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Terapeutas populares no Recôncavo da Bahia, Brasil: configurações agentivas em ontologias híbridas

Popular cures in the Recôncavo da Bahia (Brazil): agentive configurations in hybrid ontologies

RESUMO

Este artigo investiga as terapêuticas de cunho popular no Recôncavo Baiano, compreendidas como ontologias híbridas. Durante a observação em campo e na interlocução com os terapeutas percebemos como os gestos e posturas, procedimentos e enunciados envolvidos nos cuidados de tipo devocional e religioso (rezas, benzeduras, oferendas, possessões) se estendem ao ambiente (ervas, plantas, animais, marés, mato, quintais, movimentos do sol e da lua etc.) numa relação de continuidade. Seguindo essas conexões, ponderamos a relevância da perspectiva pragmática para analisar a conexão entre artefatos terapêuticos (fabricações) e processos vitais (crescimentos), no intuito de mapear algumas configurações agentivas em ontologias híbridas. Consideramos, ainda, o poder transformativo do ritual na produção dessas ontologias.

PALAVRAS-CHAVE:
Terapêuticas populares; pragmatismo; configuração agentiva; ritual

ABSTRACT

This article investigates the popular therapies in the Recôncavo da Bahia, understood as hybrid ontologies. During the observation in the field and in the dialogue with the therapists, we realized how the gestures and postures, procedures and statements involved in devotional and religious care (prayers, blessings, offerings, possessions) extend to the environment (herbs, plants, animals, tides, bush, yards, movements of the sun and moon etc.) in a relationship of continuity. Following these connections, we consider the relevance of the pragmatic perspective to analyze the connection between therapeutic techniques and artifacts (fabrications) and vital processes (growths), in order to map some configurations in hybrid ontologies. We also consider the transformative power of ritual in the production of these ontologies.

KEYWORDS:
Popular therapeutics; pragmatics; agency configuration; ritual

INTRODUÇÃO

Nos saberes e práticas dos terapeutas populares das comunidades do Recôncavo Baiano1 1 O Recôncavo Baiano é uma região situada em torno da Baía de Todos os Santos, abrangendo também a porção do território que se estende para o interior. Na região prevalece uma população afrodescendente (Caroso, Tavares e Pereira, 2011). os corpos se estendem às coisas. “Ervas” 2 2 As “ervas”, ou “folhas”, constituem uma designação nativa genérica para as diferentes partes dos vegetais de valor curativo. Doravante utilizaremos sem aspas. , plantas, animais, e outros referentes a esse ambiente (marés, mato, quintais, movimentos dos astros etc.) estão em relação com gestos e posturas, procedimentos e enunciados envolvidos nos cuidados de tipo devocional e religioso (rezas3 3 Durante rezas e benzeduras faz-se o sinal da cruz sobre a pessoa (mas também animais ou objetos), enunciam-se orações e usam-se elementos rituais (folhas, torrões, como outros vários elementos ou artefatos). Ver Gomes do Nascimento e Ayala (2013). , oferendas, gestos e procedimentos rituais).

Para melhor seguir o rastro dessas conexões, podemos desdobrá-las em dois níveis. No primeiro nível, observam-se continuidades nos materiais utilizados nesses agenciamentos terapêuticos: os terapeutas que mobilizam ervas, plantas, elementos animais e da natureza não identificam uma partição entre princípios ativos (contidos na materialidade das folhas, por exemplo)4 4 Sobre medicamentos fitoterápicos em ambientes populares ver Camargo (1985), Pinto, Amorozo e Furlan (2006). Partilhamos da posição de Diegues (2000) e Almeida (2008) acerca da importância das pesquisas etnocientíficas. No entanto, como observa Oliveira (2012), é preciso problematizar a classificação das referências nativas no âmbito das abordagens “etnocientíficas”, cujas taxonomias acabam por se legitimar como “fundo silencioso” para a compreensão do poder curativo das ervas, a desfavor dos processos de hibridização. e o conjunto de processos vitais ontologicamente híbridos. No segundo nível, sustentamos que nesses processos vitais estão envolvidas ações técnicas (confecção de chás, banhos, garrafadas, lambedores, defumações, remédio de picada de cobra etc.), cujos efeitos terapêuticos esperados não se contrastam às eficácias de cunho ritualístico e devocional ‒expressões de fé, visões, rezas, oferendas, possessão religiosa etc., como veremos, sobretudo, na segunda parte do artigo. Parece-nos, portanto, que as continuidades entre os processos vitais diversos, que também incluem dimensões não humanas, comportam procedimentos tanto técnicos como ritualísticos e acabam dando um tom anímico (uma “animicidade”, nos termos de Ingold) às terapêuticas associadas às religiosidades populares.

Na análise de práticas terapêuticas fortemente marcadas pela devoção católica ou afrocatólica, deve-se evidentemente evitar de colocá-las num confronto ‒ desvantajoso ‒ com o referencial científico ocidental, no qual prevalece uma natureza objetivada em classes homogêneas e separadas (Sussekind, 2018SÜSSEKIND, Felipe. 2018. Sobre a vida multiespécie. Revista do Instituto de EstudosBrasileiros, n. 69, 159-178. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p159-178
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). A “teoria da vida”5 5 O termo reflete a antropologia das últimas décadas, caracterizada por pesquisas que procuram entender teorizações da vida não ocidentais, nas quais há geralmente integração entre o social e o biológico. Autores como Descola (2006), Ingold (2000) e Latour (1994) foram fundamentais na edificação de uma antropologia capaz de superar a dicotomia natureza/cultura típica do embasamento científico ocidental. Num artigo sobre a obra Biosocial Becomings. Integrating social and biological anthropology, (Ingold e Palsson, 2013), Pitrou (2015) discute a relevância das etnografias para a compreensão da diversidade dos saberes sobre a vida e sobre os seres vivos — trata-se de etnoteorias da vida que conduzem, segundo este autor, à desconstrução do conceito de natureza implicitamente determinado pela perspectiva ocidental. associada às terapêuticas populares implica uma natura naturans, isto é, uma natureza que não é dada, nem objetivada segundo modelos de controle replicáveis em diferentes contextos. Para isso, vamos dar ênfase aos dois níveis de eficácia, apresentados acima, a partir das pesquisas desenvolvidas com terapeutas populares dos quilombos do município de Cachoeira e da sede do município de Santo Amaro.6 6 Os dados da pesquisa sobre terapeutas quilombolas, realizada entre 2017 e 2018 e conduzida por duas das autoras deste artigo, Fátima Tavares e Francesca Bassi, entre outros pesquisadores, encontram-se reunidos no “Dossiê ObservaBaía” (acesso restrito) e são publicados parcialmente em Tavares et al. (2019). Os dados sobre os terapeutas de Santo Amaro foram obtidos em pesquisa de campo conduzida por Francesca Bassi e Michele Macedo de Sá — também autora deste artigo. Nessas religiosidades do Recôncavo baiano, cuja vocação terapêutica é incisiva, materiais das ervas (folhas, entrecascos, raízes, flores), animais (pele e penas, veneno, excrementos etc.), do ambiente (pedras, areia, madeira, bambu, carvão vegetal, argila, cupinzeiro) e produtos industrializados (vinagre, óleos, gasolina, agulha, papel, tecido)7 7 Sobre os materiais utilizados pelos praticantes terapêuticos, ver os quadros descritivos em Tavares et al. (2019: 148 e ss). se misturam com procedimentos de coleta e de feitura (nos quintais e no mato, segundo dias e horários da semana etc.). Os gestos devocionais e a evocação de santos católicos ou entidades de matriz africana afirmam, ainda, a importância da “fé”8 8 Os terapeutas se referem à “fé” para qualificar uma adesão à eficácia da ação ritual e terapêutica. A noção nativa diverge do conceito de fé da doutrina católica oficial que envolve, sobretudo, a confiança em uma salvação extramundana e um credo a ser professado a fim de obter tal salvação (Sabbatucci,2000). Considerando essas diferenças, manteremos as aspas para sinalizar a especificidade da categoria nativa, evitando assim um uso acrítico do termo. Voltaremos a essa questão adiante no texto. na cura. Tudo isso em contextos intensamente marcados por vivências comunitárias e participações interpessoais na feitura de corpos e pessoas (Pina-Cabral e Silva, 2014).

Para a compreensão dessas terapêuticas não é fácil, nem oportuno, do ponto de vista heurístico, entender onde termina o efeito fitoterápico dos chás ou das garrafadas e quando começa a eficácia de cunho simbólico (devocional, ritualística etc.). Questões como essa correm o risco de ampliar o fosso entre a eficácia da biomedicina (e seus critérios científicos de verdade) e supostas dimensões prevalentemente simbólicas das terapêuticas populares (as crenças), num processo de reificação da cultura popular no espaço público ‒ a “cultura” com aspas, como apontada por Carneiro da Cunha (2009). No lugar da “cultura” (com aspas, no próprio sentido indicado pela autora) devemos considerar o mundo que esses nativos habitam, onde emergem entrelaçamentos e continuidades entre ontologias diversas (ervas, animais, santos católicos, energias antropomorfas, entidades das religiosidades de matriz afro, espacialidades e temporalidades do ambiente etc.).

Para a “ontogênese anímica”9 9 Ingold se refere, sobretudo, à experiência etnográfica entre os povos do norte circumpolar ártico, cuja “ontogênese anímica”, corresponde ao estar aberto ao mundo. Ver, especialmente, Ingold (2015). , o mundo, sempre considerado em crescimento, se configura como objeto de um certo espanto decorrente de uma imprevisibilidade constitutiva, havendo a admiração de seu contínuo movimento e implícitas incertezas (Ingold, 2015INGOLD, Timothy . 2015. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis, Vozes.: 125). Todavia, se por um lado a lição de Ingold sobre a importância do envolvimento do ser humano no movimento do ambiente (com seus processos sensoriais e perceptivos), deve ser acolhida, por outro, uma ideia (no sentido ético) de vida não pode evacuar as diversas concepções (no sentido êmico) dos processos vitais (de crescimento, reprodução, envelhecimento, adoecimento, restauração da saúde etc.). Trata-se de observações sobre a antropologia ecológica de Ingold que, em pesquisas recentes, Pitrou (2014PITROU, Perig. 2014. “Life as a process of making in the Mixe Highlands (Oaxaca, Mexico): towards a ‘general pragmatics’ of life”. JRAI - Journal of the Royal Anthropological Institute (N.S.), 21(1), 86-105. https://doi.org/10.1111/1467-9655.12143.
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, 2015PITROU, Perig . 2015. “Artigo bibliográfico. Uma antropologia além de natureza e cultura?” Mana , Rio de Janeiro, 21(1), 181-194. https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n1p181.
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, 2016PITROU, Perig . 2016. “Introdução - Ação ritual, mito, figuração: imbricação de processos vitais e técnicos na Mesoamérica e nas terras baixas da América do Sul (Introdução”). Revista de Antropologia , São Paulo, 59(1), 6-32. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2016.116911.
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) vincula à interpretação dos processos vitais a partir de ações lato sensu técnicas, uma vez que parecem centrais nas diversas teorias da vida ‒ e isso para além da experiência do envolvimento perceptivo e sensorial no ambiente.

