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Mulheres-Onça: mitologia, gênero e antropofagia no Complexo do Marico

Jaguar-Women: Mythology, Gender and Cannibalism on Marico Complex

RESUMO

As narrativas mitológicas dos povos originários dos afluentes da margem direita do médio rio Guaporé revelam uma íntima conexão entre relações de gênero e a diferença humano/animal/espírito. Enfatizam, por um lado, as condições de possibilidade de uma sociedade composta por relações de sexo oposto, e por outro lado, a “antropofagia” praticada pelas mulheres. A partir da articulação com a etnografia cotidiana, em particular referente à produção e consumo de bebida fermentada, o artigo sugere que a antropofagia feminina, i.e., a identificação virtual das mulheres com as onças, é a condição para a diferença (atual) que separa os humanos dos não-humanos e os humanos entre si.

PALAVRAS-CHAVE
Mitologia ameríndia; gênero; antropofagia; Sudoeste Amazônico

ABSTRACT

The mythological narratives of the people originating from the tributaries of the right bank of the middle Guaporé River reveal an intimate connection between gender relations and human / animal / spirit difference. The myths emphasize, on the one hand, the conditions for the possibility of a society composed of cross-sex relations, and on the other hand, the cannibalism practiced by women. From the articulation with the daily ethnography, in particular regarding the production and consumption of fermented drink, the article suggests that female’s cannibalism, ie, the virtual identification between women and jaguars, is the condition for the (current) difference that separates human from nonhuman and human among themselves.

KEYWORDS
Amerindian mythology; gender; cannibalism; Southwestern Amazon

Aos narradores indígenas e à Betty Mindlin, que primeiro registrou os ingredientes desta grande moqueca de maridos

Myth does indeed imitate the forms and situations of secular life - this is part of its magic and its credibility - but it could equally well be argued that kinship, subsistence, magic and ritual imitate the forms and situations of a myth

(Wagner, 1978WAGNER, Roy. 1978. Lethal Speech: Daribi Myth as Symbolic Obviation. London, Cornell University Press.: 54)

INTRODUÇÃO

Enquanto bebíamos cerveja de macaxeira na aldeia Baía das Onças (T.I. Rio Guaporé), uma interlocutora djeoromitxi apontou seu filho já crescido e me contou que durante a gravidez daquela criança ela sentia vontade de “comer gente”.1 1 Agradeço a João Vianna, Eduardo Viveiros de Castro e Geraldo Andrello, bem como aos pareceristas anônimos da Revista, pelos comentários e sugestões preciosas ao manuscrito. Algumas das ideias contidas neste artigo foram primeiramente apresentadas na Mesa Redonda “Gênero na Cosmopolítica: casos etnográficos em debate”, ANPOCS, 2016, composta por Beatriz Matos, Oiara Bonilla, Julia Otero e Fabiana Maizza, conjunto de mulheres a quem agradeço o diálogo e as proposições que sugiram na ocasião. Não consegui esconder meu assombro, ainda que a antropofagia praticada por mulheres seja um tema antigo naquelas paragens da margem direita do rio Guaporé. Por certo não foi à toa que Betty Mindlin batizou de “Moqueca de Maridos” o primeiro dos dois livros dedicados ao registro da mitologia dos povos Wajuru, Makurap, Tupari, de língua tupi tupari, os Aruá, de língua tupi-mondé, e os Arikapô e Djeoromitxi, de língua Macro-Jê, que compõem o que ficou conhecido na literatura como “Complexo do Marico” (Maldi, 1991MALDI, Denise. 1991. O complexo cultural do marico: sociedades indígenas do rio Branco, Colorado e Mequens, afluentes do médio Guaporé. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi (Antropologia), v. 7, n. 2: 209-269.), originários da Amazônia meridional, mais especificamente nos afluentes da margem direita do médio rio Guaporé, nas cabeceiras do Rio Branco, Colorado e Terebito, onde localizam suas antigas malocas.2 2 Maricos são bolsas feitas de tucum ou algodão utilizadas para carregar os produtos da roça e coleta. Sua confecção é exclusivamente feminina. Em conjunto, esses povos compõem um sistema multiétnico e multilíngue, mais recentemente composto também pelos Cujubim, Kanoê, Massacá e indivíduos Wari’, agora que estão na T.I. Rio Guaporé, para onde uma parcela significativa desses povos foi deslocada forçosamente, enquanto a outra está na T.I. Rio Branco. Para a história das interações entre esses povos e os deslocamentos territoriais, ver Soares-Pinto (2009; 2014).

Meu objetivo é investigar as condições virtuais colocadas para e pela antropofagia feminina, que a faz proceder da distinção entre os sexos. Escolhi para a análise seis principais narrativas míticas, e outras subsidiárias, cujos temas abordados são dois: a divisão de uma sociedade primordial composta por pessoas de ambos os sexos (que chamarei de “sociedade de sexo oposto”) em duas sociedades compostas por pessoas de mesmo sexo, uma exclusivamente feminina, a outra masculina (que chamarei “sociedade das mulheres e “sociedade dos homens”), e a posterior restituição de uma “sociedade de sexo oposto”; a antropofagia feminina, e suas consequências. Nos mitos, tanto a chicha (cerveja de milho ou macaxeira fermentada e, portanto, embriagante) quanto o casamento em suas mais variadas formas (intra-humana e transespecífica), têm um lugar central, ora em sua função “cozido” (de produção de uma comunidade de parentes/povo), ora em sua função “veneno” (de alteração e metamorfose). Assim, além de registrar o caráter “miticamente construído” da sociedade de sexo oposto entre meus interlocutores, quero notar outra característica saliente de sua sociocosmologia: a virtualidade que identifica as mulheres às onças (ou seja, à posição de predador), colocando questões a respeito da distinção de gênero e da perspectiva.

A crítica de gênero levada a cabo por diversas etnólogas primeiramente reagiu a uma suposta dominação masculina (Overing, 1986OVERING, Joanna. 1986. Men control women? The ‘catch 22’ in the analysis of gender. International Journal of Moral and Social Studies, v. 1, n. 2: 135-156.; Franchetto, 1996FRANCHETTO, BRUNA. 1996. Mulheres entre os Kuikurú. Revista Estudos Feministas, v. 4, n. 1: 35-54.; Lea, 2001LEA, Vanessa. 2001. “The composition of mebengokre households”. In: RIVAL, Laura; WHITEHEAD, Neil. (Eds.). Beyond the visible and the material: the amerindianization of society in the work of Peter Rivière.Oxford, Oxford University Press, pp. 157-176.; McCallum, 1996MCCALLUM, Cecília. 1996. The body that knows: from cashinahua epistemology to a medical anthropology of lowland South America. Medical Anthropology Quarterly, v. 10, n. 3: 347-372. DOI: https://doi.org/10.1525/maq.1996.10.3.02a00030
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), argumentando a favor da simetria, ou complementariedade entre os sexos, afirmando existir um polo ou esfera da feminilidade (do interior e da consanguinidade/identidade ou da ‘afinidade cognática’) de igual importância para a produção do social. Outros trabalhos criticaram a atribuição exclusiva aos homens das relações com o “exterior”, e portanto com as fontes de criatividade e alteração do socius, enfatizando a presença das mulheres em espaços tomados (erroneamente) como masculinos e sua relação com a alteridade; seja a mitológica (Rodrigues, 1995RODRIGUES, Patricia. 1995. Alguns aspectos da construção do gênero entre os Javaé da ilha do Bananal. Cadernos Pagu, n. 5: 131-146.), seja a dos complexos guerreiros (Conklin, 2001CONKLIN, Beth. 2001. “Women’s Blood, Warriors’ Blood, and the Conquest of Vitality in Amazonia”. In: GREGOR, Thomas; TUZIN, Donald. Gender in Amazonia and Melanesia: an exploration of the comparative method. California, University of California Press, pp.141-174.), dos conhecimentos xamânicos (Maizza, 2018MAIZZA, Fabiana. 2018. The wander women: some thoughts about gender in Amazonia. Journal of the Anthropological Society of Oxford, New Series, v. X, n. 2: 136-156.; Oliveira, 2019OLIVEIRA, Melissa. 2019. Vida, poder e conhecimento: cuidados contemporâneos em torno do nascimento entre grupos Tukano Orientais do médio rio Tiquié, Noroeste Amazônico. R@U - Revista de Antropologia da UFSCar, v. 11, n. 1: 35-64.; Magnani et al., 2020MAGNANI, Claúdia; GOMES, Ana; MAXACALI, Sueli; MAXACALI, Maísa. 2020. Panela de barro, água de batata, linha de embaúba: práticas xamânicas das mulheres tikmũ’ũn-maxakali. Cadernos de Campo, v. 29, n.1: 262-281. DOI https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v29i1p247-266
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); ou rituais (Ramo y Affonso [2014; s/d]RAMO Y AFFONSO, Ana Maria. 2014. De pessoas e palavras entre os guarani-mbya. Niterói, tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense. para as relações entre gênero e idade que geram efeitos de singularização aos olhos dos deuses guarani; Otero [2019]OTERO, Julia. 2019. Sobre mulheres brabas: ritual, gênero e perspectiva. Amazônica: revista de antropologia, v. 11, n. 2: 607-635. DOI: http://dx.doi.org/10.18542/amazonica.v11i2.7643
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para mulheres predadoras e o eclipsamento do gênero em vista de uma posição “humana”; e Matos [2019]MATOS, Beatriz de Almeida. 2019. O perigo do olhar da mulher: reflexões sobre gênero e perspectiva a partir de um ritual de iniciação masculina matses. Amazônica: Revista de Antropologia, v. 11, n. 2: 637-656. DOI: http://dx.doi.org/10.18542/amazonica.v11i2.7637
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para a relação de afinidade entre mulheres e espíritos). Esses últimos trabalhos tematizaram ainda as relações entre gênero e perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro, 1996VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana - Estudos de Antropologia Social, v. 2, n. 2: 115-144. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200005
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; Lima, 1996LIMA, Tânia Stolze. 1996. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tup”. Mana - Estudos de Antropologia Social, v. 2, n. 2: 21-47. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200002
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), cujo tema se encontra nos trabalhos de Belaunde (2006BELAUNDE, Luísa Elvira. 2006. A força dos pensamentos, o fedor do sangue: hematologia e gênero na Amazônia. Revista de Antropologia, v. 49, n. 1: 205-243. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-77012006000100007
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; 2019)BELAUNDE, Luísa Elvira. 2019. O ninho do japu: perspectivismo, gênero e relações interespécies airo-pai. Amazônica: Revista de Antropologia, v. 11, n. 2: 657-687. DOI: http://dx.doi.org/10.18542/amazonica.v11i2.7638
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. Uma recensão recente do tema do gênero na etnologia pode ser encontrada em Matos, Otero e Belaunde (2019)MATOS, Beatriz de A.; OTERO, Julia; BELAUNDE, Luisa E. 2019. “Corpo, Terra, Perspectiva”. Amazônica: Revista de Antropologia, v. 11, n. 2: 391-412. DOI: http://dx.doi.org/10.18542/amazonica.v11i2.7957
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A associação das relações de gênero com o par consanguinidade/ afinidade guarda um debate extenso. A partir da etnografia enawenê-nawê, Silva (2001)SILVA, Marcio. 2001. Relações de gênero entre os Enawene-Nawe. Tellus, ano 1, n. 1: 41-66. DOI: https://doi.org/10.20435/tellus.v0i1.4
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argumentou que a oposição masculino/feminino deveria ser entendida nos horizontes do imperativo da troca, nos termos de uma relação estrutural das relações de parentesco (consanguinidade/afinidade). Em alternativa às interpretações que definiam as relações de gênero de maneira hierárquica (dominância masculina) ou simétrica (igualdade sexual), o autor defendeu, para o caso enawenê-mawê, estarem os homens associados à alteridade/ afinidade, e as mulheres à identidade/consanguinidade (Silva, 2001SILVA, Marcio. 2001. Relações de gênero entre os Enawene-Nawe. Tellus, ano 1, n. 1: 41-66. DOI: https://doi.org/10.20435/tellus.v0i1.4
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). Essa é também a interpretação de Nunes (2016)NUNES, Eduardo Soares. 2016. Transformações Karajá: Os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos. Brasília, tese de doutorado, Universidade de Brasília. para os Karajá, baseada na distinção entre ação cotidiana e ação ritual, que opõe pessoas de gênero e espécies diferentes (: 257). A partir de uma etnografia sobre produção de parentesco - centrada no espaço residencial, humano e feminino - e transformação ritual masculina, como modos de ações voltados em sentidos opostos, o autor conclui: “Tudo se passa, enfim, como se ‘ser parente’ fosse uma condição feminina, como se os homens fossem internamente repartidos entre uma parte Outro, masculina, aõni, e uma parte Eu, feminina, parente” (: 247).

