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Ritual, emoções e engajamento militante: a produção em ato da mística na romaria dos mártires da floresta em Nova Ipixuna/PA

Ritual, emotions and activist commitment: the live production of the mística in the martyrs of the forest’s pilgrimage in Nova Ipixuna, Pará

RESUMO

Todos os anos, na região do sudeste do estado do Pará, atores engajados na mobilização social em torno da reforma agrária e da defesa da floresta participam de uma romaria em memória de duas lideranças assassinadas em um assentamento agroextrativista. Trata-se de um momento de produção intensa de emoções que compõem junto com outros elementos a mística, termo local que, em sua acepção ampla, significa a motivação de agir para o engajamento militante. Busco descrever os çagenciamentos operados durante o ritual (dispositivo de sensibilização) que permitem a emergência e a circulação de emoções, tais como indignação, revolta, alegria, comunhão, esperança, e sua incidência para renovar o engajamento na comunidade instaurada pela mobilização. O material empírico advém de uma etnografia que realizo desde 2014 sobre o trabalho militante da Comissão Pastoral da Terra na região.

PALAVRAS-CHAVE:
Ritual; emoções; engajamento; mobilização; mística

ABSTRACT

Every year, in the southeastern region of the state of Pará, actors engaged in social mobilization around land reform and environmental rights, participate in a pilgrimage in memory of two leaders murdered in an agroextractive settlement. It is a moment of intense production of emotions that together with other elements compose the mística, a local term that, in a broad sense, means the motivation for activism. I aim to describe the agencies occurring during the ritual that allow the emergence and circulation of emotions, such as indignation, revolt, joy, communion, hope, and their impact to renew the commitment among members of the community established by the mobilization. The empirical material comes from an ethnography carried out since 2014 on the activist work of the Pastoral Land Commission in the region.

KEYWORDS:
emotions; commitment; mobilization; mística

INTRODUÇÃO1 1 Dedico este artigo a todos os atores da mobilização social no sul e sudeste paraenses, que, no enfrentamento, dedicam-se há anos pela partilha democrática da terra.

Desde 2014, quando comecei a realizar uma pesquisa de campo sobre a configuração dos conflitos de terra no sul e sudeste do Pará, a partir de casos acompanhados pelos agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Marabá e de Xinguara, percebi a importância que os atores envolvidos no processo de mobilização social em torno da redistribuição de terras e defesa do meio ambiente conferem a rituais que celebram a memória de lideranças rurais assassinadas dentro do contexto de conflitos fundiários e ambientais.

Esses rituais são ações coletivas inscritas num certo calendário de mobilizações, acontecem com regularidade e sem interrupções a cada ano, reúnem representantes de diferentes movimentos sociais, com graus variados de engajamento nas etapas de preparação e realização, e adotam conteúdos (temas, lemas, reivindicações, entre outros) que variam no tempo mais do que as formas (marchas ou caminhadas, bloqueios de estrada, etc.). Podem contar, ou não, com a participação de atores vinculados a agências públicas estatais ou para-estatais, já que o ato comunicativo que eles performam se endereça muito mais aos membros dessa comunidade de atores envolvidos na mobilização social pela reforma agrária, do que a agentes externos.

Um indicador da importância desses rituais está não só no número de participantes que eles atraem, mas sobretudo na quantidade de energia, tempo e recursos - materiais e simbólicos - que os atores colocam em prática e destinam à sua realização. O curso da ação que culmina no ritual passa por um conjunto de atores e mediações, condensados em situações do tipo reuniões preparatórias, discussões, elaborações de projeto, visitas ao local, compra de materiais de infra-estrutura, realização de mutirões, divulgação, sensibilização, entre outras. Tudo o que, para meus interlocutores, está integrado no termo mobilização2 2 Utilizo itálico para conceitos êmicos e longas transcrições de entrevistas e registros do caderno de campo, aspas simples (‘x’), para problematizar termos, expressões e conceitos analíticos, e aspas duplas (“x”), para citar trechos de referências bibliográficas e relatos de meus interlocutores. : essa maneira de colocar em movimento ideias, pessoas, artefatos, para elaboração de uma causa, e através disso, produzir denúncia - aquilo que se faz para fora, definindo e dando os contornos de um problema público (Cefaï,1996CEFAÏ, Daniel. 1996. “La construction des problèmes publics. Définitions de situations dans des arènes publiques”. Réseaux (Paris, Impresso) 14(75), 43-66.) - e fazer memória - aquilo que se faz para dentro, os rituais celebrativos se destinando, propositadamente, mais à comunidade criada em torno da causa do que aos fora dela.

Dos atos-memória realizados, dois se destacam: o ato na “Curva do S” da BR 155, em memória do Massacre de Eldorado dos Carajás, organizado pelo MST-Pará, e o Ato-memória a José Claudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, em Nova Ipixuna (distante 205 km de Marabá), no Pará. Qualquer observador que chegue a essa região perceberá a recorrência de ações que buscam fazer memória, para além dos rituais. Faz-se memória por muitos meios: com os símbolos afixados nos espaços cotidianos de trabalho dos militantes, nas ações de conservação de arquivos e documentos, nas conversas informais, e na grande quantidade de encontros, assembleias e reuniões ao longo do ano, que contam com a participação dos agentes da pastoral da terra e de outros movimentos e organizações sociais, onde os momentos de mística costumam invocar o passado de lutas e a contribuição de outras lideranças, assassinadas ou não - mártires, na denominação local - para continuação do processo de mobilização social.

O que é menos evidente para um observador são os muitos sentidos e usos que a mística encerra para esses atores. Há dois sentidos mais claros, segundo meus interlocutores, principalmente os agentes da CPT: ela se refere tanto a um determinado momento celebrativo, que pode ser, por exemplo, uma encenação teatral, uma apresentação musical, ou a declamação de um poema, quanto, mais amplamente, à motivação de agir, ao que anima os militantes a se mobilizarem em torno da causa. Em determinadas situações comunicativas, alguns atores atribuem à mística a fonte de resiliência, de resistência, frente a dificuldades que se colocam ao engajamento em torno da reforma agrária, como ameaças de morte, agressões, expulsões, assassinatos e outras formas de violência. A mística, alimentando-se da memória de lutas, é, entre outras coisas, o que permite a continuidade da denúncia, mas é também a possibilidade para realização do anúncio3 3 Anúncio é outro termo êmico conceitual próprio da teologia da libertação, que, no entanto, não aparece em situações ordinárias de interação. Estámais presente em publicações formais, elaboradas por agentes de pastoral, especialmente os que têm formação bíblica. Não é frequentemente escutado em campo, portanto. Encerra o sentido de “utopia”. Revela o sentido escatológico do político (Rancière, 1990) presente nessa cosmologia. , a nova configuração social que se busca alcançar. A mística condensa, assim, diferentes temporalidades para ação: memória, atualização e projeto.

Considero que rituais que buscam fazer memória das lutas4 4 Luta, como termo êmico, jáencontrou muitas análises etnográficas. A de Comerford (1999) me parece pertinente para o sentidos que encontro em campo porque, tanto no campo dele, como no meu, luta possui uma conotação épica e ética que os atores empregam para o termo e das lideranças são momentos de particular interesse para o estudo da mística como teoria local do engajamento. Mas defendo que os compreendemos melhor se não forem completamente destacados das situações cotidianas do processo de mobilização social, ao qual eles se reportam. Ou seja, é preciso conciliar as dimensões ordinárias e extraordinárias da vida social. Como apreender os rituais nesse caso? As saídas propostas por Robbins (2015ROBBINS, Joel. 2015. “Ritual, value, and example: on the perfection of cultural representations”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 21 (S1),18-29. https://doi.org/10.1111/1467-9655.12163
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) de tomá-los como momentos de exemplaridade, que reúnem e salientam os valores que, dispersamente, e com variação de intensidade, orientam as condutas cotidianas, me parece útil até o momento para compreender essas situações no conjunto das ações de mobilização. Nesse sentido, Peirano (2016PEIRANO, Mariza. 2016. “Etnografia e rituais: relato de um percurso”. Anuário Antropológico (Brasília, Online), 41 (1), 237-248. https://doi.org/10.4000/aa.2011
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: 243) há mais tempo considera que “os elementos do ritual já existem em sociedade; eles surgem aí apenas reinventados, rearranjados e reforçados”.

Meu caso etnográfico é o ato-memória em homenagem a duas lideranças ambientalistas e da reforma agrária, assassinadas em maio de 2011, em Nova de Ipixuna, no Pará, José Claudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo. O caso teve grande repercussão nacional e internacional (Milanez, 2015MILANEZ, Felipe. 2015. A ousadia de conviver com a floresta: uma ecologia política do extrativismo na Amazônia. Coimbra, Tese de Doutorado, Universidade de Coimbra.). Desde maio de 2012, é feita, anualmente, sempre na mesma época, uma caminhada permeada com momentos celebrativos, por inciativa dos familiares e da Comissão Pastoral da Terra de Marabá, em parceria com outras organizações e movimentos sociais, dentro do assentamento onde eles viviam. Desde maio de 2016, o ato passou a se chamar “Romaria dos Mártires da Floresta”. Participo dessas ações desde 2014.

