos administrativos para a análise dos beneficiários dessa política e uma modificação considerável do perfil dos estudantes na universidade.

A UFF criou a Assessoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (AFiDE) em dezembro de 2017, por meio da Resolução 580, com o objetivo de articular, su- gerir e monitorar as Políticas e Programas de Ações Afirmativas da UFF. O primeiro desafio foi assegurar a validade do princípio de presunção de inocência dos candidatos durante a “aferição da Autodeclaração de cor/etnia do processo seletivo para ingresso nos cursos de graduação da UFF por meio do Sistema de Seleção Unificada (SISU)”, instituída em fevereiro de 2017 (Instrução de Serviço Prograd nº 01/2017), que resultou em mais de cem recursos administrativos às decisões da referida avaliação.

A AFiDE contou com Ana Paula Mendes de Miranda6 6 A autora fora convidada pelo reitor para assumir a função após implantar as cotas na pós-graduação na Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-graduação e Inovação, como coordenadora dos programas de pós-graduação da universidade, bem como ter participado como membro do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFF de uma comissão que avaliou os recursos dos candidatos no primeiro processo seletivo após a aplicação das comissões. Com o fim do mandato do reitor, ela sugeriu a nova gestão que o professor Rolf fosse convidado, já que participara dos processos ao longo do primeiro ano e por ser docente de uma unidade fora de sede (Santo Antônio de Pádua-RJ), com demandas e características típicas da interiorização da universidade. na função da assessoria da sua criação até dezembro de 2018, quando assumiu o cargo Rolf Malungo de Souza, que segue desde então. Além disso, Rosiane Rodrigues de Almeida participou do trabalho na condição de estudante de pós-graduação da universidade. Também atuaram diretamente os estudantes Leonardo Vieira Silva, na ocasião, Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (Bolsista CNPq), e Iago Menezes, Licenciando em Ciências Sociais (Bolsista Pibit-Pibinova). Desta forma, as autoras/or deste artigo tiveram participação na organização de oficinas de capacitação e construção das primeiras comissões, estas costumavam durar em torno de cincos dias úteis (dependendo do número de candidatos/as), funcionando das 9h às 16h. Assim, foi possível o acompanhamento de todo o processo, seja das discussões teóricas, for- mais e legais, assim como, das questões do dia-a-dia das práticas destas comissões, podendo, desta forma, acompanhar os seus procedimentos e algumas conversas de candidatos no corredor, enquanto aguardavam sua vez de ser atendidos.

É necessário esclarecer que universidade estava obrigada a adotar tal procedimento, já que fora notificada pelo Ministério Público Federal (MPF) da Recomendação nº 41, que determina que as universidades de todo país criem “comissões de aferição”, promulgada em 20167 7 Em março de 2018 o MPF ampliou sua recomendação para todas as universidades federais. Ver http://www.mpf. mp.br/rj/sala-de-imprensa/noticias-rj/mpf-rj-quer-adocao-de-controle-previo-para-ingresso-nas-cotas-raciais-em-universidades-publicas, acesso em 12 de março de 2018 , cujo objetivo é diminuir o número de “fraudadores das cotas”, entendidos como pessoas que se candidatam para vagas de negros (pretos e pardos), utilizando a política pública de ação afirmativa, mas que não são beneficiários legítimos de tal política. Elísio, Costa e Rodrigues Filho (2019ELÍSIO, Régis Rodrigues; COSTA, Antônio Cláudio Moreira e RODRIGUES FILHO, Guimes. 2019. “Histórico e Desafios no Processo de Implementação das Comissões de Heteroidentificação na Universidade Federal de Uberlândia”. Revista da ABPN, 11 (29), 41-56.) se referem a uma “afroconveniência”, ou seja, a adoção de má fé para a caracterização das situações nas quais os indivíduos se utilizam das cotas reservadas aos negros e indígenas, com o fim de acessar benefícios que não teriam direito como um atalho para acesso ao Ensino Superior.

A tipificação do crime de “fraude no sistema de cotas” tem sido uma demanda do movimento negro8 8 Destaca-se aqui a atuação do grupo Educafro (Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes), que apresentou à CDH sugestão de projeto de lei para tornar mais rigorosa a punição dos infratores. que se institucionalizou, em 2015, a partir de uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), no Senado Federal, quando se discutiu a falta de previsão legal para comprovação da “veracidade” da autodeclaração. Os convidados9 9 Destaca-se a participação do diplomata Jackson Luiz Lima Oliveira, que defendeu a adoção de regras complementares à autodeclaração, como a apresentação de foto e a realização de entrevista para os que quiserem se beneficiar da política de cotas. Ele defendeu também que a decisão da comissão verificadora deveria ser sempre unânime. Para ele, a unanimidade de uma banca única, somado aos mecanismos de entrevista e a redação sobre e experiência pessoal, poderia evitar as fraudes. Ver: http://concursos.correioweb.com.br/app/noticias/2015/09/30/noticiasinterna,35608/fraude-nas-cotas-raciais-pode-se-tornar-crime-previsto-no-codigo-penal.shtml e https://www12.senado.leg.br/cidadania/edicoes/522/desde-antes-das-cotas-bolsa-busca-garantir-disputa-justa, acesso em 05 de junho de 2018. asseveraram que haveria um aumento de casos de pessoas brancas que se autodeclaram pretas ou pardas, com a intenção de se beneficiar das cotas em concursos públicos, em disputas por bolsa de estudo ou em seleção para ingresso em universidades públicas o que, por sua vez, resultaria também num aumento de processos no Judiciário.

A preocupação com aumento da judicialização dos casos que envolvem “fraudes” e também de candidatos que demandam ações judiciais contra universidades por serem classificados como não aptos às cotas étnico-raciais, foi motivo de atenção da UFF, no âmbito do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPex). A discussão estava orientada por dois entendimentos preliminares e basilares no que diz respeito às “comissões de aferição”, cuja função é avaliar de atestar a condição de pretos, pardos ou indígenas, os “candidatos PPI”:

- Não há critérios para ‘aferição’ de pardos10 10 De acordo com Anjos (2013: 104) “para os militantes do Movimento Negro trata-se de uma categoria intermediária entre ‘branca’ e ‘preta’, que abre aos respondentes a possibilidade de declaração de uma cor mais clara ou ‘branqueamento’ nas respostas (Marx, 1998, p. 163). Ela promoveria uma negação da ‘negritude’ e dificultaria a criação de uma identidade comum entre os ‘não brancos’ (Loveman; Muniz; Bailey, 2011, p. 4; Marx, 1998, p. 254; Munanga, 2008; Skidmore, 1992a, p. 13). Para os cientistas sociais, a tríade é questionada por (a) impedir a observação e o estudo das desigualdades entre brancos e não brancos (Wood; Carvalho; Horta, 2010, p. 123); e (b) estar ligada a uma interpretação das relações raciais brasileiras segundo a qual o ‘pardo’ ocuparia uma posição social intermediária que mitigaria as diferenças entre brancos e pretos (Bailey; Loveman; Muniz, 2013; Marx, 1998, p. 67; Skidmore, 2001, p. 65). Além disso, os próprios termos usados para classificação são criticados por alguns autores, por (c) não condizerem com as categorias utilizadas pela população (Bailey; Telles, 2002, p. 3; Loveman; Muniz; Bailey, 2011, p. 3). Enquanto a categoria ‘parda’ captura todos os que não se enquadram nas outras categorias, e abarca todas as categorias mistas e intermediárias, ela não seria usada pela maior parte da população, que parece preferir a categoria ‘morena’, apenas parcialmente ligada à miscigenação (Bailey; Telles, 2002, p. 6-7; Loveman; Muniz; Bailey, 2011, p. 4; Telles, 2011, p. 13)”. e nem uma definição pacificada - seja para as Ciências Sociais ou para os movimentos negros - sobre esta categoria utilizada pelo IBGE. A orientação de que as cotas raciais devam ser direcionadas aos “pardos negros e não aos pardos socialmente brancos” (Vaz, 2018VAZ, Lívia Maria Santana e Sant’Anna. 2018. “As comissões de verificação e o direito à (dever de) proteção contra a falsidade de autodeclarações raciais”. In: DIAS, Gleidson Renato Martins; TAVARES JUNIOR e FABER, Paulo Roberto (org.). Heteroidentificação e cotas raciais: dúvidas, metodologias e procedimentos. Canoas, RS: IFRS.) é uma sugestão de um segmento dos movimentos negros, conhecido como “colorista”, mas que não é consenso no próprio movimento.

- Os candidatos não podem ser expostos a constrangimentos e nem tratados como suspeitos - o que sabemos, infelizmente, é uma praxe da administração pública brasileira ao lidar com os negros e os indígenas, seja por meio da suspeição sistemática, seja pela lógica da tutela. Ambas os desqualificam como sujeitos plenos de direitos.

A falta de consenso sobre o que fazer com os candidatos que se declaram ‘pardos’ é um ponto considerado crítico, já que as controvérsias11 11 Entendida como “uma forma de ‘incerteza compartilhada’, ou seja, uma série de ‘situações nas quais os atores estão de acordo de que discordam entre si’ (...) trata-se de compreender como um conjunto de fatos é reunido em um debate público, quais os processos de tradução que transformam o sentido da linguagem ordinária em um problema social” (Montero, 2012: 178). em torno do que seriam as possíveis “fraudes” decorrem não só em relação aos candidatos brancos que se avocam como ‘pardos’, mas da dificuldade de lidar com aqueles que se con- sideram ‘negros de pele clara’ (Carneiro, 2004CARNEIRO, Sueli. 2004. Negros de pele clara. https://www.ceert.org.br/noticias/genero-mulher/13570/sueli-carneiro-negros-de-pele-clara. Acesso em 29 de março de 2020.
https://www.ceert.org.br/noticias/genero...
), porque foram ensinados pelos pais a se pensar como negros e ter orgulho de sua identidade, a despeito da cor de suas peles. Neste sentido, é preciso refletir o que significam as ‘fraudes’ se consideramos que a autodeclaração se constitui como direito humano fundamental previsto pela Organização das Nações Unidas.