A mesma associação entre homens e afinidade, e mulheres e consanguinidade, encontramos em Taylor (2000)TAYLOR, Anne-Christine. 2000. Le sexe de la proie: Représentations jivaro du lien de parenté. L’Homme, v. 154-155, pp. 309-334. DOI: https://doi.org/10.4000/lhomme.35
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em sua análise sobre canções mágicas jivaro que associam conjugalidade, predação e domesticação. Taylor afirma privilegiar o ponto de vista masculino em detrimento do ponto de vista feminino sobre as relações de parentesco por ser a perspectiva masculina determinante na forma geral da cultura jivaro (2000: 309, nota 01). O sujeito jivaro é fundado, no caso dos homens, na relação com o inimigo-afim, sendo o cunhado a figura metonímica do Inimigo (id.: 313). A afinidade é, portanto, “masculinizada”: “le rapport entre beaux-frères (WB/ZH) apparaît comme la pierre de touche de la subjectivité et de la sociabilité jivaro” (: 328). Ao seu passo, a estrutura relacional subjacente às mulheres jivaro assume a forma de uma germanidade cruzada com os animais de caça, homólogo e inverso à afinidade inimiga que subjaz a subjetividade masculina: “elle est ‘soeur du gibier’ de la même façon que son époux est ‘affin de prédateur’; elle est ‘moitié gibier’ comme il est ‘moitié ennemi’” (: 317). A imagem da consanguidade, por sua vez, é encontrada no “parentesco vegetal”, da clonagem, pensada enquanto um não-relacionamento subsumido por um único termo auto-replicante (: 329). A predação, ao contrário, marcaria um “hiper-relacionamento” entre diferentes entidades onde cada um dos termos tende para a incorporação do outro (: 329). A interpretação da autora está ancorada na reversibilidade da relação de predação, bem documentada para rituais guerreiros, e que no contexto analisado implica uma relação de mesmo sexo propriamente masculina (: 329), sendo esta reversibilidade impedida quando relaciona parceiros de sexo oposto, cuja diferença se torna então homóloga a que é estabelecida entre o caçador e sua caça (: 317).

Ainda que à associação do feminino à consanguinidade, e do masculino à afinidade, ou vice-versa, seja etnograficamente correta para vários casos, estou de acordo com Silva quando este afirma não se sustentar para a Amazônia “qualquer generalização etnográfica que tenha como resultado o congelamento [d]a associação a priori entre um gênero e uma espécie [consanguidade/afinidade]” (2001: 61). Para resistir a essa “generalização”, tomo como importante a atenção à famosa (e bastante criticada) afirmação de Descola no contexto de comparação entre Amazônia e Melanésia, de que “no continente americano […] o contraste essencial é entre humanos e não humanos antes que entre humanos (homens) e humanos (mulheres)” (2001: 108). Mais do que inverter a afirmação de Descola, o interessante parece ser, justamente, explorar a relação entre as duas oposições. A investigação aqui conduzida exigiu que a distinção stratherniana para a análise das relações de gênero, qual seja, entre relações “same-sex” e “cross-sex” (Strathern, 2001STRATHERN, Marilyn. 2001. “Same-Sex and Cross-Sex Relations: Some Internal Comparisons”. In: GREGOR, Thomas (org.). Gender in Amazonia and Melanesia: An Exploration of the Comparative Method. California, University of California Press, pp.: 221-244.), fosse abordada à luz das relações extra-humanas. Com efeito, a característica perspectiva das relações de sexo oposto que encontrei entre os povos do Marico indicou a necessidade de pensarmos as relações de gênero em termos da teoria do parentesco, isto é, a partir da exigência “amazônica” da inclusão do parentesco em campos sociais mais vastos (Viveiros de Castro, 2002aVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002a. “O problema da afinidade na amazônia”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify, pp. 87-180.; 2002bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002b. “Atualização e contra-efetuação do virtual: o processo do parentesco”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify, pp. 401-456.).

Lembremos que em História de Lince, quando a dualidade em desequilíbrio perpétuo foi explicitamente formulada como operador central da máquina do universo ameríndio, a importante relação da gemelaridade impossível com a diferença de sexo oposto estava já colocada pelo motivo mítico da “sentença fatídica”: “Se for menino eu crio, se for menina eu mato”, ou vice-versa. Segundo Lévi-Strauss, o que a sentença discrimina é “o sexo de um ser único que, em seu estado inicial, continha virtualmente os dois” (Lévi-Strauss, 1993LÉVI-STRAUSS, Claude.1993. História de Lince. São Paulo, Editora Schwarcz.: 63), fazendo-o então “gêmeo de si mesmo”. A sentença contém implicitamente a afirmação de que “toda unidade contém uma dualidade e que, quando esta se atualiza, não importa o que se queira ou o que se faça, não pode haver verdadeira igualdade entre as partes” (Lévi-Strauss, 1993LÉVI-STRAUSS, Claude.1993. História de Lince. São Paulo, Editora Schwarcz.: 67). A relação entre a dualidade dos sexos e o tratamento reservado à diferença pelas cosmologias ameríndias não parece ser para o autor, portanto, trivial.

Inspirado em uma passagem d’O Homem Nu, na qual Lévi-Strauss sugere que vários dos gêmeos de mesmo sexo na mitologia ameríndia são transformações logico-históricas de um mito de gêmeos incestuosos de sexo oposto, bem como na obra de Marilyn Strathern, Viveiros de Castro afirma

that same-sex twins are necessarily a limit case of cross-sex twinship. That irreducible minimum of difference that Levi-Strauss sees as contained in the Amerindian twins of the same sex has its origin in the internal difference that constitute cross-relations. In other words, the difference between same-sex and cross-sex relations is of the same kind as the internal difference that defines a cross-sex relation (Viveiros de Castro, 2012VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2012. “Radical Dualism: A Meta-Fantasy on the Square Root of Dual Organizations, or a Savage Homage to Lévi-Strauss”. 100 notes-100 Thoughts = 100 Notizen - 100 Gedanken; n. 056, Ostfildern, Hatje Cantz.: 20. Nota 14).

Faz-se interessante, neste sentido, que ao diagramar as bipartições perpetuamente desequilibradas do parentesco amazônico, Viveiros de Castro (2002b: 440)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002b. “Atualização e contra-efetuação do virtual: o processo do parentesco”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify, pp. 401-456. incluiu a relação de sexo oposto no polo da afinidade (potencial) - junto aos “distantes/ cruzados/germano sênior ou junior/a placenta-alma” -, enquanto a relação de mesmo sexo foi disposta no polo da consanguinidade - ao lado da “não afinidade/próximos, paralelos/ego/corpo-cadáver”. Essa parece uma pista importante e, no entanto, é notável que as relações de sexo oposto de parentesco, principalmente as de afinidade, não tenham recebido até agora tanto destaque quanto as relações de mesmo sexo nas análises das socialidades das Terras Baixas da América do Sul - ainda que Lima (2005: 314)LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo, Editora Unesp/ISA; Rio de Janeiro, NUTI. tenha já chamado a atenção para sua centralidade.

A partir do estatuto de uma “dualidade perpetuamente desequilibrada” para a relação entre relações de sexo oposto e de mesmo sexo, pretendo abordar as condições virtuais de sistemas sociais que, como os povos do Marico (Maldi, 1991MALDI, Denise. 1991. O complexo cultural do marico: sociedades indígenas do rio Branco, Colorado e Mequens, afluentes do médio Guaporé. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi (Antropologia), v. 7, n. 2: 209-269.), originários dos afluentes da margem direita do médio rio Guaporé, que destacam atualmente a patrifiliação e a virilocalidade, nem por isso dispensam menos atenção às capacidades cosmológicas e transformativas das substâncias femininas, como a chicha e o sangue menstrual. Sugiro, ao final, duas possibilidades. A primeira seria a de que os povos aqui enfocados fazem da “determinação recíproca” da relação de sexo oposto e a relação humanos/ não-humanos uma visada privilegiada de sua socialidade - é à relação entre essas duas relações/dualidades, portanto, a que me volto. E a segunda, derivada da primeira: a identificação virtual das mulheres com as onças é a condição para a diferença atual que separa os humanos dos não-humanos e os humanos entre si. Espero que essas descrições possam servir para a reflexão do papel central das relações de sexo oposto em outros sistemas cosmológicos amazônicos, “multi-étnicos” ou não.

A INSTAURAÇÃO DE UMA “SOCIEDADE” DE SEXO OPOSTO (PRIMEIRO GRUPO DE MITOS)

De acordo com meus anfitriões, mitos são histórias de pessoas e de momentos de um tempo em que “tudo o que se pensava, acontecia”. Essas histórias podem ser bem curtas, mas também longas e exuberantes, e delas as pessoas extraem um modo atual e criativo de aconselhamento de seus parentes.

AS MULHERES DO ARCO-ÍRIS

No mito makurap, As Mulheres do Arco-Íris, Botxatoniã, (Mindlin, 2014MINDLIN, Betty; narradores Makurap, Tupari, Wajuru, Djeoromitxí, Arikapú e Aruá. 2014. Moqueca de Maridos: mitos eróticos indígenas. São Paulo, Paz e Terra.: 33-36)3 3 Aqui indexado como Mito 1, doravante M1. Apresento, para cada um dos mitos, um resumo do referente publicado em Mindlin (2014), ou mitos que eu mesma escutei em campo. ,

as mulheres se apaixonam por um ser que vivia no fundo das águas, e passam a viver como solteiras, abandonando filhos e maridos. Os homens passam a viver sozinhos também, e os meninos, ao caçarem jacaré, descobrem que no fundo do rio existem mulheres que pareciam suas mães, as mulheres do povo Arco-Íris, as Botxatoniã. Elas enviavam, por meio dos meninos, chicha e comida para os homens, afirmando serem produtos humanos, não de Txopokod.4 4 Genericamente, espíritos maus, em língua makurap. Só um dos homens (o cacique) desconfiou que a comida era enfeitiçada, enquanto os outros se fartavam. A sociedade dos homens passou a visitar as mulheres espíritos no fundo do rio. Ao seu passo, as mulheres permaneciam na maloca, mas apaixonadas por um homem-espírito do fundo das águas.

Os homens, através das borbulhas da água, sabiam que as Botxatoniã estavam vomitando para continuar a beber chicha. Eles caçaram e desceram ao fundo do rio levando suas carnes de caça: ficaram dias dançando, bebendo e namorando as mulheres do fundo do rio. Mas elas não bebiam da chicha que ofereciam e o cacique novamente desconfiou. Enquanto isso, as mulheres da maloca faziam colares e chicha, mas o ser pelo qual se apaixonaram não gostava de sua comida, e elas acabam descobrindo que, ao invés de belo e novo, ele era feio e velho. Mataram-no.

Tanto o cacique, quanto as mulheres da maloca estavam já com saudades de seus parceiros. Ele mandou o filho, do fundo do rio à maloca, sondar uma possível reconciliação, mas o alertou para não namorar nenhuma das mulheres da terra. “Os homens já estavam virando povo do Arco-Íris, Botxatoniã. Era hora de voltar, ou não daria mais” (id: 36). O filho do cacique chamou muita atenção das mulheres da maloca, pois era lindo e forte, e estava belamente adornado. Ele conseguiu manter-se à distância da mãe, mas caiu nas graças de uma jovem. No dia seguinte, avisou à mãe que ele havia estragado tudo, teria que partir. A jovem enamorada seguiu o moço até o povo Arco-Íris e morreu por isso, mas seu espírito ficou morando com o rapaz. “Desde este dia, os homens ficaram encantados para sempre, morando com as mulheres Botxatoniã [...] Estão lá no fundo das águas, nas cabeceiras do Rio Branco. Esqueceram-se das suas mulheres da maloca, das mães dos seus filhos. Quanto a elas, foram procurar marido noutro canto” (Id: 36).