Busco compreender como a mística está presente nesse ritual, e como ela é produzida em ato. Para isso, parto do tripé goffmaniano de análise das interações, descrevendo os elementos de (i) dramaturgia, (ii) narrativa, e (iii) retórica, presentes na situação de co-presença aberta pelo ritual. Isso me permite lidar perfeitamente com a mística como cena (momento celebrativo) e como motivação para agir/ engajamento. Como cena, através da dimensão narrativa do que é encenado, do que se conta, e também da dimensão dramatúrgica, do modo como se é encenado, com que atores e quais materiais. Como motivação, através da dimensão retórica, dos motivos/valores/ ideias/razões/justificações pelos quais se encena. Essas dimensões estão sempre imbricadas nos rituais, e só para efeito de escrita e análise estão separadas.

No que se refere aos motivos que orientam a ação militante, a mística transmitida nos atos-memória ressalta os valores exemplares (Robbins, 2014ROBBINS, Joel. 2014. “Pluralismo religioso e pluralismo de valores”. Debates do NER (Porto Alegre, Online), 2 (26), 15-41. https://doi.org/10.22456/1982-8136.52034
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, 2015ROBBINS, Joel. 2015. “Ritual, value, and example: on the perfection of cultural representations”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 21 (S1),18-29. https://doi.org/10.1111/1467-9655.12163
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). Em outras palavras: a romaria procura oferecer a seus participantes a experiência de refletir e viver o mais intensamente possível valores que, no cotidiano do processo de mobilização, estão implícitos, ou apagados, ou mesmo descartados, face a outros valores e vocabulário de motivos que se impõem em situações corriqueiras. São momentos que permitem reordenar as justificações (Boltanski e Thévenot, 1991BOLTANSKI, Luc e THEVENOT, Laurent. 1991. De la justification. Paris, Gallimard) que fundamentam o engajamento numa luta, como a da reforma agrária.

A mística da mobilização, que o ato-memória/romaria ressalta, é comunicada, apreendida, e experimentada por meio das emoções. Isso significa que os valores, a motivação ética do agir militante, que ela veicula, são conhecidos e transmitidos, para a comunidade que se forma em torno da ‘mobilização social’, através dos afetos e emoções5 5 Assim como Lutz (2017), não faço distinção analítica forte entre ‘afetos’ e ‘emoções’. Além disso, minhas preocupações sobre o modo de agir ético dos militantes me levam a considerar que ‘valores’ e ‘emoções’ são transmitidos de forma combinada. Para a mesma hipótese, ver Didier Fassin (2009) e James Laidlaw (2017). . Os rituais, como momento de aprendizado e experimentação da mística, buscam todo o tempo suscitá-los, através de dispositivos de sensibilização (Simméant e Traïni, 2008TRAÏNI, Christophe e SIMMÉANT, Johanna. 2008. “Introduction: pourquoi et comment sensibiliser à la cause”. In TRAÏNI, C. (org.), Emotions...Mobilisatons!. Paris, Presses Sciences Po, pp. 11-34.): conjunto de suportes materiais (ornamentação, som/música, faixas, cartazes, camisetas, estandartes), encenações, histórias (narrativas), e retórica de motivos e justificações, que os militantes colocam em ação. Eles contribuem ao trabalho de elaboração de uma memória coletiva e formatação de comunidades imaginárias da ação coletiva (idem, ibidem).

Os elementos do ritual provocam reações afetivas e agem sobre os mecanismos de percepção, cognição e julgamento, predispondo aqueles que as experimentam ao engajamento, ou apoio à causa defendida. O que está em jogo é uma estética da persuasão (Meyer, 2018MEYER, Birgit. 2018. “A estética da persuasão: as formas sensoriais do cristianismo global e do pentecostalismo”. Debates do NER (Porto Alegre, Online), 19(34), 13-45. https://doi.org/10.22456/1982-8136.89858
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), ou seja, as formas utilizadas pelos atores para conhecer e experimentar o transcendente - no caso em tela, o conjunto de valores, motivações, ideias, justificações voltados para ação e condensados na mística. Os atores do processo local de mobilização rompem portanto com o dualismo rígido entre inteligível e o sensível: sabem muito bem que o agir ético é inseparável do estético, e nisso apontam para o que muitos trabalhos em antropologia vêm defendendo (Keane, 2008KEANE, Webb. 2008. “The evidence of the senses and the materiality of religion”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 14(S1),110-127. https://doi.org/10.1111/j.1467-9655.2008.00496.x
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; Lambek, 2000LAMBEK, Michael. 2000. “The Anthropology of Religion and the Quarrel between Poetry and Philosophy”. Current Anthropology, 41(3), 309-320. https://doi.org/10.1086/300143
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, 2013LAMBEK, Michael. 2013. “The value of (performative) acts”. Hau: Journal of Ethnographic Theory, 3 (2), 41-60. https://doi.org/10.14318/hau3.2.009.
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)

Pretendo descrever os elementos que compõem o dispositivo de sensibilização da romaria, no seu objetivo de fazer memória, sempre acompanhado do fazer denúncia. Começo por retraçar brevemente a história do ato, sua criação, estabilização da ‘forma’, transformação em romaria, partindo do relato de Claudelice, e das minhas observações em campo, ao longo de 4 anos (2014-2018). Depois, reservo um espaço para descrição de alguns momentos da romaria de 2017, e para discutir a partir do material como podemos apreender a produção da mística, por meio das emoções, quais emoções são privilegiadas, e por quê.

Este trabalho nasce de uma inquietação: estudos sobre rituais de mística (Bleil, 2012BLEIL, Susana. 2012. Vie et lutte des sans-terre au Brésil. Paris, Khartala.; Chaves, 2000CHAVES, Christine. 2000. A marcha nacional dos sem-terra. Rio de Janeiro, Relume-Dumará.; Souza, 2016SOUZA, Edimilson. 2016. “Crônicas da morte revividas na luta: uma etnografia da Romaria dos Mártires da Caminhada em Ribeirão Cascalheira (MT), Brasil”. Etnográfica (Lisboa, Online), 20 (2), 339-362. https://doi.org/10.4000/etnografica.4306
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, 2019SOUZA, Edimilson. 2019. A luta se faz caminhando. Campinas, Tese de Doutorado, Universidade de Campinas.), embora destaquem a importância das emoções, não fornecem informações etnográficas precisas sobre o seu agenciamento - a cadeia de interações através da qual são produzidas e a inscrição dos seus efeitos. Ao mesmo tempo, se a sociologia e antropologia política dos processos de mobilização social destacam o papel das emoções no agir político6 6 A bibliografia nacional e estrangeira éabundante, mas conheceu um interesse renovado na literatura anglo-saxã a partir da publicação de Goodwin, Jasper e Poletta (2001), como aponta Cefaï (2007, 2009) em sua vasta revisão bibliográfica, e Rezende e Coelho (2010). , é preciso multiplicar ainda descrições onde estejam mais evidentes os nexos entre materialidades, emoções e moralidades, bem como sua capacidade de agir em situações ordinárias ou em rituais (Laidlaw, 2017LAIDLAW, James. 2017. “Ethics / Morality”. In STEIN F. et al (org.) The Cambridge Encyclopedia of Anthropology. Disponível em: Disponível em: http://doi.org/10.29164/17ethics , acesso em 20.01.2020
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). Com todos os limites de um trabalho ainda em curso, esta é uma primeira tentativa.

O RITUAL E SUA HISTÓRIA: O ATO-MEMÓRIA SE TRANSFORMA EM ROMARIA

Em maio de 2018, quando estava em Marabá para fazer uma etapa da pesquisa de campo, de consulta aos arquivos da CPT, encontrei mais uma vez Claudelice, amiga generosa, irmã de José Claudio. Eu a conheci em 2014, à época da preparação do ato-memória, quando ele ainda não era romaria, e se chamava “A Floresta Vai Gritar!”. Vi Claudelice apresentar em diferentes reuniões um pequeno histórico dos atos realizados no assentamento, após o assassinato de seu irmão e de sua cunhada. Em sua casa, durante uma entrevista concedida a meu pedido, peço para ela retomar essa história:

[Começando pela] história deles inicialmente. As linhas de frente que eles atuavam eram direitos humanos e meio ambiente. Era a luta mais forte que eles travavam. (...). Inicialmente, eram atos-memoria. Eram importante isso, eram importante, mas parecia que precisava de mais alguma coisa. (...). Um dia, T. [agente da CPT] disse: “Clau, um ato é só um ato. Pode fazer num ano, mas não no outro”. (...). Então precisava sistematizar isso, fazer isso de forma mais certa. (...). O primeiro ano foi só no local do assassinato. Só família e amigos muito próximos. No segundo ano, não participamos, nem sei se teve ou não, a gente estava completamente perdido. A. [agente da CPT] me chamou lá e puxou a gente pra realidade: ‘pô, vai deixar se acabar?’. A casa do casal estava abandonada, e o local do assassinato tava perdendo característica, memória, enfim... A partir desse primeiro momento em que estava todo mundo abalado, e o segundo momento em que precisava fazer coisa melhor, houve um terceiro momento em que T. [agente da CPT] propôs para a família, se não seria interessante fazer uma romaria, porque eles eram católicos...