A criação da AFiDE ocorreu após o CEPex analisar 162 recursos, num universo de 1.274 estudantes, de candidatos reprovados no processo seletivo de 2017.1. Foi esta controvérsia em particular, aliada a pouca acumulação da discussão racial dentro das universidades12 12 Ainda que a produção bibliográfica sobre raça tenha sido fundante da Antropologia no Brasil, as discussões e acúmulos teóricos ainda hoje estão restritas a alguns setores dos movimentos sociais e poucos grupos de pesquisas das Ciências Sociais. Pode-se afirmar que o tema sob uma perspectiva crítica não faz parte do cotidiano das universidades, salvo em eventos que não resultam em políticas internas. e as ações judiciais promovidas por candidatos considerados não aptos a ingressarem no ensino superior pelas cotas, os principais motivos que levaram a UFF a discutir internamente a necessidade de acompanhar mais de perto a realização do trabalho dessas comissões.

AS “BANCAS DE AFERIÇÃO” E A SUA LEGITIMAÇÃO JURÍDICA

Além da Recomendação nº 41 do Conselho Nacional do Ministério Público, de 2016 e da Portaria nº 4 do Ministério do Planejamento, de 2018, a legislação utilizada para nortear a orientação das Comissões de Aferição (2017 - dois semestres) da UFF, destacou-se também, a partir de 2018, a importância do Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010), no que tange à definição do que é discriminação racial ou étnico-racial e desigualdade racial, tendo em vista que o Estatuto “adota como diretriz político-jurídica a inclusão das vítimas de desigualdade etnico-racial, a valorizacao da igualdade étnica e o fortalecimento da identidade nacional brasileira” (art. 3°).

A AFiDE compreendeu que seria preciso conceitualmente entender as categorias que estão em jogo na aplicação das ações afirmativas como ‘discriminação ou desigualdade étnico-racial’ e por este motivo adotou o Estatuto da Igualdade Racial - primeiro documento legal a inaugurar, no plano legislativo brasileiro, a política pública de igualdade racial, por meio da qual se buscou proporcionar tratamento isonômico às descendências étnicas e delinear os critérios étnico-raciais que definiriam o público alvo dessa política:

Art. 1º. Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. (...)13 13 Para uma discussão sobre formas de intolerância e discriminação ver Miranda (2018). .IV - População negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga” (Grifos nossos).

É preciso atentar para o fato de que o Estatuto da Igualdade Racial menciona “a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos” e a descendência - como vínculo de sangue ou de Lei - para a população afrodescendente. Embora o tema seja controverso entre os movimentos sociais, salienta-se que há jurisprudência que a afrodescendência independe das características fenotípicas, caso a ascendência provenha do pai ou da mãe. Neste sentido, o Estatuto é importante porque ressalta que o critério identitário é a referência para a construção de políticas afirmativas, e não apenas o critério fenotípico, que está previsto no Art. 9º da Portaria Normativa nº 4, de 6 de abril de 2018, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão/ Secretaria de Gestão de Pessoas:

A comissão de heteroidentificação utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelo candidato no concurso público. (grifos nossos).

Segundo o Estatuto as ações afirmativas são:

os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades”. (Art. 1º, Parágrafo único, VI).

Além do Estatuto da Igualdade Racial, que admite a autodeclaração como critério de reconhecimento de pertença a determinado grupo étnico-racial, há também a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989, que inaugura a utilização do conceito de autodeclaração no âmbito internacional, numa perspectiva não assimilacionista dos povos indígenas e outras populações tradicionais. Assim, a autodeclaração é a técnica jurídica adotada no Brasil em matéria de definição de identidade étnico-racial. Neste contexto, considerar a autodeclaração em matéria de identidades como um documento de “presunção relativa de veracidade”, ou seja, algo válido até que se prove o contrário, vai de encontro a classificações arbitrárias e simplificadoras, informadas por abordagens racialistas fundadas no século XIX, que acabam por discriminar indivíduos em vez de protegê-los contra a discriminação.

A ideia de que uma identidade possa ser considerada falsa, porque é possível provar algo diferente, é um pressuposto bastante problemático caso se imagine que este princípio seja aplicado a procedimentos administrativos e/ou judiciais voltados às identidades de gênero, que efeitos teriam sobre as relações entre os “sujeitos de gênero” (Pinho e Souza, 2019PINHO, Osmundo e SOUZA, Rolf Ribeiro de. 2019. “Subjetividade, Cultura e Poder: Politizando Masculinidades Negras”. Cadernos de Gênero e Diversidade, 5, 40-46. http://dx.doi.org/10.9771/cgd.v5i2.33751.
http://dx.doi.org/10.9771/cgd.v5i2.33751...
) e a ordem social?

DIREITO “PACIFICADO” X CRITÉRIOS EM DISPUTA

As cotas étnico-raciais se constituem em direito constitucional, conforme decisão tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE 597285)14 14 A RE diz respeito a ação impetrada por um estudante questionava os critérios adotados pela UFRGS para reserva de vagas. A universidade destinava 30% das 160 vagas a candidatos egressos de escola pública e a negros que também tenham estudado em escolas públicas (sendo 15% para cada), além de 10 vagas para candidatos indígenas. Ver: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=207003. Acesso em 07 de julho de 2018. pelo Supremo Tribunal Federal, em 09 de maio de 2012. A decisão teve repercussão geral em todas as universidades públicas do país. Portanto, a reserva de vagas para negros e indígenas nas universidades é um tema de “entendimento pacificado”, ou seja, sobre o qual não cabe discussão judicial. Trata-se de instrumento legal que visa mobilidade sociocultural de grupos em condição de desigualdade no país, inspirado no que foi adotado pelos Estados Unidos nos últimos 60 anos. Tanto lá quanto aqui, o objetivo das cotas é a ascensão social e econômica dos descendentes de africanos e indígenas. Porém, vale observar algumas diferenças importantes. Nos Estados Unidos, as ações afirmativas com base na raça para conceder alguma vantagem a um grupo em detrimento de outro não só contrariava a ideologia meritocrática (norte-americana), como parecia incoerente com a ideia de igualdade racial (Lempert, 2015LEMPERT, Richard. 2015. “Ação afirmativa nos Estados Unidos: breve síntese da jurisprudência e da pesquisa social científica”. Sociologias, 17 (40), 34-91. https://doi.org/10.1590/15174522-017004002.
https://doi.org/10.1590/15174522-0170040...
, p. 42). Contudo, o caso Bakke15 15 Regents of the University of California versus Bakke (1978). Allan Bakke, um branco que se candidatou à Faculdade de Medicina, acionou a Justiça contra a Universidade da Califórnia. mudou a natureza do discurso em torno da ação afirmativa, quando os argumentos para uma equidade racial passaram a promover a ação afirmativa por sua contribuição para a diversidade educacional (op. cit., p. 44; Bayma, 2012BAYMA, Fátima. 2012. “Reflexões sobre a constitucionalidade das cotas raciais em Universidades Públicas no Brasil: referências internacionais e os desafios pós-julgamento das cotas”. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, 20 (75), 325-346. https://doi.org/10.1590/S0104-40362012000200006.
https://doi.org/10.1590/S0104-4036201200...
, p. 335). Neste sentido, é possível compreende-la como uma política liberal, que pretende integrar os negros e indígenas a sociedade abrangente sem, no entanto, oferecer reparações históricas a esses grupos, individualizando os efeitos da política pública.

Conforme veremos adiante, o que está em xeque para a execução da política de cotas não é a sua legalidade nem a sua aplicabilidade para os candidatos ‘retintos’ ou ‘tinta forte’16 16 Categoria utilizada pelo Movimento Social Negro que identifica o indivíduo com grande concentração de melanina na pele que, no entendimento do grupo identificado como “colorista”, deveria ser o público alvo dessas políticas (Almeida, 2015). . O desafio da execução da política de cotas está colocado no grupo de candidatos que se autodeclaram como pardos, uma vez que não é possível se falar em “critérios objetivos” para classificá-los, muito menos para aferir a “veracidade” de sua autodeclaração. Ou seja, a heteroidentificação dos pardos está diretamente relacionada à sensibilidade dos membros da Comissão e ao seu maior ou menor aprofundamento nas discussões relativas às relações étnico-raciais no país. Um exemplo disso foi o caso de uma candidata considerada não apta porque havia realizado um procedimento estético, que resultou num ‘cabelo alisado’17 17 A estudante entrou com recurso administrativo na universidade e foi aprovada. , diacrítico que foi considerado um indicador de negação da identidade negra pela comissão que avaliou a estudante. Para se contrapor a situações desse tipo notamos que os integrantes das comissões eram sensíveis aos argumentos de que, na dúvida se o(a) candidato (a) pardo (a) seria apto à vaga, deveriam imaginar episódios de discriminação racial. Como exemplos mencionavam que era preciso conceber se o candidato seria, ou não, alvo prioritário de uma blitz policial; ou se seria seguido no interior de um estabelecimento comercial. Se a resposta fosse sim, ele (a) certamente seria merecedor da cota.

