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Os tempos da Ladeira da Preguiça: Etnografia de longa duração de uma micro localidade do centro histórico de Salvador

The times of the Ladeira da Preguiça: a long-term ethnography of a micro locality in the historic center of Salvador

RESUMO

Este artigo descreve e reflete sobre dois tempos que coexistem no espaço atual da Preguiça, uma das várias micro áreas que compõem a poligonal do Centro Histórico de Salvador (CHS). Trata-se de um velho “tempo do fechamento”, fruto de mudanças estruturais na cidade de Salvador, que se desenvolveram a partir da segunda metade do século XIX, e de um novo “tempo de (re)abertura”, forjado muito recentemente pelo esforço de alguns e algumas jovens moradores e moradoras da Preguiça, que criaram e mantêm o Centro Cultural Que Ladeira É Essa? Esses tempos foram captados e analisados mediante o método etnográfico (num trabalho de campo que vem sendo efetuado desde inícios de 2019) e o método histórico (com pesquisa em fontes históricas e na historiografia, realizada em 2018). Ambos os métodos nos permitiram relacionar os séculos XIX, XX e XXI e encontrar uma impressionante continuidade entre o que a Preguiça foi (abertura) e o que seus moradores atuais esperam que ela seja no futuro (reabertura), rejeitando abertamente o que se fez dela no século XX, até o presente (fechamento).

PALAVRAS-CHAVE
Ladeira da Preguiça; centro histórico de Salvador; temporalidades; etnografia; Centro Cultural Que Ladeira é Essa?

ABSTRACT

This article describes and reflects on two times that coexist in the current space of Preguiça, one of several micro areas that make up the polygonal of the Historic Center of Salvador (CHS). It is an old “time of closure”, the result of structural changes in the city of Salvador, which developed from the second half of the nineteenth century, and a new “time of (re) opening”, very recently forged by the effort of some young people who live in Preguiça, who created and maintain the Centro Cultural Que Ladeira é Essa? These times were captured and analyzed using the ethnographic method (in fieldwork that has been carried out since early 2019) and the historical method (with research in historical sources and historiography, carried out in 2018). Both methods allowed us to relate the nineteenth, twentieth and twenty-first centuries and to find an impressive continuity between what Preguiça was (openness) and what its current residents expect it to be in the future (reopening), openly rejecting what was made of it in the twentieth century to the present (closing).

KEYWORDS
Ladeira da Preguiça; historic center of Salvador; temporalities; ethnography; Cultural Center Que Ladeira É Essa?

INTRODUÇÃO: SOBRE TEMPOS, MÉTODOS E OBJETIVOS

Este artigo se insere numa longa relação que mantenho com o centro da cidade de Salvador, fundada na curiosidade e paixão etnográfica por seus espaços, gentes, modos de usar e de habitar a área comumente denominada de centro histórico de Salvador (CHS).1 1 O CHS é uma poligonal cujos limites foram fixados em 1984 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), abarcando uma área de menos de 1 km2. Há alguns anos venho analisando parte de suas ruas, praças e becos (Montoya Uriarte, 2014MONTOYA URIARTE, Urpi; CARVALHO FILHO, Milton Júlio. 2014. “Avenida Sete e seus transeuntes (Parte I)” e “Transeuntes e usos da Avenida Sete (parte II)”. In: MONTOYA URIARTE, Urpi e CARVALHO FILHO, Milton Júlio (org.). Panoramas urbanos: usar, viver e construir Salvador. Salvador, Edufba, pp. 31-89.; 2017aMONTOYA URIARTE. 2017a. “Espaço, tempo e memória na Praça da Piedade”. In: MONTOYA URIARTE (org.). Avenida Sete. Antropologia e urbanismo no centro de Salvador. Salvador, Edufba, pp. 247-270.; 2017bMONTOYA URIARTE. 2017b. “Boleros e espíritos na Praça da Piedade, centro de Salvador”. In: GLEDHILL, John; HITA, Maria Gabriela; PERELMAN, Mariano (org.). Disputas em torno do espaço urbano. Processos de (re)produção/construção e apropriação da cidade. Salvador, Edufba, pp. 125-148.; 2019MONTOYA URIARTE. 2019. Entra em beco, sai em beco. Formas de habitar o centro: Salvador e Lisboa. Salvador, Edufba.). Desta vez, centro-me numa ladeira, a Ladeira da Preguiça, que, junto com outras - Ladeiras da Montanha, Conceição, Taboão e Pilar - foram e são espaços percorridos cotidianamente pelos habitantes do centro, porém escassamente transitadas pelo resto dos habitantes da cidade, devido à sua marginalização ao longo do século XX. Transformadas, em sua grande parte, em zonas de moradia pobre e prostituição, as ladeiras do centro chegam ao século XXI reduzidas a estados lamentáveis de ruínas, pobreza e esquecimento.

As linhas que seguem descrevem etnograficamente os tempos que convivem no presente do espaço da Ladeira da Preguiça e seus arredores e analisam historicamente sua coexistência. Como outros esforços atuais que combinam antropologia e história (Frehse, 2011FREHSE, Fraya. 2011. Ô da rua. O transeunte e o advento da modernidade. São Paulo, Edusp.; Jacques, 2018JACQUES, Paola Berenstein. 2018. “Pensar por montagens”. In: JACQUES, Paola Berenstein; PEREIRA, Margareth da Silva (org.). Nebulosas do pensamento urbanístico. Salvador, Edufba, pp. 208-234.; Cordeiro, 2019CORDEIRO, Graça Índias. 2019. “Descompassos de uma etnografia. Sobre os passados presentes de um bairro”. Tempo Social, vol. 31, n. 1: 35-54. DOI 10.11606/0103-2070.ts.2019.151263
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), parte-se da perspectiva aberta pela École des Annales, segundo a qual o presente é sempre uma sobreposição de tempos. Fernand Braudel disse-o claramente: “um passado próximo e um passado mais ou menos longínquo misturam-se na multiplicidade do tempo presente” (Braudel, 1989BRAUDEL, Fernand. 1989. Gramática das civilizações. Lisboa, Teorema.: 10). Para o historiador, os diversos tempos - o rápido, o alongado e o retardado - coexistem no presente, conferindo-lhe uma “múltipla espessura” (Braudel, 1984BRAUDEL, Fernand. 1984. O Mediterrâneo e o Mundo mediterrânico na época de Filipe II. Vol. 2. Lisboa, Martins Fontes.: 619). Assim, mediante a pesquisa etnográfica2 2 A pesquisa etnográfica conta com o auxílio da aluna de Direito e bolsista de Iniciação Científica da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Natália Barreto. Desenvolvese desde fevereiro de 2019 e conta com o auxílio de uma bolsa de pesquisa da Chamada Universal, do CNPq. A recepção dos moradores da Preguiça à nossa presença e perguntas vem sendo muito generosa, devido ao fato da pesquisa ter sido apresentada à comunidade em reunião convocada pelo Centro Cultural Que Ladeira É Essa? Neste artigo, mantemos os nomes reais das pessoas e suas falas são destacadas em itálico. , a consulta a algumas fontes históricas3 3 As fontes consultadas foram: 1) Matérias jornalísticas ao longo do século XX sobre a Ladeira da Preguiça, arquivadas na Fundação Gregório de Mattos e no Centro de Documentação do jornal A Tarde (CEDOC); 2) Matérias sobre a Preguiça contidas nos periódicos baianos do século XIX, disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional; 3) Pesquisa nos Registros eclesiásticos de batismo, casamento e óbito da Freguesia de Nossa Conceição da Praia, no período de 1815 a 1835 (quando os registros foram feitos pelo pároco Manoel Dendê Bus). Sou grata aos historiadores João Reis e Iraneidson Santos Costa por me sugerirem a pesquisa de algumas destas fontes e seu local de consulta. e a leitura de diversos trabalhos historiográficos sobre o centro da cidade de Salvador entre os séculos XVIII e XX, estas páginas pretendem descrever os tempos da Preguiça de hoje e propor uma interpretação sobre a relação entre eles.

A categoria tempo é usada aqui no mesmo sentido dado pelos habitantes da Preguiça quando a utilizam em expressões tais como “as ruínas da Gameleira são de um outro tempo” (Gabriel), ou “a centralidade da Preguiça para os blocos de carnaval era outro tempo!” (Seu Guiga), ou ainda “o sucesso do Banho de Mar à Fantasia é sinal de um novo tempo!” (Zenaide). Que sentido estão dando ao tempo Gabriel4 4 Gabriel Silva se define “como dizem, a força de expressão, nascido e criado na Ladeira da Preguiça”. Massoterapeuta, mecânico Diesel, radiocomunicador e sambista, Gabriel viveu sua adolescência na efervescência cultural da Preguiça dos anos 1970, entre o Banho de Mar à Fantasia, os blocos de carnaval (“o CCCC, Clube Carnavalesco Caídos Do Céu, tínhamos também o bloco As Mergulhas, que era um bloco travestido, na época, como se fosse uma concorrente, do bloco As Muquiranas, que também nasceram, daqui, aqui na Ladeira da Preguiça, que por sua vez, só eram dissidentes do bloco As Negas Malucas...”), os “bregas” da Gameleira e as bandas de música com os amigos. É um dos fundadores do Centro Cultural Que Ladeira é Essa? Gumercindo Vieira Santos, seu Guiga de Ogun, nasceu em 1942. É um funcionário aposentado, conversador e alegre. Era e continua sendo poeta, compositor e cantor. Suas músicas e sua fama são motivo de orgulho para os moradores da Ladeira. Chegou à Preguiça com 15 anos e, desde então, não saiu mais, tornando-se hoje a figura mais importante da memória oral da Preguiça. Zenaide Marques é uma pernambucana de 52 anos, que saiu de Jacobina aos 17, “atrás do irmão que morava no Pelourinho”. Ficou 20 anos morando na vizinha Ladeira da Praça. Embora tenha apenas 10 anos na Preguiça, é uma moradora muito querida, participante animada das atividades promovidas pelo Centro Cultural Que Ladeira é Essa? É diarista e complementa sua renda vendendo comida (maravilhosa!), que serve na sala de sua pequena casa. , Seu Guiga e Zenaide? Certamente, não se trata de pontos que se sucedem numa linha ou períodos que se seguem linearmente. Nem de medições datáveis. Tampouco dizem respeito ao que os historiadores chamam de durações ou ritmos, ou os filósofos de estados ou componentes do ser. A meu ver, Gabriel, Seu Guiga e Zenaide se referem aos “tempos” como configurações do social, isto é, formas que o social adquire em função de forças, agentes ou fenômenos específicos, sejam eles antigos, emergentes ou novos. Estas formas do social - espaciais, materiais, simbólicas, discursivas etc. - são muitas; às vezes, uma ou umas se destacam, se impõem sobre outras que, contudo, não desaparecem e podem sobressair em qualquer outra ocasião. Esta multiplicidade dá aquela “espessura” à vida social a que provavelmente se referia Braudel, citado linhas acima.