[Eu interrompo e pergunto]: Eles eram católicos?

[Claudelice]: Sim, respeitavam a fé, mas é claro que não eram aqueles católicos de ir na missa todo domingo...[risos]. Falei que de minha parte tudo bem, mas eu nunca tinha participado de uma romaria. A Laísa [uma das irmãs de Maria do Espírito Santo] pediu para falar com a família dela porque eles são adventistas; Laísa não se sentiu à vontade para decidir sozinha... Inclusive sendo de uma religião que não aceita nada disso...Eles [Zé Claudio e Maria] aceitariam, se fossem consultados, para fazer romaria. (...). Algumas pessoas questionaram romaria. Não acreditavam que era interessante fazer romaria. Deveria continuar ato. Mas tem um detalhe: nos últimos anos de vida deles, [eles] só tiveram apoio da CPT, uma entidade ligada à Igreja, que tem bases de ação, de trabalho, muito parecida com as que eles desenvolviam...bases ideológicas... Foram os apoiadores dos últimos anos de vida deles. Tu vai fazer o quê? Vai ficar com os parceiros, ou vai dar ouvido, por mais que os parceiros...

[Eu interrompo mais uma vez, e pergunto]: Que tipo de apoio, Clau?

[Claudelice]: Orientação...quando eles estavam ameaçados, era a CPT que fazia denúncia, colocava no caderno de conflitos. (...). A gente vai ouvir quem mais ajuda e quem mais contribuiu. E contribuiu muito! [ênfase no ‘muito’]. Embora no primeiro ano houvesse esses questionamentos, não eram assim muito também...

[Eu interrompo, e pergunto]: De onde vieram os questionamentos?

[Claudelice]: Mais de alguns movimentos que não acreditam nesse negócio de fé e luta. (...). Todos os anos a gente faz conforme a Campanha da Fraternidade. E casa completamente! É incrível! (...). É uma caminhada, e tem a coisa das paradas. E cada parada tem um significado pra nós. A gente vai fazer romaria, com o povo rezando? Não! Vai ter cantos, celebrações, mas vai ter denúncia! Jesus fazia isso nas suas andanças... A gente casou as duas coisas: a romaria com a luta; com um assunto que a gente escolhe no ano. (...) A gente termina na casa do casal com um sentimento de esperança, celebrando sempre a vida. Acho que as pessoas que vão pra romaria, vão porque se identificam com a luta, ou por questão de fé. Algumas pessoas vão por causa das duas coisas.

[Eu]: Clau, e a história dos nomes dos atos?

[Claudelice]: Se você pegar as fotos, você vai ver nas faixas: “A floresta chora”. Depois do choro, você quer gritar, não quer ficar mais só no choro [Claudelice começa a chorar; ela faz referência aqui ao nome dado em 2014 ao ato-memória: “A floresta vai gritar!”]. Mas também não dava pra fazer “A romaria vai gritar” [risos]. [Por outro lado] romaria da floresta já tinha; aí T. [agente da CPT] deu a ideia de mártires, com “Romaria dos Mártires da Floresta”.

Ao longo dos últimos anos, de 2014 a 2018, percebi algumas mudanças na organização do ato-memória. De lá para cá, participei todos os anos, exceto em 2016. Em todas as ocasiões houve uma caminhada, com paradas para reflexão, num percurso de 8 quilômetros de estrada de chão, situado entre o local do assassinato e o lote onde habitava o casal. Em 2014, a caminhada aconteceu no último domingo de maio, pela manhã, precedida de um acampamento com os participantes do ato, no sábado à noite, no lote do casal. O percurso foi da casa até o local onde o casal tombou - e onde foi instalada uma placa de granito chamada memorial. Em 2015, não houve acampamento. O ato aconteceu apenas na manhã de domingo, e o trajeto se inverteu: foi do local do assasinato até a morada deles. Essa inversão se estabilizou, e passou a ser adotada nas outras edições. Seu significado é explicitamente destacado por Claudelice, outros familiares, e agentes da CPT: a caminhada não termina mais no local onde eles morreram, mas parte da morte para terminar na vida. A mudança de sentido, como vetor físico de direcionamento do percurso, acarretou uma mudança de sentido como significado da ação de realizar o percurso. A caminhada como celebração da vida é, aliás, ressaltada em diversos momentos de ‘tomada de palavra’.

O acampamento, que havia sido abandonado em 2015, é retomado em 2016, e desde então, o ato volta a se realizar em dois dias, com uma outra diferença: o percurso a pé do memorial ao lote não se faz mais no domingo de manhã, mas no sábado à tarde, após as 16h. Isso aconteceu depois de ter havido reclamações de alguns participantes em anos anteriores sobre as dificuldades de se andar 8 quilômetros em estrada de terra, na época em que começa o verão amazônico, debaixo de um sol de 10h, com aclives e declives, tendo na maior parte do trecho, às margens do caminho, áreas de pasto aberto, e poucos nichos de mata para fazer sombra. 2016 é um ano importante no modo como o ato se organiza. Ele passa a se chamar romaria, e é partir daí que a ‘forma’ dessa ação coletiva começa a se estabilizar, mesmo que alguns ajustes aconteçam ainda.

Quanto ao conteúdo (os temas tratados, por exemplo), a variação é constante, e a instabilização, maior. Partindo do que Claudelice relata na entrevista, cujos pontos a vi destacar em outras situações interacionais, uma das mudanças mais significativas na composição do ato-memória é o número de participantes, ou seja, sua capacidade de atrair militantes de organizações e movimentos sociais da região, de mobilizar atores e recursos - materiais e simbólicos. A celebração da memória começou a ser feita pelos familiares, agentes da CPT, e “amigos muito próximos”, quando se completou um ano do assassinato. No ano seguinte, quase não haveria nada, não fosse a iniciativa da CPT em organizar uma reunião. Em 2014, após uma provocação de A., agente da CPT, [“A. me chamou lá e puxou a gente pra realidade: ‘pô, vai deixar acabar?’. A casa do casal estava abandonada, e o local do assassinato tava perdendo característica, memória, enfim...”], foi que o ato tomou forma de caminhada, com paradas de reflexão.

Em 2012 e 2013, a participação de poucas pessoas indicava pouco movimento, o que para os atores da mobilização social da região muitas vezes foi descrito a mim, em outras situações, como ficar frio. Esses atores, aí incluídos os agentes da CPT, consideram que a pior coisa que pode acontecer ao processo de denúncia de um evento (seja a grilagem, o desmatamento, ou assassinato de lideranças, entre outros) é ele “esfriar”. O esfriamento leva ao esquecimento, ao risco de “deixar acabar”. Por outro lado, quanto aos familiares, “estava todo mundo abalado”, e esse estado emocional, tal como descreve Claudelice, dificultou, no início, o engajamento em ações de militância - denúncia e fazer memória. A documentação do caso reunida nos arquivos da CPT traz muitos relatos de ameaças a alguns familiares, que se afastaram do assentamento.

Decorrido certo tempo, alguns agentes da CPT avaliaram a oportunidade e a necessidade de agir. Nesse contexto, vem a provocação de A., cuja conduta repercute um elemento da mística da CPT, que é animar os atores implicados no processo de luta a continuarem suas atividades de militância - denúncia e fazer memória -, sem lhes tirar o protagonismo. Essa animação significa realizar um trabalho emocional (Horschild, 2003), atuar sobre emoções e sentimentos, o que, nos termos de Claudelice e de alguns de seus familiares, resultou na passagem do “choro” ao “grito”7 7 A formulação êmica “do choro ao grito” evidencia um momento de passagem para o engajamento, especialmente estudado por Jasper (1998) em torno do choque moral. Está associada também ao surgimento de processos de mobilização social em contextos traumáticos de dor e sofrimento para as vítimas e familiares (Birman e Leite, 2004; Vianna e Farias, 2011; Lacerda, 2012). . Mais interessante ainda é que essa passagem corresponde ao marco temporal exato em que as celebrações de memória que envolviam poucos atores se transformam em atos-memória, ações coletivas abrangentes, marcadas por uma agitação nas atividades preparatórias durante semanas que antecedem o ritual.

Claudelice se refere a um “terceiro momento”, quando o ato se torna romaria. A retórica empregada mais uma vez merece atenção. Quais justificações são trazidas? “Um dia, T. [agente da CPT] disse: Clau, um ato é só um ato. Pode fazer num ano, mas não no outro. (...). Então precisava sistematizar isso, fazer isso de forma mais certa”. A transformação em romaria é a tentativa de reforçar uma tendência que a criação de um ato em 2014 inaugurou: consolidar uma ação coletiva que busque dar continuidade à denúncia do casal assassinado, e fazer memória. Transformar em romaria é uma forma de garantir a perenidade, a duração a longo prazo. Mas não elimina as incertezas, riscos, dissensos, que não podem ser previstos, todos, antecipadamente.