PARECE TUDO IGUAL, MAS É DIFERENTE: AS COMISSÕES DE AFERIÇÃO SE TRANSFORMAM EM COMISSÕES DE HETEROIDENTIFICAÇÃO

A Portaria Normativa Nº 4, de 6 de abril de 2018, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão/Secretaria de Gestão de Pessoas, estabeleceu os procedimentos de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros. O documento teve como objetivo aprimorar as orientações sobre o assunto contido na Orientação Normativa nº 3, de 1º de agosto de 2016, e a Portaria Conjunta n° 11, dos Ministérios do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão e da Justiça e Cidadania. O intuito era negar a ideia de um “tribunal racial” e definir os procedimentos para aferição das autodeclarações a fim de torná-los padrão para todos os concursos federais. Esclarecemos que a heteroidentificação é entendida legalmente como “a identificação por terceiros da condição autodeclarada” (art. 5), já que a autodeclaração “goza da presunção relativa de veracidade” (art. 3).

Antes de passar a descrever os procedimentos adotados pela Universidade Federal Fluminense, julgamos necessário destacar que o foco inicial do Ministério do Planejamento eram os concursos públicos, cujos procedimentos administrativos visam aferir aptidões pessoais e selecionar os melhores candidatos para exercerem, como servidores, os cargos públicos - numa relação de trabalho per- manente, remunerada e estável. Não há no documento qualquer referência ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), adotado como critério de seleção para os candidatos ao ingresso no ensino superior, cujo vínculo é temporário e não remunerado com a universidade. Antes de sua implantação, em 1998, o processo de seleção de estudantes para o ensino superior era particularizado - cada universidade fazia o seu - vestibular. O Enem não é obrigatório, mas sua implantação para avaliar os conhecimentos dos estudantes que estão concluindo (ou já concluíram) o Ensino Médio, consagrou-o como mecanismo de acesso à educação superior em programas do Ministério da Educação - SiSU e PROUNI. A referência aos vestibulares só ocorreu em agosto de 2016, em uma Recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público:

Considerando as notícias que vêm sendo divulgadas, pela imprensa e pelos diversos ramos do Ministério Público, sobre a ocorrência de fraudes em inscrições realizadas em certames públicos que reservam vagas para negros, seja para o ingresso em universidades públicas na condição de cotistas, seja para concorrer, em idêntica situação, a cargos públicos disponibilizados em concursos abertos, sem que tais candidatos atendam, realmente, aos critérios legais estabelecidos (Recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público, nº 41, 9 de agosto de 2016 - grifos nossos).

O argumento utilizado pelo Conselho Nacional do Ministério Público é o de que “a autodeclaração não é critério absoluto de definição da pertença étnico-racial de um indivíduo, devendo, notadamente no caso da política de cotas, ser complementado por mecanismos heterônomos de verificação de autenticidade das informações declaradas, tendo o STF, no julgamento da ADPF 186, se pronunciado especificamente sobre a legitimidade do sistema misto de identificação racial”. (Recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público, nº 41, 9 de agosto de 2016 - grifos nossos).

O intento do sistema misto é destacar as características fenotípicas como um elemento definidor de efetiva discriminação racial. No entanto, o acórdão da ADPF 186 se refere a uma “metodologia de seleção diferenciada”, que pode perfeitamente levar em consideração critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, do mesmo modo que a combinação da autoidentificação com a heteroidentificação poderia ser adotada pelas universidades desde que “jamais deixem de respeitar a dignidade pessoal dos candidatos”.

Em 2017 a UFF adotou as recomendações do Ministério Público Federal18 18 Faz-se necessário esclarecer que os autores não participaram desse processo, tampouco da definição desses critérios. . No primeiro semestre, a Pró-reitoria de Graduação (PROGRAD) emitiu a Instrução de Serviço de nº 01/2017, de 02 de fevereiro de 2017, que estabelecia os seguintes critérios para o estabelecimento das comissões de aferição:

Art. 3º - O processo de aferição da Autodeclaração de cor/etnia será orientado pelo critério fenotípico e composto por quatro etapas, a saber

I. Análise dos documentos de Autodeclaração devidamente preenchidos e assinados pelos candidatos, contendo uma foto atualizada colorida, em fundo branco e dimensões 5 cm por 7 cm.

II. Emissão de relatório das análises, contendo lista de candidatos APTOS e NÃO APTOS à continuidade no processo seletivo.

III. Entrevista com os candidatos considerados NÃO APTOS à continuidade no processo seletivo. IV - Emissão de relatório final, contendo lista de candidatos APTOS e NÃO APTOS à continuidade do processo seletivo.

§ 1º- O cronograma das etapas previstas constará de Edital e/ou Comunicado Oficial, devendo o candidato observá-lo e cumpri-lo, sob pena de eliminação do processo seletivo e perda da vaga.

§2º - No momento da entrevista, será́ entregue ao candidato um formulário para ser preenchido de próprio punho pelo mesmo, contendo itens de identificação pessoal e perguntas, como: I - Você já́ sofreu preconceito?; II - Por que você se considera preto(a), pardo (a) ou indígena?; III - Você tem algo a acrescentar em relação aos documentos preenchidos?

§3º - Poderá́, no momento da entrevista, o (a) candidato (a) apresentar à banca, original e cópia a ser anexada ao formulário de entrevista, um dos seguintes documentos públicos que corrobore a veracidade da autodeclaração:

a). cadastro do alistamento militar;

b). certidão de nascimento/casamento (de inteiro teor na qual consta a cor);

c). cadastro das áreas de segurança pública e sistema penitenciário (incluindo boletins de ocorrência e inquéritos policiais);

d). cadastro geral de empregados e desempregados - Caged;

e). cadastros de identificação civil - RG (SP, DF etc.);

f). formulário de adoção das varas da infância e adolescência.

§4º - A entrevista poderá́ ser gravada, e as imagens serão utilizadas apenas para os fins previstos no Edital, sendo preservado o sigilo das mesmas.

§ 5º - O candidato com parecer final NÃO APTO perderá o direito à continuidade do processo seletivo, o direito à matrícula ou terá a sua matrícula cancelada.

Os procedimentos adotados resultaram num conjunto volumoso de recursos ao Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPex) da UFF. Em comum os casos apresentavam a dificuldade de atender às demandas de candidatos que se autodeclaravam “pardos” que haviam sido considerados não aptos pela “Comissão de Aferição da Autodeclaração de Cor/etnia”. A discussão no âmbito do CEPex resultou na criação da Assessoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (AFiDE/UFF). No ano de 2018, após algumas reuniões entre a AFiDE e a PROGRAD, foi emitida a Instrução de Serviço, de nº 02/2018, com as seguintes alterações:

O artigo 3° - o critério fenotípico foi substituído pelo critério identitário; O §2º do inciso IV foi reformulado, como podemos ver:

“I - Por que você se autodeclara preto (a), pardo (a) ou indígena?;

II - Você já foi beneficiário de alguma política de ação afirmativa? Qual?;

III- Você já sofreu algum tipo de discriminação étnico-racial?;

IV - Você tem algo a acrescentar?”(Instrução de Serviço - PROGRAD, 2018, p. 2).

As alterações, negociadas internamente com estudantes, docentes e técnicos, tiveram o objetivo de favorecer a compreensão dos candidatos dos critérios aos quais eram submetidos. Considerou-se que o critério identitário é mais abrangente, porque além de incluir o elemento fenotípico, entendido aqui como a aparência/cor da pele, assume que a classificação/denominação de cor/raça funciona, no sistema brasileiro, como resultado de uma política histórica de miscigenação imposta à população negra, que valorizava o embranquecimento (Schwarcz, 1993SCHWARCZ, Lilia K. M.. 1993. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e pensamento racial no Brasil: 1870-1930. São Paulo, Companhia das Letras.). Em reação a esse processo, os movimentos negros têm valorizado contemporaneamente a aparência/cor da pele - pele escura - como foco de políticas de discriminação positiva (Almeida, 2015ALMEIDA, Rosiane Rodrigues. 2015. Quem foi que falou em igualdade?. Rio de Janeiro: Autografia.), tal debate tem tido como consequência a criação de outro conflito identitário. Ao terem sua identidade racial questionada e/ou negada, estudantes sentem-se inseguros sobre sua própria identidade, chamados pejorativamente de os “afrobege”19 19 Ver https://www.geledes.org.br/as-nao-brancas-identidade-racial-e-colorismo-no-brasil/, acesso em 18 de abril de 2020. .

A adoção do critério fenotípico representa outro obstáculo quando se considera o caso dos indígenas. Apesar do processo de miscigenação também ter resultado em conflitos envolvendo a sociedade abrangente (Cardoso de Oliveira, 1964CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. 1964. O Índio no Mundo dos Brancos: a Situação dos Tukúna do Alto Solimões. São Paulo: Difusão Europeia do Livro.), a autoidentificação ocorre pela pertença a uma etnia (Souza Lima, 2007SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. 2007. “Educação Superior para Indígenas no Brasil - sobre cotas e algo mais”. In: BRANDÃO, André Augusto (org.). Cotas raciais no Brasil: a primeira avaliação. Rio de Janeiro: DP&A.), portanto as diferenças identitárias não são reveladas pela aparência fenotípica:

É preciso ter muito claro que os acadêmicos indígenas são jovens que podem ser fenotipicamente muito parecidos com os habitantes regionais com que convivem. Chegam ao ponto de, como dito antes, serem até mesmo invisíveis enquanto integrantes de coletividades etnicamente diferenciadas para seus professores e para a estrutura universitária em que se inserem” (Souza Lima, 2007SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. 2007. “Educação Superior para Indígenas no Brasil - sobre cotas e algo mais”. In: BRANDÃO, André Augusto (org.). Cotas raciais no Brasil: a primeira avaliação. Rio de Janeiro: DP&A.).