Se, por um lado, as referências orais aos diversos tempos são frequentes e espontâneas, a apreensão e compreensão destes tempos demanda um longo trabalho de convívio, escuta e sensibilidade. Em um trabalho anterior (Montoya Uriarte, 2017aMONTOYA URIARTE. 2017a. “Espaço, tempo e memória na Praça da Piedade”. In: MONTOYA URIARTE (org.). Avenida Sete. Antropologia e urbanismo no centro de Salvador. Salvador, Edufba, pp. 247-270.) analisei os usos da Praça da Piedade (localizada no centro antigo de Salvador, CAS5 5 O CAS é uma denominação mais recente, criada a partir de 2007 pelo Governo do Estado da Bahia para a implementação de políticas públicas ligadas ao patrimônio. Ele abarca uma área de aproximadamente 7 km2 e inclui os antigos distritos do Passo, Pilar, Sé, Santo Antônio, Conceição da Praia, Santana, São Pedro e Vitória. ) por parte de pedintes, cidadãos que nela faziam manifestações e idosos que frequentavam diariamente o local. Nessa pesquisa, os tempos foram-me revelados por memórias narradas e por memórias corporalizadas que diziam respeito a dois tempos distintos que coexistiam na Praça da Piedade: o “tempo da contemplação”, que advinha do ímpeto embelezador e modernizador de inícios do século XX, e o “tempo do sofrimento e resistência”, que se forjou no período colonial. No caso da Preguiça, meus questionamentos sobre os tempos que coexistem no presente foram suscitados, inicialmente, por uma paisagem e um evento.

Desde os primeiros dias de trabalho de campo etnográfico, chamou a minha atenção o contraste da paisagem da Preguiça: por um lado, as ruínas e vazios da Gameleira e, por outro, as fachadas coloridas da ladeira (cf. Figura 1). O espaço estava me falando de tempos, mas quais seriam estes? Quais as relações entre ambos? Desde quando? Por sua vez, o tradicional Banho de Mar à Fantasia, festa antiga da Preguiça, cuja edição no ano de 2019, realizada no domingo 24 de fevereiro e que conseguiu reunir 15.000 pessoas (cf. Figura 2), fez-me questionar sobre a relação entre as fachadas coloridas e o evento. Ambos os fenômenos dizem respeito a um mesmo tempo?

Figura 1
Ruínas e fachadas coloridas da Preguiça

Figura 2
Multidão na edição 2019 do “Banho de Mar à Fantasia”, na Preguiça.

Acredito que responder estas perguntas com a devida densidade e “espessura” supõe necessariamente trabalhar com a etnografia e a história, indo e vindo entre um método e outro. Muitos dos trabalhos etnográficos que tenho acompanhado como professora da pós-graduação em Antropologia, ao enfatizar o “presente etnográfico”, têm optado pela dispensa do tempo histórico e a defesa da sincronia que, na visão crítica de Fernand Braudel (1986)BRAUDEL, Fernand. 1986. História e Ciências sociais. Lisboa, Presença, 5ª ed., suprime ilusoriamente o tempo histórico e a superposição dos tempos. Com efeito, são muitas as dissertações e teses etnográficas cuja abordagem histórica fica restrita a um primeiro capítulo ou seção, no qual se apresentam, citando novamente o historiador, “paisagens, atividades e flores que se mostram rapidamente e de que depois não se volta a falar, como se as flores não regressassem todas as Primaveras, como se os rebanhos parassem nas suas migrações, como se os navios não navegassem num mar real, que muda com as estações do ano” (Braudel, 1983BRAUDEL, Fernand. 1983. O Mediterrâneo e o Mundo mediterrânico na época de Filipe II. Vol.1. Lisboa, Martins Fontes.: 25). Em outros casos, elas pecam abertamente por aquilo que Marshall Sahlins (1997: 18)SAHLINS, Marshall. 1997. Islas de historia. La muerte del capitán Cook. Metáfora, antropología e historia. Barcelona, Gedisa. chamou de “postura atemporal” ou pela supervalorização do presente em detrimento do passado. Apesar da proposta contemporânea de uma antropologia da cidade, interessada nas formas de “fazer-cidade”, isto é, na “descrição e a compreensão do movimento permanente de transformação urbana no tempo e no espaço” (Agier, 2015AGIER, Michel. 2015. “Do direito à cidade ao fazer-cidade. O antropólogo, a margem e o centro”. Mana - Estudos de Antropologia Social, vol. 21, n. 3: 483-498. DOI 10.1590/0104-93132015v21n3p483
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: 484), o espaço tem recebido muito mais atenção do que o tempo.

Nesse sentido, a proposta epistemológica que perpassa este trabalho se alinha ao esforço de alguns antropólogos para propor uma “atenção analítica simultânea ao espaço e ao tempo como via metodológica primordial de explanação conceitual do fenômeno urbano em diferentes momentos históricos” (Frehse; O´Donell, 2019FREHSE, Fraya; O´DONNELL, Julia. 2019. “Apresentação. Quando espaços e tempos revelam cidades”. Tempo Social, vol 31, n. 1: 1-9. DOI 10.11606/0103-2070.ts.2019.153111
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: 3).

Trata-se de temporalizar o espaço, lendo a empiria do trabalho de campo mediante as diversas fontes históricas consultadas e, por outro lado, espacializar o tempo, interrogando o passado à luz dos espaços e paisagens contemporâneos.

A etnografia - como método que produz dados a partir de uma relação de proximidade construída entre o pesquisador e a comunidade pesquisada, após este se ver afetado pelo mundo ou sistema dos sujeitos que pretende compreender6 6 A antropóloga Jeanne Favret-Saada (1977) propôs entender o trabalho de campo etnográfico como sendo possível somente após o etnógrafo ter sido “afetado” pelo mundo ou sistema que pretendia entender. A expressão “ser afetado” deve ser entendida como o papel de ocupar um lugar no sistema pesquisado, um lugar que deve existir nesse sistema e deve ser concedido pelos nativos. No caso da pesquisa sobre a bruxaria de Jeanne Favret-Saada, ela passou a ocupar o lugar de “enfeitiçada”, concedido pelos envolvidos nesse sistema após estes se convencerem, por uma série de sinais perceptíveis somente por eles, que ela tinha sido “pega”. - permitiu-nos um diálogo permanente e prolongado com nossos interlocutores, o qual possibilitou a apreensão de seu ponto de vista, suas referências aos tempos e leituras do espaço no qual sua área está inserida. A história, com seu método de confrontar fontes diversas, indo “para o passado com questões do presente para voltar ao presente, com o lastro do que se compreendeu do passado” (Loraux, 1992LORAUX, Nicole. 1992. “Elogio do anacronismo”. In: NOVAIS, Adauto (org.). Tempo e História. São Paulo, Companhia das Letras, pp. 57-70.: 61) e seu objetivo de “relacionar elementos dispersos no tempo e no espaço” (Pessanha,1992PESSANHA, José Américo Motta. 1992. “O sono e a vigília”. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo, Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura, pp. 33-55.: 50), proporcionou-nos a via para a complementaridade, preenchimento ou interrogação das memórias discursivas ou vividas que foram aparecendo ao longo do trabalho de campo e que revelavam tempos distintos. As diversas fontes históricas consultadas nos permitiram delinear melhor estas configurações do social e propor uma interpretação da coexistência e relação entre elas.