Por um lado, isso significa acrescentar ao processo de mobilização mais um ator, a Diocese de Marabá, mais uma aliança na configuração de relações de força que os militantes precisam levar em conta nas disputas e controvérsias com outros atores em torno da causa que defendem. Por outro, a incorporação de novos atores na organização pode aumentar a contingência ou dissenso quanto aos valores da mística que o ritual visa ressaltar, o que significa compor com outros movimentos para os quais a combinação fé e luta não é evidente. No entanto, pelo que observei em 2017 e em 2018, a transformação em romaria não afastou nenhuma das organizações que já participavam do ato antes.

Por fim, a transformação do ato em romaria permite inscrevê-lo numa história mais ampla de rituais político-religiosos praticados por populações rurais de diferentes regiões do Brasil, que são romarias da terra, das águas, dos mártires, podendo, assim, acessar um repertório de ações consolidado para tornar inteligível e sensível o problema público que se procura denunciar. Essas romarias ‘martiriais’ se distinguem das romarias mais conhecidas pelo senso comum, que são ‘penitenciais’ ou ‘devocionais’, pois nas primeiras a combinação entre reza e denúncia é muito mais presente do que nas segundas8 8 Há mais etnografias concentradas sobre romarias devocionais do que sobre as “martiriais”, embora possamos citar o trabalho clássico de Steil (1996) e de Souza (2016, 2019), como exceções. Este último realiza uma comparação entre diferentes romarias na Amazônia e no Nordeste que buscam fazer denúncia e fazer memória. .

Romarias martirais tem um caráter interpelativo, de extrair um compromisso. Os organizadores da Romaria dos Mártires da Floresta - familiares e agentes da CPT, sobretudo - sabem que é necessário se dotar de instrumentos muito específicos e concretos para que essa comunicação se realize. Por isso, a realização do ato-memória no próprio assentamento (e não no centro do município, ou em Marabá, maior cidade da região); as paradas para reflexão; o acampamento na casa deles; a caminhada, e o sentido adotado, do local da morte em direção ao lote onde viviam; os cantos; os atores escolhidos para falar e em qual momento; os materiais utilizados para caminhada e para os momentos celebrativos, etc. Uma vez reunidos, esses elementos integram um dispositivo, cujo poder está em tornar a causa ao mesmo tempo inteligível e sensível. A combinação desses dois elementos é que torna possível criar o vínculo, a adesão, o engajamento.

A Romaria dos Mártires da Floresta é um ritual parcialmente codificado: a sequência de ações que devem ser realizadas ao longo da execução do ato-memória é discutida antes, e são tirados os responsáveis por coordenar cada momento. Mas é um ritual aberto, de modo que elementos novos (recursos dramatúrgicos, narrativos ou retóricos) podem integrar ou desaparecer do dispositivo de um ano para o outro, ou mesmo no próprio decorrer da ação em determinado ano. Os improvisos fazem parte, e os organizadores são surpreendidos por sentimentos e emoções inesperados, que podem emergir durante o desenvolvimento do ato. Interessa saber que emoções são essas, como são expressas, e que valores transmitem junto. Isso permitirá apreender a produção da mística.

A PRODUÇÃO DA MÍSTICA EM ATO: ACOLHIDA, CELEBRAÇÃO E CAMINHADA

Compartilho abaixo um trecho do caderno de campo, cujas anotações foram tomadas dois dias após a realização do ato, e que sofreu edições para ser disponibilizado aqui. Realizo a descrição também a partir do registro em áudio e imagem que efetuei durante a caminhada:

Os dois ônibus trazendo o pessoal de Marabá [jovens da pastoral da juventude, estudantes da universidade (cursos de História, Geografia e Educação no Campo, principalmente), alguns familiares do Zé Claudio e da Maria, sobretudo os sobrinhos, todos jovens] estacionaram perto do memorial. Ao descer, percebi que já tinha bastante gente do assentamento que reúne 5 comunidades - mas havia representantes de apenas duas delas. De pronto, reconheci os alunos, professores e funcionários da escola Santo Antonio da gleba Jacaré, portando seus uniformes, bem como o grupo de indígenas Guarani vindos de Jacundá, os agentes da CPT, os alunos da Escola de Família Agrícola de Marabá, os trabalhadores do acampamento São Vinícius, alguns dirigentes do sindicato de trabalhadores rurais de Nova Ipixuna, alguns membros do movimento estudantil da Unifesspa, os estudantes da turma de “Direito da Terra”, como são conhecidos os matriculados no curso de Direito do PRONERA ofertado pela Unifesspa [do qual Claudelice, irmã de Zé Claudio faz parte], os familiares das vítimas, entre outros.

Um lanche preparado pela comunidade Nossa Senhora de Fátima e pelos familiares de Zé Claudio e Maria, com bolo de mandioca, suco de cupuaçu e café, aguardava quem ia chegando nos ônibus. Tudo foi posto sobre a carroceria da caminhonete da CPT. Dona Vitorina, junto a outras mulheres da comunidade, organizava a distribuicão, enquanto nos colocávamos em fila. Outras pessoas circulavam pelo local, vendo a ornamentação, lendo as faixas, cumprimentando conhecidos... O barulho da chegada...

O memorial consiste numa placa de granito claro à margem esquerda da estrada, para quem adentra o assentamento. Atrás dela, um trecho de mata. Há anos ela está quebrada na parte de cima. Segundo Claudelice e os amigos da CPT, foram “pessoas inimigas” que fizeram isso. Na placa foi colocada uma frase dita por Zé Claudio meses antes do assassinato, numa palestra em Belém: “A mesma coisa que fizeram no Acre com Chico Mendes e em Anapu com a irmã Dorothy querem fazer com a gente”. Mais abaixo, continua: “E realmente fizeram... Mas a luta e o exemplo em defesa pela vida na floresta permanecem”.

Não colocaram tenda esse ano, mas havia muitos elementos de ornamentação. Ao pé da placa, foram postas duas cruzes pequenas feitas com galhos de uma palmeira, adornados com fitas coloridas, trazendo os retratos de cada um deles. Ao lado direito da placa, um cruzeiro de madeira negra, de aproximadamente 3 metros, envolvido por faixas coloridas (verde, amarelo, vermelho, preto e lilás) foi fincado no local. Mais à direita ainda, uma faixa mais quadrada do que retangular, de pano verde, foi amarrada entre troncos, e trazia bem vísiveis, em vermelho, os dizeres “II Romaria dos Mártires da Floresta”. As letras foram recortadas a partir de tecido de chita com estampas floridas. À esquerda da placa do memorial, por fim, faixas do sindicato de trabalhadores e trabalhadoras rurais de Nova Ipixuna [“Aos nossos mortos, nenhum minuto de silêncio, mas toda uma vida de luta”] e do acampamento sem-terra São Vinícius [“Maria e José, a luta segue em pé”], e estandartes dos 20 mártires homenageados este ano junto a Zé Claudio e Maria. Seus retratos foram afixados em tecidos de diferentes materiais e cores, pendurados em pequenas cruzes, feitas a partir de galhos também, e igualmente adornados com fitas e estampas. Perto do cruzeiro, o carro de som já está estacionado.

C., agente da CPT, começa a chamar, pelo microfone, as pessoas, para se juntarem. Convoca os jovens indígenas Guarani, que fazem apresentação de uma dança...(...). Após, seu Manoel, morador do assentamento, pertencente à comunidade Nossa Senhora de Fátima, já vestido com a camisa da romaria confeccionada para este ano, toma a palavra, falando ao microfone:

“Essa estrada aqui não existia, aonde foi o tráfego do casal, aonde foram assassinados bem aqui na minha esquerda, onde tem essa moita de açaí. É triste você dizer que um casal que trabalhava para o bem da população, que defendia o meio ambiente, ser assassinado covardemente. Porque Deus deixou a floresta e deixou o ser humano sobreviver [com] aquilo que ele deixou na Terra. Gostaria de parabenizar os indígenas pela presença, os brancos que estão aqui, parentes do Zé Claudio, não parentes, como eu não sou, somos muitos amigos, fomos muito amigos, e somos até no céu, quando eu morrer também. Mas [eu queria] dizer pra vocês que essa caminhada... vale a pena a gente tirar duas horas aqui para onde eles moravam, para nós chegar lá até a hora da janta, até amanhecer o dia pela manhã, e assistir à missa pela manhã, em homenagem àquele casal”. (...). “E para encerrar eu gostaria de abraçar todos vocês e parabenizar toda família. Principalmente, e não está aqui presente, a comadre Raimunda, mãe do Zé Claudio. Mas posso dar esse abraço quando chegar lá na casa dele [estica o barco esquerdo e com a mão aponta a direção onde se encontra a casa]. Muito obrigado...que eu me lembro de algumas vezes que começo a me emocionar [pigarro na voz] quando eu chegava na casa dela em Morada Nova [bairro da periferia de Marabá], a reclamação que ela fazia comigo, com respeito ao seu filho. Não dá pra você guentar, e você ver uma mãe hoje, com 70 anos, lembrar as coisas que eu vi e ouvi dela e do filho dela há 25 anos atrás, em defesa dessa floresta e desse chão em que estamos pisando. [C. olha pra ele, abana a cabeça confirmando. Ele entende também como se fosse um sinal para concluir]. E para encerrar, muito obrigado a vocês que já estamos chegando à noitinha, e vocês sabem, quem cutuca sempre tem isso, mas eu sou muito realista, gosto de ser curto e grosso, pra não deixar defeito nem rastro para alguém varrer. Muito obrigado”. [Palmas]. C.: “Obrigado Seu Manoel, é daqui da comunidade Nossa Senhora de Fátima”.