A impossibilidade de uma classificação geral para raças ou etnias não é uma situação exclusiva do Brasil. Devido à diversidade de configurações étnico-raciais nenhuma organização internacional propõe um modelo único. Quando se trata de “etnicidade” a sugestão é seguir as categorias locais do órgão oficial de estatística do país (Osório, 2004OSÓRIO, Rafael Guerreiro. 2004. “O sistema classificatório de “cor ou raça” do IBGE”. In: BERNARDINO, Joaze et al. Levando a raça a sério: ação afirmativa e universidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora.). No Brasil, os critérios variaram ao longo do tempo, mas hoje se opta por perguntar a cor ou raça das pessoas. A opção dupla revela que há a vigência de dois modelos: a aparência e a origem. Por essa razão, a AFiDE incorporou o critério identitário para os procedimentos de heteroidentificação.

O PASSO SEGUINTE: A ESTRUTURA ADOTADA NAS COMISSÕES DE HETEROIDENTIFICAÇÃO 2018.1

A Assessoria de Ações Afirmativas (AFiDE) da UFF, em debate interno sobre o assunto, compreendeu que o papel das comissões formadas por discentes, docentes e técnicos-administrativos é para fazer cumprir o que está previsto no SISU:

Para aqueles estudantes que se declararem PRETOS, PARDOS OU INDÍGENAS20 20 Os candidatos indígenas bastar fazer a apresentação do Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (RANI) ou de documento comprobatório emitido por autoridade indígena. é preciso apresentar no ato na matrícula, juntamente com os outros documentos, uma declaração que comprove sobre sua cor (SISU, 2018).

Essas comissões são responsáveis por validar a matrícula dos candidatos selecionados pelo SISU, porém não é a universidade a instituição responsável pela seleção do candidato, mas sim, o Ministério da Educação, quem gerencia o SISU. É entendimento da AFiDE que a nomenclatura de comissões de aferição é inadequada. Embora atenda a recomendação Ministério Público Federal21 21 “Considerando, no entanto, que a autodeclaração não é critério absoluto de definição da pertença étnico-racial de um indivíduo, devendo, notadamente no caso da política de cotas, ser complementado por mecanismos heterônomos de verificação de autenticidade das informações declaradas, tendo o STF, no julgamento da ADPF 186, se pronunciado especificamente sobre a legitimidade do sistema misto de identificação racial” (Recomendação do Ministério Público, nº 41/2016). em relação ao critério misto recomendado, o sentido de aferição está atrelado ao de “medição” de algo ou alguma coisa. Tal perspectiva é incompatível com os princípios internacionais de direitos humanos, bem como contraria as teorias antropo- lógicas sobre processos identitários, segundo os quais é impossível aferir (medir) uma identidade.

Nesse sentido, optou-se pela designação de duas bancas (triagem e entrevista) para a realização do trabalho no processo de ingresso (Quadro 1), tendo como prioridade ser um processo de acolhimento de novos estudantes e não mais uma “prova” de seleção22 22 Caso essa etapa seja institucionalizada como uma prova estará se produzindo uma situação de estudantes “pré-cotistas” ou “aspirantes a cotistas”, criando um lugar de liminaridade quando se deveria promover processos de inclusão. .

QUADRO 1:
PROCEDIMENTOS ADOTADOS PELAS DAS BANCAS (2018.1)

Algumas questões devem ser salientadas, como é o caso do acolhimento dos candidatos por parte dos integrantes das comissões, já que os candidatos demostravam muito nervosismo e tensão, por entender que estariam fazendo mais uma “prova”. Outra questão sensível foi a realização das filmagens, uma exigência legal para avaliação da comissão recursal23 23 A comissão recursal era composta por pessoas que não participaram dos processos de ingresso. Eles tinham acesso aos documentos dos (as) candidatos (as) e ao recurso, escrito de próprio punho pelo (a) candidato (a). A análise dos recursos é um processo que também merece ser discutida, mas ficará para outra oportunidade. (art. 10 da Portaria Normativa nº 4/2018). A Assessoria entendeu que não era preciso submeter todos os candidatos às entrevistas filmadas se o objetivo delas era dirimir possíveis recursos dos casos que envolvessem os pardos. Não havia razão para submeter os (as) candidatos (as) pretos (as) à filmagem, pois reforçaria uma violência simbólica e um constrangimento, que esses estudantes sofrem no seu cotidiano, devido ao preconceito racial existente na sociedade brasileira. Outra razão era o custo da filmagem para a universidade, uma vez que não há este serviço na PROGRAD, sendo necessário contratar profissionais para fazê-la24 24 Num momento de corte de recursos financeiros nas universidades é relevante destacar que para atender toda universidade esse processo teve um custo de aproximadamente R$ 300.000,00, incluindo despesas com deslocamento e diárias para os integrantes das bancas. Aqui estão incluídos também as comissões referentes a outras ações afirmativas da universidade. .

As atividades das bancas eram geralmente seguidas de reuniões durante as quais se discutia como as pessoas percebiam e avaliavam o andamento dos trabalhos, com o objetivo de produzir uma reflexão crítica sobre o que significava a universidade realizar essa tarefa. Uma síntese de nossas notas está no Quadro 2.

QUADRO 2:
SÍNTESE DAS DISCUSSÕES SOBRE O FUNCIONAMENTO DAS BANCAS (COMISSÕES DE HETEROIDENTIFICAÇÃO) DE 2018.1

A COMPOSIÇÃO DAS COMISSÕES

Quando se trata de construção de uma política pública há que se lembrar que uma coisa é o que se imagina, outra é o que se faz e como se faz. A Portaria 04/2018 criou uma série de exigências para a realização das referidas comissões:

§ 1º A comissão de heteroidentificação será́ constituída por cidadãos:

I. de reputação ilibada;

II. residentes no Brasil;

III. que tenham participado de oficina sobre a temática da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo com base em conteúdo disponibilizado pelo órgão responsável pela promoção da igualdade étnica previsto no § 1º do art. 49 da Lei n° 12.288, de 20 de julho de 2010; e IV - preferencialmente experientes na temática da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo.

§ 2º A comissão de heteroidentificação será́ composta por cinco membros e seus suplentes.

§ 3º Em caso de impedimento ou suspeição, nos termos dos artigos 18 a 21 da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, o membro da comissão de heteroidentificação será́ substituído por suplente.

§ 4º A composição da comissão de heteroidentificação deverá atender ao critério da diversidade, garantindo que seus membros sejam distribuídos por gênero, cor e, preferencialmente, naturalidade.

Sem entrar no mérito da discussão sobre o que significa uma “reputação ilibada”, até onde conseguimos identificar, nenhuma universidade federal do Rio de Janeiro realizou as comissões neste formato. Na UFF, desde a primeira comissão formada buscou-se respeitar o princípio da paridade - discente, servidor técnico-administrativo e docente - na composição das comissões. Acontece que como esses processos ocorrem geralmente em períodos de férias, torna-se quase impossível assegurar que todos os critérios listados sejam respeitados. Além disso, a universidade está presente em nove municípios, o que complica profundamente a logística de uma matrícula descentralizada.

Há que se ressaltar ainda que um número significativo de docentes recusou-se a participar do processo por não concordar com o procedimento, em especial, aqueles que possuem pesquisas relacionadas às temáticas identitárias, ou porque ainda houve docentes que se manifestaram contrários à existência de políticas de cotas nas universidades. A organização das comissões acabou passando por uma rede de relações pessoais, que era acionada na base do “por favor, quebra esse galho”, que nada tem a ver com as tais orientações do MPOG.

O QUE DIZEM AS/OS CANDIDATAS/OS?

Por maior que fosse o esforço da equipe em reduzir o constrangimento e tornar o ato numa etapa de matrícula e não um “tribunal racial”25 25 A expressão foi utilizada pela primeira vez pela Folha de São Paulo, em um editorial sobre as cotas a partir do caso da UNB, em 11/04/2004. O debate sobre as comissões a expressão voltou a ser usada, agora com mais um sentido. Há quem afirme que são estratégias da “burocracia universitária” para impedir o ingresso dos estudantes negros. , no qual os candidatos se sentissem intimidados pela instituição, as reações dos candidatos eram similares aos que passam por um julgamento, tais como: “estou com medo deles não irem com a minha cara”; “você sabe se essa banca é cruel ou tranquila?”; ou ainda, “será que respondi tudo certo? Estou com medo, já que ninguém está na cabeça deles”.

A decisão de mudar o formulário, que antes era um modelo no qual o candidato apenas colocava seu nome, marcava qual sua identificação étnico-racial entre as opções preto, pardo ou indígena e assinalava que estava ciente de todas as punições legais caso estivesse cometendo uma fraude, para um modelo no qual o candidato deveria além de marcar sua opção, falar mais livremente sobre sua identidade resultou num outro desafio. A maior parte dos estudantes não trazia o documento preenchido e escrevia na hora, o que resultava sempre numa interação com as diversas pessoas que integram as equipes de matrícula da universidade. Não raro as/os candidatas/os perguntavam sobre o que deveriam escrever na sua própria autodeclaração. Não foram poucos os que perguntaram “mas, eu escrevo o quê, professor (a)?”. Se a lógica não fosse a de acolhimento, esses estudantes seriam considerados eliminados do processo seletivo.