A tônica é a fragmentação de uma sociedade de sexo oposto em duas sociedades de mesmo sexo pela intervenção de duas relações transespecíficas e divididas entre o fundo das águas e a terra. Enquanto as mulheres permanecem juntas e apaixonadas por um único ser-espírito, que matam, os homens são seduzidos por um conjunto de mulheres-espírito, às quais sucumbem. A socialidade transespecífica é denunciada, no primeiro caso, pela recusa da comida propriamente humana; no segundo caso, pelo fato das mulheres do fundo do rio não compartilharem da bebida que elas próprias oferecem. Em ambos, são as mulheres (espíritos ou da maloca) que ou desfazem ou induzem um ardil. Porém, elas estão em funções opostas. À comida das mulheres da maloca vincula-se a função de estabilização da perspectiva humana e à chicha das mulheres espíritos a função veneno ou transformativa da perspectiva. A chicha é assim vinculada às mulheres-espíritos, que por sua vez são associadas ao arco-íris. Como no mito, o vômito é prática comum nas chichadas que ocorrem nas aldeias para que se possa continuar bebendo, já que consiste em imperativo moral não deixar sobrar nenhuma quantidade de cerveja. Está ainda associado à função timbó do cauim extraído por Lima (2005)LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo, Editora Unesp/ISA; Rio de Janeiro, NUTI. de sua relação com o conjunto de mitos relacionados ao veneno de pesca (associados também ao arco-íris, doença, morte e luto), por meio dos quais LéviStrauss observa a redução ao mínimo do intervalo entre a natureza a cultura, “uma união da natureza e da cultura que determina sua disjunção” (2004a: 321).

No mito, a impossibilidade de volta a uma sociedade de sexo oposto plenamente humana/local se dá pela transgressão do mensageiro/mediador, sua concuspiscência irreprimível de natureza sexual. Ao invés da aliança com as mulheres da maloca fornecer essa restituição, é o contrário o que acontece. As coisas se passam como se a aliança (a sexualidade) fosse aquela capaz de contra-efetuar (Wagner, 1977WAGNER, Roy. 1977. The invention of culture. Chicago, The University of Chicago Press.) a distinção entre o povo da maloca e o povo Arco-Íris: é porque o mensageiro se aproximou demasiado a uma humana que a condição “trans humana” dos homens será plenamente identificada. O processo de transformação dos homens se completa e se torna irreversível. Posteriormente, a sociedade humana feminina se abre para “outro canto” e pode-se presumir que as relações humanas se tornam exogâmicas do ponto de vista das humanas-mulheres.

É também um mediador mal sucedido, mas desta vez com a alcunha de o Teimoso, que afasta para sempre as “mulheres sem homens, as amazonas, as kaledjaa-ipeb, mulheres pretas”, outro mito makurap (Mindlin, 2014MINDLIN, Betty; narradores Makurap, Tupari, Wajuru, Djeoromitxí, Arikapú e Aruá. 2014. Moqueca de Maridos: mitos eróticos indígenas. São Paulo, Paz e Terra.: 55-63). Teimoso insistiu para que um caçador makurap revelasse sua vida entre elas e lhe ensinasse o caminho até a aldeia das mulheres encantadas. Estas mataram o Teimoso, pois ele não era o pai do filho delas (o bom caçador makurap). Com isso, os homens perderem a oportunidade de terem revelados por elas os segredos das folhas, da caça e da pesca abundantes (id: 63). A interposição de distâncias codificada pelas relações de sexo oposto vem acompanhada de uma espécie de perda ou derrocada, já que uma parcela (de mesmo sexo) makurap, a “sociedade dos homens”, é irreversivelmente transformada ou permanece como “espírito”. A “distância” aqui vem instaurar o valor perspectivo da relação de sexo oposto.

AS MULHERES-PÁSSARO

Um outro mito, desta vez arikapô5 5 Indexado como Mito 2, doravante M2. , realiza a mesma operação ao tematizar a fragmentação de uma sociedade de sexo oposto em duas sociedades de mesmo sexo, mas inverte a condição transespecífica entre homens e mulheres, pois são elas que se transformam em “outra gente”. A união condenável no mito makurap (M1) entre um menino que vive com as mulheres espíritos e uma menina humana, também aparece transformada e invertida, pois agora o incesto é prescrito. Escutei esse mito pela primeira vez depois de muitos anos de trabalho de campo, e porque comentei com uma senhora djeoromitxi que meu esposo trabalhava com um povo indígena onde os homens também produzem bebida fermentada. Ela não escondeu sua surpresa e um certo asco. Para seu povo e povos vizinhos, a produção da chicha é exclusivamente feminina, e causava-lhe repulsa a ideia de sua matéria-prima ser mascada (o que garante sua fermentação) pelos homens6 6 Embora, como eu soube depois, no caso do povo com quem meu marido trabalha, a produção de bebida fermentada não envolva a mastigação de sua matéria-prima por homens nem por mulheres. . Desconcertada, ela me contou a história que sua mãe lhe conta; a história de Oné (o pássaro tesourinha):

Na maloca, as mulheres faziam pamonha, cozinhavam a caça, os peixes e aquilo que plantavam, enquanto os homens caçavam e pescavam. Mas naquele tempo os homens estavam comendo a pamonha de suas mulheres junto com seu próprio cocô. Uma mulher desconfiada de seu marido foi, escondida, espiá-lo. Ficou com nojo. Voltou e contou: “-Mulherada, essa homarada7 7 “Homarada”, assim como “mulherada”, é a utilização em português dos termos para a coletividade de homens ou de mulheres de uma aldeia. está comendo nossa pamonha junto com a bosta deles”. Elas ficaram com raiva, porque cozinhavam, faziam chicha, faziam tudo, e os homens estavam comendo a bosta deles!

Os homens foram caçar, e a mulherada foi tirar talo da palmeira de aricuri. Elas começaram a tomar banho de cinza de talo de aricuri, se sacudindo, criavam penas, no braço, na perna, na cabeça. Viraram esse pássaro tesoureiro. Esse aí que é o couro delas! E foram rodando, rodando, subindo, subindo, até que todas subiram para o céu. Mas a filha do cacique tinha ficado com pena de deixar o pai, e ficou escondida no jirau da casa dele. A mãe falou para ela tomar banho de cinza de aricuri, mas ela não quis deixar o pai: “-Minha filha, eu vou, mas você fica então. Mas não é para você morar com ninguém. Você vai ficar, mas vai morar com seu irmão”.

“-Mamãe, meu próprio irmão?

“-Sim, você vai morar com seu irmão”.

A mãe dela foi embora, virou esse [pássaro] tesoureiro. Quando os homens estavam sozinhos, ela apareceu, mas só para o pai e para o irmão dela. Os homens começaram a fazer chicha de milho. Cada casa estava fazendo, colocando a chicha nos potes, como era naquele tempo. E a menina ficava escondida no jirau, mascando a chicha do pai dela. Os homens começaram a experimentar chicha, mas todas estavam salobras, não tinham gosto. Só a chicha do pai dela que ficava boa. Os homens desconfiaram

“-Vocês estão escondendo mulher”.

O wira8 8 A categoria wira indica casamento preferencial entre pessoas de sexo oposto ou proteção e pilhéria entre pessoas de mesmo sexo, e recobre as posições de filhos de primos cruzados (FZChCh; MBChCh) e, reciprocamente, primos cruzados dos pais (FMBCh; FFZCh; MFZCh; MMBCh), e por isso não raro é utilizada para a referência à relação entre pessoas de povos distintos, neste ambiente patrifiliativo. Na narrativa, o “wira do irmão dela” seria o cônjuge preferencial da menina, que ela “dispensa” em favor do irmão, quando aconselhada pela mãe. Adiante caracterizo mais detidamente as relações wira. do irmão dela foi na casa dele olhar.

“Wira, vim ver a sua chicha. Você não está escondendo mulher?

“-Estou não”, ele disse.

Desconfiado, o wira deitou na rede para conversar, quando caiu no peito dele um pouco de masca da boca da menina que estava no jirau. O wira descobriu, e eles tiveram que contar para os homens. Mas ela já estava grávida do irmão. Tiveram uma mulherzinha e um homem. Já casaram e já tiveram outros filhos e foi assim que as mulheres aumentaram novamente, e aumentou a aldeia de novo. E assim é a história, esse [pássaro] “tesourinha” que é o couro dessa mulherada que ficou com raiva”.

Ao final da narrativa, minhas amigas presentes, a filha e a sobrinha (BD) da narradora, comentaram que a chicha mascada pelos homens “não ficava boa porque eles comiam bosta”. Neste mito, a distinção entre os papeis de gênero é a tônica e a condição para uma sociabilidade desejada: mulheres cozinham e produzem bebida fermentada, homens caçam e pescam. O fato de os homens comerem o produto do trabalho das mulheres junto com seu cocô, as enoja e enraivece. Elas mesmas encetam sua transformação nos pássaros tesourinha (Tyrannus savana9 9 Nome científico que significa “caçadora implacável que habita/vive na savana ou ave cruel da savana”, segundo https://www.wikiaves.com.br/wiki/tesourinha, último acesso: 01/09/2020. ), por meio da cinza de palmeira de aricuri (Syagrus coronata). A menina que se recusa a essa transformação realiza, posteriormente, o casamento com seu irmão, seguindo a receita de parentesco de sua mãe, segundo a qual ela deveria tratar um parente como se não o fosse.

A dualidade e complementariedade dos papeis de gênero, negada pelos homens por meio da indistinção entre alimento e excremento, é transformada pela dualidade humanos/não humanos, a qual por sua vez leva à não pertinência da dualidade casável/ não casável. Não é a intervenção de um “terceiro”, como em M1, que enceta a divisão da sociedade de sexo oposto em duas sociedades de mesmo sexo, mas uma espécie de diferenciação de um dos termos da dualidade (as mulheres) a partir da “autorelação” do termo oposto (a confusão deliberada entre alimento e excremento realizada pelos homens comendo seu próprio cocô). Essa diferenciação acaba por bloquear um dado circuito de troca, fazendo-o variar. Em suma, uma recusa dos homens a uma relação de troca com as mulheres, pois preferem comer a si mesmos (suas próprias extensões), ao invés de comer a pamonha delas (extensão feminina). Não parece ser por acaso que a restituição de uma sociedade de sexo oposto dividida entre termos trocadores (afins e consanguíneos) é realizada por meio do seu “oposto”, o incesto. Em M2, o incesto entre irmãos se evidencia como uma “imagem para reprodução do social”, emprestando as formulações de Mimica (1991)MIMICA, Jadran. 1991. The incest passions: an outline of the logic of Iqwaye social organization (part 1). Oceania, v. 62, n. 1: 34-58. DOI: https://doi.org/10.1002/j.1834-4461.1991.tb02382.x
https://doi.org/10.1002/j.1834-4461.1991...
para reprodução cosmológica da sociedade Iqwaye, segundo o qual o incesto seria a “afirmação por um desvio” ou “substituição da coisa real por seu equivalente mais próximo” (Mimica, 1991MIMICA, Jadran. 1991. The incest passions: an outline of the logic of Iqwaye social organization (part 1). Oceania, v. 62, n. 1: 34-58. DOI: https://doi.org/10.1002/j.1834-4461.1991.tb02382.x
https://doi.org/10.1002/j.1834-4461.1991...
: 52, minha tradução).