BREVE DESCRIÇÃO DA ÁREA DA PREGUIÇA

A área da Preguiça (cf. Figura 3) se localiza nos arredores da Ladeira da Preguiça, uma das várias ladeiras que fazem a ligação entre a Cidade Baixa e a Cidade Alta, falha geológica de aproximadamente 80 metros que Tomé de Souza, em 1549, achou por bem utilizar para garantir a defesa da cidade, fundando Salvador na parte alta e seu porto na parte baixa. Segundo a historiadora Kátia Mattoso (1992: 71)MATTOSO, Katia M. de Queirós. 1992. Bahia Século XIX. Uma província no Império. Rio de Janeiro, Nova Fronteira., esta é a segunda ladeira mais antiga da cidade. Na linguagem poética e não quantificada do tempo da música “Ladeira da Preguiça”, escrita por Gilberto Gil em 1971, no exílio, ela é do tempo em que “se amarrava cachorro com linguiça”. Em seu livro Histórias de Salvador no nome de suas ruas, Luis Eduardo Dorea (2006: 94)DOREA, Luiz Eduardo. 2006. Histórias de Salvador nos nomes de suas ruas. Salvador, Edufba. escreveu que o traçado menos íngreme da Ladeira da Preguiça fora concebido para que as mercadorias pudessem ser transportadas por ela. Contudo,

Figura 3
A área da Preguiça

[...] não era trabalho fácil fazer subir os carretões puxados a bois e empurrados por escravos, que alegavam ser este um trabalho que “dava preguiça”. De maneira irônica, foi então batizada pela população e os feitores como Ladeira do Tira Preguiça. Depois, pela “preguiça” comum à língua falada pelo povo, que em muitos casos - como neste - ao suprimir uma palavra chega mesmo a desfazer o significado histórico original de um topônimo, ficou sendo apenas a Ladeira da Preguiça.

A Preguiça é o nome que a população local dá a uma área composta pela ladeira e algumas ruas adjacentes: a Gameleira (um trecho da Rua do Sodré, entre a Ladeira da Preguiça e a Praça Castro Alves), uma parte da Rua do Sodré (até o Beco de Ruth), uma parte da Ladeira de Mauá, o Beco da Califórnia e a parte de baixo da Ladeira.7 7 O Beco da Califórnia é um beco em “L” que se localiza no meio da Ladeira da Preguiça e que conta com aproximadamente 14 edificações, das quais 3 são ruínas, e 1 terreno baldio. Como muitos outros becos do centro de Salvador (Montoya Uriarte, 2019), ele apresenta grande movimento: um entra-e-sai de gente, vozes, crianças, músicas, bichos. Outra característica que partilha com os becos da área central é a presença nele de camelôs: de tarde e de noite, são ao menos cinco os moradores que colocam suas “guias” no beco, vendendo cigarro, pacaia (fumo para cigarro), cachaças, balas, salgadinhos e doces (pé de moleque, paçoca, pirulito). Já o Beco de Ruth é o nome como se conhece hoje o antigo Beco do Seminário. Ruth é “nascida e criada no beco”, filha e neta de mulheres (ambas lavadeiras) igualmente nascidas na Preguiça. É vendedora ambulante, na entrada do beco, isto é, numa das extremidades do corredor por onde se acede à 3 casinhas geminadas. A parte de baixo da Preguiça tem a denominação oficial de Dionísio Martins e hoje só tem o bar de Paulo e o “ferro velho”, nome dado ao depósito de material reciclável. Até os anos 1930 ou 1940, havia nesse local um pequeno estaleiro e porto onde desembarcavam mercadorias que vinham da Baía de Todos os Santos, assim como também uma rampa e uma feira de peixe. Até a década de 1980, incluiu também a Rocinha dos Marinheiros, um conjunto de uma centena de barracos que foram erguidos onde hoje há uma escadaria que liga a Avenida Contorno à Praça Castro Alves.

Seus vizinhos na parte superior são, de um lado, a Praça Castro Alves e o cinema Glauber Rocha e, do outro, o bairro boêmio 2 de Julho. Na parte inferior, na belíssima paisagem da Baía de Todos os Santos, os vizinhos são extremamente ricos: a Bahia Marina e o condomínio residencial Trapiche Residence, de alto padrão. Diante dessa vizinhança, a Preguiça, com seus moradores pretos e pardos de baixa renda, pode ser considerada uma ilha (cf. Figura 4). A praça renovada (atualmente em reforma), o cinema cult, o bairro em processo de gentrificação8 8 Entendemos a gentrificação como o processo de transformação na composição social dos habitantes de uma localidade, de popular ou pobre para um bairro de classe média (Hamnett, 1997). e os apartamentos luxuosos e iates ancorados na marina contrastam com as velhas casas, os becos de casinhas minúsculas, a economia de rua com diminutas vendinhas e um cotidiano marcado pela música em volume alto, gritos a grandes distâncias, pessoas sentadas nas portas, conversas nas esquinas, olhares indiscretos desde as janelas e inúmeros gatos e cachorros que moram na rua, mas são alimentados pelos moradores.

Figura 4
A Ladeira da Preguiça (em vermelho) e seus vizinhos

Figura 5
A Bahia Marina e o Trapiche Residence

Como já salientado, esta área faz parte do CHS, um espaço muito visitado pelos turistas, em virtude do seu casario antigo, traçado colonial, ruelas estreitas e diversas igrejas. Entretanto, apesar de integrar a área declarada Patrimônio da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em 1985, muito poucas pessoas da cidade conhecem a Preguiça. O que os soteropolitanos e turistas frequentam do CHS é o núcleo conhecido como Pelourinho e o Santo Antônio, cujos casarios foram reformados pelos seus proprietários ou pelo Governo do Estado da Bahia, ao longo das décadas de 1990 e 2000.

Com exceção do Pelourinho - cuja reforma implicou a expulsão da grande maioria de sua população residente, que se agrupava nas comunidades do Maciel, Pelourinho e Rocinha - os moradores do CHS são, em sua maior parte, “nascidos e criados” no local, e mantêm uma relação de identidade e vizinhança entre si e com o território, formando um conjunto de autodenominadas “comunidades”: do Passo, do Taboão, da 28 (ou São Dâmaso), da Ajuda, da Preguiça (cf. Figura 6). Pelo descaso do poder público, que se evidencia no número de ruínas e na ausência de comércio, e pela predominância de pessoas pobres e negras, os territórios destas comunidades são associados no imaginário soteropolitano às drogas, tráfico e assaltos. São, portanto, evitados pela população da cidade, que prefere andar pelas ruas principais - reformadas e iluminadas -, desconhecendo a vida forjada em seus lados sombrios e relegados.

Figura 6
As comunidades do CHS

A comunidade da Preguiça é relativamente homogênea em seus aspectos econômicos, sociais, raciais e educacionais. Segundo dados de O Censo da Gente e para a Gente (Montoya Uriarte et al., 2020MONTOYA URIARTE. 2020. BARRETO, Natália; CARIA, Luisa; NOVAES, Marina; PRUDENTE, Artur, O Censo da Gente e para a Gente. Dados socioeconômicos da Comunidade da Preguiça. Disponível em: https://www.panoramasurbanos.com.br/censo-preguica
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), moram na área da Preguiça aproximadamente 180 pessoas, em 65 unidades familiares. Seu perfil socioeconômico corresponde ao dos moradores do CHS (com a exceção do bairro Santo Antônio-Carmo), descritos por Gottschall, Santana e Rocha (2006)GOTTSCHALL, Carlota de Sousa; SANTANA, Mariely Cabral de; ROCHA, Ana Georgina Peixoto. 2006. “Perfil dos moradores do centro tradicional de Salvador à luz do Censo de 2000”. In GOTTSCHALL, Carlota de Sousa; SANTANA, Mariely Cabral de (org.). Centro da cultura de Salvador. Salvador, Edufba; SEI, pp. 16-50.: trata-se de uma população predominantemente parda ou preta (80% se autodeclaram negros), de baixa escolaridade (só 30 de 95 responsáveis e corresponsáveis de unidades familiares têm o ensino médio completo) e baixos rendimentos (2/3 recebem entre 1/2 e 1 salário mínimo e 1/3 entre 1 e 2 salários mínimos), com mais da metade das famílias sendo chefiadas por mulheres (41 das 63 unidades familiares pesquisadas), com 25 crianças e apenas 15 jovens, que convivem com condições de risco, a exemplo do aberto consumo de drogas ilícitas. Dentre as características econômicas da comunidade da Preguiça podemos ressaltar o predomínio de autônomos (mais de 2/3) e informais (quase 2/3 não têm direitos trabalhistas) e sua vulnerabilidade (só 38 de 88 têm renda fixa). O local de trabalho predominante desta população é o próprio centro e, nele, a área da Preguiça, em cujas ruas colocam suas “guias”9 9 Em Salvador, chamam-se guias aos tabuleiros feitos de madeira improvisada sobre os quais se estendem mercadorias diversas. Esta acepção nada tem a ver com uma outra, que advém do Candomblé: “colar ritual de miçangas ou contas de vidro ou louça, da cor especial de cada orixá ou entidade” (Cacciatore, 1977: 133). , ou na praia vendendo comida, água e cerveja, ou ainda em pequenas quitandas que funcionam no interior das casas, oferecendo alimentos, bebidas e pratos de comida, além de dois mercadinhos, um bar, um bar-restaurante, uma borracharia, uma oficina de motos e um depósito de materiais recicláveis (cf. Figura 7).

Figura 7
O pequeno comércio da Preguiça: “guias”, vendinha e borracharia

Trata-se de uma área muito familiar, onde as ruas servem para ficar e não para circular (Frehse, 2005FREHSE, Fraya. 2005. O tempo das ruas na São Paulo de fins do império. São Paulo, Edusp.: 18). É uma rua de moradores, não de transeuntes. O dia-a-dia da Preguiça é marcado pelo sobe-e-desce de seus moradores, o corre-corre das crianças, o vai-e-vem dos usuários de drogas que ali se estabeleceram. Quase não se vê, na Preguiça, transeuntes que não sejam conhecidos. Daí o uso intensivo da rua para atividades domésticas como a de estender as roupas nos fios que protegem um terreno vazio, bem no meio da ladeira, colocar bancos fixos na rua ou pontinhos de venda (cf. Figura 8). A atmosfera da Preguiça é tranquila, jocosa, de mútuo conhecimento e confiança entre os moradores. “Aqui tem algo que a Mouraria não tem: a vizinhança”, afirma Zenaide. Todo mundo se conhece e grande parte dos moradores tem boas relações entre si. Contudo, como em qualquer lugar, há desentendimentos e “moradores que não se inserem”.