Entre os candidatos considerados pretos (as) foi muito recorrente o questionamento: “Não sei o que escrever aqui? Será que não dá para ver pela minha foto?”. Vários candidatos escreveram no corpo da autodeclaração: “veja a minha foto”; “a obviedade da cor da pele”; “eu nasci assim”; “sou preta (o)”. Apresentamos a seguir algumas transcrições de autodeclarações de candidatos aprovados, que foram agregadas a partir de situações vivenciadas durante a realização das bancas:

Estudantes heteroidentificados como pretos, em função da cor da pele, mas que se apresentavam como pardos:

( ) Preto (X) Pardo ( ) Indígena

“Declaro que sou parda, cuja minha origem vem de pai e mãe pardos, além de avós paternos e maternos também pardos” (Candidata ao curso de Administração).

( ) Preto (X) Pardo ( ) Indígena

“Pois a minha cor de pele é parda e venho de família toda negra.” (Candidato ao curso de Ciências Econômicas).

Nessas situações era comum ver alguns integrantes da banca incomodados com a autodeclaração, pois que eles não se reconheciam “corretamente”. Em alguns desses casos pudemos conversar e verificou-se que alguns candidatos colocavam pardos porque possuíam algum documento com essa classificação e ficavam com medo de fazer uma declaração “falsa”. Essa controvérsia revela o quão complexo é esse processo diante de uma tradição de suspeição sistemática do Estado para com a sociedade (Kant de Lima, 2016KANT DE LIMA, Roberto. “Tradição Judiciária Inquisitorial, Desigualdade Jurídica e Contraditório em uma Perspectiva Comparada”. In: RESENDE, José Manuel et al. (Orgs.). 2016. As artes de (re)fazer o mundo? Habitar, compor e ordenar a vida em sociedade. 1ªed. Portalegre, Portugal: Instituto Politécnico de Portalegre.).

Estudantes que se autodeclararam em função da classificação do IBGE:

(X) Preto ( ) Pardo ( ) Indígena

“Pertenço a um grupo social classificado como negros pelo IBGE, sendo também filha de um negro puxando, assim, a sua cor. (Candidata ao curso de Administração).

( ) Preto (X) Pardo ( ) Indígena

“Pela definição dada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) onde pardo é definido como aquele possui variadas ascendências raciais. Subdivido em mulato, caboclo e cafuzo. Em caso específico em encaixo na subdivisão de mulato (filho de banco com negro), onde meu pai XXX é negro e minha mãe XXX é branca. Acrescentando a questão de fenótipo, onde possuo o tom da pele característico de mulato”. (Candidato ao curso de Engenharia Civil) 26 26 Todos os nomes citados foram suprimidos para manter o anonimato dos (as) estudantes. .

Estudantes que compreendiam a identidade como um processo social e político:

(X) Preto ( ) Pardo ( ) Indígena

“Graças a Deus preto de alma, espírito e corpo. Com traços negros, com aspectos negros e preto. Preto no pé, na mão, nos braços, no corpo todo. Meu cabelo é de preto, minha boca é grande, meu nariz é de negão. ‘Negro, Negro, sou!’” (Candidato ao curso de Filosofia)27 27 O candidato pediu que sua autodeclaração fosse divulgada, porque tem orgulho de sua identidade. Optou-se por manter sua identidade oculta, já que os demais não serão apresentados.

(X) Preto ( ) Pardo ( ) Indígena

“Sempre me vi como negra porque ao olhar para minha família eu só via negros e por ter em mim fenótipos como o nariz largo, a testa grande e o cabelo cacheado. Porém acho que só tive uma real noção do que isso significava quando um professor disse que eu não alcançaria cargos altos por ser negra. A minha bisavó materna morreu aos 106 anos e, apesar de já ter ‘nascido livre’, viveu bem perto da escravidão. Seus pais foram escravos e sua pele era bem escura. Há diversos motivos que fazem com que eu me declare negra, mas quero, para finalizar, pontuar dois deles: A cor da minha pele não me acarreta privilégios. Ao me olhar no espelho não consigo ver outra coisa se não uma mulher negra”. (Candidata ao curso de Engenharia Civil).

( ) Preto (X) Pardo ( ) Indígena

“Na condição de indivíduo que presencia, nos meios onde vive, a desigualdade social atrelada à cor da pele das pessoas, identifico-me como componente desse grupo pela origem étnica, pelo contexto social e pela busca por representatividade efetiva de cultura e direitos. O meu pertencimento advém, prioritariamente, à miscigenação inerente ao pardo: filha de mãe branca e pai pardo (cuja cor de pele é mais escura que a minha), sou descendente de uma família paterna predominantemente preta e parda provinda, inclusive, de antepassados escravos. Soma-se a isso outros aspectos característicos, como cabelos cacheados, boca mais grossa etc. Acrescenta-se ao reconhecimento de pertencimento ao meio social onde vivo (e sempre vivi), visto que é composta, em maior parcela, por negros, fazendo com que se estabeleçam laços de identificação.

Assim, como alguém oriunda da periferia, vejo-me com outros de mesma etnia compartilhando muitas dificuldades sociais, fruto da marginalização histórica de pretos e pardos. Desse modo, meu pertencimento também encontra-se na busca cotidiana em vencer as adversidades étnico-sociais, como a valorização cultural e a tentativa de tornar a minha presença, um componente negro, mais constante a fim de aumentar a representatividade, como fazer o ensino superior.” (Candidata ao Curso de Medicina).

Neste último caso é interessante notar que a categoria ‘negro’ acionada nessas narrativas está atualizada contemporaneamente em seus significados políticos, em consonância com os segmentos do Movimento Social Negro para classificar os não-brancos. Ao contrário da categoria ‘pardo’ que sofreu uma espécie de clivagem semântica e ainda remete a teorias raciais do século XIX, a categoria política ‘negro’, ainda que não seja consensual, refere-se à população não-branca sem considerar o caleidoscópio melanodérmico, sintomático dos processos eugenistas de branqueamento (Schwarcz, 1993SCHWARCZ, Lilia K. M.. 1993. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e pensamento racial no Brasil: 1870-1930. São Paulo, Companhia das Letras.; 2012SCHWARCZ, Lilia K. M. 2012. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma.) que se alastram no país.

A categoria ‘negro’, ainda que inventada pelo Ocidente (Appiah, 1997APPIAH, Kwame Anthony. 1997. Na casa de meu pai. Rio de Janeiro: Contraponto.), tem sido ressignificada através do tempo. Se no período escravocrata a categoria negro se constituiu como sinônimo de ‘escravo’ - a historiografia demonstra que os europeus diferenciavam os povos indígenas ‘negros da terra’, dos africanos ‘negros’ - e que esta classificação trouxe efeitos significativos para as mentalidades coloniais, já que

Desde que foram empregadas as noções de “brancos” e “negros”, para nomear genericamente os colonizadores, considerados superiores, e os colonizados, os africanos foram levados a lutar contra uma dupla servidão, econômica e psicológica. Marcado pela pigmentação de sua pele, transformado em uma mercadoria entre outras, e destinado ao trabalho forçado, o africano veio a simbolizar, na consciência de seus dominadores, uma essência racial imaginaria e ilusoriamente inferior: a de negro. Este processo de falsa identificação depreciou a história dos povos africanos no espírito de muitos, rebaixando-a a uma etno-história, em cuja apreciação das realidades históricas e culturais não podia ser senão falseada (M’Bow, 2010M’BOW, M. Amadou Mahtar. 2010. História Geral da África, I: Metodologia e pré-história da África. 2.ed. rev. Brasília: UNESCO.: XXII).

É possível perceber que, apesar dos esforços das pesquisas em Ciências Sociais de enfatizar o caráter político desta classificação, uma vez que

a categoria “negro” não é mais utilizada no interior da teoria sociológica para indicar uma condição essencial resultante da biologia. Entretanto, escritores de grande importância na formação do pensamento social brasileiro têm usado essa categoria para descrever as inadequações e aptidões históricas do povo brasileiro (Seyferth, 1989 e 1991 e Azevedo, 1987). No discurso sociológico encontra-se freqüentemente a idéia de que, como resultado da escravidão sofrida, os negros brasileiros desenvolveram certas capacidades e incapacidades que agem como uma segunda natureza. A esse respeito, Azevedo (1987) mostra que nem mesmo os sociólogos que revelaram o racismo brasileiro, escaparam da idéia de que “o negro” constitui uma categoria social mal adaptada à sociedade” (Suarez, 1992: 4).

Estudantes que se apropriavam de legislações ou o formato jurídico em suas argumentações:

(X) Preto ( ) Pardo ( ) Indígena

“Afrodescendência, visto que minha família é inteiramente constituída por negros. Além disso, apresento características físicas que comprovam meu pertencimento a este grupo. Assim sendo, torno-me responsável pela veracidade desta informação, de acordo com a lei n. 12.990. Ademais, faço parte da população negra do Brasil que a todo o momento é discriminada apenas pelas características étnico-raciais”. (Candidata ao curso de Medicina).

(X) Preto ( ) Pardo ( ) Indígena

“Declaro para todos os fins que sou negro, filho de pai branco com mãe negra, bisneto, por parte materna, de povo que foi escravizado. Nessa perspectiva, senti necessidade de também declarar meu pertencimento étnico-racial. Portanto, cabe reiterar que sou negro. Estou ciente de que, se for detectada falsidade estarei sujeito a penalidades legais, nos termos da legislação em vigor”. (Candidato ao curso de Serviço Social).

Estudantes que buscavam seus argumentos em teorias sociais:

( ) Preto (X) Pardo ( ) Indígena

“Me reconheço dessa forma e possuo fenótipos que comprovam. Mas mais que isso, SOUZA (1983)28 28 Não há a referência completa no texto, mas pela citação é possível identificar que se refere a SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. nos diz que ser negro no Brasil, é tornar-se negro. ‘é tomar posse dessa consciência e criar nova consciência que reassegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer tipo de exploração’. Desde sempre tive consciência da cor da minha pele e a amei, porém sinto que me tornei negra-parda, em sua plenitude, quando passei pela transição capilar e a partir daí, criei uma nova consciência. Passei a perceber que algumas ‘opiniões’ que me faziam mal, não passavam de marcas desse racismo tão enraizado e velado no Brasil. Com a nova consciência, aprendi a lutar constantemente. ‘Numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista’”. (Candidata ao curso de Direito).