Em meio às variações de M1e M2 entre homens não humanos e mulheres não humanas, nota-se que os homens sempre encarnam a anomia, o caráter antissocial ou a tolice. No primeiro mito eles são tolos, se deixam capturar, tanto pelas mulheres-espíritos do fundo do rio, quanto seu mensageiro pela mulher parente, por isso se veem presos em um encantamento irreversível. No segundo mito, as mulheres se transformam em pássaros, mas esta é uma decisão delas; enquanto os homens, humanos do mito, são, no entanto, anômicos (podres) por comerem sua própria bosta. Mulheres e homens transformam-se, mas não do mesmo jeito e tampouco pelos mesmos motivos. Além disso, as mulheres são sempre deliberadamente responsáveis pela continuidade da sociedade proto-humana primordial, restituindo o parentesco por meio da afinidade, seja procurando “casamento em outro canto”, seja recolocando as condições de possibilidade do parentesco por meio de um desvio (o incesto).

MOQUECA DE MARIDOS

No mito makurap intitulado “A cantiga komam ou moqueca de maridos” (Mindlin, 2014MINDLIN, Betty; narradores Makurap, Tupari, Wajuru, Djeoromitxí, Arikapú e Aruá. 2014. Moqueca de Maridos: mitos eróticos indígenas. São Paulo, Paz e Terra.: 49-54)10 10 Aqui indexado como Mito 3, doravante M3. , a divisão da sociedade de sexo oposto primeva em duas sociedades de mesmo sexo tem como disparador a interferência de uma mulher espírito, e como desiderato o casamento avuncular.

Antigamente, as mulheres da maloca encontram Katxiuréu, uma velha do fundo das águas, que as ensinou, ao som de sua taboca, a cantiga koman, sedutora e feroz. Também aprenderam com a velha que comida de verdade não eram os peixes e sapos de sua lagoa, mas as carnes de seus maridos. Um por um os homens estavam sendo mortos, carregados no marico pelas mulheres até a beira da lagoa e comidos no festim comandado por Katxiuréu. Elas diziam-lhes que saiam para ir à roça e fazer chicha, mas um menino, fingindo que estava doente, as descobriu e contou para os homens. Eles então se vingaram, matando todas as mulheres. Flecharam Katxiuréu em um dos dentes, mas não conseguiram matá-la. Restaram duas meninas, irmãs do cacique, descobertas pois choravam por seu irmão e pelo seu tio, que a mãe e a tia haviam matado11 11 A versão em Mindlin (2014) não especifica as posições de parentesco a que se refere “tio” e “tia”, mas desconfio que sejam o irmão do pai e a esposa dele. . As meninas foram escondidas pelo cacique em um jirau depois que, instadas, afirmaram não terem comido seus tios ou irmãos.

A sociedade dos homens, porém, não era capaz de produzir uma boa chicha. “O gosto era muito ruim, sem doce, mas que outro jeito haveria sem mulheres? Reclamavam, cuspiam a chicha, mas não havia outra” (id: 53). O cacique se ofereceu para a produção, mas eram suas irmãs que, escondidas, mascavam e por isso a chicha ficava boa. Os homens desconfiaram, e por fim ele confessou: “Não deixei matarem minhas irmãzinhas, que não tinham comido carne de homem” (id:54). As meninas então são descidas do jirau para casarem-se com os homens restantes, menos com seu irmão, o qual se casa “só bem mais tarde, quando já havia mulheres que não eram suas irmãs, quando suas sobrinhas cresceram” (Ibid.). O mito termina afirmando que “se não fossem essas duas irmãs, não haveria mais gente makurap no mundo. Elas não esqueceram, ensinaram às mulheres a cantiga koman [...] até hoje cantamos” (ibid.)

Em M3 os homens assumem um sentido diverso, porque nem exatamente tolos, nem anômicos, mas presas. A divisão inicial da sociedade de sexo oposto não é sua fragmentação em duas sociedades de mesmo sexo pela autoidentificação de um dos termos, como em M2, mas pela interferência de um “terceiro”, espírito do fundo das águas, como em M1, embora se trate agora de uma velha e não de um conjunto de mulheres. Em M3 essa interferência não leva à distinção simétrica em duas sociedades (como em M1), mas ao empobrecimento numérico de uma delas, a sociedade masculina. Compensado pela vingança que estes travaram, a situação se inverte e é levada quase ao extremo: a sociedade feminina é aniquilada, mas não totalmente, restam duas meninas (como resta uma menina em M2). Sem elas, com efeito, duas condições para a restituição de uma sociedade composta por pessoas de sexo oposto não seriam possíveis: a fermentação da chicha e o restabelecimento da afinidade. A conjugação entre compartilhamento de bebida e afinidade parece constituir um tema comum aos três mitos, embora apresentem múltiplas relações de aliança.

Em conjunto, o que se observa nestes mitos que tematizam a restituição de uma sociedade de sexo oposto a partir de duas sociedades de mesmo sexo é uma inexorável incompletude das sociedades dos homens e das sociedades das mulheres, e sua analogia com a incompletude de uma sociedade exclusivamente “humana”. Digamos que a abertura para o exterior é também uma abertura para o interior (“opening to the inside” cf. Viveiros de Castro, 2012LIMA, Tânia Stolze. 2008. “Uma História do Dois, do Uno e do Terceiro”. In: CAIXETA DE QUEIROZ, Ruben; FREIRE NOBRE, Renarde (Orgs.). Lévi-Strauss: Leituras Brasileiras. Belo Horizonte, Editora UFMG, pp. 209-264.: 11). Do ponto de vista de cada um dos termos (cada uma das sociedades dos homens e das mulheres), o que os distingue também os conecta: a distinção entre os termos é análoga à distinção interna a cada um dos termos, pois cada sociedade de mesmo sexo sempre conta com um elemento de sexo oposto que se mostra residual mas irredutível. O que esses mitos nos ensinam é que uma sociedade assim dividida (restituída) nunca é plenamente humana, ou melhor, que a humanidade é uma questão de perspectiva.

Nos três mitos, a linguagem da afinidade virtual/potencial se vê conjugada com a afinidade de sexo oposto, como que subjugadas a um “sentimento privilegiado de uma transparência recíproca”, como diz Lévi-Strauss (2004a)LÉVI-STRAUSS, Claude. 2004a. O cru e o Cozido. Tradução de Beatriz PerroneMoisés. São Paulo, Cosac & Naify. da dualidade natureza/cultura em sua “peça cromática”, da qual me aproprio em favor da dualidade de sexo oposto. Na sequência aqui disposta e no desenrolar de cada um dos mitos, exogamia local para povos espíritos, incesto para “autofagia” masculina e avunculato para antropofagia feminina aparecem como soluções distintas de estabelecimento de um “fundo humano convencional” (Leite, 2013) de sexo oposto. Contudo, enquanto o avunculato assume a forma de um intervalo interposto na duração do parentesco (na relação intergeracional), no incesto entre irmãos esse intervalo se introduz minusculamente. Incesto entre irmãos e avunculato se conjugam do ponto de vista das mulheres, pois em ambas as relações (incesto e avunculato) elas “afinizam” suas relações consanguíneas de mesma geração e de geração ascendente, tanto de mesmo sexo, quanto de sexo oposto. Talvez isso nos sugira que esses mitos tomam para si o ponto de vista das mulheres.

Esse primeiro grupo de mitos coloca importantes questões acerca do tema da antropofagia ou “preensão perspectiva” embutida na relação de sexo oposto. Em minha experiência etnográfica, a ocorrência de atos rituais canibais é sempre referida ao passado dos Tupari, ainda que Caspar sugira “que tais ocorrências eram extraordinárias” (id.: 51). Mesmo assim, como vemos, a questão da antropofagia não é menos elaborada e refletida pelos povos vizinhos por meio dos mitos; e de sua socialidade, como veremos.

Viveiros de Castro (1986)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1986. Araweté: Os Deuses Canibais. Rio de Janeiro, Editora Zahar., a partir do canibalismo post mortem dos deuses araweté, afirmou que este era uma transformação estrutural do canibalismo tupinambá: em ambos, o que se come, isto é, o que se faz diferir através do ato, é uma “posição”. O canibalismo tupi é, antes de tudo, uma “estrutura actancial [...] um processo de transmutação de perspectivas” (Viveiros de Castro, 2002cVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002c. “Xamanismo e Sacrifício”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify, pp.457-472.: 461-462). Em elaborações mais recentes sobre antropofagia, Lima defende que “antropofagia serve de horizonte gerado pelo dom” da cauinagem yudjá.12 12 O que a autora chama “cauinagem”, eu chamo “chichada”, seguindo meus interlocutores. Dom que é ao mesmo tempo “presente-cauim-veneno-gente” (Lima, 2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo, Editora Unesp/ISA; Rio de Janeiro, NUTI.: 280) por meio do qual também se come uma posição. Vivos e mortos, homens e mulheres, cunhados e cunhadas, irmãos e primos, amigos e inimigos, a cauinagem é “uma maneira de pôr as relações (construídas como parentesco, gênero e amizade) que fundam a socialidade doméstica em um processo de variação contínua” (id.: 314). Tal variação é fruto não somente da importância que afinidade potencial assume na socialidade ritual, mas pela “abertura que esta oferece à precedência da afinidade de sexo oposto” (id.: 314).

A especial relação entre conjunção dos sexos e chichada é tematizada explicitamente no mito djeoromitxi intitulado O Anta (Mindlin, 2014MINDLIN, Betty; narradores Makurap, Tupari, Wajuru, Djeoromitxí, Arikapú e Aruá. 2014. Moqueca de Maridos: mitos eróticos indígenas. São Paulo, Paz e Terra.: 214-215). Ali, o sexo entre casais anta é tomado (erroneamente, diz o mito) por uma “chichada” do ponto de vista de um humano. Este vestiu a “roupa” de um tapir sedutor, depois que o animal foi morto pelos homens da maloca por ciúmes de uma humana, com quem tapir estava namorando. Depois de morto, “o Anta” foi comido pela aldeia humana. “Era um homem grande. Todos comeram um pedacinho, só a namorada recusou” (Ibid.). Há duas formulações aqui que parecem dignas de nota: a primeira afirma que o que é sexo interespecífico segundo uma perspectiva, é chichada para outra perspectiva (como o atrator sangue-cauim); a segunda afirma que sexo e manducação se “cruzam” no sentido de serem operações opostas e relacionadas, por isso as “equivalências/identificações” que ambas produzem não poderiam ser confundidas (somente a menina namorada do Anta não o comeu). Fiquemos por ora com a primeira afirmação, a relação entre chichada e conjunção dos sexos segundo diferentes perspectivas. No segundo grupo de mitos, abordaremos a relação entre conjunção dos sexos e antropofagia.

Os mitos até aqui analisados escolhem a bebida fermentada e as relações de sexo oposto como uma de suas invariantes. No cotidiano das aldeias no Guaporé, é uma grande afronta recusar-se tomar da chicha dos outros, bem como ninguém pretende tomar da sua chicha sozinho. A centralidade das festas regadas a bebida fermentada na experiência cotidiana de meus anfitriões raramente passaria despercebida para quem fosse recebido por mais de uma semana em suas aldeias. A bebida fermentada produzida pelas mulheres (normalmente uma sogra, suas noras e filhas não casadas) é a condição para o estabelecimento de uma unidade doméstica frente a outras unidades domésticas. Uma unidade doméstica é um conjunto de casas que possuem um pilão para a produção de chicha e um cocho para seu armazenamento. A chicha é o pagamento para todo tipo de trabalho coletivo, os quais acontecem algumas vezes na semana, bem como não falta nunca em ocasiões como aniversários, festas culturais etc. A bebida articula as diferentes casas de diferentes povos e diferentes aldeias, e apresenta uma capacidade nada trivial de conexão com os espíritos, bem como coloca em cena a afinidade de sexo oposto.

Não é incomum que mulheres digam que irão tomar da chicha da fulana, enquanto os homens se referem à chicha do ciclano (esposo da fulana). A dualidade de dois grupos de mesmo sexo é expressa espacialmente. Sempre que se encontram ou reúnem, seja numa festa de chichada, seja em uma conversa fim de tarde, seja num acampamento na mata, ou num encontro furtivo por entre caminhos, homens ficam ao lado de homens e mulheres ficam ao lado de mulheres, e normalmente, se o local propicia, esses dois grupos ficam frente a frente. A dissolução desta dualidade só é realizada por meio da beberagem de cerveja fermentada. No desenrolar da embriaguez, essas duas “sociedades de mesmo sexo” diametralmente dispostas ao redor do cocho de chicha, se desfazem e cedem lugar a uma sociedade de sexo oposto por meio da “brincadeira”, cujas forma privilegiada de expressão é a dança entre casais (ao som dos forrós amazônicos) e a pilhéria de alto teor sexual entre afins de sexo oposto.