O diálogo com a teoria (eco)sistêmica de Ingold (2013INGOLD, Tim e PÁLSSON, Gísli (orgs.). 2013. Biosocial Becomings: Integrating Social and Biological Anthropology. Cambridge, Cambridge University Press.), que defende a porosidade entre humano e não humano, organismo e ambiente, ser vivo e artefato10 10 A visão (eco)sistêmica de Ingold (2013) é contrária ao pressuposto de formas predefinidas da evolução segundo critérios de replicação, mutação, de características transmissíveis. Como escreve Ingold, defendendo a ideia da ontogênese, “as formas de vida, portanto, não são nem genética nem culturalmente pré-configuradas, elas emergem como propriedades da auto-organização dinâmica de sistemas de desenvolvimento.” (2013:8). , provoca em Pitrou inquietações de ordem etnográfica que conduzem a reiterar a importância da agentividade, em complemento ao conceito de animicidade: o estar vivo e aberto ao mundo em presença de uma profusão de vitalidades não exclui o “fazer viver” por parte de agentes invisíveis (2016: 9). Os saberes locais configuram as ações desses agentes nos processos vitais e promovem um “regime de coatividade” entre humanos e não humanos (Pitrou, 2016PITROU, Perig . 2016. “Introdução - Ação ritual, mito, figuração: imbricação de processos vitais e técnicos na Mesoamérica e nas terras baixas da América do Sul (Introdução”). Revista de Antropologia , São Paulo, 59(1), 6-32. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2016.116911.
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: 10), notadamente através de habilidades ritualísticas que compreendem técnicas do corpo e ações sobre elementos e materiais diversos. Pitrou enfatiza como sistemas de representações nativos e procedimentos rituais frequentemente concebam a vida como uma série de ações técnicas, no sentido amplo de ações que parecem reproduzir a forma e as características observáveis nos seres vivos (2015, passim).11 11 Pitrou, se referindo à sua pesquisa etnográfica no México, escreve que os dados “evidenciam como a restituição de uma pluralidade de ações técnicas (semear, cortar, contar, cozer etc.) realizadas por ‘Aquele que faz viver’ permite conhecer como os Mixe representam para si certos mecanismos associados à vida” (2016:10). De fato, segundo Pitrou, não somente os processos vitais, mas a própria origem da vida é pensada, em muitas sociedades, a partir de processos técnicos executados por entidades não-humanas demiúrgicas. Com efeito, a importância da metáfora tecnicista para a compreensão dos processos vitais nas teorias nativas “apresenta a vantagem de explicar o desconhecido apoiando-se em práticas nas quais os próprios humanos experimentam seu poder de transformação” (Pitrou, 2016PITROU, Perig . 2016. “Introdução - Ação ritual, mito, figuração: imbricação de processos vitais e técnicos na Mesoamérica e nas terras baixas da América do Sul (Introdução”). Revista de Antropologia , São Paulo, 59(1), 6-32. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2016.116911.
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:14). Trata-se de uma sugestão investigativa com a qual Pitrou pretende enfatizar as imbricações ontológicas entre artefato e ser vivo, técnicas e processos vitais, segundo a ideia de “cadeias operatórias” (Pitrou, 2016PITROU, Perig . 2016. “Introdução - Ação ritual, mito, figuração: imbricação de processos vitais e técnicos na Mesoamérica e nas terras baixas da América do Sul (Introdução”). Revista de Antropologia , São Paulo, 59(1), 6-32. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2016.116911.
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: 17), assim como foi sugerido por Ludovic Coupaye (2013COUPAYE, Ludovic. 2013 Growing Artefacts, Displaying Relationships: Yams, Art and Technology amongst the Nyamikum Abelam of Papua New Guinea. Nova-York, Oxford, Berghahn.) na apreciação da combinação de ações humanas e não humanas em práticas hortícolas dos Abelam de Papua Nova Guiné, nas quais o “crescer” (growing) se apresenta sobretudo como um “fazer” (making).

Acolhendo essas indicações de Pitrou, apresentamos a seguir algumas considerações teórico-metodológicas que nortearam os parágrafos dedicados à interpretação de dados etnográficos inerentes à pesquisa conduzida no Recôncavo da Bahia, nos municípios de Cachoeira e Santo Amaro. Na conclusão tentaremos retomar o debate sobre processos vitais e fabricações terapêuticas, considerando também a relevância transformadora da ação ritual.

CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS INICIAIS

Etnografias diversas apontam para a relevância das ações técnicas e rituais na compreensão da complexidade da vida, na medida em que elas ajudariam a visualizar os processos vitais. Com efeito, segundo Pitrou, nas etnoteorias percebem-se “maneiras de tornar inteligível a complexidade da vida, para além de uma concepção universal de vida como movimento” (Pitrou, 2015PITROU, Perig . 2015. “Artigo bibliográfico. Uma antropologia além de natureza e cultura?” Mana , Rio de Janeiro, 21(1), 181-194. https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n1p181.
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:191).12 12 Pitrou, considerando a multiplicidade dos processos vitais, decide inverter a proposição ingoldiana: “Em vez de naturalizar o gesto técnico inserindo-o em um movimento uniforme mais vasto capaz de imprimir-se sobre todos os seres, artefatos e organismos, os processos técnicos - entendidos como reunião ordenada de uma pluralidade ações - podem ser tratados como objeto privilegiado para compreender a complexidade dos processos vitais.” (2016: 17). Sem poder entrar no detalhe dessa reflexão, vale aqui lembrar que Pitrou coloca em questão a noção de “vida” concebida em termos universalistas: “que interesse haveria em conduzir pesquisas etnográficas se já dispomos de uma definição universal?”. O autor prefere considerar “a multiplicidade das teorias da vida, integrando nessa abordagem as controvérsias internas às próprias ciências ocidentais sobre esta questão.” (2016: 11). A visualização das complexidades dos processos vitais a partir de processos técnicos evoca, ainda, uma porosidade ontológica. O autor destaca os resultados das pesquisas: “[...] muitas etnografias atestam a porosidade das fronteiras ontológicas entre seres vivos e artefatos, e cada vez mais deparamo-nos com fenômenos como transformação ou hibridação” (2016:17). Neste sentido, Pitrou indica um caminho metodológico de cunho pragmático, no qual são enfatizadas grandes categorias de ações (criação, fabricação, domesticação, produção, hibridação, incorporação), como também conexões por semelhança (isomorfismos, desdobramentos, acasalamentos etc.), entre processos vitais e técnicos (no sentido amplo de “crescimentos” e “fabricações”). Essas imbricações definem-se, no olhar deste autor, coordenações de agências humanas e não-humanas, as quais podem ser compreendidas como “configurações agentivas.” (2016: 20). As etnoteorias indicam, portanto, que a vida é continuamente constituída pragmaticamente, a partir da “ação-na-relacionalidade” (Pitrou, 2015PITROU, Perig . 2015. “Artigo bibliográfico. Uma antropologia além de natureza e cultura?” Mana , Rio de Janeiro, 21(1), 181-194. https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n1p181.
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: 191).13 13 Pitrou cita aqui Eugenia Ramirez Goicoechea (2013).

Auspicando a integração de diferentes teorias sobre processos vitais (a abordagem fenomenológica e ecológica de Ingold, mas também os enfoques semiológicos e tecnológicos), Pitrou abre essa pista metodológica de cunho pragmático (2016PITROU, Perig . 2016. “Introdução - Ação ritual, mito, figuração: imbricação de processos vitais e técnicos na Mesoamérica e nas terras baixas da América do Sul (Introdução”). Revista de Antropologia , São Paulo, 59(1), 6-32. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2016.116911.
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: 20) que consideramos aplicável também à pesquisa sobre terapêuticas populares do Recôncavo. Nessas terapêuticas populares, o conhecimento relativo às propriedades curativas das ervas e outros materiais (vivos e não vivos), acionado pelo engajamento perceptivo no ambiente (Ingold, 2000INGOLD, Timothy. 2000. Perceptions of environment. Essays on livelihood, dwelling and skill. London, Routledge.;2010INGOLD, Timothy .2010. “Da transmissão De representações à educação Da atenção”. Educação. Porto Alegre, 33(1), 6-25. https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/677.
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; 2012INGOLD, Timothy . 2012. “Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais”. Horizontes antropológicos, Porto Alegre. 18(37), 25-44.), pode se articular com ações diversas: produção de remédios, gestos, posturas e enunciados, ações devocionais e performances religiosas (rezas, oferendas, possessões religiosas, jogo divinatório etc.). Na medida em que as terapêuticas populares não desenvolvem sistemas explícitos e classificações homogêneas, fugindo da necessidade de uma sistematização filosófica ou científica (Brandão, 1980BRANDÃO, Carlos Rodriguez. 1980. Os deuses do povo: um estudo sobre a religião popular. São Paulo, Livraria Brasiliense Editora.), os contextos de ação definem, de vez em vez, as ocorrências e as transformações de um mundo em devir. No lugar de uma sistematização abstrata, encontramos, portanto, nas terapêuticas populares, configurações agentivas que imbricam domínios vitais diversos (crescimentos) e artefatos técnicos, devocionais, rituais (fabricações heterogêneas).

Vale aqui ressaltar que essas diferenças das terapêuticas populares ecoam há décadas na etnologia ameríndia, produzindo fricções conceituais que problematizam o encapsulamento dos processos intencionais ao espírito (self ) ou à mentalidade, relegando o corpo (biológico) à natureza (dada), possibilitando descentramentos importantes das premissas da antropologia da saúde (Tavares, 2017TAVARES, Fátima.2017. “Rediscutindo conceitos na antropologia da saúde: notas sobre os agenciamentos terapêuticos”. Mana , v. 23, n. 1, p. 201-228.). Como já evidenciava o trabalho seminal de Seeger et al (1979SEEGER, Anthony; DA MATTA, Roberto; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1979. “A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras”. Boletim do Museu Nacional, 32:2-19.), nas filosofias ameríndias a obsessão é pelas transformações corporais (naturezas fabricadas). As clivagens entre espírito e corporalidade, tão fundamentais na metafísica ocidental, são assim viradas do avesso ao evidenciar a centralidade das transformações corporais dos povos indígenas. Uma compreensão alternativa dos corpos na relação com o conhecimento, apresentada por McCallum (1998)MCCALLUM, Cecilia. 1998. “O corpo que sabe. Da epistemologia kaxinawá para uma antropologia médica das terras baixas sul-americanas”. In: P. C. Alves & M. C. Rabelo (orgs.), Antropologia da saúde, traçando identidade e explorando fronteiras. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/ Editora Relume Dumará. pp. 215-245. num estudo sobre os Kaxinawá (povo da Amazonia), é também particularmente reveladora da hibridação entre crescimentos e fabricações e da conexão entre dimensões externas e internas. Para os Kaxinawá, o conhecimento14 14 Como escreve McCallum, “não existe um termo específico kaxinawá que possa ser traduzido como ‘conhecimento’. Seu equivalente mais próximo, unaya, pode ser definido como com sabedoria/ aprendizado” (1998:24)., é um processo que envolve os órgãos do corpo e se adquire na interação com o ambiente: há sabedoria na pele, pois através dela a pessoa sente e compreende os fenômenos naturais como calor, frio e chuva. Essa sabedoria é coadjuvada pela ‘alma do corpo’, configurada como uma segunda pele invisível ou como uma aura (McCallum,1998MCCALLUM, Cecilia. 1998. “O corpo que sabe. Da epistemologia kaxinawá para uma antropologia médica das terras baixas sul-americanas”. In: P. C. Alves & M. C. Rabelo (orgs.), Antropologia da saúde, traçando identidade e explorando fronteiras. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/ Editora Relume Dumará. pp. 215-245.:225). Os outros órgãos (olhos, orelhas, órgão genitais, etc.) também produzem conhecimentos específicos. A partir dessas rápidas observações, podemos dizer que o conhecimento corporificado inclui uma conexão entre diversos processos vitais (as faculdades dos órgãos, os movimentos do ambiente, os processos espirituais). Além disso, a partir do momento que o conhecimento dos órgãos é coadjuvado pelas ervas medicinais (McCallum,1998MCCALLUM, Cecilia. 1998. “O corpo que sabe. Da epistemologia kaxinawá para uma antropologia médica das terras baixas sul-americanas”. In: P. C. Alves & M. C. Rabelo (orgs.), Antropologia da saúde, traçando identidade e explorando fronteiras. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/ Editora Relume Dumará. pp. 215-245.:226), os processos vitais são inseridos num processo técnico, dissolvendo as fronteiras entre corpo vivo e o artefato. O conhecimento, finalmente, deixa de ser algo de subjetivo, mental ou interno, pois se dissemina nos órgãos, ao passo que o “corpo que sabe” (McCallum,1998MCCALLUM, Cecilia. 1998. “O corpo que sabe. Da epistemologia kaxinawá para uma antropologia médica das terras baixas sul-americanas”. In: P. C. Alves & M. C. Rabelo (orgs.), Antropologia da saúde, traçando identidade e explorando fronteiras. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/ Editora Relume Dumará. pp. 215-245., passim) envolve uma fisicalidade que, de certo modo, é subjetivada. Sobre esta última questão, vale lembrar a definição proposta por Santos-Granero (2012)SANTOS-GRANERO, Fermando. 2012. “Beinghood and People-Making in Native Amazonia: A Constructional Approach with a Perspectival Coda”. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 2: 181-211., a partir de sua pesquisa em contexto amazônico, dum quadro simbólico de fabricação comum aos seres vivos e aos artefatos, a pessoa humana sendo construída segundo incorporações que contemplam tanto a objetivação de subjetividades como a subjetivação de artefatos15 15 Como escreve Santos-Granero, há duas modalidades de incorporação: “a encorporação (embodiment), que provoca a incorporação por meio da objetivação de substâncias e subjetividades externas, e espiritização (ensoulment), que envolve a incorporação por meio da subjetivação de artefatos e substâncias corporais externas” (2012: 198, apudPitrou, 2016:20). .