Em função do local de origem:

( ) Preto ( ) Pardo ( X) Indígena

“Descendente de indígenas que se localizavam na fazenda xxxx, o último conhecimento é sobre xxxx, indígena adotado por religiosos ainda criança e posteriormente batizado, casado com uma nativa também de Itaboraí, tendo como filho meu bisavô, o xxx, homem do mato com características, totalmente nativa, e que ganhou esse nome em homenagem aos religiosos que cuidaram de seu pai. Em outra parte da família tenho minha avó xxxx, nascida em Belém e também descendentes de indígenas nativos do Pará, o que lhe confere também evidentes traços indígenas herdados por mim e toda minha família, principalmente minha mãe, que é facilmente perceptível tanto por fotografias29 29 O uso de fotografias para identificação dos candidatos às cotas foi objeto de controvérsia quando foi utilizado pela UNB. Ver Valente (2006). e pessoalmente. Sendo assim me reconheço como legítimo descendente.” (Candidato ao curso de História).

( ) Preto (X) Pardo ( ) Indígena

“Nasci de pai de origem ribeirinha e mãe de origem negra; desde pequena fui identificada como negra, tanto por meus familiares, quanto pela comunidade na qual cresci (bairro do Jurunas, periferia da cidade de Belém do Pará); tanto na identificação com a cultura e ancestralidade do povo Preto, quanto na discriminação ainda cotidiana para com as pessoas de cor neste país. Ressalto, ainda, a minha contínua luta em prol da população negra no país a qual me dedico, principalmente, por sentir na pele a opressão que nos acerca de todos os dias.” (Candidata ao curso de Cinema e Audiovisual).

Um dado interessante em relação aos candidatos que declaravam uma ascendência indígena é que quase ninguém marcava esta opção dentre os candidatos da UFF, preferindo indicar o pardo e relatar no texto essa “origem”, independente da nacionalidade, já que houve casos de filhos de bolivianos e peruanos que acionaram essa opção identitária.

O DESAFIO DE “SER PARDO”

Desde 2017 o debate sobre a questão da “fraude” se institucionalizou nas universidades, com audiências públicas, seminários e mobilizações sobre a questão. Embora a mobilização dos coletivos negros seja anterior a está data, a Recomendação do Ministério converteu-se numa imposição já que, segundo o Portal da Transparência:

As recomendações são documentos emitidos pelos membros do MPF a órgãos públicos, para que cumpram determinados dispositivos constitucionais ou legais. As recomendações são expedidas para orientar sobre a necessidade de observar as normas e visam à adoção de medidas práticas para sanar questões pelo órgão competente. A adoção da recomendação pelo seu destinatário pode evitar que ele seja acionado judicialmente (http://www.transparencia.mpf.mp.br/conteudo/atividade-fim/recomendacoes-expedidas, acesso em 12 de março de 2018 - grifos nossos).

Um ponto importante sobre as supostas “fraudes” é que foram poucos os casos assim classificados. No universo de matrículas em todo território nacional foram 595 casos investigadas em 21 universidades (dados divulgados pelo Governo Federal)30 30 Ver: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,13-das-federais-tem-denuncia-em-cota-racial-governo-quer-avaliacao-visual,70002147782. Acesso 20 de janeiro de 2018 . Pela atuação nas bancas optamos por classificá-las de duas formas, a partir da percepção dos que participaram do processo. O que é entendido como “má-fé” corresponde aos casos de pessoas consideradas “brancas” fenotipicamente, com sinais diacríticos de classe média, que aspiravam se beneficiar das ações afirmativas, às vezes, se utilizando de subterfúgios como bronzeamento, artificial ou natural, bem como uso de permanente afro no cabelo. Contudo, esses estratagemas eram percebidos devido a outras características além da cor da pele e esses candidatos eram considerados não aptos.

Os casos que eram designados como “dificuldade de autodeclaração” são aqueles fruto da confrontação o de autorrepresentação. Aquelas pessoas que não sendo ‘pretas’ - ou não se enxergando como tal - nem sendo ‘brancas’, encontram-se numa espécie de limbo racial dos pardos/as e, por não terem nunca antes refletido sobre sua pertença étnico-racial, não se sentem confortáveis no momento da autodeclaração e como também não se veem ‘encaixadas’ em nenhuma das classificações propostas. Eram essas pessoas que perguntavam aos professores presentes como deveriam se declarar. Este limbo racial que gera dúvida tanto em quem se autodeclara, como em quem está no lugar de heteroclassificar, nem sempre é percebido com uma “dúvida verdadeira”, por parte do candidato, mas como uma tentativa de burlar a banca e conseguir a tão sonhada vaga. Compreendemos que o que se chama de “dificuldade de autodeclaração” é fruto da discrepância histórica que temos no nosso sistema de classificação étnico-racial e também pelas discussões recentes no Brasil acerca das políticas de Ações Afirmativas - o que exige debates extramuros acadêmicos com a sociedade para que possamos aprimorar não só as análises, como também os mecanismos de inclusão das populações que foram sistematicamente excluídas das oportunidades que os grupos hegemônicos possuem. Salientamos que a ideia de um “sistema misto de identificação racial” proposto pelo Ministério Público Federal traz novas dificuldades a esse cenário ao introduzir desigualdades de tratamento aos pardos, em oposição à ideia presente no Estatuto da Igualdade Racial, que é “superar as desigualdades étnicas existentes” (art. 47) e a “valorização da igualdade étnica” (art. 3). T

Durante o processo de matrícula 2018.1 as bancas foram formadas de maneira heterogêneas, respeitando um equilíbrio de gênero, na medida do possível. Entretanto, tivemos casos em que membros da banca afirmaram “só aprovo aqueles que forem pretos como eu ou mais pretos do que eu”, enquanto outro disse “tenho muita dúvida se ele realmente não é pardo, já que não tendo características fenotípicas, é visivelmente mestiço de cor”. Trazemos essas frases para exemplificar quão com- plexo é o processo de heteroidentificação, tão subjetivo quanto a autoclassificação.

Nosso entendimento é o de que não cabe a universidade a realização de “tribunais raciais” ou a reprodução de práticas repressivas, as quais as populações negras e indígenas têm sido submetidas historicamente. Esta nossa percepção sobre a questão dos pardos está em consonância com o entendimento da Associação Brasileira de Antropologia - ABA que, em 201631 31 Ver: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,13-das-federais-tem-denuncia-em-cota-racial-governo-quer-avaliacao-visual,70002147782. Acesso 20 de janeiro de 2018 , emitiu uma carta de repúdio sobre as recomendações do Ministério Público Federal:

(...) a questão da cor ou raça se imbrica profundamente com construções individuais e coletivas de caráter identitário que vão muito além das características físicas e, portanto, da avaliação externa que qualquer comissão possa vir a aferir. No cenário atual de enfrentamento das desigualdades raciais no Brasil, nossa posição é que a autodeclaração, livre de suspeições e ameaças, deve ser o critério principal e norteador (ABA, 2016).

Lamentavelmente este debate se faz necessário tendo em vista que o MPF e o MPOG oficializaram como mecanismos de identificação dos candidatos às cotas - fotografia e autodeclaração - como recurso para matrícula na universidade. Nesse sentido a crítica feita em 2004, para o caso da UNB, segue atual, já que constitui um constrangimento “ao direito individual da livre autoidentificação, submetendo aqueles aos quais visa beneficiar, a critérios autoritários, sob pena de se abrir caminho para novas modalidades de exceção atentatórias à livre manifestação das pessoas” (Valente, 2016VALENTE, Ana Lúcia. 2006 “A “Má Vontade Antropológica” e as Cotas Para Negros nas Universidades (ou usos e abusos da Antropologia na pesquisa educacional II: Quando Os Antropólogos Desaprendem)”. InterMeio, 12 (24), 84-103.: 86-87), desconsiderando toda produção conceitual das Ciências Sociais retomamos uma discussão sobre temas do século XIX - eugenia, mestiçagem, descendência.

Desde o clássico texto de Oracy NogueiraNOGUEIRA, Oracy. [1954] 2006. “Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: Sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil”. Tempo Social, 19 (1), 287-308. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-20702007000100015.
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, “Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem” (1954) que está colocada a dimensão relacional das discussões sobre as relações raciais no país, desmontando o mito da miscigenação e democracia racial, instituído por Casa Grande & Senzala (Freyre, 1933FREYRE, Gilberto. [1933] 2004. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 49ª Ed. São Paulo: Global.).

Há que se considerar, porém, que parte dos estudantes provenientes do ensino médio ainda chega à universidade acreditando no ‘mito das três raças’ (Da Matta, 1981DA MATTA, Roberto. 1981. Relativizando: Uma Introdução à Antropologia Social”. Petrópolis: Vozes.) e no ‘mito da Democracia Racial’ (Guimarães, 2001GUIMARÃES, Antonio Sérgio A. 2001. “Democracia Racial - o ideal, o pacto e mito”. Novos Estudos, 61 (3), 147-162.), porque ainda são conteúdos ensinados nas escolas. Muitos só terão acesso aos debates mais politizados dos movimentos negros quando se inserirem na universidade, outros nem serão afetados por esse debate.