Figura 8
Usos familiares da rua, na Preguiça

Este ritmo lento, onde o tempo parece passar devagar ou sobrar, praticado por “homens lentos” (Santos, 1996SANTOS, Milton. 1996. “O lugar e o cotidiano”. In: SANTOS, Milton. A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo, Hucitec. pp.251-265.: 261) cuja cadência e perspectiva decorre do fato de serem caminhantes, só é rompido recentemente pelas muitas vans que transitam pela ladeira, fazendo transporte informal de passageiros do Subúrbio até a Avenida Carlos Gomes. Na medida em que a ladeira é mão-dupla e as vans são largas, cria-se constantemente situações de engarrafamento que os moradores ajudam a resolver.

Além de seus moradores, a Preguiça acolhe uma grande quantidade de usuários de drogas, que há quase duas décadas habitam as ruínas da Gameleira e outros espaços do centro. Os usuários sobem e descem constantemente a ladeira visto que sobrevivem catando material reciclável, que vendem no ferro velho localizado no sopé da Preguiça. Em certos locais da área, compram as drogas e, no pequeno comércio de rua ou do interior das casas, adquirem cigarros e bebidas. O resultado é que eles praticamente moram numa área na qual podem satisfazer diversas necessidades. Os moradores da Preguiça, por sua vez, toleram-nos porque entendem o drama do consumo, desemprego e desespero, porque alguns deles são “filhos da Preguiça” (nascidos e criados) ou porque ajudam a movimentar o escasso comércio da área. Muitos não são apenas tolerados, mas “considerados”. Em certa ocasião, conversando com Jane10 10 Jane é moradora da Preguiça, nascida na localidade vizinha do Sodré. Com seus 60 anos, já morou em diversos locais do centro, mas diz que “da Preguiça não saio”. Sustentase como vendedora ambulante fixa no centro. Mora sozinha e é comum vê-la na porta de sua casa. Faz parte do grupo grande de moradores que tratam os usuários humanamente, dignamente: trocam palavras, dão água, assistem como podem. Embora não seja uma integrante assídua, participa de algumas atividades do Centro Cultural Que Ladeira É Essa? , passou uma usuária que lhe pediu a benção. Perguntei se se tratava de uma “filha da Preguiça” ao que ela respondeu: “não é filha da Preguiça, mas passou a ser”. Depois soubemos que ela era nascida e criada na comunidade do Maciel.

Figura 9
Usuários de drogas na Gameleira

Figura 10
O depósito de material reciclável na parte baixa da Preguiça

DO TEMPO EM QUE A PREGUIÇA ERA ESPAÇO CENTRAL E ESPAÇO SOCIAL E ETNICAMENTE DIVERSO

Durante séculos, a Preguiça foi um lugar central da cidade. Sua centralidade advinha do fato de ser ladeira numa cidade dividida em Cidade Baixa e Cidade Alta:

Um quinto das ruas de Salvador era formado pelas denominadas ladeiras, indicando a verticalidade de qualquer locomoção dentro da cidade [...] Eram todas íngremes, estreitas demais e sinuosas demais para veículos sobre rodas e apresentavam dificuldades até para cavalos e mulas, especialmente porque a chuva, mesmo a mais passageira, podia produzir “torrentes´” que cavavam profundas trincheiras. (Graham, 2010GRAHAM, Richard. 2010. Alimentar a cidade. Das vendedoras de rua à reforma liberal (Salvador 1780-1860). São Paulo, Companhia das Letras.: 43, 44).

Como outras ladeiras, a Preguiça era absolutamente central em sua condição de via de fornecimento para a Cidade Alta de mercadorias e alimentos que ingressavam à cidade pelo mar, principal rota de abastecimento até o século XX:

Eis porque, as ladeiras, e a Preguiça entre elas, eram muito usadas. Findo o dia, a maior parte das pessoas demandava as ladeiras íngremes, as trilhas ou escadarias, rumo à Cidade Alta [...] O intenso vaivém entre a Cidade Baixa e a Cidade Alta tinha seu clímax em dois momentos do dia: as primeiras horas da manhã, quando desciam negociantes e trabalhadores, vendedores ambulantes e carregadores; o fim da tarde quando subiam para São Bento... (Mattoso, 1992MATTOSO, Katia M. de Queirós. 1992. Bahia Século XIX. Uma província no Império. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.: 439)

O uso e sua importância tornaram as ladeiras, além de vias de articulação, locais de residência. Em 1801, como deixa registrado o prospecto de Luís dos Santos Vilhena (1969)VILHENA, Luís dos Santos. 1969. A Bahia no século XVIII. Salvador, Itapuã., as Ladeiras da Conceição e da Preguiça (no extremo esquerdo da Figura 11) estavam plenamente urbanizadas:

Figura 11
Prospecto de Vilhena. No canto esquerdo (número 68), a Ladeira da Conceição, seguida pela Ladeira da Preguiça. Na parte inferior (número 52), o Sítio da Preguiça onde, segundo seu autor, havia diversos estaleiros.

Dentre os usuários das ladeiras, destacavam-se os vendedores, personagens que, numa cidade praticamente sem mercados11 11 Embora não haja consenso entre os historiadores sobre este assunto, seguimos aqui a perspectiva de Richard Graham (2010). , subiam as ladeiras e percorriam em grande número as ruas, anunciando seus produtos:

Essa gente zanzava o dia todo, ladeira abaixo, ladeira acima, os tabuleiros - sempre harmoniosamente arrumados - equilibrados na cabeça, roupas de cores vivas, porte altaneiro, língua afiada, fosse a mulher que vendia mingau de tapioca ou o padeiro, gente madrugadora, ou a baiana de saia rodada e muitos colares, que chegava de tardinha para oferecer acarajé, doce de banana ou de goiaba. Vendia-se de tudo nas ruas de Salvador, de carvão a legumes. Especialistas em quitutes de proveniência africana não faltavam em nenhum bairro.

Este modesto comércio ambulante que pouco investimento exigia, permitia a toda uma parcela da população viver, ou sobreviver, numa cidade onde [...] o mercado de trabalho era reduzido. (Mattoso, 1992MATTOSO, Katia M. de Queirós. 1992. Bahia Século XIX. Uma província no Império. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.: 494)

Além dos vendedores, os mendigos eram usuários frequentes desses espaços:

As Ladeiras da Misericórdia, do Taboão e da Preguiça eram passagem obrigatória para aqueles que se movimentavam entre as Cidades Baixas e Altas de Salvador e por isso não fugiam à ocupação pelos pedintes no momento da esmola. (Fraga Filho, 1995FRAGA FILHO, Walter. 1995. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. Salvador, Edufba; São Paulo, Hucitec.: 58).

Destacavam-se igualmente os carregadores de todo tipo de mercadorias. Esta ocupação era ou de escravos ou de trabalhadores de ganho, isto é, pessoas negras. Assim, podemos afirmar que, seja como vendedores ou como transportadores, o grosso da população que transitava pela Ladeira da Preguiça era constituída de pessoas negras.

Escravos e negros forros, estes na maioria africanos, faziam frete, viabilizando a vida comercial da cidade. Como disse um residente, “eram eles que moviam tudo: caixas, fardos, pipas, barricas, móveis, materiais de construção”. Poderia também ter mencionado alimentos. (Graham, 2010GRAHAM, Richard. 2010. Alimentar a cidade. Das vendedoras de rua à reforma liberal (Salvador 1780-1860). São Paulo, Companhia das Letras.: 44)

A área da Preguiça fazia parte da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Praia, fundada em 1623 (Nascimento, 2007NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. 2007. Dez freguesias da cidade do Salvador. Aspectos sociais e urbanos do século XIX. Salvador, Edufba.: 54). Como as outras freguesias da cidade de Salvador, a Conceição da Praia apresentava um panorama social bastante diversificado, com ricos e pobres, negros e brancos, grandes sobrados e áreas mais modestas. Não obstante, ela tinha uma característica peculiar que era a significativa presença do comércio, armazéns e ambulantes (até hoje, essa área denomina-se no linguajar popular simplesmente como “Comércio”). Era uma freguesia cheia de bazares, lojas, mercados, tavernas, serviços (alfaiate, barbeiro, serralheiro, funileiro etc.), vendedores ambulantes, escravos de ganho, ganhadeiras de venda de comida, cadeiras de arruar etc.:

Nas ruas e no cais se apinhavam negras mercadejando tecidos, quinquilharias africanas e toda sorte de alimentos crus e cozidos: peixes, frutas, bolos, carne de baleia moqueada. O príncipe Maximiliano viu negras, com seus fogareiros sempre acesos, alinhadas de um e outro lado da rua da Praia, cozinhando e assando comida. Barbeiros, santeiros, alfaiates, trançadores de cestos e chapéus de palha trabalhavam a céu aberto... (Reis, 1991REIS, João. 1991. A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo, Companhia das Letras.: 29)

Era uma área densa e populosa. Os viajantes a descreveram como uma área particularmente suja da cidade, pois “recebia forçosamente o afluxo de todas as valas e todas as imundícies das casas construídas acima” (Mattoso, 1992MATTOSO, Katia M. de Queirós. 1992. Bahia Século XIX. Uma província no Império. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.: 438). A inglesa Maria Graham afirmou em 1821 “jamais ter visitado lugar mais emporcalhado que a Cidade Baixa de Salvador” (ibid: 437). O movimento que caracterizava a freguesia de uma forma geral se estendia à Ladeira da Preguiça.