As configurações das terapêuticas populares do Recôncavo também não preveem uma separação entre corpos vivos e artefatos, sendo que a pesquisa indica claramente a possibilidade de os artefatos agirem subjetivamente (as imagens dos santos possuem intencionalidades humanas) e de os humanos se objetivarem como artefatos rituais (as possessões religiosas por entidades afro-brasileiras constituem um exemplo disso). Segundo desdobramentos e isomorfismos, postulam-se continuidades ontológicas específicas. Por exemplo, durante uma reza que contrasta o “olho grande”16 16 Sobre essa categoria nativa, ver Minayo (1988). A autora apresenta a etiologia popular explicando que as crianças vítimas do “mau olhado” (uma “eletricidade” negativa) são reconhecidas por sintomas diversos; geralmente, febre, irritação, prostração, vômito, desidratação ou diarreia. Nos adultos, o “olhado” ou “olho grande”, devido à inveja, provoca transtornos graves, debilitação de saúde, perda de bens, desemprego etc. Finalmente o encosto (um espírito perturbador) implica doenças difíceis de serem explicadas pelo diagnóstico médico, como distúrbios emocionais e problemas degenerativos (Minayo, 1988: 373). Nas nossas interlocuções apareceu simplesmente o termo “olhado”; também foram mencionadas doenças originadas por “espíritos” ou “ventos” ruins. Em Tavares et al (2019) são apresentadas diferentes rezas na resolução de problemas de saúde, para não perder criação de animais, de cuidado com a plantação etc. , a planta é passada no corpo do paciente para absorver a energia ruim da inveja: a ação terapêutica, implicada no conjunto palavras-gestos-folha (artefato ritual), comporta um processo de animação e subjetivação da folha que, absorvendo os efeitos ruins do olhado, se hibridiza com os processos vitais humanos (desânimo etc.) e termina murchando. O processo de cura acontece, portanto, segundo condições pragmáticas específicas e variáveis (observância da exatidão das palavras e as repetições na reza, tom de voz, posturas e gestos com a planta etc.), as quais definem uma presença (e não a mera representação) de agenciamentos eficazes e suas hibridizações.

A própria iconografia católica, muito importante para caracterizar as imagens dos santos presentes nas religiosidades populares, possui uma dimensão lato sensu vitalista. Como bem resume Tavares (2015TAVARES, Josinaldo Monteiro. 2015. “O uso da linguagem como instrumento terapêutico: rezadeiras e ato de fala”. Recife, Dissertação de Mestrado, Universidade Católica de Pernambuco, Recife.), os santos no catolicismo popular tradicional “são pessoas, seres individuais, dotados de liberdade, vontade, qualidades próprias [...] e estão presentes na terra através de suas imagens, que equivalem à própria pessoa do santo”. Vale para as imagens dos santos a lição de Todorov (1991TODOROV, Tzvetan. 1991. Teorie del simbolo. Milano, Garzanti Ed. : 305) sobre diversos processos de simbolização, nos quais a relação metonímica agente-ação é mais relevante que a relação metafórica entre a imagem e o ser representado. Essa relação metonímica é ativada intensivamente durante as ações rituais (de cunho devocional e curativo), quando se desfruta ainda mais a agência dos artefatos, para além do plano representacional.

Nesse sentido, a iconografia popular se distancia daquela do catolicismo oficial, de forma semelhante ao argumento trazido por Neurath (2016NEURATH, Johannes. 2016. “El sacrificio de un cuchillo de sacrifício”. Revista de Antropologia. São Paulo, 59(1), 73-107.) em sua pesquisa sobre arte pré-hispânica mesoamericana. O autor escreve sobre o contraste entre as iconografias greco-latinas e cristãs, cujos atributos servem para identificar os deuses ou os santos, e as ferramentas (facas, braceiros, flechas e outros diversos objetos que os personificam, assumindo poderes rituais) das divindades do Mesoamérica que, literalmente, agem. De fato, os seres poderosos se fazem presentes nos seus próprios instrumentos, os quais podem tanto ameaçar, atacar, devorar como proteger e os seres humanos. (2016: 74)

Neurath cita Severi (2007SEVERI, Carlo . 2007. Le Principe de la chimère: Une Anthropologie de la mémoire. Paris, éditions Rue d’Ulm-Musée du Quai Branly, col. “Aesthetica”.) ao considerar como os contextos rituais (no estudo de Neurath trata-se de rituais de tipo sacrifical) implementam as condições pragmáticas para os instrumentos comuns se tornarem artefatos animados, ontologicamente híbridos que, dependendo das eficácias evocadas, podem ou não acionar seus poderes e se tornarem agentivos. Sobre a questão da potencial animicidade dos artefatos, cujo estatuto ontológico é geralmente hibridizado e incerto, Neurath adverte, ainda, que ela implica dimensões relacionais (entre humanos e não-humanos), sendo a performance ritual o contexto de atribuição duma específica agentividade. Durante a pesquisa sobre terapêuticas populares foi notado o potencial agentivo de artefatos materiais e imateriais. As rezas terapêuticas, notadamente, não são, em primeira instância pronunciadas para exaltar as características dos santos ou seres divinos (como os louvores aos santos, por exemplo), mas para chamar (no sentido de evocar) e ativar seus poderes.

As ontologias das terapêuticas do Recôncavo são geralmente enxergáveis como parte da cultura popular da região. O conceito de popular17 17 A despeito dos problemas decorrentes de sua estigmatização homogeneizante, que opõe o popular ao erudito e ao científico, pode-se reabilitar o uso do termo “popular” no rastro da visibilização, nas diferenças, das formas de vida. tem comportado várias discussões sobre sua pluralização (Rocha, 2009ROCHA, Gilmar. 2009. “Cultura popular: do folclore ao patrimônio”, Mediações, Londrina, (14)1, 218-236. http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/download/3358/2741.
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php...
) e sua relação com a cultura considerada erudita. A inverossimilhança de uma cultura popular homogênea tem se estendido à dimensão da religiosidade, especificamente no tocante do catolicismo popular (Reesink, 2013REESINK, Mísia L. 2013. “Por uma perspectiva concêntrica do catolicismo brasileiro”. Revista Anthropológicas, ano 17, 24(2), 161-187.). As reflexões aqui apresentadas não propõem mais uma definição do “popular”, nem uma descrição exaustiva das dimensões religiosas das terapêuticas populares do Recôncavo. Mais simplesmente, elas serão apresentadas como teorias da vida que comportam hibridações entre seres vivos e artefatos, isto é, imbricações entre crescimentos e fabricações (Pitrou, 2014PITROU, Perig. 2014. “Life as a process of making in the Mixe Highlands (Oaxaca, Mexico): towards a ‘general pragmatics’ of life”. JRAI - Journal of the Royal Anthropological Institute (N.S.), 21(1), 86-105. https://doi.org/10.1111/1467-9655.12143.
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; 2015PITROU, Perig . 2015. “Artigo bibliográfico. Uma antropologia além de natureza e cultura?” Mana , Rio de Janeiro, 21(1), 181-194. https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n1p181.
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; 2016PITROU, Perig . 2016. “Introdução - Ação ritual, mito, figuração: imbricação de processos vitais e técnicos na Mesoamérica e nas terras baixas da América do Sul (Introdução”). Revista de Antropologia , São Paulo, 59(1), 6-32. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2016.116911.
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).

ONTOLOGIAS HÍBRIDAS NAS TERAPÊUTICAS POPULARES

A pesquisa sobre terapêuticas populares do Recôncavo transitou, segundo os momentos diversos de uma pesquisa de longo prazo, em ambientes rurais e urbanos de dois municípios do Recôncavo, diferenciados pelas dinâmicas de engajamento em relação à cultura popular. Se, por um lado, nos quilombos rurais de Cachoeira há uma importante ação comunitária, orientada pelo fortalecimento de referentes étnicos, de resgate dos saberes e fazeres terapêuticos populares como patrimônio, na sede do município de Santo Amaro os terapeutas atuam de maneira mais autônoma, sendo menos engajados em questões identitárias.18 18 Fala-se de sede do município, o que seria equivalente ao âmbito da cidade, mas vale ressaltar que os terapeutas de Santo Amaro entrevistados possuem quintais ou pequenas roças fora do perímetro mais urbanizado.

Para além dessas diferenças, notamos, todavia, que tanto nos quilombos de Cachoeira como nas práticas dos terapeutas de Santo Amaro, espelham-se ontologias híbridas. O uso das plantas e ervas é curativo, mas também apotropaico e propiciatório - a espada de São Jorge, a estrela de Ogum, arruda, alecrim, comigo-ninguém-pode, guiné, manjericão, pimenteira, cansanção, São Gonçalinho e inúmeras outras, são implicadas nas “fabricações” ritualístico-terapêuticas. Com efeito, não cabe diferenciar entre eficácia terapêutica e uma outra simbólica e ritualística, mas considerar o processo terapêutico na sua complexidade, como propiciador de bem-estar.19 19 Vale ressaltar, ainda, que os terapeutas não classificam corpos (eventualmente, objetivando os seus órgãos), mas falam de efeitos salutares que ocorrem nas “pessoas inteiras” (Ingold, 2015: 117) isto é, pessoas que são corpo, mente, emoções etc.

Vale atentar, ainda, para o fato de que a cura, empiricamente reconhecida e legitimável pelos atributos fitoterápicos das folhas, nem sempre evidencia equivalências com a classificação científica. As dificuldades de equivalência não se esgotam nas classificações estabilizadas das espécies, mas também atingem o próprio entendimento dos princípios ativos das folhas, que nas terapêuticas populares entram em processos vitais amplos e ontologicamente hibridizados. Consequentemente, tais princípios ultrapassam a ação terapêutica pontual e a dimensão fitoterápica (aquela que corresponderia a um levantamento etnofarmacológico), incluindo múltiplas conexões.

As ervas e as plantas, de certo modo, são eficazes em bloquear ou transmitir princípios energéticos difusos no ambiente: além de tirar o olhado devido à inveja alheia, limpam os lugares mal-assombrados, participam das energias perigosas que circulam na escuridão etc. (Tavares et al., 2019TAVARES, Fátima, CAROSO, Carlos, BASSI, Francesca, PENAFORTE, Thais e MORAIS, Fernando. 2019. Fazeres e saberes terapêuticos quilombolas, Cachoeira, Bahia. Salvador, EDUFBA .). Em geral, os próprios processos vitais de ervas e plantas (elas nascem, crescem, murcham, apodrecem) podem ser relacionadas, por desdobramentos, simetrias ou isomorfismos, aos outros movimentos vitais (humanos e não humanos) associados à proteção, vitalidade e cura, à fraqueza e adoecimento etc. Veremos detalhes dessas configurações agentivas na próxima seção, considerando as rezas, os corpos e o manuseio das folhas nas terapêuticas quilombolas.

Quanto à imbricação entre processos vitais e ações técnicas. Pitrou (2016PITROU, Perig . 2016. “Introdução - Ação ritual, mito, figuração: imbricação de processos vitais e técnicos na Mesoamérica e nas terras baixas da América do Sul (Introdução”). Revista de Antropologia , São Paulo, 59(1), 6-32. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2016.116911.
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) pondera a frequência de mitos cosmogônicos nas etnoteorias, nas quais a ação de um demiurgo produz seres vivos como um processo técnico (cerâmica, cestaria etc.).20 20 Pitrou (2016) refere-se à sua pesquisa etnográfica realizada nas comunidades camponesas dos Mixe, povo ameríndio (estado de Oaxaca, México). Como já indicamos, o interesse nos modos de pensar os processos vitais por meio de sua homologia com as atividades técnicas ‒ configurações das ações exercida sobre os materiais (2016: 8) ‒ é relacionado, segundo Pitrou, à atividade de controle das morfogêneses dos organismos vitais que permaneceriam, de outra forma, invisíveis e obscuras. Teremos oportunidade de considerar algumas metáforas tecnicistas dos processos vitais nas terapêuticas populares, mas, por enquanto, lembramos que, embora não seja atestada por um corpus de mitos, a origem dos efeitos das ervas, plantas e outros procedimentos técnicos terapêuticos é geralmente colocada pelos interlocutores sob uma genérica agência não humana que corresponde à frequente expressão da “fé” e se conjuga, eventualmente, com a manifestação de um dom divino por parte do terapeuta reconhecido pela comunidade.21 21 A relação entre dom e aprendizado, todavia, não é de oposição (Goldman, 2012): dom e “iniciação” terapêutica se dão ao mesmo tempo, pois se aprende com pessoas (familiares, vizinhos, os mais velhos), com os não humanos, com a percepção no ambiente. O dom corresponde a uma dádiva entre terapeuta e entidades não humanas (o terapeuta não age por si mesmo), indicando que os crescimentos sensoriais perceptivos do terapeuta (sua visão, sua intuição) são pensados no citado “regime de coatividade” (Pitrou, 2016PITROU, Perig . 2016. “Introdução - Ação ritual, mito, figuração: imbricação de processos vitais e técnicos na Mesoamérica e nas terras baixas da América do Sul (Introdução”). Revista de Antropologia , São Paulo, 59(1), 6-32. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2016.116911.
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:10), já que os terapeutas são coadjuvados pelas revelações pontuais de entidades não humanas sobre procedimentos técnicos específicos.22 22 As revelações podem também acontecer durante possessões religiosas, na dimensão onírica, através da adivinhação etc. Exemplar é o caso da Dona Vardé, do quilombo Kaonge (Cachoeira), que fabrica um famoso xarope cujos ingredientes lhe foram revelados em sonho por uma entidade afro-brasileira (uma Cabocla).

