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Repensando os pactos da antropologia

O número 65.1 da Revista de Antropologia promove uma discussão importante sobre a relação entre pesquisa em antropologia e saberes praticados para além das universidades. Não poderia ser este um debate mais atual, haja vista as demandas pelo realinhamento da produção de conhecimento e do lugar de enunciação tradicionalmente associados à minoria branca, privilegiada e ocidentalizada que até hoje controla a academia no Brasil. A Revista de Antropologia, exercendo sua vocação antirracista, pretende contribuir para transformar a maneira pela qual a antropologia tem sido produzida e pensada. É neste sentido que caminha o artigo de Marcio Goldman e de Edgar Barbosa Neto (2022aBARBOSA NETO, Edgar Rodrigues; GOLDMAN, Goldman. A maldição da tolerância e a arte do respeito nos encontros de saberes - 1ª. Parte. Revista de Antropologia, 65(1): e192790. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192790
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; 2022b)BARBOSA NETO, Edgar Rodrigues; GOLDMAN, Goldman. A maldição da tolerância e a arte do respeito nos encontros de saberes - 2ª. Parte. Revista de Antropologia, 65(1): e192791. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192791
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, publicado em duas partes. Em “A maldição da tolerância e a arte do respeito nos encontros de saberes”, os autores enfrentam questões tão delicadas quanto urgentes ao se perguntarem por “uma espécie de respeito ‘transversal’, capaz de pôr em relação diferenças enquanto diferenças, opondo às moralidades hierárquicas ou pseudo democratizantes do universal uma ética dos bons e maus encontros sempre locais ou situados” (Barbosa Neto; Goldman, 2022aBARBOSA NETO, Edgar Rodrigues; GOLDMAN, Goldman. A maldição da tolerância e a arte do respeito nos encontros de saberes - 1ª. Parte. Revista de Antropologia, 65(1): e192790. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192790
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: 4). A proposta busca destronar o tradicional ponto de vista de Sirius com o qual a antropologia (entre outras ciências humanas) imaginava exercer sua vantagem epistemológica e política sobre outros coletivos e seus respectivos modos de conhecimento, propondo assim uma forma de respeito que não se confunda com a tolerância multicultural e suas hipocrisias de conveniência. O que se quer, ao invés disso, é “criar conexões não inocentes com tudo aquilo que pode ser afirmado como importante” (Barbosa Neto; Goldman, 2022bBARBOSA NETO, Edgar Rodrigues; GOLDMAN, Goldman. A maldição da tolerância e a arte do respeito nos encontros de saberes - 2ª. Parte. Revista de Antropologia, 65(1): e192791. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192791
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: 6) e reformular, a partir daí, a própria concepção e institucionalização da antropologia. Goldman e Barbosa Neto resumem com precisão a proposta nas seguintes palavras: “A questão, para nós, não é imaginar a universidade como devendo ser equivalente ao terreiro, tentando imitar suas práticas ou algo no gênero. O importante é imaginar como, na relação com o terreiro — uma relação que inclui, no meio acadêmico, a presença de babalorixás e yalorixás como professores e professoras —, a universidade pode ser diferente de si mesma, sabendo, ao mesmo tempo, que esse é talvez apenas um lado da relação” (Barbosa Neto; Goldman, 2022aBARBOSA NETO, Edgar Rodrigues; GOLDMAN, Goldman. A maldição da tolerância e a arte do respeito nos encontros de saberes - 1ª. Parte. Revista de Antropologia, 65(1): e192790. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192790
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: 13).