M., representante do grupo das CEBs, e membro da organização da romaria, toma o microfone e começa a cantar: “Vidas pela Vida, Vidas pelo Reino”. Enquanto isso, uma menina indígena, 12 anos aproximadamente, avança ao centro do pequeno espaço deixado entre o carro de som e a placa do memorial pelos espectadores, participantes da romaria. Ela tem em suas mãos uma vela (um círio, no vocabulário católico) acesa. Com os braços bem levantados, para que todos possam possam enxergar o círio, ela faz uma volta com passos pequenos e demorados. Apesar do esforço, quem está mais atrás tem dificuldade de assistir à cena. A canção “Vidas pela Vida, Vidas pelo Reino” acompanha todos os seus gestos. Ela depois se volta em direção da placa, e vagarosamente deposita a vela em sua base. Muitos participantes registram a cena com o celular.

Um minuto depois, a professora de uma escola do assentamento toma a palavra, tendo à mão uma cópia xerocada do livro de celebrações preparado este ano:

“Boa tarde a todos. Primeiramente, né, agradecer a Deus, por estarmos aqui. Eu sou “U.”, hoje eu represento aqui a comunidade Santo Antonio da gleba Jacaré e também a comunidade Nossa Senhora de Fátima [ela se volta para o seu Manoel, com um sorriso no rosto] do núcleo Tracoá, que faz parte do agroextrativista. E desde já agradecer à família também, né, que nos convidou para estarmos aqui, na pessoa da Claudenir, da Claudleice também, e dizer a todos, sejam bem-vindos, tá?. É... eu vejo assim, que falar do senhor Zé Claudio e da dona Maria, é falar da defesa da vida, né. Porque são pessoas que lutaram em prol da natureza, da defesa do meio ambiente. E a natureza, ela é vida; sem ela nós não podemos viver. Vivemos dos recursos que ela nos oferece, e se nós acabarmos [com ela] o que sera de nós? Infelizmente foi por esse propósito, foi por esse legado, que o senhor Zé Claudio e dona Maria, infelizmente, foram mortos. Então, que durante esse processo que nós vamos viver hoje, vivenciar agora, que cada um de nós possamos refletir, refletir cada passo [pausa, porque se confunde um pouco com o que quer dizer na seqüência], cada açao artística que vai ser passada aqui hoje, cada mensagem, cada fala, que todos nós possamos refletir esse processo, que possamos voltar para nossas casas, não vazios, mais cheios de ideias, de coisas boas para levarmos para nossas comunidades. Então, mais uma vez sejam bem-vindos ta gente, em nome das comunidades”. [Palmas].

Após a leitura, as mulheres das CEBs e da CPT, perto do carro de som, com as cópias do livro de celebração nas mãos, puxam o canto “Pai Nosso dos Mártires”. Após 2 minutos de canto, C. convida o sobrinho da Maria do Espírito Santo, que é pastor da igreja adventista, para fazer a leitura do evangelho escolhido para o dia (João 15, 9-13), cuja mensagem sublinhada era “permanecei no meu amor”. Esse é um momento em que a atenção dos presentes está mais dispersa, porque a leitura com entraves dificulta a concentração. (...). Terminado esse momento, C., no microfone, fala:

“Essa é a importância de a gente viver a comunhão da vida. Então, para continuar esta comunhão, nós gostaríamos de convidar o grupo de alunos aqui também da comunidade, que prepararam uma apresentação, e depois dessa apresentação, iniciaremos a caminhada”.

Segue a apresentação de um grupo de 9 alunos da escola de ensino fundamental do assentamento. Eles encenam um conflito de reivindicações entre uma fazendeira e 8 agricultores. Situam-se no meio da estrada, cercados pelos participantes/expectadores. Lançam palavras de ordem, levantando o braço esquerdo, cuja resposta é sempre “Venceremos!”. A resposta vem na forma de grito. Observo que mais gente vai respondendo, e mais alto, à medida que seguem as palavras de ordem. Ao final, palmas e gritos.

***

Os participantes da romaria podem ser enquadrados como membros da comunidade que se forma em torno da mobilização, que não coincide com a comunidade do assentamento. O ato se realiza ali, mas a maior parte dos que participam da caminhada vêm sobretudo de Marabá, ou seja, de fora de Nova Ipixuna. Essa é, inclusive, uma preocupação dos familiares e agentes da CPT, de incluir, ao passar dos anos, mais as pessoas “do local”, que são assentadas, que fazem parte da associação do assentamento, o que está ligado a um dos valores do trabalho de base da CPT.

Em 2017, os familiares visitaram escolas do centro do município e do próprio assentamento, convidando professores, diretores e alunos, para participarem da romaria. Estudantes de três escolas diferentes ficaram responsáveis por três momentos celebrativos distintos que aconteceram no ato, como a encenação do conflito entre uma fazendeira e oito agricultores, que vimos na descrição acima. Embora eu não tenha feito recenseamento, os jovens constituem a maioria por contraste dos participantes. Além dos estudantes de escolas rurais, participaram membros da pastoral da juventude da diocese de Marabá, e universitários de cursos de ciências humanas e sociais (sobretudo, educação no campo), e ciências da terra (agronomia). Muitos são integrantes do movimento estudantil. Como se imagina, a intersecção entre os grupos é frequente: um mesmo jovem pode ser universitário, membro da pastoral da juventude e do movimento estudantil.

O lanche oferecido na acolhida foi preparado por moradores do assentamento, que pertencem a cinco famílias, todas da comunidade Nossa Senhora de Fátima, a mesma de Seu Manoel, que foi amigo próximo do casal assassinado. Esse número ainda é pequeno, perto do número oficial de famílias que residem em todo assentamento agro-extrativista - quatrocentas, segundo o INCRA. Do conjunto de famílias que se engajaram na preparação do evento, todas pertencem à comunidade católica que se estruturou nos anos noventa como comunidade de base, acostumada a organizar e participar de rituais político-religiosos. Por isso, podemos afirmar que o ato-memória/ romaria é produzido e destinado a uma certa comunidade - no sentido apontado por Maués (2010MAUÉS, Raymundo Heraldo. 2010. “Comunidades ‘no sentido social da evangelização’: CEBs, camponeses e quilombolas na Amazônia oriental brasileira”. Religião e Sociedade (Rio de Janeiro, Impresso), 30(2), 13-37.) - que está largamente familiarizada com a forma e o conteúdo adotados.

A sequência de atividades celebrativas durante a acolhida, antes de dar início à caminhada, foi objeto de discussão durante duas reuniões preparatórias, o que resultou na elaboração de um “livro da celebração”, que existiu em 2017, mas não em 2018, e serviu como guia para as ações. Na primeira reunião, foram discutidos quais mártires poderiam ser homenageados juntos ao casal, e foi consolidada uma lista de 20 lideranças, demonstrando a diversidade da luta por terra e em defesa da floresta: há homens e mulheres, indígenas e camponeses, brasileiros e estrangeiros, religiosos e leigos. Eles foram representados em estandartes feitos pelos alunos do curso de “Direito da Terra”, egressos de diferentes assentamentos do sul e sudeste do Pará, companheiros de turma de Claudelice. Os estandartes foram confeccionados em diferentes suportes materiais - tecidos, fitas - todos formando um colorido destacado no seu conjunto. Foram colocados em fileira ao lado do memorial, e distribuídos aleatoriamente a diferentes participantes do ato, por ocasião da caminhada.

Imagem 1:
Estandartes em fileira ao lado do memorial. Foto de Jhemerson Costa, 2017.

Imagem 2:
Início da caminhada. Foto do autor, 2017.

Esses materiais junto a outros elementos que compõem a cena ativam sentidos da percepção. A disposição dos estandartes junto às faixas portando reivindicações perto do memorial lembrava uma exposição. Seu colorido se destacava. Observei que muitas pessoas à medida que desciam dos ônibus, tiravam fotos. O momento do lanche permitia uma descontração maior, antes que os indígenas Guarani, através de uma apresentação de canto e dança, abrissem a celebração inicial. Esse momento propiciou aos diferentes participantes repararem quem são os outros atores que compõem a cena, e com quem dividirão, por algumas horas, a mensagem que o ritual comunica.