A pesquisa junto com os terapeutas populares insinua, portanto, que os processos vitais das ervas e plantas (seus florescimentos, princípios curativos, processos de murcha etc.) são conectados com agências diversas e heteróclitas (ventos, marés, mato, astros, entidades, espíritos, irradiações, energias etc.), e que as fabricações não são estancadas: os procedimentos fitoterápicos não constituem a parte técnica de uma ciência nativa, que seria assim parasitada por crenças e procedimentos ingênuos (uma ciência julgável, ainda, como não sistemática e marcada pelo mero empirismo). Tanto as palavras, os gestos e posturas rituais, como as técnicas de manuseio de ervas e animais (com propriedades fitoterápicas e zooterápicas), participam de um mesmo fluxo técnico-ritualístico23 23 Sobre a participação de gestos e objetos técnicos nos rituais, ver Lemmonier (2005) . A maneira como as imbricações entre crescimentos e fabricações se articulam com ações ritualísticas e devocionais será mais desenvolvida na seção sobre os terapeutas da cidade de Santo Amaro; por enquanto iremos apresentar essas imbricações nas configurações agentivas inerentes às práticas terapêuticas quilombolas.

PRATICANDO TERAPIAS NOS QUILOMBOS DE CACHOEIRA: CONFIGURAÇÕES AGENTIVAS

Na região da Baia e Vale do Iguape, onde o rio Paraguassu se alarga antes de sua foz na Baía de Todos os Santos, localizam-se os dezessete quilombos24 24 São comunidades marcadas pelas atividades “na maré e na terra”, num ambiente de extrativismo de pescados e mariscos e frutas, combinado à produção de farinha de mandioca, azeite de dendê, mel, e de legumes e hortaliças. onde conduzimos nossas conversas com os “praticantes terapêuticos”, mulheres e homens, jovens e idosos, que nem sempre se autorreferem como rezador/rezadeira, erveiro, terapeuta ou outra autodesignação que explicite a condição de especialistas ou promotores da saúde. Nos relatos coletados, as descrições das terapêuticas populares compreendem crescimentos e fabricações espelhados na feitura de chás, banhos, defumadores, lambedores, xaropes etc., como também nas rezas, nos gestos, posturas e objetos devocionais diversos (Tavares et al., 2019TAVARES, Fátima, CAROSO, Carlos, BASSI, Francesca, PENAFORTE, Thais e MORAIS, Fernando. 2019. Fazeres e saberes terapêuticos quilombolas, Cachoeira, Bahia. Salvador, EDUFBA .). No intuito de rastrear esses agenciamentos, vale trazer alguns exemplos da pesquisa, ponderando como os procedimentos terapêuticos podem promover, em continuidade, os efeitos das ervas e plantas (crescimentos), gestos técnicos (que incluem artefatos terapêuticos e técnicas do corpo) e as eficácias de cunho ritual. Sobre este último ponto, vale grifar a heterogeneidade da ação terapêutica que se imiscui nos processos vitais, sendo visível nas performances rituais e por meio de figuração gestual e verbal (Pitrou, 2016PITROU, Perig . 2016. “Introdução - Ação ritual, mito, figuração: imbricação de processos vitais e técnicos na Mesoamérica e nas terras baixas da América do Sul (Introdução”). Revista de Antropologia , São Paulo, 59(1), 6-32. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2016.116911.
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: 11).

As rezas, por exemplo, que podem curar diversos problemas (engasgos, feridas, dores variadas, “miúda”, “vento caído”, “espinhela caída”, “ar do vento”, “pé desmentido”, “olhado” etc.)25 25 A terminologia nativa das doenças apresenta correspondência imprecisa com as doenças da biomedicina: algumas delas como “espinhela caída” e “ar do vento” são graves, e de difícil tratamento; “pé desmentido” pode se aproximar das luxações e entorses; “miúda” se aproxima ao inchaço nas pernas; o “mau-olhado”, ou simplesmente “olhado”, como já mencionado, além de desânimo, apresenta um espectro extenso de consequências para crianças e adultos. são geralmente acompanhadas de ervas, carvão vegetal, pedras, torrões de argila, parte e excrementos de animais, mel, própolis, açúcar, rapadura, objetos (agulhas, panos, copos d’água etc.), produtos industrializados (vinho, aguardente, óleos, gasolina) e gestos que configuram curas no corpo: cruza-se o lugar doente com ervas ou torrões de argila; coloca-se o copo d’água acima da cabeça, interage-se com pedras, cumprem-se movimentos de costura para configurar o corpo sarado etc. (Tavares et al., 2019TAVARES, Fátima, CAROSO, Carlos, BASSI, Francesca, PENAFORTE, Thais e MORAIS, Fernando. 2019. Fazeres e saberes terapêuticos quilombolas, Cachoeira, Bahia. Salvador, EDUFBA .: 125, 160-161).

Os terapeutas apostam na continuidade da eficácia das ervas e das palavras e gestos da reza. A benzedeira Iraildes26 26 Entrevista realizada no quilombo do Engenho da Ponte em 15/06/2017. descreve, por exemplo, a cura do “vento caído”27 27 Vento caído ou “quebranto”, provoca moleza e desânimo na criança. Também se refere à criança “assustada”, chorona e irritável. , indicando procedimentos que não separam o que nós consideramos os princípios ativos do chá de algodão, das técnicas corporais e da linguagem ritualística elicitada pelo poder das palavras que invocam agências não humanas: “As fezes dela (da criança) ficam assim que nem ovo. Tem que rezar, dar chá de algodão, para poder melhorar. E quando reza tem que pegar aqui no meio, não pode pegar debaixo dos braços, durante o dia que tiver rezado” (Tavares et al, 2019TAVARES, Fátima, CAROSO, Carlos, BASSI, Francesca, PENAFORTE, Thais e MORAIS, Fernando. 2019. Fazeres e saberes terapêuticos quilombolas, Cachoeira, Bahia. Salvador, EDUFBA .: 70-71). Frequentemente, durante a reza, a cura é figurada por meio de gestos técnicos específicos, como se deduz da fala da benzedeira Dete28 28 Entrevista realizada em 27/09/2017. , do quilombo Brejo da Guaíba: “Eu pego, dobro o pano, boto a linha na agulha, vou rezando e costurando...costurando, a gente se benze e vai enfiando a agulha”. Dona Dete trata de maneira isomorfa o processo vital da cura ao ato técnico da costura, para depois finalizar a terapia com a invocação de poderes divinos: “Eu te cozo carne quebrada, nervo mordido, junta deslocada, nervo machucado e veia torcida. Chegar pro lugar com os poderes de Deus e da Virgem Maria... a gente reza. E reza o Pai Nosso...” (Tavares et al., 2019TAVARES, Fátima, CAROSO, Carlos, BASSI, Francesca, PENAFORTE, Thais e MORAIS, Fernando. 2019. Fazeres e saberes terapêuticos quilombolas, Cachoeira, Bahia. Salvador, EDUFBA .: 125).

Diversos processos vitais são interligados, conforme a reza de Dona Dete que cura a dor de cabeça, associando-a aos fatores climáticos e aos poderes divinos: “Jesus é o sol, Jesus é o sereno, Jesus é a caridade, tirando dor de cabeça de pontada, dor de chuchada e de ventosidade. Tirai-me da carne, tira-me dos ossos, tirai-me dos nervos, tirai-me da veia, com o poder de Deus e da Virgem Maria”. Uma configuração agentiva complexa nos remete, deste modo, a uma visualização de elementos heterogêneos ‒ o sol, o sereno etc. ‒, que podem provocar dor de cabeça e que se condensam com a imagem de Jesus que pode sarar a dor. As rezas devolvem, ainda, a imagem da saída do mal em lugares longínquos, não-humanos, não vitais (sem luz, sem voz, onde o sol se põe etc.): “[...] sai mal, sai desses inocente, vai para o poente, onde não canta galo, nem galinha, onde não berra boi e não houve o filho de homem chorando”, como explica a benzedeira Maria, do Brejo da Guaíba29 29 Entrevista realizada em 27/09/2017 no quilombo Brejo da Guaiba. (Tavares et al., 2019TAVARES, Fátima, CAROSO, Carlos, BASSI, Francesca, PENAFORTE, Thais e MORAIS, Fernando. 2019. Fazeres e saberes terapêuticos quilombolas, Cachoeira, Bahia. Salvador, EDUFBA .: 130).

A reza contra olhado de Dona Estelita30 30 Entrevista realizada em 11/03/2017 no quilombo de Santiago do Iguape. também configura um processo terapêutico complexo que contrasta agências humanas negativas (as intencionalidades ocultas) por meio da evocação dos efeitos benéficos das folhas (arruda, vassourinha de relógio, vassourinha de mofina), hibridizando técnicas rituais (as rezas enquanto oferendas para os santos) e processos vitais diversos: “Maria, quem botou esse olhado? Se de gorda, se de magra, se foi de feia, se foi no trabalhasse, se foi no comesse, se foi no dormisse, se foi no levantar. Bote esse olhado nas ondas do mar sagrado... aí chega a reza, Pai Nosso, Ave Maria, Santa Maria e oferece o santo...” (ibidem: 113). No caso da reza para as erupções da pele, são os crescimentos naturais das águas dos montes, além da perseguição de animais domésticos, que entram na visualização da cura: “Impingem, rabicho, sai daqui que os porcos e as porcas andam atrás de ti, a água do monte está contra ti... reza três vezes, aí reza Pai Nosso, Ave Maria, Santa Maria e oferece ao santo” (ibidem: 114).

Nas rezas descritas, constata-se que as configurações reúnem ações sobre diferentes materialidades; evocações de poderes não humanos; relações ecológicas e sociais; dimensões intencionais e emocionais ‒ sobre esse último ponto, nota-se que nas rezas são visualizadas intencionalidades humanas ocultas, como admiração e inveja, que afetam as fisicalidades. As configurações implicam tanto a invocação de poderes espirituais de cunho devocional (a Virgem, Jesus etc.), sincronizadas com a ação do terapeuta, como a imagem de forças impessoais que permeiam de forma agentiva o ambiente (as águas “sagradas” do mar limpam e purificam; a água do monte contrasta a impingem etc.). Os processos vitais difusos no ambiente podem se hibridizar com espiritualidades, segundo desdobramentos diversos (vimos que Jesus é invocado como sendo o sol e o sereno). A reprodução de atos técnicos e a ação sobre materiais, que permitem considerar processos de cura e visualizar o corpo sarando, indicam uma geral imbricação entre fabricações e crescimentos vitais (corporais, ambientais, espirituais).

A animicidade que permeia o ambiente evidencia-se também no uso das plantas medicinais, geralmente acompanhado por regras rituais (positivas e negativas) e por atitudes devocionais. Uma “teoria da vida” se manifesta nas palavras dos terapeutas, notadamente em relação à colheita das ervas. Deve-se manifestar reverência, eventualmente orando, e deve-se respeitar dias e horários para a colheita: nas primeiras horas da manhã é o mais recomendado; no meio do dia e principalmente à noite não se deve buscar folhas, apenas em emergências. As interdições temporais (evitar encruzilhadas do tempo, isto é, o meio-dia, e as horas da noite) indicam, implicitamente, cautelas contra agências negativas (“ventos”, “almas”) que não devem se sincronizar com as folhas da cura.

Muitos dos efeitos positivos dos remédios com as folhas são atrelados à pureza ritual, assim como técnicas corporais (de limpeza, resguardo alimentares e sexuais etc.) interferem nos processos da cura e contribuem para sua visualização. Neste sentido, o terapeuta Erasmo, do Mutecho-Acutinga31 31 Entrevista realizada em 23/11/2017. , lembra como seu remédio contra os efeitos da mordida de cobra, confeccionado com raízes e folhas de tira-teima e vence-tudo, exige, além de cuidados alimentares, o resguardo sexual do paciente ‒ e o próprio remédio não pode nem ser manuseado por pessoas que estão com o “corpo sujo”, isto é, que tiveram relações sexuais recentes.

O tratamento para a mordida de cobra evidencia as continuidades entre crescimentos e fabricações, colapsando as separações entre o que é dado e o que é feito, como nas continuidades entre “sangue, ritual e convivência” apontadas por Goldman (2012GOLDMAN, Marcio. 2012. “O dom e a iniciação revisitados: o dado e o feito em religiões de matriz africana no Brasil”. Mana, Rio de Janeiro, 18(2), 269-288. https://doi.org/10.1590/S0104-93132012000200002.
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), já que as relações de proximidade também são capazes de atuar de forma agentiva e condicionar os efeitos (dos princípios ativos) das fabricações medicamentosas. Como explicam Renato e sua mãe Dona Joselita, moradores do Kaimbongo32 32 Entrevista realizada em 23/03/2018. , vizinhos e familiares não podem interferir no processo terapêutico, olhando ou perguntando sobre a situação da pessoa picada por cobra (Tavares et al., 2019TAVARES, Fátima, CAROSO, Carlos, BASSI, Francesca, PENAFORTE, Thais e MORAIS, Fernando. 2019. Fazeres e saberes terapêuticos quilombolas, Cachoeira, Bahia. Salvador, EDUFBA .: 98). A interferência, provocada pela curiosidade ou pelo olhar alheio, sugere uma possível vulnerabilidade decorrente da abertura do processo da cura em relação a outrem. Sugere, ainda, uma continuidade entre “interioridades” (as disposições emocionais e intencionais de familiares ou vizinhos) e “exterioridades” (a fisicalidade do doente)33 33 Os termos “interioridade” e “fisicalidade” (ou “exterioridades”) são emprestados do vocabulário de Philippe Descola (2005). Sobre esse ponto ver Pitrou (2016: 8). . Configura-se, assim, a complexidade da eficácia do remédio, que depende do monitoramento das relações sociais, admitindo-se uma hibridação entre processos vitais e intencionalidades espalhadas na comunidade.