Em termos sociais, a Ladeira da Preguiça era bastante diversificada, muito longe da homogeneidade socioeconômica e racial própria da espacialidade dos séculos XX e XXI. Numa pesquisa sobre Domingos Sodré, João Reis descreveu da seguinte forma a população residente na Ladeira de Santa Tereza, muito próxima da área da Preguiça:

Domingos Sodré tinha uma vizinhança social e etnicamente variada. Além do inspetor do quarteirão e joalheiro José Muniz Barreto, consegui apurar que moravam na ladeira de Santa Tereza o cônego e professor de latim Manoel dos Santos Pereira; o oficial da secretaria da Tesouraria da Fazenda Tito José Cardoso Rangel, 33 anos, casado; o fiel de armazém da Alfândega Cincinato Luzia Botelho Damásio, 21 anos, solteiro; os músicos Porfirio Lima da Silva Mello, trinta anos, solteiro e Euclides José de Souza; os alfaiates Galdino de tal e Luiz da França; Rita de tal, uma crioula; o africano liberto Antão Teixeira; um português, caixeiro da venda de João Bolachão na esquina da ladeira com a rua de Baixo de São Bento. (Reis, 2008REIS, João. 2008. Domingos Sodré. Um sacerdote africano. Escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo, Companhia das Letras.: 105-106)

Pesquisadores como Kátia Mattoso, Anna Amélia Nascimento e João Reis concordam na afirmação segundo a qual Salvador, até entrado o século XIX, foi uma cidade onde as distâncias sociais não precisavam serem distâncias espaciais. Longe disso, os diferentes e desiguais partilhavam o mesmo espaço. Num mesmo quarteirão da Freguesia da Sé, em 1862, moravam “médicos, advogados, músicos, ourives, marceneiros, sapateiros, funcionários públicos, marujos de saveiro, charuteiros, comerciantes, alfaiates, escrivães, pedreiros, caixeiros, pintores, calafates, pessoas que viviam de rendas etc.” (Mattoso, 1992MATTOSO, Katia M. de Queirós. 1992. Bahia Século XIX. Uma província no Império. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.: 441),

[...] em cada uma das dez freguesias de Salvador existiam camadas representativas de todos os segmentos da sociedade, em nenhuma delas encontrando-se somente um tipo de categoria social, evidenciando uma discriminação [espacial] inexistente nas freguesias em geral. (Nascimento, 2017: 111)

[...] em todo o perímetro urbano de Salvador, residências de ricos e pobres se misturavam [...] Famílias de ricos senhores de engenho, comerciantes, funcionários civis e eclesiásticos dividiam as mesmas ruas com negros escravos e libertos. Estes, porém, habitavam os subsolos, as chamadas lojas de sobrados, cujos andares superiores abrigavam as famílias brancas (Reis, 1991REIS, João. 1991. A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo, Companhia das Letras.: 30)

A pesquisa em fontes históricas nos permite afirmar que esta mesma diversidade caracterizava os habitantes da Ladeira da Preguiça. Os anúncios de jornais de meados do século XIX atestam que moravam nela artesãos - havia uma fábrica de chapéus de Mr. Voltaire (Correio Mercantil, 1839a), um oficial de marceneiro (Registros da Igreja Católica, 27 set. 1834), um marceneiro alemão (Correio Mercantil, 1841) -, lojistas - havia uma loja do penteeiro Julianno Jacome (Correio Mercantil, 1839b) -, assim como alguns profissionais liberais - encontramos um professor público de primeiras letras (Correio Mercantil, 1840), um juiz da paz da freguesia de Conceição da Praia (O Monitor, 1881) e Xavier Marques, professor de português e francês (Jornal de Notícias, 1891).

Por sua vez, os Registros Eclesiásticos de Batismo, Casamento e Óbito da Freguesia de Conceição da Praia permitem-nos conhecer a cor das pessoas, sua condição social e civil. Os atestados de óbito na Ladeira da Preguiça entre 1815 e 1835, efetuados pelo pároco Manoel Dendê Bus, atestam uma população social e racialmente muito variada. Brancos, pardos, escravizados e libertos moravam na Preguiça:

Aos 6 de Novembro de 1832, nesta Igreja Matriz à Ladeira da Preguiça, em casa de Dona Maria Clara Gomes Costa Ferreira, branca, casada com Filipe Justiniano Costa Ferreira de presente na cidade do Rio de Janeiro, faleceu de moléstia interna sem Sacramentos e com 30 anos na aparência Anna Joaquina, crioula, solteira, agregada da dita Gomes. (Registros da Igreja Católica)

Aos 3 de Março de 1829, nesta freguesia, à rua da Preguiça, faleceu com os Sacramentos da Penitência e Extrema Unção e com setenta e tantos anos de idade, Maria Leocádia da Silveira, Geige, solteira, liberta, que ficou de Antônio Tavares da Silveira, branco, casado, já falecido. Foi encomendada por mim e o Sacristão e mais 4 Clérigos, por todos acompanhada até esta Matriz, onde ficou sepultada. (Registros da Igreja Católica)

Aos 20 de Junho de 1829, nesta freguesia, à ladeira da Preguiça, em casa de José Miranda, pardo, solteiro, falecido com os Sacramentos da Penitência e Extrema-Unção, de moléstia interna, e com 35 anos de idade, Luis de Miranda, crioulo forro, casado com Luciana, também crioula. (Registros da Igreja Católica)

Além da população branca e parda, moravam na Ladeira da Preguiça, em grande quantidade, escravos de proprietários brancos ou negros, em cujas casas morriam e cujas mortes eram notificadas da seguinte maneira:

Aos 29 de Janeiro de 1829, nesta freguesia, à rua da Preguiça, em casa de Rita Maria do Espírito Santo, branca, viúva, faleceu de moléstia interna, com o Sacramento da Extrema Unção e com 8 anos de idade, Filesmina, parda, escrava da sobredita viúva. Foi vestida de cores, encomendada solenemente por mim e o Sacristão e mais 10 Clérigos, por todos conduzida até esta Matriz, onde ficou sepultada. (Registros da Igreja Católica)

Aos 29 de Setembro de 1824, foi de licença minha conduzido, no banguê da Misericórdia para o cemitério público o cadáver de Antonia, Geige, solteira, escrava de Maria Couto, Geige, solteira, ao beco dos Calafates, em cuja casa e poder faleceu hoje de moléstia interna, sem sacramentos e 3 anos. (Registros da Igreja Católica)

Pelos registros de óbito, podemos afirmar que morava na Preguiça uma quantidade significativa de negros forros ou libertos:

Aos 24 de Outubro de 1829, nesta Igreja Matriz, foi recebido e encomendado pelo Pe. Mathias Francisco da Costa e o Sacristão, ficou nela sepultado o cadáver de Matheus, forro, solteiro, à ladeira da Preguiça, que no dia de ontem falecera sem Sacramentos e com 40 anos de aparência. (Registros da Igreja Católica)

Aos 29 de Março de 1832, nesta freguesia à ladeira da Preguiça em sua casa faleceu de moléstia interna com todos os Sacramentos e 40 anos na aparência Manoel Ferreira das Neves, crioulo, solteiro, forro. (Registros da Igreja Católica)

Aos 13 de Julho de 1833, nesta Igreja Matriz foi recebida e encomendada por mim e o Sacristão e ficou nela sepultado o cadáver de Heugênio, crioulo, de ano e meio, filho natural de Francisca das Chagas, crioula, forra, solteira, à Ladeira da Preguiça, em cuja casa e poder faleceu hoje de moléstia interna. (Registros da Igreja Católica)

Na maior parte dos casos, é explicitado que os negros forros morriam “em suas casas”. Em outras palavras, na primeira metade do século XIX, é possível afirmar que a população negra da Ladeira da Preguiça morava ou como proprietária ou como locatária. Em termos profissionais, os registros de óbitos e os jornais da época indicam que conviviam, na Ladeira da Preguiça, residências, comércio e “fábricas”. São mencionadas uma “fábrica de chapéus” (no Beco dos Calafates), uma loja de penteeiro, uma tinturaria francesa (também no Beco dos Calafates), uma “padaria à moda francesa” e um sapateiro italiano (rua da Preguiça):

Aos 8 de Maio de 1831, nesta freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Praia, à rua da Preguiça, em sua casa, faleceu de moléstia interna, de repente e sem Sacramentos, Matheus Boscasso, filho legítimo de Francisco Boscasso e Clara Portto, com 39 anos de idade, natural de Castelnuovo nos Estados Sardos, casado com Brígida Dabbene, também Sarda, sapateiro. (Registros da Igreja Católica)

A Preguiça, apresentava, assim, um uso misto do espaço, combinando funções residenciais, comerciais e artesanais. O Alabama registra igualmente o uso religioso:

Cidade de Latronopolis, a bordo do Alabama, 29 de outubro de 1868. Officio ao Ilm. Sr. subdelegado da Conceição da Praia, comunicando-lhe que há 8 dias ferve um importuno candomblé, na loja n. 45, à rua da Preguiça, o qual, embora seja, talvez, com assentimento da polícia, deve S. S. considerar quanto incômodo pode causar de noite à vizinhança, e por isso espera-se do zelo com que S. S. se tem distinguido até hoje no desempenho de seu cargo, fará dispersar in contenti tão immoral reunião. (O Alabama, 1868: 1)