É também neste momento de beberagem mais avançada e de “brincadeira” que os mortos intervêm: os enlutados se lembram de seus parentes mortos e passam a chorar sentados em seus bancos, é quando também as pessoas podem ser seduzidas e levadas “para o mato” por espíritos quando saem da reunião da festa para urinarem. Ao alarido das músicas e dos berros que acompanham a dança, os mortos recentes sentem saudade da chicha e chegam para tomá-la. Por isso, qualquer mãe ou filha enlutada se desfaz de seu pilão e de seu cocho para armazenamento/ fermentação. Pelos mesmos motivos, os enlutados não dançam nas festas em que são convidados a beber chicha, durante cerca de um ano, bloqueando as relações de sexo oposto como quem se afasta de um morto (o luto também designa abstinência sexual). A separação dos gêneros - o interdito da dança entre os casais enlutados - intercepta, assim, estrategicamente o desvio da perspectiva humana pelos espíritos. Luto e brincadeira de casais precisam permanecer separados para que uma perspectiva não seja interferida pela outra, bloqueando erros de perspectivas que podem ser fatais, isto é, que podem arrastar definitivamente os humanos para a perspectiva dos espíritos. Cabe ressaltar, a esse favor, que as velhas enlutadas dançam frequentemente com suas afins, mas não com os homens - como que substituindo a coisa real pela equivalente mais próxima (Mimica, 1991MIMICA, Jadran. 1991. The incest passions: an outline of the logic of Iqwaye social organization (part 1). Oceania, v. 62, n. 1: 34-58. DOI: https://doi.org/10.1002/j.1834-4461.1991.tb02382.x
https://doi.org/10.1002/j.1834-4461.1991...
). Será porque o que é chichada para um ponto de vista (uma espécie) é sexo para outro ponto de vista (outra espécie), como no mito do Anta namorador?

GENTE-ONÇA (SEGUNDO GRUPO DE MITOS)

Passemos agora a analisar a antropofagia (a predação de uma “posição”) a partir de mitos que colocam a capacidade predatória feminina no centro e/ou que trazem a Gente-Onça ao primeiro plano de análise.

A VINGANÇA

No mito djeoromitxi intitulado A raposa antiga, Watitinõtxi, ou a vingança (Mindlin, 2014MINDLIN, Betty; narradores Makurap, Tupari, Wajuru, Djeoromitxí, Arikapú e Aruá. 2014. Moqueca de Maridos: mitos eróticos indígenas. São Paulo, Paz e Terra.: 181-190)13 13 Aqui indexado como M4. , ao invés de uma sociedade de sexo oposto ser dividida em duas sociedades de mesmo sexo, o que aparece como termo inicial é uma relação de sexo oposto, a germanidade, interferida ou dissolvida pela afinidade virtual do povo Onça.

Uma menina foi enganada por Watxitxinõtxi (o Raposa Velho), que fingiu ser sua companheira (wira) e a levou, junto com seu irmão. Watxitxinõtxi caçava os bichos de criação do pai da dupla de irmãos, trazia a caça, mas eles não comiam, ficavam com fome. Ao tentar escapar do Raposa, o menino acabou chegando na aldeia dos Wanõtxi, a gente Onça Antiga.

A dupla de irmãos foge para a aldeia das Onças Antigas, que eram “trabalhadoras”, tinham bastante roça. O cacique Onça quer desposar a menina e manda fazer chicha e esteiras para todos os homens deitarem-se com ela. Somente os que se tornariam tio, avós, pais e irmãos da menina ficaram com vergonha e não copularam com ela14 14 A narrativa, tal como está registrada em Mindlin, não especifica as posições de parentesco (kintypes), mas não deixa de realçar um código social das onças que obedece ao interdito do incesto. . O sogro-Onça comia com pimenta o esperma de cada onça macho que a penetrava “era o esperma, a semente dos filhos dela, o sangue dos netos das onças [...] Ela estava grávida de tantas onças” (id.: 186). O marido então pediu para todos os pais do filho dela furarem aricuri e fazer festa, dar chicha para ela15 15 Hanõ, na língua djeoromitxi, é o designativo das larvas que crescem nos troncos das palmeiras de aricuri depois que são “furados” pelos humanos. A palmeira aricuri e seus produtos (palha, larvas e capemba de onde se extrai suas cinzas) possuem “eficácia mágica” contra os maus espíritos e não raro nos mitos (como vimos em M2) são operadores de transformações. . O marido-Onça Antigo, Wanõtxi, chamou a esposa para taparem os buracos furados para quati não comer as larvas, ela quis levar o irmão, mas o sogro-Onça não deixou.

O sogro-Onça pegou o menino, lavou bem e partiu o menino vivinho com o dente, cortando o corpo para repartir com as outras onças. Destripou o menino, jogou fora o cocô, separou o fígado, o bofe, dividiu e cozinhou para a mulherada, deu um pedacinho para cada uma. Deu para todo mundo comer, antes que a moça voltasse (id.: 187).A irmã já entendia a linguagem das onças e ouviu tudo, começou a chorar desesperada a perda do irmão. Ela mandou seu marido trazer todo tipo de caça para ela comer. Ele trouxe muitos, mas ela continuava com raiva. Por fim, o marido-Onça trouxe um veado-roxo fêmea, que estava grávida. A irmã aceitou. Tiraram o filhote, e a menina o levou para o sogro-pajé rezar: “-Quero que você cure esse bicho, que vou criar no lugar do meu irmão”, pediu. Dizem que toda onça é pajé, e então o sogro curou.” (id.: 189). A menina ensinou o veado “como se fosse uma pessoa”, enfiou galhos em sua cabeça, como se fossem chifres, aconselhando: “Quando você crescer vai vingar a morte do seu tio”. Na hora marcada pela mãe, o veadinho foi atacar o velho: “enfiou o chifre no corpo do avô-Onça, rachou até a cabeça” (ibid.).

Com medo da vingança do marido-Onça, mãe e ‘filho’ fugiram para a roça do pai dela. Ela estava grávida “dos onças”. O menino nasceu, e o outro irmão dela o tratava como humano, dando moqueca das larvas de palmeira de oricuri, mas a criança não acordava, como “filhote de bicho”. “Ele é filho de onça”, dizia o tio da criança, que acabou por matar a criança (seu ‘sobrinho’) para vingar o próprio irmão. A mãe não gostou e disse: “Você matou, nem sabe quantos pais para o vingarem ele tem, vão te comer, são muitos” (id: 190). Enterraram o nenê e em seguida ela montou o veadinho como se fosse um cavalo, que disse a ela: “-Mamãe, a senhora não vai morrer...vovô, titio, todos vão morrer, as onças vão matar, nós vamos ficar vivos”. (ibid.) Foram embora, sumiram pelos campos. “Até hoje, dizem que esse é o relâmpago (ibid.)”.

Esse mito trata de uma relação entre um casal de germanos de sexo oposto e um povo afim transespecífico (o povo Onça). Por ação da Gente-Onça, a relação de afinidade transespecífica se revelou mortal: o afim onça come seu ‘afim humano’, que por sua vez é vingado pelo ‘filho’ não humano da heroína do mito (vingança possível porque a germanidade de sexo oposto cedeu lugar à relação de ‘filiação’ transespecífica). SogroOnça come tanto seu ‘afim’, como o esperma/sangue de seus netos, indexando - por meio da manducação - ao idioma da predação tanto a consanguinidade (filiação, neste caso), quanto a afinidade. A identificação entre esperma e sangue masculino é importante na teoria da concepção entre esses povos, segundo a qual a mulher recebe e transforma o esperma masculino em “sangue” durante a gestação. Depois do nascimento da criança, por meio da alimentação e dos resguardos realizados pelo pai e pela mãe (e pela ‘troca’ conjugal entre carne de caça e chicha), esse ‘sangue’ é transformado em ‘pele’ dos filhos do casal16 16 Käi, em djeoromitxi, ‘sangue’, é formado pelo substantivo kä /pele, invólucro, roupa/ mais i /classificador nominal para líquido (cf. Castro, 2012: 61). “Sangue”, portanto, poderia ser traduzido por “pele líquida”. (Soares-Pinto, 2017SOARES-PINTO, Nicole. 2017. Pequeno manual para se casar e não morrer: o parentesco djeoromitxi. Mana - Estudos de Antropologia Social, v. 23, n. 2: 519-549. DOI: https://doi.org/10.1590/1678-49442017v23n2p519.
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). Essa teoria, sabemos pelo mito, é instaurada pela perspectiva do povo Onça, impondo uma “assimetria perspectiva” (Lima, 2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo, Editora Unesp/ISA; Rio de Janeiro, NUTI.) entre a perspectiva Onça e a perspectiva humana.

Esse tipo de assimetria é também traduzida em uma espécie de emulação culinária. No tratamento reservado à caça, os Djeoromitxi fazem tal qual as onças, pois este predador deixa a caça morta sozinha por alguns momentos, constrói do seu moquém em outro local, depois volta para buscá-la. Assim também o fazem os caçadores djeoromitxi em suas incursões pela mata. Ademais, a descrição da cozinha do sogro-Onça presente em M4 é reproduzida ipsis litteris na vida djeoromitxi, principalmente em relação à repartição do repasto, reservando às velhas o consumo das vísceras. Além de tal assimetria, é ainda possível que a vingança efetuada pela heroína de M4 indique a precedência da relação de afinidade de sexo oposto sobre a afinidade de mesmo sexo. Para avaliarmos essa sugestão, passemos a um outro mito, no qual o relâmpago é associado explicitamente ao apetite feminino e à posição masculina de presa.

MULHER COMILONA

No mito wajuru “A mulher gulosa” (Mindlin, 2014MINDLIN, Betty; narradores Makurap, Tupari, Wajuru, Djeoromitxí, Arikapú e Aruá. 2014. Moqueca de Maridos: mitos eróticos indígenas. São Paulo, Paz e Terra.: 174-176)17 17 Aqui indexado como M5. , está presente não uma relação de germanidade humana interferida pela afinidade transespecífica (como em M4), mas uma relação de conjugalidade humana que se comporta como transespecífica, até que nela se transforma definitivamente por intermédio da relação wira. A antropofagia feminina é o mote (como em M1 e M3) e, diferente de m4 (no qual o sogro Onça é o antropófago), agora é um marido que se comporta como caça para fornecer comida a sua esposa.

Conta-se que antigamente existia uma mulher tão gulosa que não havia carne que bastasse para ela. Cansado de caçar, o marido passou a tirar pedaços da própria carne e dar para a esposa comer, dizendo que era carne que a onça matara e ele apanhara, dizendo que havia roubado “a carniça da onça”. Seu wira lhe dizia: “-Você está emagrecendo de tanto roubar a carne da onça” (id.:174). Acompanhou o wira até o mato, passando por sua roça, e chegou onde ele estava cortando a própria carne. “Por que você aguenta uma mulher tão comilona? protestou o compadre [waikub na língua wajuru /wira na língua djeoromitxi]” (id.:175). O marido da gulosa insistiu para seu wira lhe flechar, subiu em uma árvore e empurrava as flechas em sua própria carne, já que seu amigo lhe flechava sem força. Quando flechou com força, o marido da gulosa saiu gritando, já correndo pelo chão.