A “fé”, finalmente, remete à cura como um crescimento vital essencial, mediado pelo poder das folhas, das palavras, posturas e gestos, participação. As diversas “fabricações” (fitoterápicas, corporais, ritualísticas etc.) coadjuvam esse crescimento fundamental que garante o sucesso da cura, como se infere também das afirmações de Seu Erasmo:

A cura é uma coisa. O chá é outra. A cura são as palavras, porque não adianta, por exemplo, o senhor chegar aqui me queixando de dor de cabeça... eu vou perguntar se quer que eu diga umas palavras confiada em Deus aí pra ver se alivia. Se o senhor acredita em Deus e tá com a fé eu posso ficar aqui batendo a boca sem dizer nada, mas se o senhor tá com a fé... entendeu? O que cura é a fé. (Tavares et al., 2019TAVARES, Fátima, CAROSO, Carlos, BASSI, Francesca, PENAFORTE, Thais e MORAIS, Fernando. 2019. Fazeres e saberes terapêuticos quilombolas, Cachoeira, Bahia. Salvador, EDUFBA .: 135).

O poder das rezas é o poder das palavras conjugado com a “fé”, nos diz Seu Erasmo. As rezas evocam poderes, deve-se ter observância com as palavras e os procedimentos em geral. Também é preciso ter “fé”, explica nosso interlocutor, indicando a imbricação entre as performances rituais do terapeuta e as disposições emocionais e intencionais do paciente em relação à eficácia da cura. De certo modo, os movimentos internos do paciente (o acreditar) fazem parte da cadeia operatória implicada na cura, pois permitem o crescimento dos poderes curativos mobilizados pelo terapeuta. A compreensão da “fé” como parte de uma eficácia terapêutica complexa, capaz de conectar esses movimentos internos aos movimentos externos (os enunciados e os gestos terapêuticos etc.), difere, portanto, de uma noção de fé do senso comum a que seriamos levados num entendimento apressado. Nossos interlocutores sabem que sem “fé” não há eficácia, pois não há o “crescimento” benéfico inerente à cura.34 34 A “fé”, todavia, vem diminuindo, os interlocutores lamentando, inclusive, essas mudanças — mas isso não quer dizer que não recorram mais à eficácia das práticas de cuidado e, quando participam dessa ordem ontológica, são afetados por ela.

Podemos analisar a agentividade da “fé” nos termos dessa complexidade ontológica da eficácia da cura, isto é, uma “instância capaz de favorecer os processos vitais” ou, ainda, como uma noção que dá uma certa coerência à teoria da vida local ‒ entendida como forma de objetivação de saberes, embora ela não tenha pretensão alguma de formar um sistema rígido e fechado (Pitrou, 2016PITROU, Perig . 2016. “Introdução - Ação ritual, mito, figuração: imbricação de processos vitais e técnicos na Mesoamérica e nas terras baixas da América do Sul (Introdução”). Revista de Antropologia , São Paulo, 59(1), 6-32. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2016.116911.
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: 9). Por meio da abertura da “fé” se pode elicitar (Wagner, 2010WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura. São Paulo, Cosac Naify.) esses efeitos curativos, que não são tidos como consequência da ação isolada do terapeuta (ou de um saber abstrato), mas de sua capacidade (ao mesmo tempo inata e apreendida) de extração dos poderes (vitais) de ervas, palavras, artefatos, gestos, das entidades invisíveis, etc., sincronizada com o os movimentos internos do paciente, segundo uma ação conjunta e relacional.

Nos despedimos agora das terapêuticas quilombolas lembrando que, nas comunidades, o conhecimento das folhas é visto como um patrimônio ancestral e coletivo, não comportando lucro: “Quando eu conheço, assim, todo mundo conhece, porque aqui um passa pra o outro. Não tem segredo nenhum. ‘Você tem essa folha?’ Quando quer a gente vai nas casas pedindo, aqui ninguém vende folha”, diz Toinha.35 35 Entrevista realizada em 24/03/2018 no quilombo de Santiago do Iguape. Os artefatos fitoterápicos mais complexos (garrafadas, xaropes etc.) podem ser vendidos, mas não constituem um negócio tout court, pois remetem a saberes complexos ontologicamente híbridos, cujas conotações espirituais são reconhecidas, porquanto os terapeutas agem também a partir de múltiplas agências não humanas, com os quais se estabelece uma relação de troca. Esse tipo de comércio deve ser, portanto, sustentado pelo reconhecimento de saberes ancestrais incorporados pelos terapeutas, autores dos remédios. As palavras das rezas, que configuram a animicidade do ambiente, podem ser consideradas como artefatos imateriais (rituais) agentivos e eficazes, já que impulsionam ou arrestam os hibridismos entre processos vitais diversos. Esses conhecimentos e artefatos possuem uma eficácia que deve ser monitorada, assim que são passados de geração em geração de forma discreta36 36 A referência à ancestralidade traz laços de parentesco, relações de cuidado mútuo, de amizade e “consideração”, evidenciando os processos de coparticipação na feitura das pessoas (Pina-Cabral e Silva, 2013) e nas maneiras de existência. , sendo avaliada a capacidade do novato, já que é importante depositar esses poderes em alguém que tenha “dote” para assumi-los.

CRESCIMENTOS E FABRICAÇÕES ENTRE OS TERAPEUTAS DE SANTO AMARO

Nesta segunda parte do artigo iremos considerar como a ação dos terapeutas se coloca numa condição de simetria e mediação com os crescimentos disseminados no ambiente: eles fabricam bons remédios também graças a seus próprios crescimentos sensoriais e perceptivos (seus dons) que lhe permitem enxergar as agências humanas e não humanas envolvidas nos processos de adoecimento e cura.37 37 Sua iniciação e seu “dom”, sem oposições, num “monismo imanente”, conforme sugerido em Goldman (2012). Para tanto, iremos apresentar momentos significativos das nossas interlocuções com três terapeutas de Santo Amaro38 38 Durante o trabalho de campo, que contemplou entrevistas semiestruturadas e abertas e encontros informais, foram mobilizadas informações sobre processos vitais, habilidades técnicas e devocionais. Também foram presenciadas sessões de cura. , no que diz respeito às mediações atuadas pelos poderes especiais de percepção dos processos vitais, geralmente associados às noções nativas de “fé” e “dom”. Iremos também considerar como conjuntos técnico-ritualísticos ‒ palavras e gestualidades devocionais, possessões religiosas, artefatos imateriais e materiais ‒ mediam diversos processos vitais. Cada interlocutor mostrou uma maneira específica de vivenciar o catolicismo popular e os elementos de matriz africana, segundo um estilo terapêutico próprio.

“TER BOCA PARA REZAR”: SEU JÚLIO

O terapeuta Seu Júlio39 39 Entrevistas realizadas em novembro de 2017. (apelido de Martiniano), rezador de Santo Amaro, de 70 anos de idade, é reconhecido como um importante agente de cuidado. Ele reza, faz defumações, garrafadas, lambedores, chás. Seus saberes e práticas são dedicados a homens e mulheres, como também aos animais. Começou a rezar depois do adoecimento da sua irmã que precisou, por algumas vezes, dos cuidados de rezadores locais. Vale ressaltar como o aprendizado40 40 Sobre transmissão e aprendizagem, ver Macedo (2013). se fez de forma aparentemente imediata, espontânea e implicitamente mimética:

Porque peguei um pião, que minha irmã estava doente, aí eu fui procurar um rezador, chegou lá para rezar e cobrou 50 conto cada reza, três dias, ao todo tive que pagar 150 conto. Mas eu achei que eu tinha boca para assoviar, boca para cantar, boca para xingar, então eu tinha boca para rezar. Aí eu comecei a rezar.

Seu Júlio se sentiu capacitado, durante esse acontecimento, a rezar os enunciados e gestos terapêuticos que foram emergindo como consequência de um processo de observação e imitação de vários rezadores em ação. Ele descreve a maneira de apreender as rezas a partir de um processo de crescimento vital do corpo sensível: “Comecei a rezar e aquela reza não sai mais do meu sentido”. Algo se revelou, segundo seu entendimento, no momento da necessidade e do aperto, desenvolvendo-se, a partir daí, sua própria habilidade como rezador: “Eu via os outros rezar; aí, quando eu precisei, comecei a rezar. Eu vou falar a verdade, a pessoa quando é fiel a Deus tudo para ele corre bem”. Católico não praticante, Seu Júlio descreve a sua ação terapêutica como eficaz por ele ter a fé em Deus que se encontra onipresente no ambiente: “Se chamar por Deus na beira da água, ele tá ali de junto; se chamar na beira do rio, ele tá de junto; se chamar de baixo de pé de pau, ele tá de junto”, enfatiza.

Outros poderes e entidades também são mobilizados por seu Júlio nas suas consultas, notadamente, São Roque, considerado o médico invisível. Seu Júlio não se identifica com a Igreja Católica oficial (ele declara não ser praticante), nem com o pensamento hegemônico da biomedicina, mas considera sua cura apropriada para os processos de adoecimento cuja origem não entra no âmbito dos procedimentos médicos: “A espinhela, o médico não cura. Dor de cabeça, ele passa um remédio, mas não cura. A sinusite que dá na cabeça da gente, médico não cura”.

As rezas de Seu Júlio, mais que representarem entidades espirituais, as chamam para atuar junto com ele. Como já tivemos oportunidade de constatar na sessão anterior, as palavras das rezas são iconográficas e eficazes (Severi, 2004SEVERI, Carlo . 2004. “Capturing imagination. A cognitive approach to cultural complexity”. The Journal of the Royal Anthropological Institute (N.S.), 10(4), 815-838.), na medida em que constroem uma imagem das ocorrências de poderes que revertem o processo de adoecimento. A reza responde, definitivamente, a um artefato mental, uma imagem verbalizada de poderes terapêuticos em ação ‒ um crescimento curativo que vai sendo trilhado pelo terapeuta. Como indica Seu Júlio, as rezas devem ser repetidas por três vezes. No caso da “espinhela caída”, por exemplo, ele costuma benzer enunciando: “Cristo nasceu, Cristo morreu, Cristo ressuscitou, com o poder da Virgem Maria, espinhela caída levantou.”. Propõe-se assim a repetição eficaz e a imagem de uma simetria entre a morte e ressureição de Cristo e a condição de adoecimento e cura do paciente (a espinhela, como o Cristo ressuscitado, vai levantar). No caso de mau-olhado, ele reza usando ervas (arruda) que devem ser passadas pelo corpo para absorver a energia negativa: “Jesus, José, Maria, com dois te botaram, com três eu te tiro, com o poder de Deus e da Virgem Maria” ‒ indica-se uma relação numérica entre a dupla origem do olhado alheio (foram duas pessoas a enfeitiçar) e um triplo poder sobre-humano (Jesus, José, Maria são chamados para agir, os três juntamente na cura, vencendo o par inicial).

Seu Júlio aprendeu a rezar com os mais velhos (ele cita a avó), mas a dimensão da reza como ato locutório espontâneo também se naturaliza como algo inato. Diante dos nossos questionamentos sobre o aprendizado das rezas, considerou se tratar de um desdobramento interno − “Eu senti a reza!”, enfatizou Seu Júlio em vários momentos. As rezas parecem ser extraídas do corpo ao ponto que seu Júlio também salienta: “Tenho boca para rezar!”. A cura por meio da reza pode, portanto, ser pensada como imbricação de processos vitais − a capacidade de dar voz à reza − e atos técnicos-ritualísticos (os gestos e as palavras aprendidas em ambientes devocionais, as plantas usadas etc.).

As terapêuticas populares dependem de um quadro ritualístico que, embora minimalista, é dado por meio de regras específicas, isto é, ritmos, rimas e repetição dos enunciados e gestos, além das já mencionadas normas de pureza, já que se deve zelar pelo corpo íntegro, evidenciado na recomendação de abstinência do consumo de bebidas alcoólicas antes das rezas. Como esclarece Seu Júlio: “Tem muita pessoa que está aqui, como eu estou com vocês agora, vocês vão embora e eu vou tomar cachaça e depois eu vou rezar? Não serve não”. Nota-se, também neste caso, um isomorfismo entre diversos processos vitais: o corpo do próprio terapeuta é resguardado para garantir o processo de cura no paciente. Dentro desse quadro formalizado, a ação é configurada, estabelecendo continuidades e imbricações entre crescimentos e fabricações, isto é, entre diversos processos vitais (dos corpos adoecidos ou restabelecidos, da voz naturalizada da reza, dos efeitos das plantas, dos imanentes poderes espirituais etc.) e processos técnicos (dos artefatos terapêuticos materiais e imateriais que se mobilizam nas performances terapêuticas-ritualísticas).