Em “Pele negra, jalecos brancos: racismo, cor(po) e (est)ética no trabalho de campo antropológico”, Rosana Castro (2022)CASTRO, Rosana. Pele negra, jalecos brancos: racismo, cor(po) e (est)ética no trabalho de campo antropológico. Revista de Antropologia, 65(1): e192796. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192796
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transforma seu próprio corpo de pesquisadora em problema de reflexão, mostrando como pertencimento racial, gênero e sexualidade influenciam em sua etnografia sobre um centro de pesquisa farmacêutica em seres humanos. O artigo demonstra, além do mais, como a branquidade da própria antropologia é uma matriz a ser questionada e modificada. Sua conclusão não poderia ser mais precisa: “Nesse sentido, dentre os desafios para o futuro, estão, ainda, o registro e a produção dos modos com que nossos corpos experimentam e produzem antropologias, da graduação à docência, dos bancos de sala de aula à pesquisa de campo. Aos poucos, adensamos também a compreensão dos meandros da tarefa ética de fazer, a partir desses vários “nós”, também nossa a antropologia” (Castro, 2022CASTRO, Rosana. Pele negra, jalecos brancos: racismo, cor(po) e (est)ética no trabalho de campo antropológico. Revista de Antropologia, 65(1): e192796. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192796
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: 20). Ao revisitar um clássico da produção da imagem fotográfica e da antropologia, a saber, a trajetória de Pierre Verger, Edilson Pereira (2022)PEREIRA, Edilson. Fotografia e sagrados afrobrasileiros: modulações da diferença em Pierre Verger e seus contemporâneos. Revista de Antropologia, 65(1): e192797. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192797
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, em “Fotografia e sagrados afro-brasileiros: modulações da diferença em Pierre Verger e seus contemporâneos” também pretende questionar as relações de assimetria e as formas de representação da diferença envolvidas no encontro entre sistemas de pensamento e de ação distintos uns dos outros. Pereira sustenta ser possível aproximar a trajetória de Verger “dos debates pós-coloniais e decoloniais mais recentes” (Pereira, 2022PEREIRA, Edilson. Fotografia e sagrados afrobrasileiros: modulações da diferença em Pierre Verger e seus contemporâneos. Revista de Antropologia, 65(1): e192797. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192797
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: 23), ao postular que o olhar do fotógrafo francês iniciado no culto de Ifá “mirou simultaneamente para dentro e para fora (de si e do outro) produzindo uma perspectiva que colaborou na compreensão de aspectos culturais do Brasil que excedem a perspectiva colonial europeia. Sua obra resulta de um conhecimento artístico e iniciático que dilui os grandes marcos da divisão moderna entre sujeito/objeto, observador/observado, civilizado/primitivo, em prol de uma multiplicidade de posições relacionais” (Pereira, 2022PEREIRA, Edilson. Fotografia e sagrados afrobrasileiros: modulações da diferença em Pierre Verger e seus contemporâneos. Revista de Antropologia, 65(1): e192797. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192797
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: 23).

As questões raciais, contudo, também podem ser encontradas no estudo das transformações urbanas em Salvador realizado por Urpi Montoya Uriarte (2022)URIARTE, Urpi Montoya. Os tempos da Ladeira da Preguiça: Etnografia de longa duração de uma micro localidade do centro histórico de Salvador. Revista de Antropologia, 65(1): e192795. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192795
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. No artigo “Os tempos da Ladeira da Preguiça: Etnografia de longa duração de uma micro localidade do centro histórico de Salvador”, a autora examina as complexas sobreposições entre tempo e espaço nas dinâmicas de segregação de pobres e negros na histórica Ladeira da Preguiça. Das reformas urbanísticas ao abandono e à especulação imobiliária, emerge contudo uma constante: “Para aqueles que conhecem o que a Preguiça foi até o século XIX, a atual estratégia de abertura nada mais é do que uma reabertura após um longo período de fechamento. O tempo da abertura, esmagado pela espacialidade própria do século XX, reemerge das cinzas no século XXI. Volta, não por inércia ou destino, mas pela luta pelo direito à cidade de seus moradores” (Uriarte, 2022URIARTE, Urpi Montoya. Os tempos da Ladeira da Preguiça: Etnografia de longa duração de uma micro localidade do centro histórico de Salvador. Revista de Antropologia, 65(1): e192795. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192795
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: 28-29).

Ainda no que se refere às lutas pela moradia e à desigualdade no espaço urbano, Carlos Filadelfo (2022)FILADELFO, Carlos. O tempo do mutirão: sentidos e (re)arranjos de família e casa entre mutirantes em um bairro periférico de São Paulo. Revista de Antropologia, 65(1): e192798. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192798
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, em “O tempo do mutirão: sentidos e (re)arranjos de família e casa entre mutirantes em um bairro periférico de São Paulo” mostra como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Leste I exerce um papel de intermediador entre o Estado e as famílias. A relação, entretanto, não deixa de ser caracterizada por suas complexidades próprias, já que “se há uma dupla captura dos sentidos de família e de casa pelo Estado e pelo movimento no atendimento habitacional, há sempre linhas de fuga de arranjos familiares e de ideias e realidades sobre a nova casa que muitas vezes não se enquadram perfeitamente nos objetivos propostos pelo Estado ou mesmo pelo movimento” (Filadelfo, 2022FILADELFO, Carlos. O tempo do mutirão: sentidos e (re)arranjos de família e casa entre mutirantes em um bairro periférico de São Paulo. Revista de Antropologia, 65(1): e192798. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192798
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: 18). Não por acaso, o papel das mulheres na economia popular e nos movimentos pela moradia é também assunto do estudo de Florencia Daniela Pacífico (2022)PACÍFICO, Florencia Daniela. Las casas como procesos colectivos. Reflexiones etnográficas sobre prácticas políticas de mujeres de la economía popular. Revista de Antropologia, 65(1): e192931. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192931
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, desta vez destinado à situação argentina. Em “Las casas como procesos colectivos. Reflexiones etnográficas sobre prácticas políticas de mujeres de la economía popular”, a autora mostra como as mulheres integrantes de cooperativas de trabalho criam “formas de politización de asuntos convencionalmente definidos como privados o domésticos, tales como las condiciones de las viviendas o las posibilidades de proyectar cambios o “progresos” en las formas de vida” (Pacífico, 2022PACÍFICO, Florencia Daniela. Las casas como procesos colectivos. Reflexiones etnográficas sobre prácticas políticas de mujeres de la economía popular. Revista de Antropologia, 65(1): e192931. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192931
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: 19). Edmundo Antonio Peggion (2022)PEGGION, Edmundo Antonio. Regularização fundiária e regimes de conhecimento: notas sobre o sul do estado do Amazonas (Brasil). Revista de Antropologia, 65(1): e192794. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192794
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, por sua vez, examina no artigo “Regularização fundiária e regimes de conhecimento: notas sobre o sul do estado do Amazonas (Brasil)” os entrecruzamentos entre as percepções indígenas e não indígenas sobre território, envolvidas no estudo de demarcação de terras indígenas no sul do Amazonas, Brasil. O desafio envolvido na produção de tais estudos está em “traduzir uma dimensão vivida da terra para um registro jurídico e antropológico denominado Terra Indígena” (Peggion, 2022PEGGION, Edmundo Antonio. Regularização fundiária e regimes de conhecimento: notas sobre o sul do estado do Amazonas (Brasil). Revista de Antropologia, 65(1): e192794. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192794
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: 11). Tal processo representa uma das tarefas éticas e políticas mais significativas da antropologia, envolvida em reparar as desigualdades territoriais que constituem o processo colonial e suas heranças contemporâneas.