Seu wira ficou com medo e voltou correndo para maloca. Contou para a esposa e pediu para o pajé curar a água de seu banho. “Tomaram rapé e o compadre vomitou muito sangue do homem que fora flechado” (id.:175). Os compadres tinham marcado um dia para se encontrarem de novo, o flechador levou chicha para ele, que estava em cima de uma árvore, com as flechas enterradas na carne, mas essas já haviam se transformado em luzes bonitas, iluminando todo o seu corpo. “Venha ver o que você fez com seu marido!”, disse o compadre para a mulher do desaparecido. Kubiotxi olhou para cima amedrontada” (ibid.). O marido bebeu a chicha em cima da árvore e, quando acabou de beber, foi embora para o espaço estrondando e dizendo, das alturas, “- Não vai se assustar compadre!”. Diz-se que até hoje existe esse estrondo e essa luz, quando se advinha alguma morte, guerra ou desgraça” (id.:176)

O marido da esposa comilona lhe entrega muitos animais de caça, como o marido Onça faz com a esposa enlutada pelo irmão na narrativa anterior. Mas em M5 o marido como que “coleta” a caça da onça, e é interessante notar como a atividade cinegética é também entendida como um “roubo” por meus interlocutores, pois é comum se ouvir que caçar é “roubar da onça”. A irmã enlutada da história anterior, depois de desprezar muitos animais, cria um veado no lugar do irmão - substituindo uma relação de germanidade de sexo oposto por uma de filiação transespecífica. A esposa comilona, por sua vez, transforma uma relação de afinidade de sexo oposto (conjugalidade) intra-específica em uma relação transespecífica (comendo a carne do marido como se fosse carne de caça).

Em M5, as onças aparecem não como os afins sociais e inimigos de M4 (que cancelam o incesto e são trabalhadoras/agricultoras), mas aqueles de quem se rouba caça, que é o próprio marido da esposa gulosa. Mulher comilona e onças compartilham a caça, como que compartilhando de uma mesma perspectiva. Se em M4 a convivência com os Onças é de início tomada como profícua, porque esses seriam trabalhadores/agricultores, se revelando perigosa em face ao apetite do sogro Onça por seu cunhado, em M5 é uma mulher de apetite demasiado que transforma um marido em caça. A história da mulher comilona pode ser tomada, portanto, como a transformação da história de vingança da menina que teve seu irmão comido pelo sogro-Onça. A identificação da esposa comilona é com o sogro-Onça e não com a irmã enlutada.

Notemos ainda o modo como a posição wira aparece no esquema relacional de M5: quando uma mulher toma a perspectiva de afim/onça na relação com seu marido, o wira do marido se coloca entre os termos, suplementando uma simples relação dual e impondo uma triangulação relacional. É possível inferir (pelo sistema de parentesco dos povos enfocados) que o wira do marido em M5 é parente consanguíneo da esposa comilona: há uma relação de consanguinidade de sexo oposto presumida e uma relação de conjugalidade que se revela uma relação transespecífica. Contudo, a conjugalidade transespecífica só é completada (e, portanto, a conjugalidade humana desfeita) pelo wira do triste marido que, ao flechá-lo, transforma-o definitivamente em caça. Com efeito, a relação wira aparece como “mediadora” nos mitos aqui abordados. Em M2 é o wira que descobre a única menina da maloca, escondida no jirau e casada com o próprio irmão. Sua descoberta proporciona a volta da socialidade de sexo oposto. Em M4, foi porque fingiu ser a wira da menina que Raposa Velho roubou o casal de irmãos. Em M5, o wira se coloca como conversor entre o marido e a esposa, o humano e o não-humano, a caça e o caçador. Há, com efeito, uma espécie de analogia entre a formulação nos mitos e os modos de ação de tipo wira na socialidade indígena.

Os wira estão presentes desde o começo do mundo: a dupla de demiurgos djeoromitxi não eram irmãos, mas wira. A relação wira atual se dá entre filhos de primos cruzados e primos cruzados de pais e é relativa, ao mesmo tempo, ao casamento preferencial entre as pessoas de sexo oposto e à amizade (in)formal entre as pessoas de mesmo sexo que ocupam tais posições. Neste último caso, a relação wira é marcada por ajuda mútua, extrema pilhéria e proteção, sendo formalmente a única por meio do qual a raiva é bloqueada efetivamente: “podem discutir feio, chegar a um ponto onde todos pensariam que os dois iriam brigar, mas eles não brigam”, foi a imagem oferecida por um amigo djeoromitxi. Wira são recebidos um pelo outro de maneira deliberadamente efusiva e hiperbólica, não podendo recusar ofertas de chicha e comida, em quantidades muito maiores do que as oferecidas por outras categorias de parentes. Um wira que visita outro volta para sua própria casa ostentando muitos presentes, e não faz questão de escondê-los, pelo contrário - o que normalmente outras categorias de parentes fazem para não despertar os ciúmes e os pedidos alheios. Wiras são necessariamente de “sangue diferentes”, isto é, pertencem a povos distintos nesse sistema marcado pela patrifiliação.

Os wira masculinos geralmente exibem sua jocosidade recíproca publicamente nas chichadas e visitas entre aldeias e atraem grande parte das atenções. “Wiras brincam tanto que parecem que não são parentes”. Esta foi, com efeito, a explicação de uma amiga wajuru, casada com um homem djeoromitxi. Esse “ardil” em relação aos constrangimentos do parentesco, suponho, é uma curiosa maneira de evidenciá-los, e por certo a jocosidade tem mesmo essa característica, permitindo a obviação (Wagner, 1977WAGNER, Roy. 1977. The invention of culture. Chicago, The University of Chicago Press.) de certas relações. Como um exemplo importante, wiras de mesmo sexo podem performar um casal, vão à roça juntos, ajudam a esposa do outro na produção de chicha (nunca na mastigação), podem cozinhar um para o outro. Nenhuma outra dupla de mesmo sexo o faz. Por meio de suas relações hiperbólicas, a relacionalidade wira, afirma, creio, ser a relação de mesmo sexo um limite inferior da relação de sexo oposto. É o que se pode também depreender de uma curiosa afirmação de um amigo que, apontando seu wira, disse-me o seguinte: “Se ele fosse mulher, eu poderia casar com ele”, como que pronunciando uma sentença que, ao invés de fatídica, revela uma virtualidade. O que eu gostaria de destacar é justamente essa virtualidade de sexo oposto inerente a essas duplas de mesmo sexo em sua característica “articuladora/mediadora” entre “unidades” do sistema multi-étnico aqui em questão - seja um povo/unidade patrifiativa; seja uma aldeia/unidade virilocal: podendo deslizar para a categoria dos “terceiros incluídos” (Viveiros de Castro, 2002) tão importante na socialidade amazônica e quiçá indicando-nos a jocosidade como modo de relação modal da afinidade/ diferença.

Quando se trata de uma relação entre mulheres, a categoria wira se apresenta mais como um elemento de um grupo de transformação. Nunca identifiquei duplas wiras femininas formalmente estabelecidas, mas o modo de relação de companheirismo e proteção que marca os wiras masculinos está presente entre as cunhadas, as concunhadas e as comadres18 18 Torna-se “madrinha/mãe outra” de uma criança aquela que realiza seu parto e enterra a sua placenta. Contudo, se essa mulher for a “mãe” ou “avó” da parturiente, então as relações simétricas de respeito, ajuda e doação de alimentos entre as “mães” da criança (comadres entre si) ganha uma característica mais assimétrica e passam a fluir muito mais na direção da parenta sênior. . Sua relação se desenvolve na tessitura diária do acompanhamento da roça e no compartilhamento de seus produtos (sendo que as roças são concebidas como sendo “do casal”). Elas riem juntas, mas não necessariamente troçam uma da outra: nas chichadas, as duplas de mulheres maduras ou velhas ‘afins’ se fazem acompanhar/dançar entre si e não de/com seus maridos. Isso pode não necessariamente agradar o irmão ou marido em questão.

Segundo sustentam meus interlocutores, antes de seus casamentos, irmãos de sexo oposto idealmente devem cuidar um do outro e guardar respeito entre si (isto é, se ajudar mutuamente nos trabalhos diários e nunca brigarem). Depois de casados, observa-se uma certa evitação e comedimento entre eles (é muito raro ver dois irmãos de sexo oposto já maduros dirigindo a fala ou o olhar um ao outro). Uma mulher frequentemente se referirá ao seu irmão como “esposo de y” (dizendo o nome de sua cunhada) ou como “tio de meus filhos”. Ao que tudo indica, essa tecnonímia - que ao invés de consanguinizar os afins, acaba por afinizar os consanguíneos -, sugere um componente de afinidade na relação entre germanos de sexo oposto (descrito também por outras etnografias: Silva, 2010SILVA, Marcio. 2010. Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco. Ilha, v. 12, n. 2: 165- 210. DOI: 10.5007/2175-8034.2010v12n1-2p165
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: 187; Taylor, 2001TAYLOR, Anne-Christine. 2001. “Wives, Pets and Affines: Marriage among the Jivaro”. In: RIVAL, Laura M.; WHITEHEAD, Neil L. (Org.). Beyond the visible and the material: the ameriandinization of society in the work of Peter Rivière. Oxford, Oxford University Press, pp. 45-56.: 51; Coelho de Souza, 2004COELHO DE SOUZA, Marcela. 2004. Parentes de Sangue: incesto, substância e relação no pensamento timbira. Mana - Estudos de Antropologia Social, v. 10, n. 1: 25-60.). Pesa a favor desta interpretação o fato de que, nas raras ocasiões em que se dirigem diretamente um ao outro, o farão por meio do nome próprio (nunca do apelido, restrição também observada pelos afins efetivos).

No estado de gravidez, uma mulher costuma sentir raiva de seu marido, seus cunhados e também de seu irmão. Esse afeto, os ciúmes entre irmãos de sexo oposto, muitas vezes é “mediado” pela cunhada dela e irmã dele. Era, com efeito, o que cantava solitária a velha chefe de uma das aldeias, depois de uma longa noite de chichada. A música djeoromitxi que ela entoava dizia para um irmão não ter ciúme de sua irmã com a sua esposa. Perguntei a duas de suas netas o motivo da velha estar cantando aquela música, ao que me responderam que “o homem pensa que sua irmã quer convencer a cunhada dela a ficar com outro homem”. Quanto mais próximas as cunhadas estiverem, mais os ciúmes/desconfianças dele virão à tona. Acompanhante privilegiado da raiva, os ciúmes não se expressam entre dois irmãos e uma esposa, ou duas irmãs e um esposo, mas entre duas cunhadas e um irmão/marido. É na brincadeira da chichada que essa relação é evidenciada.

Há um elemento de afinidade na relação de germanidade de sexo oposto, assim como há uma relação de sexo oposto entre wiras de mesmo sexo. Assim, em vista da precedência das relações de sexo oposto em relação às relações de mesmo sexo, vejamos ainda um último mito que associa as mulheres com as Onças. A assimetria presente no ponto de vista das onças e a antropofagia feminina reaparece em uma história djeoromitxi19 19 Aqui indexado como M6. , em que as condições de um mundo quente e iluminado, e de alternância entre dia e noite, provém da superação da posição predadora feminina, que coincide com o estabelecimento da troca entre o Sol e os humanos no patamar terrestre.

MULHERES-ONÇA

Wadjdjiká Arikapo me contou essa história em uma noite insólita, na beira de uma piscina suja num hotel na cidade mais próxima. A história de Tohõ (O Sol) está registrada na dissertação de mestrado de seu filho, André Kodjowoi (Jaboti, 2019JABOTI, André. 2019. Produção de Material Didádito Bilíngue: aspectos culturais do povo Djeoromitxi (Djeoromitxi hõnõ nõtxi), Ji-Paraná, Monografia de Especialização, Universidade Federal de Rondônia.). Abaixo transcrevo a tradução realizada pelo autor:20 20 Para a versão em língua djeoromitxi, consultar Jaboti (2019: 58).

Meus pais me contavam que seus avós diziam que antigamente não existia sol forte como hoje. O sol que existia era um pajé que se transformava no sol para clarear, pois o dia ia e voltava, não escurecia, só que esse pajé tinha um problema: gostava de namorar mulher dos outros, então um dia o povo se uniu e mataram o pajé namorador.

Quando ele morreu, os não humanos [hipfopsihi/espíritos malignos] chegaram nas casas comendo criança, adulto; as mulheres gestantes viravam onças e comiam os maridos, tudo se levantaram até ossos dos animais que já tinham sido comidos, como de porco, anta, veado e outros animais, tudo virava onça para comer o povo.