Sobre os saberes botânicos, Seu Júlio relata que conhece e cultiva muitas ervas: “Na minha roça tem vassourinha, tem alfavaca, tem essa alfazema, tem coentro de boi, tem uma porrada de folha!”. Todavia, as plantas medicinais para garrafadas e lambedores não são enumeradas segundo uma taxinomia fechada; inclusive, os princípios ativos fitoterápicos e os poderes de ordem espiritual se sobrepõem. No que tange às garrafadas feitas com várias plantas, Seu Júlio argumenta que são e que servem para problemas tanto físicos como espirituais. A “doença de espírito” ‒ aquela que “pega em qualquer lugar, quando a pessoa não tem fé em Deus. Aí, bota um espírito ruim... Esse espírito é um vento” ‒ e o derrame são tratados com plantas de uma mesma garrafada, “um santo remédio”, cujo líquido deve ser passado no corpo do paciente. Finalmente, a noção nativa de “fé”, citada várias vezes pelo terapeuta, diz respeito à hibridação das garrafadas, chás e banhos com a evocação de um poder imanente a todos os agenciamentos terapêuticos.

“DONS DE NASCENÇA”: SEU DUNGA

Seu Dunga41 41 Entrevistas e encontros realizados em dezembro de 2017 e em fevereiro de 2018. , santamarense de quase 80 anos, às quartas-feiras, na sua pequena casa, dirige sessões de “linha espiritista” (como ele define) incorporando diversas entidades afro-brasileiras: os caboclos Sultão das Matas e Boiadeiro; os orixás Iansã e Iemanjá; Padilha, “escrava” de Iansã e outras entidades. Ele explica que nasceu com o “dom da visão”, que se revelou ainda na infância quando foi em um terreiro de candomblé. Seu Dunga, cuja prática terapêutica combina elementos católicos e afro-brasileiros, afirma que não faz sacrifícios, já que utiliza somente flores, velas e água como oferendas. Ele declara que confia muito nos seus “guias” (os Caboclos) que o auxiliam na coleta das plantas e nas práticas de cura e na ajuda de Deus. Dunga é muito apreciado pela sua capacidade de rezador e pelas garrafadas, lambedores etc. que confecciona.

O aprendizado foi trilhado nas redes de relações locais; para desenvolver o dom, Seu Dunga costumava, desde jovem, ter estratégias do aprendizado com os mais velhos: “No candomblé, eu aprendia muitas coisas... Em todo canto que eu ia eu aprendia”. O dom da visão, a reza e a experiência do uso das ervas se uniram no intuito de ter boas percepções e realizações no ofício de terapeuta. Assim ele conceitua os “dons” da visão e da reza: “Eu sempre pedia para Deus me dar uma visão ... eu fazia as coisas e tudo dava certo. Eu rezava e eu pedia a Deus. Como pedia a Deus até hoje, né. E eu sei rezar. Sei rezar tudo. Minha reza Deus bota”. O dom da visão é descrito como um talento natural, extraído do corpo do terapeuta, assim que a dimensão corporal se conecta com as agências não humanas - com o próprio Deus que confere esses dons; com as entidades afro-brasileiras que revelam diagnósticos no jogo com os búzios.42 42 Sobre o jogo de búzios nas religiões afro-brasileiras ver Beniste (1999).

Certamente, Seu Dunga aprendeu muito com os Caboclos, os donos das matas, que costumam lhe sugerir nos sonhos, nos estados alterados de consciência, por meio da intuição, quais plantas e raízes devem colocar nas garrafadas, nos chás etc. O dom de visão e da reza (como no caso da visão, a reza é “Deus que bota”) e as revelações das entidades se articulam com a “fé”, expressão nativa que, como vimos, sugere a ideia de uma eficácia que procede de um poder não-humano imanente. Os diversos dons, de origem divina, são extraídos como crescimentos, da corporeidade de terapeuta ‒ como Seu Dunga afirma, ele nasceu com esse “dom”, essa capacidade de visão, essa intuição, essa capacidade de rezar, etc. A eficácia da sua reza, notadamente, é enfatizada como um crescimento interno: “Eu tinha reza, mas ninguém ligava! Eu aprendi... não sei! Deus que botou aqui na minha mente, já trouxe de nascença. Eu tenho fé na minha reza”. Percebe-se que, de forma semelhante à narrativa de Seu Júlio, a declaração da “fé” de Seu Dunga não pretende mobilizar uma questão teológica, mas evocar a eficácia da cura, um crescimento fundamental que fortalece o artefato terapêutico.

No contexto da frequentação de ambientes candomblecistas e nas sessões de Umbanda que ele conduz, Seu Dunga desenvolve sua habilidade sensorial-perceptiva (sua visão e sua mediunidade). As técnicas ritualísticas e divinatórias reforçam esse dom, notadamente no momento que Seu Dunga usa o jogo de búzios para “espiar” os processos vitais (humanos e não humanos) que provocam transtornos e adoecimentos. No jogo já não é possível diferenciar quando termina o crescimento corporal (a visão do terapeuta) e quando começa a agência do artefato divinatório. A performance divinatória de Seu Dunga é apurada. Durante o jogo, ele passa alfazema nos búzios, alegando que assim eles ganham mais força. No altar, que serve também para o jogo de búzios, são acomodadas, entre flores e velas, as imagens dos santos (São Cosme e Damião, Santo Antônio, Santa Bárbara e São Jorge entre outros), de Iemanjá (orixá feminino das águas salgadas) e dos caboclos Sultão da Matas e Boiadeiro. Nas quartas-feiras, nesse cômodo, acontecem as sessões e Seu Dunga incorpora também seus guias. Nesses dias ocorrem também as sessões divinatórias que favorecem o desenvolvimento do dom da visão do terapeuta. Por um lado, a visão é um processo vital do terapeuta, que cresce nele espontaneamente por concessão divina; por outro, através da técnica de adivinhação e dos artefatos rituais implicados (os búzios, notadamente), o terapeuta adquire um maior controle no diagnóstico e na cura, mobilizando agências espirituais (orixás, caboclos etc.). O jogo corresponde a uma configuração agentiva complexa, já que atuam conjuntamente os crescimentos internos do terapeuta (visão) e as entidades afro-brasileiras, sincronizadas aos processos vitais “espiados”.

As palavras de Seu Dunga detalham as configurações em pauta:

Eu faço sessão. Eu chamo o guia Boiadeiro. Também trabalho com a Dona da Água. Eu chamo os guias e vêm em mim com o poder de Deus. Eu chamo outros guias... Sultão das Matas. Eu chamo Cosme... chamo Cosme. Chamo Iansã em meu corpo e ela vem. Eu sinto... ela chega em mim. Quem conversa é ela. Não sou eu.

Como ele explica, as matas e os locais de colheita dos materiais são favoráveis para a comunicação com os “guias”. Nas matas, o caboclo Sultão das Matas é chamado e consultado sobre os procedimentos necessários para as curas: “E se estiver doente, eu passo um remédio e fica bom. Depende da doença, aí eu vou na mata, aí chego lá e me consulto com o Sultão das Matas. Ele é o dono da mata!”. Além da importante relação dos Caboclos com os saberes fitoterápicos, Seu Dunga relata a interação entre a cura religiosa e as práticas médicas no território, devolvendo, durante a interlocução, uma reflexão sobre as diversas agências de cuidado. Assim, ao falar da “espinhela”, seu Dunga conclui que: “No médico, não passa! Só passa na reza! Evita o médico. Não pode ir no médico. Mas tem médico vidente! Tem! Ele que vai dizer: ‘O seu problema não é médico. Seu problema é pra rezar e eu espio!’” (isto é, ele consegue diagnosticar).

A interação com o ambiente parece ter tido parte fundamental no processo do conhecimento botânico, tal como Seu Dunga enfatiza: “Lambedor, garrafada... faço com as ervas do mato. Vou lá nas matas tirar as ervas, as raízes”. Ervas e plantas do território estão cultivadas também no quintal do rezador, especialmente aquelas que fazem parte das práticas fitoterápicas cotidianas. Os processos vitais do terapeuta (sua visão, sua intuição) se comprovam nos resultados de suas fabricações e vice-versa. A eficácia, depende da possibilidade de agir numa natura naturans, na qual a agência não humana, aliada ao terapeuta, é imanente e coagente à ação técnica. Se não existe uma natureza objetivada em leis e, portanto, abstrata da contingência dos agenciamentos contínuos, imanentes ao mundo, também não existe uma técnica terapêutica separada dos crescimentos vitais, tendo em vista que o próprio terapeuta age a partir de seus crescimentos corporais: seus dons que, como ele enfatiza, “trouxe de nascença”.

O ANJO DE GUARDA: DONA CÂNDIDA

Dona Cândida43 43 Encontros realizados em novembro e dezembro de 2017. , uma senhora com mais de 85 anos, foi uma benzedeira renomada da comunidade de Santo Amaro. Hoje ela não benze mais, por causa da idade avançada, mas continua zelando pela própria saúde e a dos seus familiares com práticas de devoção ligadas, sobretudo, à Santa Bárbara. Segundo ela, cautelas devem ser observadas no cotidiano para afastar perturbações, trazidas por influências negativas, ou para incrementar o bem-estar, acionando rituais apotropaicos e atos devocionais.

Sobre o passado de benzedeira, ela explica que frequentemente rezava de “vento caído” (o citado mal-estar da criança “assustada” que, geralmente, apresenta diarreia e fezes esverdeadas) e de olhado. Dona Cândida faz questão de enfatizar as trocas de energias e as imbricações entre processos vitais diversos: durante as rezas, a inveja e tudo o que é ruim “cai nas folhas!”, pondera, indicando como as ervas passam por o citado processo de animação, se hibridizando com energias antropomorfas negativas (a inveja). A benzedeira explica, ainda, que “ventos” ruins circulam nos cemitérios e que energias nefastas estão presentes no ambiente, notadamente, ao anoitecer e nos cruzamentos: não se deve “catar folhas” ao cair da noite, nem nas encruzilhadas, onde transitam influências ruins, explica Dona Cândida. Contrastam as negatividades as rezas (a vassourinha é usada contra a reza do olhado, notadamente) e os banhos de descarrego para os quais servem diversas folhas (alfazema, erva doce, erva cidreira, hortelã miúdo, tapete de Oxalá, entre outras).

Ao conhecimento fitoterápico de Dona Cândida associa-se a prática devocional relacionada à Santa Bárbara, seu “Anjo de Guarda”, que compreende enunciados e gestos devocionais, combinados com a manipulação ou preparação de diversos artefatos. Santa Bárbara recebe regularmente oferendas de velas e flores (geralmente flores de alevante), notadamente nos dias de quarta-feira, quando Dona Cândida se veste de branco em homenagem à Santa e deposita as oferendas aos pés da imagem colocada no altar doméstico. Ela também cumpre a “promessa” oferecendo o Caruru de Santa Bárbara (comida típica dos cultos afro-brasileiros preparada com quiabos) no mês de dezembro.

Na narrativa de Dona Cândida destacam-se a agentividade da devoção, especialmente em relação aos efeitos apotropaicos da oração: a reza se configura como ato evocador de sorte, a se fazer logo de manhã, antes de sair de casa, para se proteger contra as influências negativas que circulam nas ruas. Atos de cunho ritual são assim embutidos nos gestos cotidianos: deve-se, ainda, sair de casa com o pé direito na frente fazendo o signo da cruz, mentalizando positividade e colocando confiança nos santos e na Virgem Maria. Contra a aflição, Dona Cândida recomenda rezas “fortes”, eficazes no livramento dos males (ela exemplifica citando a conhecida reza do terço: “aflita se viu Maria; aflita aos pés da cruz. Aflita me vejo, Maria. Valei-me, Mãe de Jesus”). As orações, atuam como palavras evocadoras de poderes eficazes e mobilizam dádivas. Assim, Dona Cândida fala sobre a importância de oferecer orações em troca de proteção: a oração do Pai Nosso e de Ave Maria são “entregues a Cristo” e à Santa Bárbara para “tirar tudo o que há de ruim”.

Fora do espaço eclesial, o culto doméstico se constitui, portanto, como uma relação íntima com as entidades divinas, na qual as orações podem agir como atos rituais eficazes (Bassi, 2016BASSI, Francesca. 2016. “Atos rituais: eventos, agências e eficácias no Candomblé”, Religião e Sociedade, (Rio de Janeiro online), 36(2), 244-265. https://doi.org/10.1590/0100-85872016v36n2cap11.
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), isto é, como oferendas que, de certa forma, obrigam os santos a retribuir através de proteção em favor do devoto. A imagem da Santa, no altar de dona Cândida, é um artefato animado, com o qual ela conversa e ao qual ela dedica constantemente sua devoção. Os diversos artefatos devocionais (materiais e imateriais) agem: as oferendas e as orações ativam proteção e as rezas participam das eficácias terapêuticas dos processos vitais, interferem nesses processos e, ao mesmo tempo, permitem um acesso cognitivo a eles.