É preciso se considerar que as políticas de identidade no Brasil, apesar de seguirem em compasso com aquelas que foram propostas a partir da redemocratização da América Latina, apresentam substancial diferença porque dissociadas, no senso comum, das políticas de enfrentamento às desigualdades raciais. Para Guimarães (2004)GUIMARÃES, Antonio Sérgio A. 2001. “Democracia Racial - o ideal, o pacto e mito”. Novos Estudos, 61 (3), 147-162., isso aconteceu porque aqui o foco das políticas de identidade teve a desigualdade racial (que Nogueira classificou como “racismo de marca”) como chave para o desenvolvimento dessas políticas. As análises de Guimarães apontam que as políticas de identidade possuem duas vertentes distintas e complementares: uma que atua na garantia da diversidade cultural dos negros e indígenas, com intuito de preservar e valorizar suas práticas; outra que é o enfrentamento à discriminação racial (fenotípica) perpetrada aos indivíduos. Não distinguir esses processos pode afetar diretamente o processo de universalização de direitos. O autor aponta ainda que, nos anos 1980, a “democracia racial” tornou-se a principal arma ideológica dos negros para ampliar sua participação na sociedade brasileira. É preciso lembrar ainda que foi o debate para a Constituição de 1988 que, ao visibilizar os debates sobre o racismo e a desigualdade racial, trouxeram as políticas identitárias para o espaço público, legitimando a luta pela defesa dos territórios quilombolas e indígenas.

Outro momento crucial sobre os efeitos dessas políticas, na virada do século XX para o XXI, relaciona-se às discussões sobre a implantação das cotas raciais nas universidades públicas. Naquele período, a discussão sobre as políticas de identidade incorporou questões relativas à igualdade e privilégio, além do conceito de racialização ou racismo reverso (Fry, 1996FRY, Peter. 1996. “O que a cinderela negra tem a dizer sobre a “política racial” no Brasil”. Revista USP, 28, 122-135. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i28p122-135
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; 2006FREYRE, Gilberto. [1933] 2004. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 49ª Ed. São Paulo: Global.; Maggie, 2008MAGGIE, Yvonne. 2008. “Pela igualdade”. Estudos Feministas, 16 (3), 897-912. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2008000300011.
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). Neste período o debate sobre as políticas para negros e indígenas extrapolou os limites acadêmicos, tornando-se de interesse do público (Daflon, Feres Júnior e Campos, 2013DAFLON, Verônica Toste; FERES JÚNIOR, João e CAMPOS, Luiz Augusto. 2013. “Ações Afirmativas Raciais no Ensino Superior Público Brasileiro: um panorama analítico”. Cadernos de Pesquisa, 43 (148), 302-327. DOI: https://doi.org/10.1590/S0100-15742013000100015.
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; Feres Júnior, Daflon e Campos, 2012FERES JÚNIOR, João; DAFLON, Verônica Toste e CAMPOS, Luiz Augusto. 2012. “Ação afirmativa, raça e racismo: uma análise das ações de inclusão racial nos mandatos de Lula e Dilma”. Revista de Ciências Humanas, 12 (2), 399-414.; Santos, 2012SANTOS, Jocélio Teles dos. 2012. “Ações afirmativas e educação superior no Brasil: um balanço crítico da produção”. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 93 (234), 401-422. https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.93i234.447.
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; Souza Lima, 2018SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. 2018. “Ações afirmativas no ensino superior e povos indígenas no Brasil: uma trajetória de trabalho”. Horizontes Antropológicos, 24, 377-448. https://doi.org/10.1590/s0104-71832018000100013
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).

Hoje, com a política de cotas para negros e indígenas sendo adotada por todas as universidades públicas do país - uma conquista para toda sociedade - as discussões se voltam para dois aspectos fundamentais e caros para a Antropologia: o que é fraude, do ponto de vista da identidade, e como garantir critérios objetivos de heteroidentificação aos ‘pardos’? De que modo os efeitos de uma política que produz uma identidade negativa - “não branco” e “não preto” - podem resultar na exclusão da formação universitária? Julgamos ser relevante aqui lembrar o impacto das ações de suporte e indução qualificada de estudantes indígenas de que nos fala Souza Lima (2015)SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. 2015 “Sobre tutela e participação: povos indígenas e formas de governo no Brasil, séculos XX/XXI”. Mana, 21, 425-457. https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n2p425
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, como parte de um processo de luta política como uma condição que afeta diretamente os processos de redefinição das relações entre povos indígenas e Estado. Se a exclusão dos estudantes pardos (de pele mais clara) pode resultar na sobra de vagas nas universidades públicas por que tirá-los do processo seletivo, se a legislação lhes garante esse direito?

A confusão produzida e institucionalizada por decisões administrativas e o desenvolvimento de novas tecnologias de controle das populações negras e indígenas está longe de ter fim. Neste cenário, tememos que esta controvérsia possa ser utiliza- da como um argumento para por fim às ações afirmativas, principalmente diante dos retrocessos (políticos, econômicos e sociais) que experimentamos enquanto assistimos (bestializados) a ascensão de um modelo fascista de governança do país, que se dá pela manifestação de ideias binárias, que propugna o fim da ciência, onde não há espaço para debates nem reflexões. Neste campo, a propaganda para o ENEM-2020, produzida pelo Ministério da Educação onde nenhum negro/a foi representado, é indicativo do grau de exclusão e desmonte aos quais as Políticas de Ação Afirmativa estão sujeitas. Do mesmo modo a manutenção da data da prova, num momento de pandemia, quando se sabe que os estudantes de classes mais desfavorecidas não têm acesso a internet, nem computadores, para prosseguir com aulas à distância.

Quando deveríamos estar discutindo ações que favoreçam a permanência dos estudantes beneficiados pela política pública de ação afirmativa; analisando o impacto das modalidades diferenciadas de bolsas, voltadas à permanência e as de pesquisa (Silva, 2019SILVA, Guilherme Henrique Gomes da. 2019. “Um panorama das ações afirmativas em universidades federais do sudeste brasileiro”. Cadernos de Pesquisa , 49 (173), 184-207. https://doi.org/10.1590/198053145665
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); a expansão das ações afirmativas na pós-graduação, que ainda é uma ação tímida no contexto nacional; seguimos presos em controvérsias que opõe Estado (Ministério Público/Ministério do Planejamento) contra Estado (as universidades), numa arena já complexa devido às demandas dos movimentos sociais, onde também há conflitos, já que os argumentos “coloristas” (apenas os negros de ‘pele escura’ devem ser beneficiados pelas cotas) não representam um consenso nos movimentos negros e têm servido para hierarquizar os negros, ao falar em “privilégios” quando se dirigem às pessoas negras de “pouca tinta”, quando poderíamos discutir a ampliação de mecanismos de garantia de direitos. Se os con- textos de oportunidades e discriminação são distintos para os de pele mais clara em relação aos de pele mais escura é um fato, não se pode esquecer que o racismo nunca foi aplicado de forma igual em nenhuma sociedade, nem por isso deixou de produzir efeitos perversos.

Talvez fosse o caso de lembrar de Pierre Bourdieu (1996BOURDIEU, Pierre. 1996. “Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático”. In: BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas. Campinas: Papirus.), que dizia que quando se trata do Estado nunca duvidamos demais, e concluir perguntando se não estamos procurando a “fraude” no lugar errado? Será que o problema não está nos termos da Lei de Cotas, que não deixa claro qual é a política racial que se pretende, em vez de pressupor que quem acessa o sistema de cotas é o culpado por insucessos dessa política? Guimarães (2006) nos alerta sobre a grande expectativa em relação aos efeitos das políticas afirmativas para “resolver” as desigualdades, sociais ou raciais. Mesmo não se constituindo em políticas revolucionárias, ele nos lembra do quanto podem impactar para a construção de certo equilíbrio de forças no enfretamento das políticas de monopólio, instauradas pela casa grande, abrindo uma perspectiva de construção de novas interações pós-coloniais.