Cidade de Latronopolis, a bordo do Alabama, 26 de fevereiro de 1869. Ofício ao Ilm. Sr. subdelegado da Conceição da Praia, de novo chamando sua atenção para o 1º andar do sobrado n. 40, à rua da Preguiça, onde há permanente ajuntamento de africanos escravos, que muito perturbam o silêncio à noite, com cantorias e danças. (O Alabama, 1869ª: 1)

A casa n. 40, ficamos sabendo em outra edição, era sublocada por um inquilino a uma população de escravos:

EXPEDIENTE. Ao Ilm. Sr. subdelegado da Conceição da Praia, pedindo-lhe que faça acabar com um casebre de pretos escravos que há no 1º andar da casa n. 40, à rua da Preguiça, o qual incomoda a vizinhança à noite; aproveitando S. S. o ensejo para advertir ao inquilino da dita casa, a falta em que incorre alugando cômodos a escravos, sem prévia licença de seus senhores. (O Alabama, 1869b: 1)

Nestas notícias podemos ver claramente como a pluralidade religiosa não implicava na ausência de problemas ou atritos. As cantorias dos negros “importunavam”, “incomodavam” os vizinhos. Em outros casos, o que “ofendia a moral pública” eram o linguajar, cenas e volume de fala:

A PEDIDO. Sr. Inspetor, não se importe com a vida privada das pessoas de sua vizinhança, cuide antes em evitar tantos casos tristes cotidianamente se dão no seu quarteirão, proíba que se profiram em alta voz palavras ofensivas à moral pública, ponha termo aos gritos d’aqui d’elrei, às pancadas, as vozerias e a todas essas cenas repugnantes de que tem sido teatro sem quarteirão; deixe-se de intrigar a vizinhança; não queira com o descrédito alheio arranjar suas pipineiras; tenha vergonha, e aceite o conselho que lhe dá. A Ladeira da Preguiça. (O Alabama, 1864: 4)

Durante séculos, a Preguiça foi espaço aberto ao trânsito de muitos habitantes, local de residência de setores sociais diversos, lugar de uso residencial e comercial, de livres, libertos e escravizados, de brancos e negros, estrangeiros e brasileiros. Esta configuração socioespacial foi a predominante até meados do século XIX. Em diante, a este tempo - que chamamos de abertura - se sobrepôs um outro, oposto - de fechamento.

TEMPO DE ABANDONO E FECHAMENTO, DE BREGAS E CORTIÇOS

Nesta seção, interrogar-nos-emos sobre o tempo do qual nos falam as ruínas da Preguiça. A pesquisa em fontes e nos textos historiográficos nos levam às últimas décadas do século XIX, momento em que a população da cidade de Salvador viu sua espacialidade - sua organização e sentido do espaço - ser profundamente alterada. A partir da segunda metade daquele século, começou rapidamente a declinar a antiga proximidade e mistura social que caracterizara as freguesias que compunham Salvador no período colonial.

O avanço e consolidação do capitalismo modificou estruturalmente a antiga espacialidade e a forma como seus habitantes se relacionavam com o conjunto da cidade e com seu bairro. A inovação tecnológica gerada pelo capitalismo europeu e a sua necessidade de expansão de mercados promoveram grandes investimentos ingleses e franceses nas áreas de transporte e infraestrutura. Apareceram em Salvador, pela primeira vez, veículos de transporte de passageiros e o espaço portuário, até então “natural”, passou a ser totalmente reformulado, centralizando o que fora durante séculos descentralizado. As ruas consideradas principais passaram a ser calçadas e iluminadas e a forma de habitar dos estrangeiros gerou a expansão de bairros novos, completamente diferentes das antigas freguesias. O resultado destas inovações e transformações foi uma nova espacialidade, caracterizada pela fragmentação do espaço, a homogeneização de seus fragmentos, a oposição centro e periferia e a segregação dos pobres em certas áreas. Nessa nova configuração, a Preguiça passou de espaço articulador e aberto a lugar residencial de pobres, à margem da centralidade, isolado das modernizações, confinado ao convívio restrito de seus moradores e às atividades consideradas marginais.

Esse tempo, iniciado na segunda metade do século XIX, foi desenhando a paisagem das ruínas e vazios que encontramos na Preguiça hoje (cf. Figura 12): ao todo, são 13 ruínas e 8 terrenos vazios, além de 3 edificações desabitadas.

Figura 12
Mapa das ruínas, imóveis e terrenos vazios na área da Preguiça (2019)

Figura 13
Fotografias das ruínas e terrenos vazios da Gameleira (2019)

Na Preguiça, as ruínas e terrenos vazios são testemunhas de um período - praticamente o século XX todo - em que a área se encheu de gente, gente pobre, que alugava os cômodos dos casarões antigamente unifamiliares. Embora já existisse a prática da sublocação de quartos em antigos casarões ao longo do século XIX, o número de anúncios em jornais das primeiras décadas do século XX atesta o quanto essa prática se alastrou na Ladeira da Preguiça:

“Aluga-se 1º andar por preço cômodo” (A Tarde, 1915: 3)

“Aluga-se casa nº 35” (A Tarde, 1917a, p. 5) No mesmo ano, essa casa foi interditada dada suas condições físicas: “Prédios de nº 35 e 37 interditados na Ladeira da Preguiça pela saúde pública” (A Tarde, 1917b: 3)

“Aluga-se casas confortáveis e quartos para pequenas ou grandes famílias” (A Tarde, 1919: 5)

“Aluguel de quarto com janela” (A Tarde, 1930: 7)

“Aluguel de andares na Preguiça por 130 $ e 150 $” (A Tarde, 1931: 7)

“Aluguel de 2 andares na Preguiça nº 14 e um quarto a rapaz ou casal” (A Tarde, 1932: 6)

“Vende-se 1º andar na Preguiça nº 30 com 7 quartos e janelas, ideal para pequena pensão. Valor 222 $” (A Tarde, 1933: 6)

“Aluguel de quartos na rua Dionísio Martins nº 11” (antiga ladeira da Preguiça) (A Tarde, edição nº 12793, ano 37, 1 de agosto de 1949: 6)

“Aluguel de sótão a rapaz na Dionísio Martins antiga Ladeira da Preguiça] nº 24, Sodré” (A Tarde, 1951: 6)

“Aluguel de sótão na Dionísio Martins, na Preguiça nº 30” (A Tarde, 1956: 6)

Na medida em que os cômodos eram alugados a gente pobre, os donos dos imóveis não se sentiam na obrigação de dar a devida manutenção aos mesmos. O jornal A Manhã, no ano de 1920, fez uma clara denúncia deste inescrupuloso negócio feito pelos proprietários:

CASTIGO PARA OS PROPRIETÁRIOS EXPLORADORES - A CLASSE POBRE JÁ NÃO TEM ONDE MORAR. Quem se der ao trabalho de percorrer um dia os bairros mais esconsos, onde mora a pobreza, há de ficar horrorizado com tanta miséria. O fato que mais nos tem chamado a atenção é a falta de habitação, juntamente com as explorações sem nome dos proprietários. (...) Na Ladeira da Preguiça e imediações descobrimos velhos casarões, habitados por dezenas de pessoas de todas as qualidades. Em um desses, o socavão embaixo da escada também estava alugado por quinze mil réis. Eram 15 horas, o sol queimava como fogo e a pobre mulher habitante de esconderijo, para enxergar, tinha, aceso, um lampião. Aquilo era o cúmulo. A porta da entrada era menor que a mulher e quando lhe indagamos do modo porque se introduzia ali, quis ela então que presenciássemos. Curvou-se um pouco, entrou, subiu fazendo este exercício por diversas vezes, bastante resignada, limitando-se a dizer que estava acostumada e não mais estranhava sua casa. É preciso, porém, que se não consintam essas habitações. A Higiene Municipal deve intervir, a fim de evitar estas extrapolações dos proprietários, que não têm consciência. A maioria destas habitações miasmáticas são alugadas sem o prévio exame, sem necessária verificação da Saúde Pública. Há, portanto, além de tudo, a infração aos regulamentos que regem a espécie, para a qual desde já chamamos a atenção do sr. Diretor de Saúde Pública. (A Manhã, 1920: 2)

Na Gameleira, em finais do século XX, esses velhos prédios não aguentaram seu uso intensivo sem as necessárias reformas estruturais e foram ruindo com os incêndios, desmoronando com as chuvas ou foram fechados após o desalojamento de seus locatários devido a suas vendas. Entretanto, vale a pena frisar que as ruínas começaram a formar parte da paisagem da Preguiça desde finais do século XIX, como podemos ver na seguinte denúncia feita no Jornal de Notícias, em 1892:

Para a carta seguinte, que fazemos nossa, chamamos a atenção do Conselho Municipal: Ao cidadão Lellis Piedade. - Alguns moradores da Preguiça pedem-vos que chameis a atenção da intendência para umas ruínas que existem no começo da ladeira da Preguiça, defronte da Serraria Valença Industrial, das quais tem desabado grande parte, com bastante risco aos transeuntes. Ainda hoje, às 2 ou 3 horas da tarde, desabou uma parede das ditas ruínas, lançando ao meio da rua grandes pedras, as quais, felizmente, não ofenderam a ninguém. Junto a essas ruínas existe também um sobrado de dois andares, n. 4 a-b, cujas paredes estão fendidas, ameaçando desabar, se não houver providências. As pessoas que nele moravam acabam de mudar-se, receosas de que pudessem ser vítimas da incúria do seu proprietário. Assim, pois, fareis um benefício aos habitantes dessas imediações e ao público se exigirdes providências. - Muitos habitantes da Preguiça. (Jornal de Notícias, 1892a: 4)