O número 65.1 da Revista de Antropologia traz, ainda, um conjunto significativo de artigos dedicados à etnologia dos povos autóctones da América do Sul. O artigo de Sofia Venturoli (2022)VENTUROLLI, Sofia. “¿Ella sabe comer?” Comida, construcción de la persona y relaciones étnicosociales en los Andes de Conchucos, Perú. Revista de Antropologia, 65(1): e192793. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192793
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, “¿Ella sabe comer?” Comida, construcción de la persona y relaciones étnico-sociales en los Andes de Conchucos, Perú”, atualiza para o altiplano andino discussões clássicas elaboradas pela etnologia das terras baixas sobre a construção da pessoa e sua relação com a alimentação. Concebida como um processo semântico e relacional, a comida tanto permitia a indigenização da antropóloga quanto um processo de branqueamento das populações indígenas que modificava as hierarquias locais. Íris Morais Araujo (2022)ARAÚJO, Íris Morais. Parentes especiais, relações Karitiana. Revista de Antropologia, 65(1): e192932. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192932
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, por sua vez, enfrenta em “Parentes especiais, relações Karitiana” o complexo problema de compreensão do que vem a ser essas “pessoas especiais” às quais se atribuem “corpos diferentes, não inteiramente humanos” (Araújo, 2022ARAÚJO, Íris Morais. Parentes especiais, relações Karitiana. Revista de Antropologia, 65(1): e192932. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192932
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: 3) situados às margens do parentesco e da vida social. A transformação na alimentação derivada da entrada de produtos industrializados, não por acaso, vai se somar a outros fatores que acarretam a transformação corporal capaz de gerar pessoas especiais, frequentemente traduzidas como “loucas” pelos próprios indígenas, e produtoras de diversos mal entendidos com relação aos pressupostos médicos ocidentais.

O dossiê “Entre a mitologia e a etnografia: transformações nas Américas indígenas”, organizado por Nicole Soares e João Vianna, apresenta um conjunto expressivo de artigos dedicados à mitologia ameríndia elaborados por Oscar Calavia Saez, Alejandro Fujigaki Lares, Eduardo Soares Nunes, Geraldo Andrello, Marcos Matos, Peter Gow e pelos próprios João Vianna e Nicole Soares. Inspirados no marco fundamental das Mitológicas de Lévi-Strauss, os artigos aqui reunidos, partem de estudos etnográficos elaborados a partir de uma ampla dispersão territorial. Tal dispersão, entretanto, segue um dos sentidos da contribuição dos estudos de Lévi-Strauss sobre o mito, a saber, a articulação fundamental entre interior e exterior: “o mito quando visto de “dentro” de uma sociedade impele inevitavelmente a análise mítica para fora dela” (Vianna; Soares-Pinto, 2022:3), dizem os organizadores. Ainda que não pretendam oferecer uma mudança de paradigmas no estudo da mitologia ameríndia, o dossiê não apenas visa dar continuidade às contribuições de Lévi-Strauss e reiterar a sua atualidade mas, mais profundamente, fazer com que seja possível “depreender de nossas etnografias uma filosofia ameríndia”. É nesse sentido que, a despeito dos distintos estilos de investigação envolvidos na antropologia francesa, nas narrativas indígenas e na etnologia contemporânea, se torna possível reafirmar que as Mitológicas implicavam em uma “continuidade epistêmica entre uma empresa analítica e as formas ameríndias de pensamento”, oferecendo assim um dos mais decisivos casos de reversão da suposta vantagem epistemológica com a qual antropologia se formou.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022
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