A partir da descrição cabe perguntar “que percepcões, sensações, emoções e movimentos nascem do encontro com os objetos, as substâncias e o ambiente físico” 9 9 Cohen et al. (2017: 6): “Quels perceptions, sensations, émotions et mouvements naissent-ils de la rencontre avec les objets, les substances et l’environnement physique d’une pratique religieuse ?” que a romaria dispõe? Os tecidos usados, que vemos ser utilizados nas casas, e em outras situações ordinárias da vida social, convidam o cotidiano para o ritual. O próprio colorido das fitas evoca a diversidade e alegria. A vela acesa que vemos a menina indígena depositar à base do memorial marca a solenidade. A luminosidade do fim da tarde permite que as pessoas fiquem mais próximas e no meio da estrada, sem a necessidade de “caçar sombra”. O som que sai das caixas colocadas na carroceria do carro compensa a falta de visibilidade para quem está mais atrás, permitindo que as músicas, e as falas dos representantes alcancem mais pessoas, e atraiam a atenção.Tudo isso dentro do próprio assentamento, e, inicialmente, onde o casal tombou.

As sensações provocadas são as mais diversas, e sua distribuição é desigual entre os integrantes da ‘comunidade’ instaurada pela romaria. Etnograficamente, só é possível apreender como o dispositivo de palavras e objetos retranscrevem sentimentos e emoções e permitem sua expressão pública (Traïni e Simméant, 2008TRAÏNI, Christophe e SIMMÉANT, Johanna. 2008. “Introduction: pourquoi et comment sensibiliser à la cause”. In TRAÏNI, C. (org.), Emotions...Mobilisatons!. Paris, Presses Sciences Po, pp. 11-34.). Assim, as primeiras falas destinadas ao público (Seu Manoel e da professora U.), os cantos - “Vidas pela Vida” e “Pai Nosso dos Mártires” -, a deposição da vela, e os comentários dos organizadores, ressaltam a ‘indignação’ por causa da injustiça; a ‘rebeldia’ ou ‘teimosia’, pela recusa de esquecer a violência e tomar como ‘exemplo’ a ação de lideranças ameaçadas e assassinadas; e a ‘esperança’, pela “celebração da vida”. Dentre os valores comunicados junto com essas emoções políticas, está a ‘doação de si’.

Observo que a fala de Seu Manoel já atrai um conjunto de participantes para perto do carro de som que formam um círculo em torno dele, que ali toma forma de testemunho (Dullo, 2016DULLO, Eduardo. 2016. “Testemunho: cristão e secular”. Religião e sociedade (Rio de Janeiro, Online), 36(2), 85-106. http://dx.doi. org/10.1590/0100-85872016v36n2cap05
http://dx.doi. org/10.1590/0100-85872016...
). Vale lembrar que muitos participantes não conhecem em detalhes a biografia do casal. Ouvi-lo é acessar em primeira mão uma história que ajudará a compor o sentido da homenagem. Talvez essa seja uma das razões pelas quais mais pessoas tiram o celular para gravar sua fala (mais na sua fala do que em outras), cujo tom elevado e marcado, postura reta, com uma mensagem direta - “gosto de ser curto e grosso, pra não deixar defeito nem rastro para alguém varrer” -, produz um efeito de interpelação maior e permite a quem o ouve dimensionar a injustiça cometida contra Zé Claudio, e dividir sua ‘indignação’. Sua fala marca a transição entre diferentes momentos: da dispersão da chegada para o reagrupamento e concentração em torno do rito, o que acontece plenamente com o fim de seu discurso, com o canto da música “Vidas pela vida”, e com toda encenação com o círio - a vagorosidade dos passos comunicando a necessidade de diminuir-se a agitação, para concentrar-se no que está sendo realizado.

Junto com as falas, são intercaladas outras formas de comunicação, como as encenações - seja a apresentação dos indígenas Guarani, seja a dos alunos, representando o conflito de reivindicações entre uma fazendeira e oito agricultores, que, reduzindo a complexidade da controvérsia a alguns traços que eles consideram mais característicos da tensão, permite aos expectadores se identificarem mais facilmente com o que está sendo representado. Essa segunda encenação permite, logo nos quinze primeiros minutos de início da romaria, quebrar com a passividade dos participantes, convocando-os a responder a palavras de ordem em torno da defesa da reforma agrária ou contra o governo federal, por exemplo. Isso devolve uma intensidade ao ato - as respostas, mais uma vez em ‘grito’, expressam a ‘revolta’/ ‘rebeldia’/ ‘indignação’ - que havia diminuído com as marcas de solenidade, tributárias do universo religioso que começou com o acendimento da vela/círio e com os cantos. Aliás, a romaria alterna propositadamente ritmos e intensidades no seu decurso10 10 Se rituais costumam ser momentos de efervescência coletiva, como sublinha Durkheim (1996 [1912]) em seu clássico estudo, etnograficamente se torna relevante estar atento a variações nesse estado de “efervescência”. . Palmas e gritos depois da apresentação dos alunos produzem uma agitação no ambiente, que é aproveitada para dar início à caminhada, como já estava previsto. Mas ao mesmo tempo, é preciso um mínimo de coordenação, para que um grupo de pessoas não saia à frente do outro. Assim, M. pede para que as pessoas se organizem e tirem as faixas e estandartes dos locais onde estão apregoados ou fincados, para levarem na caminhada. A cena é desmontada e colocada em movimento. No microfone, ela insiste para que a faixa maior anunciando “II Romaria dos Mártires da Floresta” vá na frente, assim como as duas cruzes que trazem as fotos de José Claudio e Maria. Mais uma vez, o canto, desta vez “Bendito dos romeiros” é lançado - e cantado basicamente apenas pelas animadoras.

Ao longo do trajeto, palavras de ordem como “Maria, José, a luta segue em pé!” são acionadas. Durante a caminhada a dispersão é maior, e os grupos de participantes aproveitam para conversar. O som não costuma chegar até o final. As quebras da dispersão acontecem nas paradas de reflexão11 11 Sobre as paradas de reflexão, na reunião de preparação de 08/05/2018 para a III Romaria, Claudelice explica: “Cada uma das paradas têm um significado para nós, familiares. Majestade [a grande castanheira no lote do casal] era um local deles, de pensar as lutas. A escola foi o último momento quando um dos familiares [da Maria] os viu passar, quando Laísa estava entrando para dar aula. O curral foi onde uma das testemunhas os viu pela última vez passando, e a curva, local onde eles tinham estratégia de entrar e sair do assentamento. Na curva, eles poderiam ter saído de outra forma e a história seria outra... [choro]. Desculpa, gente”. , onde há novamente o reagrupamento. A primeira parada ficou sob encargo dos integrantes das CEBs e da pastoral da juventude. Um pai-nosso foi rezado ao microfone, acompanhado por alguns participantes - única vez em que houve uma oração na caminhada. Para essas paradas, estavam previstas leituras das trajetórias resumidas de alguns dos vinte mártires, que constavam no “livro de celebração”. Os responsáveis pelas paradas frequentemente improvisam algumas ações. Se, na primeira parada, os integrantes de CEBs trazem cantos e discursos pedagógicos sobre a importância da luta do casal, na segunda parada, a cargo de integrantes do MST e do MAB (Movimento Anti-Barragem), é realizada uma mística (no sentido de momento celebrativo), com a declamação de um poema, que, pela reunião dos elementos presentes, diferencia-se do momento anterior:

[Transcrição do vídeo, registrado em 20/05/2017]

A integrante do curso “Direito da Terra”, e oriunda do Movimento Sem-Terra, ocupa o centro do círculo formado pelos participantes agrupados, com suas faixas e estandartes, em frente ao curral - onde uma das testemunhas do processo criminal de assassinato do casal, os viu passando pela última vez. Ela veste a camiseta confeccionada para a romaria este ano (branca, com o casal retratado ao centro dela). Outros participantes já a portam também. Com mochila nas costas, voz empostada, simulando grito, microfone na mão, ela circula pelo pequeno espaço deixado na estrada, olha fixamente para as pessoas, enquanto proclama de cor estes versos:

“Nós gritamos juntos e rezamos assim: ave, ave, santa árvore, pai-nosso, palmo e tal/pão nosso do santo fruto/o ribeirinho enfrenta o mal/do homem que traz a cerca, planta capim e faz curral/ amparado num projeto de violência brutal/ onde humano é esquecido e o boi querido é o tal”.

Assim que acaba a declamação, seus companheiros que estavam acocorados se levantam. Outros expectadores repetem o gesto. Ela puxa a palavra de ordem: José Claudio e Maria! E integrantes do público respondem: presente, presente, presente! Daí fica livre para cada um lançar o nome de uma liderança que deseja, o que é feito, geralmente, levando-se em conta a organização a que pertecence. Quando uma representante do MAB lança o nome de Nicinha, ela pega o microfone, o “livro de celebração” e lê para todos sua breve biografia. Após isso, é retomada a caminhada, sendo entoada a famosa canção de Geraldo Vandré, “Para não dizer que não falei de flores”, até a próxima parada, a escola.