Ruínas e cortiços fazem parte do mesmo tempo de abandono da Preguiça, uma configuração socioespacial que se iniciou a partir do momento em que as ladeiras deixaram de ser espaço central da cidade. Com efeito, até a década de 1870, como vimos na seção anterior, as ladeiras que uniam a Cidade Baixa e a Cidade Alta eram muito percorridas, por todos, alguns levados em cadeiras de arruar, carregadas por escravos, e outros andando com seus próprios pés, mas todos no ritmo lento da tração humana, pois as ladeiras eram tão íngremes e tão mal calçadas que a tração animal era praticamente inviável. Esta situação, que perdurou durante quase quatro séculos foi modificada a partir de 1862, com o aparecimento na cidade das novas formas de transporte: as primeiras gôndolas (vagões) com molas puxadas por 4 animais, fazendo o percurso da Calçada ao Bonfim (Nascimento, 2007NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. 2007. Dez freguesias da cidade do Salvador. Aspectos sociais e urbanos do século XIX. Salvador, Edufba.); em 1870, foram implantados os bondes puxados a burros para os trechos da Cidade Baixa, Graça-Piedade-São Bento e Campo Grande-Rio Vermelho; em 1873, foi inaugurado o Elevador Lacerda, que permitiu, em poucos minutos, subir a encosta de 80 metros; por fim, em 1878 foi aberta ao público a Ladeira da Montanha, primeira ladeira ampla e transitável por veículos. O resultado destes novos caminhos e meios de transporte ligando a Cidade Baixa e a Alta foi a diminuição do uso das ladeiras, que passaram a ser utilizadas por menos pessoas e de forma menos intensa.

A decadência das ladeiras enquanto artérias fundamentais da cidade coincide com o período das reformas urbanas que embelezaram, modernizaram, iluminaram e calçaram uma parte da cidade, em detrimento das outras. As obras realizadas entre 1860 e 1910 não deixam dúvidas sobre os eixos escolhidos pelo poder público para intervir em apenas fragmentos da cidade, deixando grande parte dela à margem da “modernidade” e do novo: na década de 1860, foi realizado o calçamento em paralelepípedo do Largo da Ajuda, Rua Direta do Palácio, Praça do Palácio e Largo do Teatro. Na década seguinte, colocaram-se latrinas inglesas no Palácio do Governo e no Teatro Público, remodelou-se a Praça do Palácio (muralha, estátuas), o Largo do Teatro e o Largo da Ajuda (gradil e bancos). Em 1903, instalaram-se lâmpadas à eletricidade no Palácio, Rua Chile, Praça Castro Alves e São Bento (Pinheiro, 2011PINHEIRO, Eloísa Petti. 2011. “Intervenções na Freguesia da Sé 1850-1920”. In: GAMA, Hugo; NASCIMENTO, Jaime (org.). A urbanização de Salvador em três tempos. Colônia, Império e República. Textos críticos de história urbana. Vol. I. Salvador, Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, pp. 131-173.). Em 1917, foi inaugurada a moderna e ampla Avenida Sete de Setembro, que ligou o centro à Vitória.

Enquanto o eixo vizinho Praça Municipal-Largo do Teatro-Rua Chile recebia as atenções do poder público, a Preguiça ficou de fora, opaca, abandonada em seus buracos, cheiros e sujeiras. Não se pense que o que antes fora cuidado passou a ser descuidado: a escassa urbanização da Preguiça já era denunciada em 1838, conforme podemos ler na seguinte queixa realizada pelo Correio Mercantil.

De novo pedimos à nossa Câmara Municipal queira lançar suas vistas para a ladeira da Preguiça quase intransitável, cheia de profundas covas, em que talvez sejam sepultados em vida, os que por ella passão, se cada qual não andar (mormente à noite) com os olhos bem abertos. Também que he feito da nossa, outrora, sofrível iluminação? Até nisso os diabólicos republiqueiros se mostrarão inimigos da civilização! Mas que?… As trevas somente poderão servir a tais monstros para a perpetração dos seus infames crimes! (Correio Mercantil, 1838: 3)

A nova configuração hegemônica que se impôs desde a segunda metade do século XIX fragmentou Salvador em espaços homogêneos. Quando apenas algumas partes da cidade passaram a concentrar os esforços e verbas para reformas enquanto outras ficaram à margem delas, surgiram espaços heterogêneos entre si (reformados e não reformados) e homogêneos internamente (setores privilegiados ou setores pobres). Na década de 1890, encontramos as seguintes queixas que provam que a Preguiça era toda uma área desatendida:

Pedem-nos para chamarmos a atenção do Conselho Municipal para o péssimo estado em que se acha a ladeira da Preguiça, que está quase a tornar-se intransitável, por se achar completamente esboroada. (Jornal de Notícias, 1892b: 1)

A ladeira da Preguiça, em certas horas do dia, transforma-se em uma montureira, cujas exalações mefíticas são um atentado à saúde dos moradores. (Jornal de Notícias, 1892c: 1)

A centralidade da Preguiça sofre, por fim, um outro golpe fatal com a transformação do espaço portuário de Salvador nas primeiras décadas do século XX. Durante quatro séculos, “portos naturais” atenderam às demandas locais, nacionais e internacionais do comércio da cidade (Rosado, 2016ROSADO, Rita de Cássia Santana de Carvalho. 2016. “A modernização do porto de Salvador na Primeira República (1891-1930)”. In: VELASCO E CRUZ, Maria Cecília; LEAL, Maria das Graças Andrade; PINHO, José Ricardo Moreno. Histórias e espaços portuários. Salvador e outros portos. Salvador, Edufba. pp. 159-198.: 161). A área portuária se estendia desde a Gamboa até Itapagipe e consistia num “mosaico de cais e pontos de atracação” (Cunha, 2016CUNHA, Joaci de Sousa. 2016. “O porto de Salvador e suas interfaces com a economia e a política na Primeira República (1900-1930)”. In: VELASCO E CRUZ, Maria Cecília; LEAL, Maria das Graças Andrade; PINHO, José Ricardo Moreno. Histórias e espaços portuários. Salvador e outros portos. Salvador, Edufba, pp. 199-241.: 200), administrados fragmentariamente por particulares (Leal, 2016LEAL, Maria das Graças de Andrade. 2016. “O trapiche Barnabé no contexto portuário da Salvador do século XVIII ao XX”. In: VELASCO e CRUZ, Maria Cecília, LEAL; Maria das Graças Andrade; PINHO, José Ricardo Moreno. Histórias e espaços portuários. Salvador e outros portos. Salvador, Edufba, pp. 77-121.: 115). Contudo, os sucessivos aterros e a necessidade de “modernizar” o porto devido a suas estruturas consideradas obsoletas levaram, a partir de 1906, à construção de um novo espaço portuário (com capital francês), caracterizado pela sua centralização física e administrativa. A vitalidade comercial ao longo de toda a Cidade Baixa, advinda dos inúmeros cais, portos e trapiches que conformavam o espaço portuário descentralizado, passou a se concentrar, a partir desse momento, numa área longe da Preguiça. Sem o cais dos religiosos de São Felipe Néri, sem o porto da Preguiça, sem a pequena rampa e a feira de peixe, esta área perdeu a centralidade advinda do movimento comercial promovido pelo comércio marítimo, que a caracterizara durante séculos.

Opaca, desatendida, esquecida pelos proprietários de imóveis e cheia de cortiços, a Preguiça se tornou espaço propício para a instalação de atividades consideradas marginais. Prostíbulos - chamados de bregas - se aglomeraram na Gameleira ao longo de todo o século XX. Várias gerações de moradores da Preguiça conviveram com os “bregas”, “castelos” e “boites” desse trecho da área.12 12 Segundo Seu Guiga, chamava-se “castelos” aos estabelecimentos que além de aglomerar prostitutas, também alugavam quartos; já os “bregas” eram locais onde as prostitutas ofereciam seus serviços e as “boites”, lugares onde se dançava. Seu Guiga enfatiza que em seu tempo, nos anos 1960, havia bregas mais pudicos do que outros: “Havia o número 9 de Dona Candinha, que era muito religiosa e exigia ‘só feijão com arroz’. Já Dona Mariá, do número 2, deixava. No número 19a, ‘valia tudo’. Havia o número 11, do lado, de Dona Mariá. Em baixo, tinha o 49 e o 50”. Na época de Gabriel, na década de 1980, havia 6 bregas da Gameleira. Em finais da década de 1990, informa-nos Claudine, eram 4 bregas e 1 castelo. Segundo Suzany, o último castelo na Gameleira foi o de Dona Marinalva (cf. Figura 14).13 13 Claudine é “nascida e criada na Preguiça”, mais especificamente na Rocinha dos Marinheiros. Como filha e neta de moradoras da Preguiça, ela e sua irmã conhecida como Biscoito são a terceira geração de uma família que permanece no local. Claudine morou em um dos cortiços da Gameleira, que hoje não existem mais.

Figura 14
Croqui que reconstrói o que era a Gameleira na década de 1990, com prédios em pé onde hoje só há ruínas e terrenos vazios.

Dessas atividades marginalizadas restam, hoje, apenas ruínas e terrenos vazios que passaram a abrigar outra atividade igualmente marginalizada: o consumo de crack.