CONCLUINDO: HIBRIDIZAÇÕES E PARADOXOS EFICAZES

Nas curas populares do Recôncavo aparecem imbricações entre processos vitais diversos (crescimentos vegetais, humanos, não-humanos etc.) e gestos técnicos (fabricações de artefatos materiais e imateriais), assim que, em estudá-las, consideramos a relevância do conceito de “configuração agentiva” proposto por Pitrou (2016PITROU, Perig . 2016. “Introdução - Ação ritual, mito, figuração: imbricação de processos vitais e técnicos na Mesoamérica e nas terras baixas da América do Sul (Introdução”). Revista de Antropologia , São Paulo, 59(1), 6-32. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2016.116911.
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). Esse conceito dá conta das diversidades etnográficas relativas às teorias da vida analisáveis como conjuntos de agências ontologicamente híbridas, cujas eficácias desmentem separações entre gestos técnicos e eficácias rituais e entre processos vitais diversos que mobilizam variavelmente humanos e não humanos.

Nos processos técnico-ritualísticos dos terapeutas concebemos, sempre na esteira de Pitrou (2016PITROU, Perig . 2016. “Introdução - Ação ritual, mito, figuração: imbricação de processos vitais e técnicos na Mesoamérica e nas terras baixas da América do Sul (Introdução”). Revista de Antropologia , São Paulo, 59(1), 6-32. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2016.116911.
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), como os artefatos visibilizam a animicidade do ambiente, controlando a morfogênese e os movimentos dos organismos vitais. Dentre esses artefatos terapêuticos destacamos as rezas, cujas imagens de cura se dão num “espaço fluido”44 44 Segundo uma expressão de Mol e Law (1994). , onde as propriedades de processos vitais não são definidas de antemão, mas são continuamente sobrepostas, dinamizadas, freadas, podendo carregar diversas ocorrências. Também consideramos as sincronizações de não-humano nas curas ‒ os caboclos podem sugerir novos ingredientes fitoterápicos; no sonho ou na adivinhação as entidades podem revelar uma origem patogênica; as imagens da santa reagem em favor do bem-estar do devoto que colocou a oferenda ou ‘ofereceu’ as preces etc.

A dimensão ritualística de muitas terapêuticas nos conduziu no caminho trilhado por Neurath (2016NEURATH, Johannes. 2016. “El sacrificio de un cuchillo de sacrifício”. Revista de Antropologia. São Paulo, 59(1), 73-107.), quando ponderamos que a animicidade pressupõe um trabalho simbólico, ritualmente circunstanciado, no intuito de ativar ou amenizar as eficácias espalhadas no ambiente e a agência dos artefatos45 45 Ver também Fortier (2014). . Consequentemente, no tocante à ação terapêutica, podemos concluir este trabalho sopesando a importância do poder transformativo dos rituais, que pode ser enxergado também segundo uma abordagem pragmática, já que, em geral, há uma dificuldade intrínseca na análise semântica das representações simbólicas implicadas nos próprios rituais (Houseman e Severi, 1994HOUSEMAN, Michael e SEVERI, Carlo. 1994. Naven ou le donner à voir: essai d”interprétation de l”action rituelle. Paris, CNRS/Editions de la Maison des Sciences de l”Homme.; Severi, 2002SEVERI, Carlo. 2002. “Memory, reflexivity and belief. Reflections on the ritual use of language”. Social Anthropology, United Kingdom, 10(1), 23-40. DOI: 10.1017/S0964028202000034.
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, 2004SEVERI, Carlo . 2004. “Capturing imagination. A cognitive approach to cultural complexity”. The Journal of the Royal Anthropological Institute (N.S.), 10(4), 815-838.). Os rituais terapêuticos (rezas, sessões de cura religiosa, adivinhação, possessões etc.) não desmentem essa constatação, sendo analisáveis como atos performativos nos quais ontologias e identidades diversas são acasaladas, condensadas, hibridizadas, deixando os significados incertos e contraintuitivos46 46 O conceito de contraintuitividade se refere à teoria do simbolismo de Sperber (1974). Severi o adota segundo ajustes de cunho pragmático. , porém comunicáveis, uma vez que são vivenciados como verdades construídas em ação. Com efeito, as curas populares são marcadas pela presença de eficácias imanentes aos processos vitais (os poderes dos santos, de Deus, a vidência do terapeuta etc.), mobilizadas segundo um contexto de ação ritualístico, cujo quadro formal permite configurações e enunciações complexas47 47 No caso de Seu Dunga, por exemplo, o transe religioso o transforma num “enunciador complexo” (Severi, 2004: 817) que acumula, na própria pessoa, a identidade de diversas entidades que falam por meio dele e dão eficácia à sua cura. .

Como vimos, ao contrário da vocação lógico-científica, que discrimina unidades discretas e que, eventualmente, desloca o simbólico e suas ambiguidades polissêmicas para áreas imaginativas não “realmente” eficazes (a arte, a poesia etc.), as práticas terapêuticas aqui estudadas não temem os paradoxos e os hibridismos para comunicar eficácias sobre a realidade. As fabricações terapêuticas incluem, definitivamente, configurações agentivas paradoxais e complexas, determinadas geralmente por mediações simbólicas eficazes (Tavares e Bassi, 2013TAVARES, Fátima e BASSI, Francesca (org.). 2013. Para além da eficácia simbólica: estudos em ritual, religião e saúde. Salvador, EDUFBA .), favorecendo também uma “fluidez da mente” na conexão de diversos domínios (Mithen, 2002MITHEN, Steven. 2002. A Pré-História da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência. São Paulo, Unesp.). A fluidez da mente implica que não existem dois mundos ‒ o das “sociedades” e o das “coisas” ‒ mas um “único ambiente” (Ingold, 1992, apudMithen, 2002MITHEN, Steven. 2002. A Pré-História da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência. São Paulo, Unesp.: 76). Nesse único ambiente, as práticas dos terapeutas demandam esforços ritualísticos contínuos que associam crescimentos e artefatos, no intuito de promover ou frear esses diversos movimentos de hibridação ontológica.