A expressão da ‘indignação’ nessa segunda parada é marcada por uma intensidade maior do que na primeira, não só pelo conteúdo dos versos mas pelo tom combativo da voz empregado por A., que, mais uma vez, ao se aproximar de um ‘grito’ revela a importância dessa forma de expressão para o ritual12 12 O grito é também uma categoria êmica importante entre os militantes egressos da teologia da libertação. Dánome a muitos rituais criados a partir das CEBs no Brasil, como o “Grito dos Excluídos”, que acontece sempre na semana do 7 de setembro. Uma história do ‘grito’, como expressão de emocoes politicas, entre os movimentos sociais no Brasil, que tomaram emprestado repertorio de ação das comunidades católicas progressistas, precisa ser realizada. . Enquanto que na primeira parada buscou-se criar uma comunhão entre os presentes, através dos cantos, do testemunho e exemplo do casal, pela leitura de sua biografia, e de uma tomada de consciência sobre a importância da causa, pela fala de um indígena sobre a importância do “sistema Terra”, na segunda, a mística nos levou novamente para a denúncia explícita.

Imagem 3:
Primeira parada de reflexão. Foto do autor, 2017.

Colocando em termos analíticos, poderíamos dizer que enquanto a primeira parada buscou destacar as emoções recíprocas (sentimento de pertencimento) que unem os participantes, a segunda parada destacou as emoções compartilhadas (indignacão; revolta), no sentido que lhes dá Jasper (1998JASPER, James. 1998. “The Emotions of Protest: Affective and Reactive Emotions in and around Social Movements”.Sociological Forum, 13(3), 397-424). As emoções recíprocas são as que os membros de uma comunidade nutrem uns em relações aos outros, reforçando o valor de reconhecimento e solidariedade. As emoções compartilhadas são as que eles expressam em relação a agentes externos, nessa parada representados pelo “homem que traz a cerca, planta capim e faz curral/amparado num projeto de violência brutal”. Nesse sentido, a romaria alterna momentos de intimacy/publicity, de que tratam Robbins e Sumiala (2016ROBBINS, Joel e SUMIALA, Johanna. 2016. “Ritual intimacy-ritual publicity: revisiting ritual theory and practice in plural societies”. Suomen Antropologi, 41 (4), 1-5. Disponível em: Disponível em: https://journal.fi/suomenantropologi/article/view/63063 , acesso em 20.01.2020.
https://journal.fi/suomenantropologi/art...
).

Em 2017, como em outros anos, o sentimento mais intenso de ‘comunhão’ que a primeira parada buscou expressar foi realizado na “Majestade”, a enorme castanheira situada no lote do casal, de que eles tratavam em suas falas públicas militantes. Lá se dá a última parada e tem sido o momento de fala reservado aos familiares, o que intensifica mais ainda o elemento de ‘testemunho’ presente em outras sequências do ato:

[Notas de campo de 21/05/2018, com transcrição de áudio registrado em 19/05/2018]

Após uma hora ou mais, que passamos na escola, aguardando a chuva passar, e ter andado mais dois quilômetros até a parada final, com a lama da estrada nos pés, já à noite, e equilibrando nas mãos as velas que nos foram distribuídas, chegamos até a entrada que nos leva a Majestade. Andar pela trilha, sentido o cheiro da mata fechada à noite, depois da chuva, nos põe em outro clima. Muita conversa e brincadeira entre os jovens, com mangação pelo estado em que uns e outros se encontram. Sinto uma fadiga, mas estou feliz por chegar finalmente lá. Um banner com a foto de Zé Claudio e Maria está afixado no tronco da Majestade, Os meninos da turma de Direito fizeram varais com fotos de alguns dos mártires homengeados. Eles dão voltas na castanheira e estão sobre nossas cabeças (...). Claudelice, tendo outros familiares ao lado, toma a palavra:

“A gente sente uma grande alegria de saber que o grito do Zé Claudio e da Maria e de tantos outros que foram excluídos no caminhar de sua luta continua ecoando nas nossas vozes, na voz de cada um que fez essa caminhada, até aqui, na voz de cada um, onde quer que esteja, sabe que pode contar com esse povo, que pode pedir socorro, que sabe que pode pedir ajuda que a gente vai estar la para gritar junto com eles. (...) Eu gostaria de falar mais uma vez a alegria imensa de estar com vocês aqui. Para nós esse lugar é o mais forte da face da Terra, porque aqui eles vinham para se inspirar para suas lutas. (...). É aqui que eu espero que vocês também se inspirem e se sintam fortalecidos depois dessa romaria, depois da caminhada, ao som de tantos pássaros, grilos, e bichos da floresta. [Pausa]. Ninguém vai conseguir parar nossa caminhada. Zé Claudio e Maria não foram assassinados, eles foram plantados. Somos frutos. Continuaremos!”

É importante lembrar que na romaria há também uma noite cultural no sábado e uma celebração ecumênica no domingo, que, com a participação do bispo de Marabá, tem se tornado uma missa católica. A análise da produção da mística precisa levar em conta esses momentos, mas aqui me concentro no recorte da caminhada. Outra coisa que me parece importante de sublinhar é a dificuldade de se extrair uma síntese do ritual, pelo fato de ser aberto a improvisações, e contar com ações desempenhadas por atores de organizações diferentes - apesar de constituírem ‘comunidade’ no momento da mobilização - e por ter todas as variações de ritmos e intensidade no seu desenvolvimento, como destacamos. No entanto, algumas repetições nas emoções expressas, dentro da sequência de ações desse ritual, me parecem significativas: não só as emoções expressas, como a ‘forma’ de expressá-las, e os valores que são comunicados juntos. Meu argumento é que, através dessa repetição, surgem os valores ‘exemplares’ da mística como motivação de agir, como a doação-de-si, central na figuração do martírio.

Nas observações que realizei em quatro anos diferentes, percebi que as celebrações na “Majestade” constituem momentos de pico de intensidade no reagrupamento e na atenção à ação desenvolvida. Na fala de Claudelice, vemos mais uma vez a recorrência do ‘grito’, embora em outros momentos, como nas celebrações antes ou depois da caminhada, haja o ‘choro’. O ‘grito’ aparece como a forma privilegiada de denúncia, expressa a ‘indignação’ e ‘revolta’, que vêm acompanhada dos valores da ‘rebeldia’/ ‘teimosia’ - “Continuaremos!” -, de prolongar no tempo o engajamento cotidiano.

Os familiares, quando tomam a palavra, costumam ressaltar a alegria pela participação de tantas pessoas a cada ano. O mesmo sentimento foi sublinhado por Seu Manoel e pela professora, durante a acolhida, ao receberem os romeiros. Ali, o dispositivo de palavras e objetos colocado em ação, procurou recriar o ambiente do local do memorial, marcando formalmente a integração dos participantes numa ‘comunidade’ criada pelo ritual. Uma ‘comunidade’ que inclui os mártires tombados, representados nos diferentes suportes materiais. Nesse mesmo sentido, tem-se o sentimento de ‘comunhão’ que a retórica em diferentes paradas procurou criar e, mais uma vez, na parada final, como vimos acima.

A alegria, se está expressa na retórica, também está nos suportes materiais coloridos, nos afetos da acolhida com lanche, nas brincadeiras ao longo da caminhada. Não é demais lembrar que a caminhada do sábado culmina numa festa à noite. A ‘comunhão’, além de ser expressada retoricamente durante algumas paradas de reflexão, é experimentada no acampamento que o próprio dispositivo do ato prevê, assim como na divisão das tarefas no momento das refeições. Tudo isso permite concretizar um objetivo posto previamente de não cair no pesar pela morte e pelo assassinato, mas realizar uma “celebração da vida”/ “defesa da Vida”

Se ato-memória/romaria tem importância heurística para análise é porque ele mostra como emoções qualitativamente diferentes como ‘indignação’/’revolta’ e ‘comunhão’/’alegria’ se combinam na mística como motivação de agir, e aí se encontram mais destacadas pelos recursos dramatúrgicos, retóricos e narrativos empregados pelos atores. Essa combinação é o que permite à mística transmitir valores, tais como: ‘doação de si’; ‘defesa da Vida’, e também ‘esperança’, fundamentais para continuidade do engajamento no cotidiano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo da produção da mística em ato durante a Romaria dos Mártires da Floresta em Nova Ipixuna não pode prescindir de um estudo das emoções, na medida em que elas estão imbricadas na comunicação de valores exemplares, que constituem implícita ou explicitamente a motivação de agir dos atores em torno da mobilização da luta pela terra e defesa da floresta.