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  • 1
    Uma primeira versão desse texto foi apresentada no Open Panel 23. Anthropology of contemporary states: institutions of public administration, population management and symbolic production of state centrality, durante o 18º Congresso Mundial da IUAES. Agradecemos os comentários de Antonio Carlos de Souza Lima e Laura Belén Navallo Coimbra.
  • 2
    Em 2012 a taxa do RJ era 34,8%. Ver dados do https://www.observatoriodopne.org.br/indicadores/metas/12-ensino-superior/indicadores, acesso em 10 de setembro de 2020.
  • 3
    Foge ao escopo desse artigo uma revisão bibliográfica sobre os debates nesse campo, optamos apenas por destacar as questões que se relacionam com os dados empíricos que foram construídos a partir de nossa inserção na produção da política pública, com destaque para a necessidade de rediscussão do lugar do “mestiço” (o “pardo”) como parte de uma identidade racial comparada e sua relação com o movimento negro (Carneiro, 2004CARNEIRO, Sueli. 2004. Negros de pele clara. https://www.ceert.org.br/noticias/genero-mulher/13570/sueli-carneiro-negros-de-pele-clara. Acesso em 29 de março de 2020.
    https://www.ceert.org.br/noticias/genero...
    ; Pereira, 2020PEREIRA, Luena Nascimento Nunes. 2020. “Alteridade e raça entre África e Brasil: branquidade e descentramentos nas Ciências Sociais brasileiras”. Revista de Antropologia, 63 (2), 1-14. http://dx.doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2020.170727
    http://dx.doi.org/10.11606/2179-0892.ra....
    ).
  • 4
    A obrigatoriedade das cotas nas universidades públicas federais só ocorreu quando da publicação da Lei nº 12.711/2012, conhecida como “Lei das Cotas”. Salientamos que a referida legislação não menciona as possíveis situações de fraude.
  • 5
    A sede da universidade fica em Niterói, as demais unidades se encontram em Angra dos Reis, Campos dos Goytacazes, Macaé, Nova Friburgo, Petrópolis, Rio das Ostras, Santo Antônio de Pádua, Volta Redonda.
  • 6
    A autora fora convidada pelo reitor para assumir a função após implantar as cotas na pós-graduação na Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-graduação e Inovação, como coordenadora dos programas de pós-graduação da universidade, bem como ter participado como membro do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFF de uma comissão que avaliou os recursos dos candidatos no primeiro processo seletivo após a aplicação das comissões. Com o fim do mandato do reitor, ela sugeriu a nova gestão que o professor Rolf fosse convidado, já que participara dos processos ao longo do primeiro ano e por ser docente de uma unidade fora de sede (Santo Antônio de Pádua-RJ), com demandas e características típicas da interiorização da universidade.
  • 7
    Em março de 2018 o MPF ampliou sua recomendação para todas as universidades federais. Ver http://www.mpf. mp.br/rj/sala-de-imprensa/noticias-rj/mpf-rj-quer-adocao-de-controle-previo-para-ingresso-nas-cotas-raciais-em-universidades-publicas, acesso em 12 de março de 2018
  • 8
    Destaca-se aqui a atuação do grupo Educafro (Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes), que apresentou à CDH sugestão de projeto de lei para tornar mais rigorosa a punição dos infratores.
  • 9
    Destaca-se a participação do diplomata Jackson Luiz Lima Oliveira, que defendeu a adoção de regras complementares à autodeclaração, como a apresentação de foto e a realização de entrevista para os que quiserem se beneficiar da política de cotas. Ele defendeu também que a decisão da comissão verificadora deveria ser sempre unânime. Para ele, a unanimidade de uma banca única, somado aos mecanismos de entrevista e a redação sobre e experiência pessoal, poderia evitar as fraudes. Ver: http://concursos.correioweb.com.br/app/noticias/2015/09/30/noticiasinterna,35608/fraude-nas-cotas-raciais-pode-se-tornar-crime-previsto-no-codigo-penal.shtml e https://www12.senado.leg.br/cidadania/edicoes/522/desde-antes-das-cotas-bolsa-busca-garantir-disputa-justa, acesso em 05 de junho de 2018.
  • 10
    De acordo com Anjos (2013DOS ANJOS, Gabriele. 2013. “A questão sobre “cor” ou “raça” nos Censos nacionais”. Indicadores Econômicos FEE, 41 (1), 103-118.: 104) “para os militantes do Movimento Negro trata-se de uma categoria intermediária entre ‘branca’ e ‘preta’, que abre aos respondentes a possibilidade de declaração de uma cor mais clara ou ‘branqueamento’ nas respostas (Marx, 1998, p. 163). Ela promoveria uma negação da ‘negritude’ e dificultaria a criação de uma identidade comum entre os ‘não brancos’ (Loveman; Muniz; Bailey, 2011, p. 4; Marx, 1998, p. 254; Munanga, 2008; Skidmore, 1992a, p. 13). Para os cientistas sociais, a tríade é questionada por (a) impedir a observação e o estudo das desigualdades entre brancos e não brancos (Wood; Carvalho; Horta, 2010, p. 123); e (b) estar ligada a uma interpretação das relações raciais brasileiras segundo a qual o ‘pardo’ ocuparia uma posição social intermediária que mitigaria as diferenças entre brancos e pretos (Bailey; Loveman; Muniz, 2013; Marx, 1998, p. 67; Skidmore, 2001, p. 65). Além disso, os próprios termos usados para classificação são criticados por alguns autores, por (c) não condizerem com as categorias utilizadas pela população (Bailey; Telles, 2002, p. 3; Loveman; Muniz; Bailey, 2011, p. 3). Enquanto a categoria ‘parda’ captura todos os que não se enquadram nas outras categorias, e abarca todas as categorias mistas e intermediárias, ela não seria usada pela maior parte da população, que parece preferir a categoria ‘morena’, apenas parcialmente ligada à miscigenação (Bailey; Telles, 2002, p. 6-7; Loveman; Muniz; Bailey, 2011, p. 4; Telles, 2011, p. 13)”.
  • 11
    Entendida como “uma forma de ‘incerteza compartilhada’, ou seja, uma série de ‘situações nas quais os atores estão de acordo de que discordam entre si’ (...) trata-se de compreender como um conjunto de fatos é reunido em um debate público, quais os processos de tradução que transformam o sentido da linguagem ordinária em um problema social” (Montero, 2012MONTERO, Paula. 2012 “Controvérsias religiosas e esfera pública: repensando as religiões como discurso”. Religião e Sociedade, 32 (1), 167-183. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-85872012000100008.
    http://dx.doi.org/10.1590/S0100-85872012...
    : 178).
  • 12
    Ainda que a produção bibliográfica sobre raça tenha sido fundante da Antropologia no Brasil, as discussões e acúmulos teóricos ainda hoje estão restritas a alguns setores dos movimentos sociais e poucos grupos de pesquisas das Ciências Sociais. Pode-se afirmar que o tema sob uma perspectiva crítica não faz parte do cotidiano das universidades, salvo em eventos que não resultam em políticas internas.
  • 13
    Para uma discussão sobre formas de intolerância e discriminação ver Miranda (2018)MIRANDA, Ana Paula Mendes de. 2018. “Intolerância Religiosa e Discriminação Racial: duas faces de um mesmo problema público?”. In: SOUZA LIMA, Antonio Carlos de et al. (orgs.). A antropologia e a esfera pública no Brasil: Perspectivas e Prospectivas sobre a Associação Brasileira de Antropologia no seu 60º Aniversário. Rio de Janeiro: ABA/E-papers..
  • 14
    A RE diz respeito a ação impetrada por um estudante questionava os critérios adotados pela UFRGS para reserva de vagas. A universidade destinava 30% das 160 vagas a candidatos egressos de escola pública e a negros que também tenham estudado em escolas públicas (sendo 15% para cada), além de 10 vagas para candidatos indígenas. Ver: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=207003. Acesso em 07 de julho de 2018.
  • 15
    Regents of the University of California versus Bakke (1978). Allan Bakke, um branco que se candidatou à Faculdade de Medicina, acionou a Justiça contra a Universidade da Califórnia.
  • 16
    Categoria utilizada pelo Movimento Social Negro que identifica o indivíduo com grande concentração de melanina na pele que, no entendimento do grupo identificado como “colorista”, deveria ser o público alvo dessas políticas (Almeida, 2015ALMEIDA, Rosiane Rodrigues. 2015. Quem foi que falou em igualdade?. Rio de Janeiro: Autografia.).
  • 17
    A estudante entrou com recurso administrativo na universidade e foi aprovada.
  • 18
    Faz-se necessário esclarecer que os autores não participaram desse processo, tampouco da definição desses critérios.
  • 19
  • 20
    Os candidatos indígenas bastar fazer a apresentação do Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (RANI) ou de documento comprobatório emitido por autoridade indígena.
  • 21
    “Considerando, no entanto, que a autodeclaração não é critério absoluto de definição da pertença étnico-racial de um indivíduo, devendo, notadamente no caso da política de cotas, ser complementado por mecanismos heterônomos de verificação de autenticidade das informações declaradas, tendo o STF, no julgamento da ADPF 186, se pronunciado especificamente sobre a legitimidade do sistema misto de identificação racial” (Recomendação do Ministério Público, nº 41/2016).
  • 22
    Caso essa etapa seja institucionalizada como uma prova estará se produzindo uma situação de estudantes “pré-cotistas” ou “aspirantes a cotistas”, criando um lugar de liminaridade quando se deveria promover processos de inclusão.
  • 23
    A comissão recursal era composta por pessoas que não participaram dos processos de ingresso. Eles tinham acesso aos documentos dos (as) candidatos (as) e ao recurso, escrito de próprio punho pelo (a) candidato (a). A análise dos recursos é um processo que também merece ser discutida, mas ficará para outra oportunidade.
  • 24
    Num momento de corte de recursos financeiros nas universidades é relevante destacar que para atender toda universidade esse processo teve um custo de aproximadamente R$ 300.000,00, incluindo despesas com deslocamento e diárias para os integrantes das bancas. Aqui estão incluídos também as comissões referentes a outras ações afirmativas da universidade.
  • 25
    A expressão foi utilizada pela primeira vez pela Folha de São Paulo, em um editorial sobre as cotas a partir do caso da UNB, em 11/04/2004. O debate sobre as comissões a expressão voltou a ser usada, agora com mais um sentido. Há quem afirme que são estratégias da “burocracia universitária” para impedir o ingresso dos estudantes negros.
  • 26
    Todos os nomes citados foram suprimidos para manter o anonimato dos (as) estudantes.
  • 27
    O candidato pediu que sua autodeclaração fosse divulgada, porque tem orgulho de sua identidade. Optou-se por manter sua identidade oculta, já que os demais não serão apresentados.
  • 28
    Não há a referência completa no texto, mas pela citação é possível identificar que se refere a SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
  • 29
    O uso de fotografias para identificação dos candidatos às cotas foi objeto de controvérsia quando foi utilizado pela UNB. Ver Valente (2006)VALENTE, Ana Lúcia. 2006 “A “Má Vontade Antropológica” e as Cotas Para Negros nas Universidades (ou usos e abusos da Antropologia na pesquisa educacional II: Quando Os Antropólogos Desaprendem)”. InterMeio, 12 (24), 84-103..
  • 30
  • 31
  • Financiamento

    Universidade Federal Fluminense.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2020
  • Aceito
    22 Jun 2020
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