Na aldeia havia um pajé bem velhinho, ele convidou a comunidade e disse para meus parentes

Eu vou virar sol, pode tirar lenha para mim?

A comunidade em peso foi tirar lenha à noite, porque o antigo sol tinha morrido, após o pajé anunciar sua proposta, os bichos pararam de comer gente.

Os povos, após carregarem com as lenhas, fizeram o fogo, o pajé passou o óleo vegetal misturado com urucum nos seus corpos inteiros, pegou o seu banquinho, espada e entrou no meio da fogueira. A fogueira foi queimando e o pajé foi ficando bem vermelho até sair o fogo por todo lado, quando isso aconteceu, ele se levantou e disse

— Parentes, eu agora já estou indo, nunca mais eu voltarei para cá, vou ser a luz para sua sobrevivência; para vocês poderem plantar, caçar, mas não faz muita queimada se não vocês vão arder meus olhos. Disse também

— Ao chegar meio dia, joguem chapéus com penas de araras e urucum para fortalecer sua claridade. Assim surgiu o sol na história Djeoromitxi (Jaboti, 2019JABOTI, André. 2019. Produção de Material Didádito Bilíngue: aspectos culturais do povo Djeoromitxi (Djeoromitxi hõnõ nõtxi), Ji-Paraná, Monografia de Especialização, Universidade Federal de Rondônia.: 84-85).

Neste mito sobre a origem do sol atual, dois momentos são tematizados: um em que os dias eram ininterruptos, outro de uma longa noite. Os Djeoromitxi possuem outro mito sobre a alternância equilibrada entre o dia e a noite depois que a escuridão, guardada num pote de cerâmica, foi descoberta por Küropsihi - um dos demiurgos. Antes disso só existia dia. Depois de várias tentativas mal sucedidas de Küropsi, a alternância equilibrada entre dia e noite foi por ele conquistada (Soares-Pinto, 2014SOARES-PINTO, Nicole. 2014. Entre as Teias do Marico: parentes e pajés djeoromitxi. Brasília, tese de doutorado, Universidade de Brasília.: 103). A aparição da noite, recortando um dia que era contínuo, é um tema tupi amazônico segundo Lévi-Strauss (2004b: 391)LÉVI-STRAUSS, Claude. 2004b. Do Mel às Cinzas. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura e Beatriz PerroneMoisés. São Paulo, Cosac & Naify.. O autor sugere que a oposição entre o dia e a noite, ou a luz e a escuridão, faz surgir um termo mais complexo e de natureza diversa: a alternância. Os mitos que têm por tema um tempo relativo colocam a possibilidade de uma disjunção e de uma conjunção realizada por um termo mais complexo que os próprios termos colocados em relação (op. cit.: 394-396), operando “uma conjunção com a própria conjunção ou disjunção” (id.: 397).

A natureza deste termo mais complexo pode nos ajudar aqui para entender a identificação virtual das mulheres com as Onças (no mito, mulheres gestantes e ossos de caça viraram onças e comiam os homens). Os hábitos das onças são tema de grande elaboração entre meus interlocutores, como vimos brevemente acima. Desses, afirma-se a sua predileção pelas mulheres grávidas, que têm sua barriga rasgada e seu bebê comido. Se uma mulher sonha com um bebê pequeno ou que está grávida, ela certamente topará com uma onça no estado de vigília. Se alguém coloca a cabeça no marico, certamente irá encontrar uma onça (o marico parece um útero, só que invertido, carregado pelo lado de fora e nas costas, e não internamente e pela frente). Por sua vez, quando uma mulher sonha com matanças de seus parentes, ela terá certeza de que seu marido irá trazer-lhes regalos de sua caçaria. Entretanto, caso tenha comido a refeição produzida por outra mulher no dia anterior, a sonhadora saberá que aquela que lhe ofertou o repasto está grávida.

A manducação mítica dos maridos pelas esposas (a identificação virtual entre mulheres e onças) parece-me poder ser analisada por meio da manducação atual das mulheres pelas onças. Na escatologia araweté e no canibalismo tupinambá (cf. Viveiros de Castro, 1986VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1986. Araweté: Os Deuses Canibais. Rio de Janeiro, Editora Zahar.), a manducação seria uma maneira eficaz de consumir uma semelhança para melhor poder exibir uma diferença. Mas qual é a diferença pertinente aqui? Permito-me responder que a manducação atual das mulheres grávidas pelas onças, contraparte da identificação virtual entre mulheres grávidas e onças, remete à diferença dos humanos entre si e dos humanos com os animais, particularmente com os peixes que morrem com o timbó.

Era o que cantavam duas concunhadas embriagadas no centro de uma festa de chicha. Ao centro do terreiro, abraçadas, dirigiam-se aos seus maridos/cunhados, dizendo-os bêbados na beira de um lago. Era uma espécie de desafio para “dominar” os homens e fazer com que eles caíssem de bêbados. A chicha quando borbulha, sublinham, parece timbó quando jogado no lago. E eles, bêbados, parecem pabekati: nome, na língua djeoromitxi, de um peixe de olhos vermelhos que não consegue resistir muito ao veneno e morre rapidamente. Pabekati bo (quer dizer, parecidos com pabekati ou tal como pabekati) é a primeira estrofe da canção que, dirigida aos seus maridos, metaforiza a relação dos peixes mortos com o timbó e os homens bêbados pela ação da cerveja produzida pelas mulheres. Contudo, essa canção é frequentemente entoada pela coletividade (de homens, mulheres, velhos e jovens) durante uma chichada. Daí sua importância e potencial coletivizador, apropriados pelas concunhadas naquela ocasião.

A pescaria com timbó, essa espécie de “caça” aquática, é tornada “panema” (sem efeito) pelas mulheres grávidas. A “bateção” do timbó não terá efeito caso seja acompanhada por uma delas. Os peixes ficam escondidos, podem até morrer, diz-se, mas não boiam para os pescadores o coletarem. Tudo se passa como se as mulheres grávidas cancelassem a potência predatória do veneno em relação aos peixes - como a onça, o veneno e os peixes também não são indiferentes à diferença entre homens e mulheres. Mas a potência predatória das mulheres, se realçada durante a gravidez, não se revela somente neste estado. O sangue feminino (menstrual e perinatal) atrai o panema masculino, a cegueira e velhice precoce dos homens. Por este motivo, a chicha não pode ser produzida (isto é, mascada) durante suas regras, bem como os meninos púberes não tomam da primeira chicha de uma mulher após o parto, evitando o panema. Essa mesma chicha será jogada sobre o corpo dos bebês, limpando-os do sangue do parto que ainda os tinge invisivelmente: nas meninas, para tornarem-nas boas agricultoras e produtoras de bebida fermentada, nos meninos para serem bons caçadores.

Durante as regras mensais, o cheiro de sangue permanece na boca da mulher que mastiga a matéria-prima da bebida, introduzindo-se nela e fazendo com que esta não azede, não fique embriagante. Se o mesmo acontece fora de suas regras, quando uma chicha não azeda, sabe-se que é por interferência dos espíritos dos parentes mortos. O contrário ocorre aos alimentos, pois quando azedam mais rápido do que o esperado, é sinal de que aquele em vista do qual foi produzido está prestes a morrer.21 21 Vimos no mito relacionado ao Anta (op. cit) a inscrição diferencial entre chicha e alimento. Uma chicha que não azedou traz preocupação à aldeia, por significar morte próxima; uma chicha manchada invisivelmente com sangue idem, por significar o panema (morte masculina metafórica?). Bêbados, os homens parecem peixes mortos (na posição de presa), mas se tomarem uma bebida que não azedou porque manchada invisivelmente com sangue, então tornam-se panema, velhos e cegos (anti-caçadores). Vê-se como estão os homens submetidos a “pequenos intervalos” pela ação do sangue e da cerveja feminina.

As razões para o interdito de produção de chicha por mulheres em suas regras foram-me fornecidas por uma mulher makurap, ao me contar o mito de origem da lua. A força do argumento residia no fato de o incesto, tema do mito, advindo da insistência da menina em “deitar” com seu irmão, encontrar-se associado a uma condição corporal feminina atual e periódica, sua menstruação (quando Lua, o irmão envergonhado manchado de jenipapo, transa mensalmente com as mulheres). Para os povos aqui enfocados, um menino quedaria panema igualmente se comesse de sua primeira caça/ peixe de cada espécie, e teria um filho monstruoso (em forma coruja ou sapo) se dormisse com suas parentas de mesma geração (mesmo afins no paradigma dravidiano).

Esse emparelhamento entre predação e casamento, no que tange aos seus respectivos interditos, têm base na duração inerente ao parentesco e à construção da pessoa (não comer da primeira caça, não casar com as primeiras primas, para os meninos; para as meninas, não beber da primeira chicha de um pilão que acabou se ser fabricado pois seu rosto ficaria manchado). A produção de chicha e suas interdições, bem como o sangue das mulheres, separam os humanos dos peixes que morrem com o timbó, mas também separam os humanos entre si, pela aproximação com a morte que as transformações associadas ao sangue das mulheres acarretam.22 22 Como também separam os humanos por meio da patrifiliação, pois as mulheres operam uma série de reversões nos fluxos masculinos de semen/sangue via exogamia de grupo, amamentação das crianças e produção de bebida fermentada. Para detalhes, ver Soares-Pinto 2017.

Portanto, creio ser possível dizer que a “antropofagia feminina” (as MulheresOnça) presente na mitologia dos povos aqui enfocados é atualizada não exatamente em um cadáver, mas na capacidade de reunião e alteração por meio da bebida fermentada, na “hematofagia anímica” que a subjaz (Lima, 2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo, Editora Unesp/ISA; Rio de Janeiro, NUTI.: 330). Separar os humanos entre si nada mais seria, portanto, do que individuá-los pela capacidade de abertura ao exterior (via uma chicha azeda) que os corpos femininos são capazes de produzir. É separá-los dos mortos e das presas. A virtualidade onça das mulheres evidencia a positividade relacional da diferença em uma socialidade marcada por relações de sexo oposto, “de uma maneira tal que a perspectiva feminina vê-se dotada de um elemento de complexidade: é ela que se abre ao terceiro” (Lima, 2008LIMA, Tânia Stolze. 2008. “Uma História do Dois, do Uno e do Terceiro”. In: CAIXETA DE QUEIROZ, Ruben; FREIRE NOBRE, Renarde (Orgs.). Lévi-Strauss: Leituras Brasileiras. Belo Horizonte, Editora UFMG, pp. 209-264.: 247). O que as MulheresOnça comem (no sentido de ocuparem/exibirem), parece-me, é o próprio sentido de relacionalidade generalizada entre todos os seres dos cosmos, evidenciando uma estrutura-Outrem, em que “a diferença humano-não humano se dá no interior de cada ser existente” (Viveiros de Castro, 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2015. Metafísicas Canibais. São Paulo, N-1 Edições.: 61).

A ANTROPOFAGIA REALIZADA POR MULHERES (NOTA CONCLUSIVA)

Ao longo do texto, tentei ser fiel à advertência de Lévi-Strauss quando este diz que “a relação entre o mito e o real é indiscutível. Mas não sob a forma de uma representação. Ela é de natureza dialética e as instituições descritas nos mitos podem ser o inverso das instituições reais” (1993: 182). Não foi minha intenção, portanto, espelhar o cotidiano no mito, e vice-versa, nem dizer que um pode ser mais real que o outro. Minha “técnica descritiva” perseguiu o que poderiam expressar mito e etnografia em suas “conexões parciais” (Strathern, 1991STRATHERN, Marilyn. 2004 [1991] Partial Connections. Updated Edition. Oxford, Altamira Press.) - quando as partes não têm a mesma origem, mas fornecem uma posição de extensão umas para as outras, funcionando conjuntamente justamente pela diferença que mantém entre si. No primeiro conjunto de mitos, explorei em maior medida as relações expressas no “interior” de cada um deles e nas passagens entre um mito e outro. O caráter miticamente construído (e, portanto, construído como “dado”) de uma sociedade de sexo oposto se revelou como de grande saliência na mitologia dos povos aqui enfocados. No segundo conjunto de mitos, explorei as relações para “fora do mito”, pois quis evidenciar justamente as consequências etnográficas (analíticas) da “determinação recíproca” da diferença de sexo oposto e a diferença humano/não-humano, que havíamos já identificado no primeiro grupo de mitos.