Um estudo pragmático dos dispositivos de sensibilização empregados em diferentes ações coletivas pode ajudar a renovar a teoria dos rituais, assim como a antropologia política das emoções: evita-se o automatismo entre algumas emoções e as ações que daí decorrem, e atenta-se aos desdobramentos - como essa emoção pode ser suscitada e como ela pode repercutir no cotidiano fora do ritual. Uma etnografia sensorial, que estudos de práticas religiosas vêm desenvolvendo (Cohen et alli, 2017COHEN, Anouk; KERESTETZI, Katerina e MOTTIER, Damien. 2017. “Introduction. Sensorialités religieuses: sens, matériaités et expériences”. Gradhiva (Paris, Online), 26, 5-21. https://doi.org/10.4000/gradhiva.3418
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; Keane, 2008KEANE, Webb. 2008. “The evidence of the senses and the materiality of religion”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 14(S1),110-127. https://doi.org/10.1111/j.1467-9655.2008.00496.x
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; Menezes, 2018MENEZES, Renata. 2018. “As religiões, a estética e o sensorial”. Debates do NER (Porto Alegre, Online), 19(34), 47-54. https://doi.org/10.22456/1982-8136.89860
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; Meyer, 2018MEYER, Birgit. 2018. “A estética da persuasão: as formas sensoriais do cristianismo global e do pentecostalismo”. Debates do NER (Porto Alegre, Online), 19(34), 13-45. https://doi.org/10.22456/1982-8136.89858
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), e aqui muito levemente esboçada, parece ser fundamental nesse sentido. Se é clássico o estudo das emoções em contextos rituais, especialmente em seu caráter integrativo/obrigatório (Mauss, 1979MAUSS, Marcel. 1979 [1921]. “A expressão obrigatória dos sentimentos”. In CARDOSO DE OLIVEIRA, R. (org.), Marcel Mauss: Antropologia. São Paulo, Ática, 147-153. [1921]) para constituição de coletivos, me interesso mais pelos agenciamentos que as fazem surgir ao longo das interações (Berthomé e Houseman, 2010BERTHOMÉ, François e HOUSEMAN, Michael. 2010 “Ritual and emotions: moving relations and patterned effusions”. Religion and Society, 1(1), 57-75. https://doi.org/10.3167/arrs.2010.010105
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).

É preciso destacar a arbitrariedade do plano analítico preocupado em distinções rígidas entre emoções e valores, quando se trata sempre de imbricamento do sensorial, cognitivo e moral. Assim, por exemplo, a ‘rebeldia’, que suscitada, e expressa repetidas vezes na forma de grito e no conteúdo retórico dos discursos durante as paradas de reflexão, ao longo da romaria, não se presta facilmente a uma apreensão pura apenas como ‘valor’ ou ‘emoção’, nem alcança a criatividade dos atores em diversos processos, inclusive, e especialmente, quando se trata de produzir engajamento para luta.

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  • 1
    Dedico este artigo a todos os atores da mobilização social no sul e sudeste paraenses, que, no enfrentamento, dedicam-se há anos pela partilha democrática da terra.
  • 2
    Utilizo itálico para conceitos êmicos e longas transcrições de entrevistas e registros do caderno de campo, aspas simples (‘x’), para problematizar termos, expressões e conceitos analíticos, e aspas duplas (“x”), para citar trechos de referências bibliográficas e relatos de meus interlocutores.
  • 3
    Anúncio é outro termo êmico conceitual próprio da teologia da libertação, que, no entanto, não aparece em situações ordinárias de interação. Estámais presente em publicações formais, elaboradas por agentes de pastoral, especialmente os que têm formação bíblica. Não é frequentemente escutado em campo, portanto. Encerra o sentido de “utopia”. Revela o sentido escatológico do político (Rancière, 1990RANCIÈRE, Jacques. 1990. Aux bords du politique. Paris, Gallimard .) presente nessa cosmologia.
  • 4
    Luta, como termo êmico, jáencontrou muitas análises etnográficas. A de Comerford (1999COMERFORD, John. 1999. Fazendo a luta. Rio de Janeiro, Relume-Dumará .) me parece pertinente para o sentidos que encontro em campo porque, tanto no campo dele, como no meu, luta possui uma conotação épica e ética que os atores empregam para o termo
  • 5
    Assim como Lutz (2017LUTZ, Catherine. 2017. “What matters”. Cultural Anthropology, 32 (2), 181-191. https://doi.org/10.14506/ca32.2.02
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    ), não faço distinção analítica forte entre ‘afetos’ e ‘emoções’. Além disso, minhas preocupações sobre o modo de agir ético dos militantes me levam a considerar que ‘valores’ e ‘emoções’ são transmitidos de forma combinada. Para a mesma hipótese, ver Didier Fassin (2009FASSIN, Didier. 2009. “Les économies morales revisitées”. Annales. Histoire, Sciences Sociales (Paris, Online), 64(6),1237-1266. https://doi.org/10.3917/anna.646.1237
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    ) e James Laidlaw (2017LAIDLAW, James. 2017. “Ethics / Morality”. In STEIN F. et al (org.) The Cambridge Encyclopedia of Anthropology. Disponível em: Disponível em: http://doi.org/10.29164/17ethics , acesso em 20.01.2020
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    ).
  • 6
    A bibliografia nacional e estrangeira éabundante, mas conheceu um interesse renovado na literatura anglo-saxã a partir da publicação de Goodwin, Jasper e Poletta (2001GOODWIN, Jeff; JASPER, James e POLETTA, Francesca (orgs.). 2001. Passionate Politics: Emotions and Social Movements, Chicago, University of Chicago Press.), como aponta Cefaï (2007CEFAÏ, Daniel. 2007. Pourquoi se mobilise-t-on? Paris, La Découverte, 2009CEFAÏ, Daniel. 2009. “Como nos mobilizamos? A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia da ação coletiva”. Dilemas (Rio de Janeiro, Online), 2(4), 11-48.) em sua vasta revisão bibliográfica, e Rezende e Coelho (2010REZENDE, Cláudia e COELHO, Maria Cláudia. 2010. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro, Editora FGV.).
  • 7
    A formulação êmica “do choro ao grito” evidencia um momento de passagem para o engajamento, especialmente estudado por Jasper (1998JASPER, James. 1998. “The Emotions of Protest: Affective and Reactive Emotions in and around Social Movements”.Sociological Forum, 13(3), 397-424) em torno do choque moral. Está associada também ao surgimento de processos de mobilização social em contextos traumáticos de dor e sofrimento para as vítimas e familiares (Birman e Leite, 2004BIRMAN, Patricia e LEITE, Márcia Pereira (orgs.). 2004. Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre, ed.UFRGS; Vianna e Farias, 2011VIANNA, Adriana e FARIAS, Juliana. 2011. “A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional”, Cadernos Pagu (Campinas, Online), 37, 79-116. https://doi. org/10.1590/S0104-83332011000200004.
    https://doi. org/10.1590/S0104-833320110...
    ; Lacerda, 2012LACERDA, Paula. 2014. “O sofrer, o narrar e o agir: dimensões da mobilização social de familiares de vítimas”. Horizontes Antropológicos (Porto Alegre, Online), 20(42), 49-75. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832014000200003.
    http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832014...
    ).
  • 8
    Há mais etnografias concentradas sobre romarias devocionais do que sobre as “martiriais”, embora possamos citar o trabalho clássico de Steil (1996STEIL, Carlos Alberto.1996. O sertão das romarias. Petrópolis, Vozes.) e de Souza (2016SOUZA, Edimilson. 2016. “Crônicas da morte revividas na luta: uma etnografia da Romaria dos Mártires da Caminhada em Ribeirão Cascalheira (MT), Brasil”. Etnográfica (Lisboa, Online), 20 (2), 339-362. https://doi.org/10.4000/etnografica.4306
    https://doi.org/10.4000/etnografica.4306...
    , 2019SOUZA, Edimilson. 2019. A luta se faz caminhando. Campinas, Tese de Doutorado, Universidade de Campinas.), como exceções. Este último realiza uma comparação entre diferentes romarias na Amazônia e no Nordeste que buscam fazer denúncia e fazer memória.
  • 9
    Cohen et al. (2017COHEN, Anouk; KERESTETZI, Katerina e MOTTIER, Damien. 2017. “Introduction. Sensorialités religieuses: sens, matériaités et expériences”. Gradhiva (Paris, Online), 26, 5-21. https://doi.org/10.4000/gradhiva.3418
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    : 6): “Quels perceptions, sensations, émotions et mouvements naissent-ils de la rencontre avec les objets, les substances et l’environnement physique d’une pratique religieuse ?”
  • 10
    Se rituais costumam ser momentos de efervescência coletiva, como sublinha Durkheim (1996DURKHEIM, Émile. 1996[1912]. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo, Martins Fontes [1912]) em seu clássico estudo, etnograficamente se torna relevante estar atento a variações nesse estado de “efervescência”.
  • 11
    Sobre as paradas de reflexão, na reunião de preparação de 08/05/2018 para a III Romaria, Claudelice explica: “Cada uma das paradas têm um significado para nós, familiares. Majestade [a grande castanheira no lote do casal] era um local deles, de pensar as lutas. A escola foi o último momento quando um dos familiares [da Maria] os viu passar, quando Laísa estava entrando para dar aula. O curral foi onde uma das testemunhas os viu pela última vez passando, e a curva, local onde eles tinham estratégia de entrar e sair do assentamento. Na curva, eles poderiam ter saído de outra forma e a história seria outra... [choro]. Desculpa, gente”.
  • 12
    O grito é também uma categoria êmica importante entre os militantes egressos da teologia da libertação. Dánome a muitos rituais criados a partir das CEBs no Brasil, como o “Grito dos Excluídos”, que acontece sempre na semana do 7 de setembro. Uma história do ‘grito’, como expressão de emocoes politicas, entre os movimentos sociais no Brasil, que tomaram emprestado repertorio de ação das comunidades católicas progressistas, precisa ser realizada.
  • FINANCIAMENTO:

    Contrato doutoral da EHESS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2020
  • Aceito
    01 Out 2020
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