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  • TODOROV, Tzvetan. 1991. Teorie del simbolo Milano, Garzanti Ed.
  • WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura São Paulo, Cosac Naify.
  • 1
    O Recôncavo Baiano é uma região situada em torno da Baía de Todos os Santos, abrangendo também a porção do território que se estende para o interior. Na região prevalece uma população afrodescendente (Caroso, Tavares e Pereira, 2011CAROSO, Carlos, TAVARES, Fátima e PEREIRA, Cláudio. 2011. Baía de Todos os Santos: aspectos humanos. Salvador, SciELO-EDUFBA.).
  • 2
    As “ervas”, ou “folhas”, constituem uma designação nativa genérica para as diferentes partes dos vegetais de valor curativo. Doravante utilizaremos sem aspas.
  • 3
    Durante rezas e benzeduras faz-se o sinal da cruz sobre a pessoa (mas também animais ou objetos), enunciam-se orações e usam-se elementos rituais (folhas, torrões, como outros vários elementos ou artefatos). Ver Gomes do Nascimento e Ayala (2013)GOMES DO NASCIMENTO, Danielle e AYALA, Maria Ignez Novais. 2013. “As práticas orais das rezadeiras: um patrimônio imaterial presente na vida dos itabaianenses , Nau Literária, crítica e teoria de literaturas, Porto Alegre, 9(1), 1-16. https://doi.org/10.22456/1981-4526.43698.
    https://doi.org/https://doi.org/10.22456...
    .
  • 4
    Sobre medicamentos fitoterápicos em ambientes populares ver Camargo (1985)CAMARGO, Maria Thereza de Arruda. 1985. Medicina popular: aspectos metodológicos para pesquisa. Garrafada, componentes medicinais de origem vegetal, animal. São Paulo, Almed., Pinto, Amorozo e Furlan (2006)PINTO, Erika de Paula Pedro, AMOROZO, Maria Christina de Mello e FURLAN, Antonio. 2006. “Conhecimento popular sobre plantas medicinais em comunidades rurais de mata atlântica-Itacaré, BA, Brasil”. Acta Botanica Brasílica, São Paulo, 20(4), 751-762. https://doi.org/10.1590/S0102-33062006000400001.
    https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
    . Partilhamos da posição de Diegues (2000)DIEGUES, Antonio Carlos. (org.). 2000. Os saberes tradicionais e a biodiversidade no Brasil. São PAULO: MMA/COBIO/NUPAUB/CNPq. e Almeida (2008)ALMEIDA, Marcelo Fetz de. 2008. “Do conhecimento tradicional ao princípio ativo-a pesquisa etnofarmacológica no Brasil”. In IV Encontro Nacional da Anppas. 4 a 6 de junho de 2008, Brasília - DF-Brasil. pp. 1-21. Disponível em: Disponível em: http://www.anppas.org.br/encontro4/cd/ARQUIVOS/GT3-209-48-20080515132535.pdf . Acesso em: 07 jul 2020.
    http://www.anppas.org.br/encontro4/cd/AR...
    acerca da importância das pesquisas etnocientíficas. No entanto, como observa Oliveira (2012)OLIVEIRA, Joana Cabral de. 2012. Entre plantas e palavras: modos de constituição de saberes entre os Wajãpi (AP). São Paulo, Tese de doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo ., é preciso problematizar a classificação das referências nativas no âmbito das abordagens “etnocientíficas”, cujas taxonomias acabam por se legitimar como “fundo silencioso” para a compreensão do poder curativo das ervas, a desfavor dos processos de hibridização.
  • 5
    O termo reflete a antropologia das últimas décadas, caracterizada por pesquisas que procuram entender teorizações da vida não ocidentais, nas quais há geralmente integração entre o social e o biológico. Autores como Descola (2006), Ingold (2000)INGOLD, Timothy. 2000. Perceptions of environment. Essays on livelihood, dwelling and skill. London, Routledge. e Latour (1994) foram fundamentais na edificação de uma antropologia capaz de superar a dicotomia natureza/cultura típica do embasamento científico ocidental. Num artigo sobre a obra Biosocial Becomings. Integrating social and biological anthropology, (Ingold e Palsson, 2013INGOLD, Tim e PÁLSSON, Gísli (orgs.). 2013. Biosocial Becomings: Integrating Social and Biological Anthropology. Cambridge, Cambridge University Press.), Pitrou (2015)PITROU, Perig . 2015. “Artigo bibliográfico. Uma antropologia além de natureza e cultura?” Mana , Rio de Janeiro, 21(1), 181-194. https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n1p181.
    https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
    discute a relevância das etnografias para a compreensão da diversidade dos saberes sobre a vida e sobre os seres vivos — trata-se de etnoteorias da vida que conduzem, segundo este autor, à desconstrução do conceito de natureza implicitamente determinado pela perspectiva ocidental.
  • 6
    Os dados da pesquisa sobre terapeutas quilombolas, realizada entre 2017 e 2018 e conduzida por duas das autoras deste artigo, Fátima Tavares e Francesca Bassi, entre outros pesquisadores, encontram-se reunidos no “Dossiê ObservaBaía” (acesso restrito) e são publicados parcialmente em Tavares et al. (2019)TAVARES, Fátima, CAROSO, Carlos, BASSI, Francesca, PENAFORTE, Thais e MORAIS, Fernando. 2019. Fazeres e saberes terapêuticos quilombolas, Cachoeira, Bahia. Salvador, EDUFBA .. Os dados sobre os terapeutas de Santo Amaro foram obtidos em pesquisa de campo conduzida por Francesca Bassi e Michele Macedo de Sá — também autora deste artigo.
  • 7
    Sobre os materiais utilizados pelos praticantes terapêuticos, ver os quadros descritivos em Tavares et al. (2019TAVARES, Fátima, CAROSO, Carlos, BASSI, Francesca, PENAFORTE, Thais e MORAIS, Fernando. 2019. Fazeres e saberes terapêuticos quilombolas, Cachoeira, Bahia. Salvador, EDUFBA .: 148 e ss).
  • 8
    Os terapeutas se referem à “fé” para qualificar uma adesão à eficácia da ação ritual e terapêutica. A noção nativa diverge do conceito de fé da doutrina católica oficial que envolve, sobretudo, a confiança em uma salvação extramundana e um credo a ser professado a fim de obter tal salvação (Sabbatucci,2000SABBATUCCI, Dario. 2000. La prospettiva storico-religiosa. Roma, Seam Edizioni.). Considerando essas diferenças, manteremos as aspas para sinalizar a especificidade da categoria nativa, evitando assim um uso acrítico do termo. Voltaremos a essa questão adiante no texto.
  • 9
    Ingold se refere, sobretudo, à experiência etnográfica entre os povos do norte circumpolar ártico, cuja “ontogênese anímica”, corresponde ao estar aberto ao mundo. Ver, especialmente, Ingold (2015)INGOLD, Timothy . 2015. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis, Vozes..
  • 10
    A visão (eco)sistêmica de Ingold (2013)INGOLD, Tim e PÁLSSON, Gísli (orgs.). 2013. Biosocial Becomings: Integrating Social and Biological Anthropology. Cambridge, Cambridge University Press. é contrária ao pressuposto de formas predefinidas da evolução segundo critérios de replicação, mutação, de características transmissíveis. Como escreve Ingold, defendendo a ideia da ontogênese, “as formas de vida, portanto, não são nem genética nem culturalmente pré-configuradas, elas emergem como propriedades da auto-organização dinâmica de sistemas de desenvolvimento.” (2013:8).
  • 11
    Pitrou, se referindo à sua pesquisa etnográfica no México, escreve que os dados “evidenciam como a restituição de uma pluralidade de ações técnicas (semear, cortar, contar, cozer etc.) realizadas por ‘Aquele que faz viver’ permite conhecer como os Mixe representam para si certos mecanismos associados à vida” (2016:10). De fato, segundo Pitrou, não somente os processos vitais, mas a própria origem da vida é pensada, em muitas sociedades, a partir de processos técnicos executados por entidades não-humanas demiúrgicas.
  • 12
    Pitrou, considerando a multiplicidade dos processos vitais, decide inverter a proposição ingoldiana: “Em vez de naturalizar o gesto técnico inserindo-o em um movimento uniforme mais vasto capaz de imprimir-se sobre todos os seres, artefatos e organismos, os processos técnicos - entendidos como reunião ordenada de uma pluralidade ações - podem ser tratados como objeto privilegiado para compreender a complexidade dos processos vitais.” (2016: 17). Sem poder entrar no detalhe dessa reflexão, vale aqui lembrar que Pitrou coloca em questão a noção de “vida” concebida em termos universalistas: “que interesse haveria em conduzir pesquisas etnográficas se já dispomos de uma definição universal?”. O autor prefere considerar “a multiplicidade das teorias da vida, integrando nessa abordagem as controvérsias internas às próprias ciências ocidentais sobre esta questão.” (2016: 11).
  • 13
    Pitrou cita aqui Eugenia Ramirez Goicoechea (2013)GOICOECHEA, Eugenia Ramirez. 2013. “Life-in-the-making. Epigenesis, Biocultural environments and human becomings”, in T. Ingold & G. Pálsson eds. Biosocial Becomings. Integrating Social and Biological Anthropology, Cambridge (UK): CUP..
  • 14
    Como escreve McCallum, “não existe um termo específico kaxinawá que possa ser traduzido como ‘conhecimento’. Seu equivalente mais próximo, unaya, pode ser definido como com sabedoria/ aprendizado” (1998:24).,
  • 15
    Como escreve Santos-Granero, há duas modalidades de incorporação: “a encorporação (embodiment), que provoca a incorporação por meio da objetivação de substâncias e subjetividades externas, e espiritização (ensoulment), que envolve a incorporação por meio da subjetivação de artefatos e substâncias corporais externas” (2012: 198, apudPitrou, 2016PITROU, Perig . 2016. “Introdução - Ação ritual, mito, figuração: imbricação de processos vitais e técnicos na Mesoamérica e nas terras baixas da América do Sul (Introdução”). Revista de Antropologia , São Paulo, 59(1), 6-32. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2016.116911.
    https://doi.org/https://doi.org/10.11606...
    :20).
  • 16
    Sobre essa categoria nativa, ver Minayo (1988)MINAYO, Maria Cecília de Souza.1988. “Saúde-doença: uma concepção popular da etiologia”. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 4(4), 363-381.. A autora apresenta a etiologia popular explicando que as crianças vítimas do “mau olhado” (uma “eletricidade” negativa) são reconhecidas por sintomas diversos; geralmente, febre, irritação, prostração, vômito, desidratação ou diarreia. Nos adultos, o “olhado” ou “olho grande”, devido à inveja, provoca transtornos graves, debilitação de saúde, perda de bens, desemprego etc. Finalmente o encosto (um espírito perturbador) implica doenças difíceis de serem explicadas pelo diagnóstico médico, como distúrbios emocionais e problemas degenerativos (Minayo, 1988MINAYO, Maria Cecília de Souza.1988. “Saúde-doença: uma concepção popular da etiologia”. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 4(4), 363-381.: 373). Nas nossas interlocuções apareceu simplesmente o termo “olhado”; também foram mencionadas doenças originadas por “espíritos” ou “ventos” ruins. Em Tavares et al (2019)TAVARES, Fátima, CAROSO, Carlos, BASSI, Francesca, PENAFORTE, Thais e MORAIS, Fernando. 2019. Fazeres e saberes terapêuticos quilombolas, Cachoeira, Bahia. Salvador, EDUFBA . são apresentadas diferentes rezas na resolução de problemas de saúde, para não perder criação de animais, de cuidado com a plantação etc.
  • 17
    A despeito dos problemas decorrentes de sua estigmatização homogeneizante, que opõe o popular ao erudito e ao científico, pode-se reabilitar o uso do termo “popular” no rastro da visibilização, nas diferenças, das formas de vida.
  • 18
    Fala-se de sede do município, o que seria equivalente ao âmbito da cidade, mas vale ressaltar que os terapeutas de Santo Amaro entrevistados possuem quintais ou pequenas roças fora do perímetro mais urbanizado.
  • 19
    Vale ressaltar, ainda, que os terapeutas não classificam corpos (eventualmente, objetivando os seus órgãos), mas falam de efeitos salutares que ocorrem nas “pessoas inteiras” (Ingold, 2015INGOLD, Timothy . 2015. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis, Vozes.: 117) isto é, pessoas que são corpo, mente, emoções etc.
  • 20
    Pitrou (2016)PITROU, Perig . 2016. “Introdução - Ação ritual, mito, figuração: imbricação de processos vitais e técnicos na Mesoamérica e nas terras baixas da América do Sul (Introdução”). Revista de Antropologia , São Paulo, 59(1), 6-32. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2016.116911.
    https://doi.org/https://doi.org/10.11606...
    refere-se à sua pesquisa etnográfica realizada nas comunidades camponesas dos Mixe, povo ameríndio (estado de Oaxaca, México).
  • 21
    A relação entre dom e aprendizado, todavia, não é de oposição (Goldman, 2012GOLDMAN, Marcio. 2012. “O dom e a iniciação revisitados: o dado e o feito em religiões de matriz africana no Brasil”. Mana, Rio de Janeiro, 18(2), 269-288. https://doi.org/10.1590/S0104-93132012000200002.
    https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
    ): dom e “iniciação” terapêutica se dão ao mesmo tempo, pois se aprende com pessoas (familiares, vizinhos, os mais velhos), com os não humanos, com a percepção no ambiente.
  • 22
    As revelações podem também acontecer durante possessões religiosas, na dimensão onírica, através da adivinhação etc. Exemplar é o caso da Dona Vardé, do quilombo Kaonge (Cachoeira), que fabrica um famoso xarope cujos ingredientes lhe foram revelados em sonho por uma entidade afro-brasileira (uma Cabocla).
  • 23
    Sobre a participação de gestos e objetos técnicos nos rituais, ver Lemmonier (2005)LEMMONIER, Pierre. 2005. “L’objet du rituel : rite, technique et mythe en Nouvelle-Guinée”, Hermès, 43, 121.130.
  • 24
    São comunidades marcadas pelas atividades “na maré e na terra”, num ambiente de extrativismo de pescados e mariscos e frutas, combinado à produção de farinha de mandioca, azeite de dendê, mel, e de legumes e hortaliças.
  • 25
    A terminologia nativa das doenças apresenta correspondência imprecisa com as doenças da biomedicina: algumas delas como “espinhela caída” e “ar do vento” são graves, e de difícil tratamento; “pé desmentido” pode se aproximar das luxações e entorses; “miúda” se aproxima ao inchaço nas pernas; o “mau-olhado”, ou simplesmente “olhado”, como já mencionado, além de desânimo, apresenta um espectro extenso de consequências para crianças e adultos.
  • 26
    Entrevista realizada no quilombo do Engenho da Ponte em 15/06/2017.
  • 27
    Vento caído ou “quebranto”, provoca moleza e desânimo na criança. Também se refere à criança “assustada”, chorona e irritável.
  • 28
    Entrevista realizada em 27/09/2017.
  • 29
    Entrevista realizada em 27/09/2017 no quilombo Brejo da Guaiba.
  • 30
    Entrevista realizada em 11/03/2017 no quilombo de Santiago do Iguape.
  • 31
    Entrevista realizada em 23/11/2017.
  • 32
    Entrevista realizada em 23/03/2018.
  • 33
    Os termos “interioridade” e “fisicalidade” (ou “exterioridades”) são emprestados do vocabulário de Philippe Descola (2005)DESCOLA, Philippe. 2005. Par-delà nature et culture. Paris, Gallimard.. Sobre esse ponto ver Pitrou (2016PITROU, Perig . 2016. “Introdução - Ação ritual, mito, figuração: imbricação de processos vitais e técnicos na Mesoamérica e nas terras baixas da América do Sul (Introdução”). Revista de Antropologia , São Paulo, 59(1), 6-32. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2016.116911.
    https://doi.org/https://doi.org/10.11606...
    : 8).
  • 34
    A “fé”, todavia, vem diminuindo, os interlocutores lamentando, inclusive, essas mudanças — mas isso não quer dizer que não recorram mais à eficácia das práticas de cuidado e, quando participam dessa ordem ontológica, são afetados por ela.
  • 35
    Entrevista realizada em 24/03/2018 no quilombo de Santiago do Iguape.
  • 36
    A referência à ancestralidade traz laços de parentesco, relações de cuidado mútuo, de amizade e “consideração”, evidenciando os processos de coparticipação na feitura das pessoas (Pina-Cabral e Silva, 2013PINA-CABRAL, João de e SILVA, Vanda Aparecida da. 2013. Gente livre. Consideração e pessoa no Baixo Sul da Bahia. São Paulo: Ed. Terceiro Nome.) e nas maneiras de existência.
  • 37
    Sua iniciação e seu “dom”, sem oposições, num “monismo imanente”, conforme sugerido em Goldman (2012)GOLDMAN, Marcio. 2012. “O dom e a iniciação revisitados: o dado e o feito em religiões de matriz africana no Brasil”. Mana, Rio de Janeiro, 18(2), 269-288. https://doi.org/10.1590/S0104-93132012000200002.
    https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
    .
  • 38
    Durante o trabalho de campo, que contemplou entrevistas semiestruturadas e abertas e encontros informais, foram mobilizadas informações sobre processos vitais, habilidades técnicas e devocionais. Também foram presenciadas sessões de cura.
  • 39
    Entrevistas realizadas em novembro de 2017.
  • 40
    Sobre transmissão e aprendizagem, ver Macedo (2013)MACEDO DE SÁ Sílvia Michele. 2013. “Pesquisas e estudos etnográficos e etnológicos como práticas compreensivas de aprendizagem e formação. In FARTES, Vera, CARIA, Telmo H. e LOPES, Amélia. (orgs.). Saber e formação no trabalho profissional relacional. Salvador, EDUFBA, pp. 291-306..
  • 41
    Entrevistas e encontros realizados em dezembro de 2017 e em fevereiro de 2018.
  • 42
    Sobre o jogo de búzios nas religiões afro-brasileiras ver Beniste (1999)BENISTE, José. 1999. Jogo de búzios. Um encontro com o desconhecido. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil..
  • 43
    Encontros realizados em novembro e dezembro de 2017.
  • 44
    Segundo uma expressão de Mol e Law (1994)MOL, Annemarie e LAW, John. 1994. “Regions, networks and fluids. Anaemia and Social Topology”. Social Studies of Science, 24(4), 641-671. https://doi.org/10.1177/030631279402400402.
    https://doi.org/https://doi.org/10.1177/...
    .
  • 45
    Ver também Fortier (2014)FORTIER, Martin. 2014. “La cognition animiste: une approche transdisciplinaire In Séminaire de l”EHESS-ENS, 2014-20 15. https://www.academia.edu/7002940/La_cognition_animiste_une_approche_transdisciplinaire_-_Séminaire_EHESS_2014-2015.
    https://www.academia.edu/7002940/La_cogn...
    .
  • 46
    O conceito de contraintuitividade se refere à teoria do simbolismo de Sperber (1974)SPERBER, Dan. 1974. Le Symbolisme en general. Paris, Hermann.. Severi o adota segundo ajustes de cunho pragmático.
  • 47
    No caso de Seu Dunga, por exemplo, o transe religioso o transforma num “enunciador complexo” (Severi, 2004SEVERI, Carlo . 2004. “Capturing imagination. A cognitive approach to cultural complexity”. The Journal of the Royal Anthropological Institute (N.S.), 10(4), 815-838.: 817) que acumula, na própria pessoa, a identidade de diversas entidades que falam por meio dele e dão eficácia à sua cura.
  • FINANCIAMENTO:

    A pesquisa teve financiamento do CNPq (Bolsa de Produtividade e Bolsas PIBIC da UFBA e da UFRB) e da ONG italiana COSPE.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    17 Set 2020
  • Aceito
    02 Abr 2021
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