Ao me dirigir à função predadora das mulheres, passei pelo elemento de conjugalidade/afinidade na relação de germanidade de sexo oposto, e pela intercambialidade entre conjugalidade e predação (Taylor, 2001TAYLOR, Anne-Christine. 2001. “Wives, Pets and Affines: Marriage among the Jivaro”. In: RIVAL, Laura M.; WHITEHEAD, Neil L. (Org.). Beyond the visible and the material: the ameriandinization of society in the work of Peter Rivière. Oxford, Oxford University Press, pp. 45-56.). Com a ajuda dos wira e da descrição das chichadas, argumentei que as relações de sexo oposto são logicamente anteriores às relações de mesmo sexo na análise da socialidade dos povos aqui enfocados. Depois desse percurso, cheguei à conclusão de que a “perspectiva feminina” apresenta um elemento de complexidade: a diferença (atual) entre os humanos e os animais (os peixes que morrem com o timbó) e os humanos entre si (parentes/não parentes; vivos/mortos; caçadores/não caçadores) está conjugada à identidade (virtual) que aproxima as mulheres das onças.

No caso aqui analisado, podemos afirmar que o “potencial relacional infinito detido pela exterioridade ‘natural’ ” (Viveiros de Castro, 2002bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002b. “Atualização e contra-efetuação do virtual: o processo do parentesco”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify, pp. 401-456.: 454), é tomado como “inerente” aos corpos femininos produtores de bebida fermentada (que menstruam e gestam). Com o adjetivo “inerente” não estou querendo dizer “biologicamente dado”, já que as meninas precisam ser construídas (isto é, seus corpos precisam ser moldados) como produtoras de bebida fermentada, boas agricultoras, não preguiçosas, não fofoqueiras, etc. Essa modelagem realizada por parentas sêniores ocorre idealmente após a primeira menstruação e após o primeiro parto de uma mulher. Ademais, não é que tal potencial não esteja também com os homens (alguns são pajés, todos são idealmente caçadores), mas o ponto que é as Mulheres-Onça não só nos obrigam a dessemelhar a diferença entre exterior/interior da diferença entre homens e mulheres, como também conceituar as relações de sexo oposto - e não de mesmo sexo - enquanto uma maneira mais pertinente de descrever a “abertura ao exterior” característica dessas socialidades.

Lembrando que na Amazônia a categoria de “inimigos” pode receber e fornecer representantes dos “afins potenciais” (cognatos distantes, não cognatos, amigos formais) (id.:136), as “mulheres onças” articulam à potência máxima (canibal) da afinidade inclusive “termos” ligados por casamento (mas não necessariamente de mesmo sexo). Elas posicionam a afinidade no “centro” da socialidade cotidiana e nos obrigam a repensar esse “exterior” de uma maneira anisotrópica: não há nenhum “domínio” ou corpo que esteja a salvo desta potência. A característica da “concentrização” do campo do parentesco ameríndio (Viveiros de Castro, 2002aVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002a. “O problema da afinidade na amazônia”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify, pp. 87-180.), e a operação concreta de sua ideia-valor característica, a “predação ontológica” (Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002a. “O problema da afinidade na amazônia”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify, pp. 87-180.:14), vê-se aqui posicionada a partir das relações de sexo oposto articuladas pelas Mulheres-Onça.

A saliência da dualidade de sexo oposto na análise da socialidade amazônica não se contradiz, portanto, com a afirmação de que a definição de um universo social provém de sua determinação pela diferença intensiva do reino do mito (Viveiros de Castro, 2007VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2007. Filiação Intensiva e Aliança Demoníaca. Novos Estudos, Cebrap, ed. 77, v. 1: 91-126.), i.e., que “é a aliança com o não-humano que define as condições intensivas do sistema” (Viveiros de Castro, 2007VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2007. Filiação Intensiva e Aliança Demoníaca. Novos Estudos, Cebrap, ed. 77, v. 1: 91-126.: 123-124). Pelo contrário, podendo estender essa não-contradição a outras paisagens etnográficas, seríamos obrigados a admitir que a noção de troca e de afinidade em seu “valor transcendental/potencial” (Viveiros de Castro, 2002aVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002a. “O problema da afinidade na amazônia”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify, pp. 87-180.), que nos conduzem ao axioma canibal, propõem, exigem mesmo, uma capsula de sexo oposto: “O sangue dos humanos é o cauim do jaguar exatamente como minha irmã é a esposa do meu cunhado, e pelas mesmas razões” (Viveiros de Castro, 2002bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002b. “Atualização e contra-efetuação do virtual: o processo do parentesco”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify, pp. 401-456.: 385. Grifo meu). O que tentei esboçar aqui são as razões por meio das quais meus interlocutores dispensam atenção muito especial às Mulheres-Onça, porque pareceu-me que seu apetite por seus maridos e congêneres nos forneciam uma posição interessante a respeito dessa “analogia”. Não à toa, em uma cerimônia de casamento de seus netos, a velha da aldeia, cujo nome pode ser traduzido como “onça vermelha”, enquanto fornecia chicha aos nubentes, aconselhava a sua neta a não matar o seu próprio marido. Como todo mito parece afirmar, se algo já aconteceu, é porque pode voltar a acontecer.

  • 1
    Agradeço a João Vianna, Eduardo Viveiros de Castro e Geraldo Andrello, bem como aos pareceristas anônimos da Revista, pelos comentários e sugestões preciosas ao manuscrito. Algumas das ideias contidas neste artigo foram primeiramente apresentadas na Mesa Redonda “Gênero na Cosmopolítica: casos etnográficos em debate”, ANPOCS, 2016, composta por Beatriz Matos, Oiara Bonilla, Julia Otero e Fabiana Maizza, conjunto de mulheres a quem agradeço o diálogo e as proposições que sugiram na ocasião.
  • 2
    Maricos são bolsas feitas de tucum ou algodão utilizadas para carregar os produtos da roça e coleta. Sua confecção é exclusivamente feminina. Em conjunto, esses povos compõem um sistema multiétnico e multilíngue, mais recentemente composto também pelos Cujubim, Kanoê, Massacá e indivíduos Wari’, agora que estão na T.I. Rio Guaporé, para onde uma parcela significativa desses povos foi deslocada forçosamente, enquanto a outra está na T.I. Rio Branco. Para a história das interações entre esses povos e os deslocamentos territoriais, ver Soares-Pinto (2009SOARES-PINTO, Nicole. 2009. Do poder do sangue e da chicha: os Wajuru do Guaporé (Rondônia). Curitiba, dissertação de mestrado, Universidade Federal do Paraná.; 2014)SOARES-PINTO, Nicole. 2014. Entre as Teias do Marico: parentes e pajés djeoromitxi. Brasília, tese de doutorado, Universidade de Brasília..
  • 3
    Aqui indexado como Mito 1, doravante M1. Apresento, para cada um dos mitos, um resumo do referente publicado em Mindlin (2014)MINDLIN, Betty; narradores Makurap, Tupari, Wajuru, Djeoromitxí, Arikapú e Aruá. 2014. Moqueca de Maridos: mitos eróticos indígenas. São Paulo, Paz e Terra., ou mitos que eu mesma escutei em campo.
  • 4
    Genericamente, espíritos maus, em língua makurap.
  • 5
    Indexado como Mito 2, doravante M2.
  • 6
    Embora, como eu soube depois, no caso do povo com quem meu marido trabalha, a produção de bebida fermentada não envolva a mastigação de sua matéria-prima por homens nem por mulheres.
  • 7
    “Homarada”, assim como “mulherada”, é a utilização em português dos termos para a coletividade de homens ou de mulheres de uma aldeia.
  • 8
    A categoria wira indica casamento preferencial entre pessoas de sexo oposto ou proteção e pilhéria entre pessoas de mesmo sexo, e recobre as posições de filhos de primos cruzados (FZChCh; MBChCh) e, reciprocamente, primos cruzados dos pais (FMBCh; FFZCh; MFZCh; MMBCh), e por isso não raro é utilizada para a referência à relação entre pessoas de povos distintos, neste ambiente patrifiliativo. Na narrativa, o “wira do irmão dela” seria o cônjuge preferencial da menina, que ela “dispensa” em favor do irmão, quando aconselhada pela mãe. Adiante caracterizo mais detidamente as relações wira.
  • 9
    Nome científico que significa “caçadora implacável que habita/vive na savana ou ave cruel da savana”, segundo https://www.wikiaves.com.br/wiki/tesourinha, último acesso: 01/09/2020.
  • 10
    Aqui indexado como Mito 3, doravante M3.
  • 11
    A versão em Mindlin (2014)MINDLIN, Betty; narradores Makurap, Tupari, Wajuru, Djeoromitxí, Arikapú e Aruá. 2014. Moqueca de Maridos: mitos eróticos indígenas. São Paulo, Paz e Terra. não especifica as posições de parentesco a que se refere “tio” e “tia”, mas desconfio que sejam o irmão do pai e a esposa dele.
  • 12
    O que a autora chama “cauinagem”, eu chamo “chichada”, seguindo meus interlocutores.
  • 13
    Aqui indexado como M4.
  • 14
    A narrativa, tal como está registrada em Mindlin, não especifica as posições de parentesco (kintypes), mas não deixa de realçar um código social das onças que obedece ao interdito do incesto.
  • 15
    Hanõ, na língua djeoromitxi, é o designativo das larvas que crescem nos troncos das palmeiras de aricuri depois que são “furados” pelos humanos. A palmeira aricuri e seus produtos (palha, larvas e capemba de onde se extrai suas cinzas) possuem “eficácia mágica” contra os maus espíritos e não raro nos mitos (como vimos em M2) são operadores de transformações.
  • 16
    Käi, em djeoromitxi, ‘sangue’, é formado pelo substantivo /pele, invólucro, roupa/ mais i /classificador nominal para líquido (cf. Castro, 2012CASTRO, Thiago. 2012. Djeoromitxí: Notes on Phonology and Simple Noun Phrase Structure. Austin, Master of Arts, The University of Texas.: 61). “Sangue”, portanto, poderia ser traduzido por “pele líquida”.
  • 17
    Aqui indexado como M5.
  • 18
    Torna-se “madrinha/mãe outra” de uma criança aquela que realiza seu parto e enterra a sua placenta. Contudo, se essa mulher for a “mãe” ou “avó” da parturiente, então as relações simétricas de respeito, ajuda e doação de alimentos entre as “mães” da criança (comadres entre si) ganha uma característica mais assimétrica e passam a fluir muito mais na direção da parenta sênior.
  • 19
    Aqui indexado como M6.
  • 20
    Para a versão em língua djeoromitxi, consultar Jaboti (2019JABOTI, André. 2019. Produção de Material Didádito Bilíngue: aspectos culturais do povo Djeoromitxi (Djeoromitxi hõnõ nõtxi), Ji-Paraná, Monografia de Especialização, Universidade Federal de Rondônia.: 58).
  • 21
    Vimos no mito relacionado ao Anta (op. cit) a inscrição diferencial entre chicha e alimento.
  • 22
    Como também separam os humanos por meio da patrifiliação, pois as mulheres operam uma série de reversões nos fluxos masculinos de semen/sangue via exogamia de grupo, amamentação das crianças e produção de bebida fermentada. Para detalhes, ver Soares-Pinto 2017SOARES-PINTO, Nicole. 2017. Pequeno manual para se casar e não morrer: o parentesco djeoromitxi. Mana - Estudos de Antropologia Social, v. 23, n. 2: 519-549. DOI: https://doi.org/10.1590/1678-49442017v23n2p519.
    https://doi.org/10.1590/1678-49442017v23...
    .
  • FINANCIAMENTO: Bolsista de doutorado CNPQ entre 2010 e 2014, bolsista pós-doutorado Faperj entre 2016 e 2017.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2020
  • Aceito
    19 Fev 2021
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