Assim, desde as últimas décadas do século XIX, a perda da função central das ladeiras, o desaparecimento do pequeno porto que movimentava a área e o abandono do poder público, aliados ao envelhecimento dos edifícios, promoveram a homogeneidade social dos moradores da Preguiça - só pobres - e um uso coletivo dos prédios - encortiçamento - que facilitaram a instalação, em uma parte dela, de uma zona de prostituição, que acabou estigmatizando ainda mais a área. O resultado foi décadas de um fechamento imposto pela cidade: só entrava na Preguiça quem ali morasse ou conhecesse muito bem a região. Um fechamento que possibilitou a instalação de um “território psicotrópico”14 14 O antropólogo José Luís Lopes Fernandes (1997: 13) caracterizou o território psicotrópico como o “mundo de grupos que se expõem pouco, que se resguardam, pela própria condição criminalizada do comportamento que adoptam; mundo de esquinas e de contatos e encontros breves, realizados nos interstícios de espaço e de tempo da cidade - lado clandestino da urbe”. que terminou de consagrar a área da Preguiça como um “espaço marginal”, definido por José Luís Fernandes (1997: 318)FERNANDES, José Luís Lopes. 1997. Territórios psicotrópicos. Etnografia das drogas numa periferia urbana. Porto, Tese de Doutorado. Universidade do Porto. da seguinte maneira:

[...] marginal topologicamente e pelos comportamentos possíveis de encontrar nesse lugar. O marginal não diz aqui respeito ao desestruturado, ao anômico, ao inseguro. Diz respeito mais àquilo que Goffman chama de bastidores e a que nós já havíamos chamado traseiras da cidade: espaços de invisibilidade, retirados, sem transparência

À margem da centralidade, estigmatizada como espaço perigoso, evitada pela grande maioria dos habitantes da cidade, os moradores da Preguiça chegaram ao ponto de sentir vergonha de dizer onde residiam, evitando dar seu endereço quando da procura de um emprego, sob risco de serem considerados “marginais”.

TEMPO DE VISIBILIDADE E ABERTURA, DE FACHADAS PINTADAS E GRANDES EVENTOS

Todavia, a paisagem da Preguiça não se compõe apenas de ruínas e terrenos vazios. Constitui-se igualmente de fachadas coloridas, fruto de trabalho árduo de mobilização e pintura realizado pelo Centro Cultural Que Ladeira É Essa? A meu ver, esta outra paisagem fala-nos de um novo tempo ou, para ser mais precisa, da emergência ou afloramento de um tempo que fora avassaladoramente esmagado desde meados do século XIX, porém, não extinto.

O Centro Cultural Que Ladeira É Essa? nasceu em 2013, após Marcelo Teles15 15 Marcelo Teles é um jovem de 35 anos, poeta e ativista do movimento negro, “nascido e criado na Ladeira da Preguiça”. Até os 16 anos morou com seus pais adotivos em um quarto de um cortiço da Preguiça. Foi frequentador de seus “bregas” e admirador do ambiente que neles se desenvolvia: “o ambiente não era um ambiente de sexo, era um ambiente de encontro!”. É fundador do Centro Cultural e um de seus membros mais conhecidos e ativos. Para além da ação interna na Preguiça, ele tenta, por meio de diversos contatos, alianças e parcerias, conectar a comunidade a instituições, empresas e agências que possam oferecer o que ela precisa: insumos, capital, patrocínio, informação, reportagens etc. , um de seus fundadores, frequentar o Movimento Nosso Bairro é 2 de Julho. Segundo sua própria avaliação, até aquele momento ele não tinha nenhuma formação política, por isso, ficou impressionado com as falas e as análises que se formulavam naquele Movimento. Nosso Bairro é o 2 de Julho foi e é uma reação da população do bairro, vizinho da Preguiça, ao planos efetuados em 2007 por duas empresas do mercado imobiliário - Eurofort Patrimonial e RFM Participações -, que delimitaram 15 hectares do bairro nos quais desenvolveriam o Projeto Cluster Santa Tereza, uma área especializada em serviços hoteleiros, escritórios, gastronomia e lofts. Até 2014, as diversas empresas inseridas no Projeto Cluster Santa Tereza tinham adquirido 50 imóveis e alguns empreendimentos já haviam sido comercializados (Mourad et al, 2014MOURAD, Laila Nazem; FIGUEIREDO, Glória Cecília; BALTRUSIS, Nelson. 2014. “Gentrificação no Bairro 2 de Julho, em Salvador: modos, formas e conteúdos”. Cadernos Metrópole., vol. 16, n.32: 437460. DOI 10.1590/2236-9996.2014-3207
https://doi.org/10.1590/2236-9996.2014-3...
).

Inspirado pela reação à gentrificação do bairro 2 de Julho, pela compra de diversos imóveis na Preguiça por parte de especuladores imobiliários e pela consciência da possibilidade de perder a praia da Preguiça como consequência da expansão ainda maior da Bahia Marina, os amigos “07”, Tinho, Bilu, Péricles e Marcelo decidiram alugar um espaço na Ladeira e fundar o Centro Cultural, inicialmente pensado como Biblioteca. Em 2013, “a ideia inicial era construir uma biblioteca”, diz Teles, que pediu a Júlio Costa - do Museu de Street Art de Salvador/MUSAS - “que visitasse a comunidade e pintasse a fachada da casa onde seria a biblioteca (onde funciona, hoje, a sede do projeto). A aceitação foi tamanha que Teles decidiu levar a arte para as casas e estabelecimentos da rua” (Silveira, 2015SILVEIRA, Ludmila. 2015. “Arte popular revitaliza a Ladeira da Preguiça. A Tarde, 26/02/2015. Disponível em: https://atarde.uol.com.br/bahia/noticias/1662854-arte-popular-revitaliza-aladeira-da-preguica, acesso em 17/09/2020.
https://atarde.uol.com.br/bahia/noticias...
). Desde sua fundação até os dias de hoje, a estética, a aparência e a visibilidade são estratégias de ação do Centro Cultural: trata-se de romper com a imagem degradada da Preguiça e evitar seu esvaziamento e abandono, chamando a atenção da cidade com as fachadas coloridas e os grafites.

Figura 15
A mudança do visual das casas envelhecidas mediante as pinturas coloridas realizadas pelos moradores, motivados pela iniciativa do Centro Cultural

Em contraste com as estratégias de luta de outros coletivos do CHS (tais como o Movimento Sem Teto da Bahia/MSTB, Associação Amigos de Gegê dos Moradores da Gamboa de Baixo e Associação de Moradores e Amigos do Centro Histórico/AMACH), a Preguiça optou pela linguagem da arte e pelas cores. O visual ganhou uma preponderância normalmente conferida ao discurso politizado, subvertendo, assim, a miséria discreta que se espera dos pobres colocados à margem. Nada menos discreto do que as cores e chamativos grafites que enchem a Preguiça, desde 2013 até os dias de hoje.

Figura 16
Registros do trabalho coletivo de pintar e grafitar

Numa conversa que tivemos com Marcelo, os tempos que inicialmente eu percebera nas paisagens da Preguiça e num evento adquiriram finalmente denominação precisa. O artista e ativista nos contava sobre os momentos pelos quais passou o Centro Cultural Que Ladeira É Essa, qualificando a primeira fase de “fechada, para dentro”. Ele referia-se a um período sem alianças, de ações locais feitas por eles mesmos e para eles (como as aulas gratuitas de jiu-jítsu, judô, capoeira, teatro, percussão e pré-vestibular), que, em sua avaliação, serviram para criar uma visão política sobre a área e a cidade. No momento atual, dizia Marcelo, o Centro vivia outra fase, de “abertura”, para atingir o “empoderamento financeiro da comunidade16 16 A estratégia de luta do Centro Cultural Que Ladeira é Essa? não se restringe, evidentemente, à consecução do “empoderamento financeiro”. Ela é diversificada. A meu ver, cada estratégia atende a objetivos específicos definidos para atingir segmentos diferenciados. Em busca do “empoderamento econômico” o Centro Cultural se abre a parcerias com grandes empresas midiáticas, indústria cultural ou fabricantes de tintas ou cerveja. Para o que poderíamos chamar de “empoderamento da autoimagem”, o Centro amplia seu raio de ação para além da Preguiça, conclamando a participação de jovens negros e lideranças de diversos movimentos populares. Nesta linha, ele promove eventos como o “Defesa Quilombola”, que reúne periodicamente jovens negros para a discussão de temas tais como racismo, movimento negro, emancipação, direitos etc. Ainda nessa linha de atuação, Marcelo Teles e Nilma Santos lançaram em fevereiro de 2021 o primeiro número da Revista AglomeraDores, que “aquilomba experiências dos quatro cantos de Salvador”. A revista procura formar opinião entre leitores de territórios populares da cidade, chamando sua atenção para a discussão das transformações urbanas e seus impactos nas comunidades. Não é casualidade o uso da palavra quilombo tanto no evento “Defesa Quilombola” quanto na descrição da revista feita pelo seu idealizador Marcelo Teles. Com efeito, o “aquilombamento” é parte importante da estratégia do Centro Cultural e de outras organizações populares semelhantes. Trata-se de um conceito que procura amalgamar as práticas territoriais à luta racial. Assim, aquilombar-se é lutar pela produção de um território desde e a partir de experiências de organização e intervenção social protagonizadas pela população negra. Devido à importância e complexidade do assunto, reservo a discussão deste conceito e suas práticas na Preguiça para um outro artigo. , atraindo o público cult, elitizado, para a Preguiça, para nela injetar dinheiro mediante grandes eventos. As 15.000 pessoas que participaram do Banho de Mar à Fantasia de 2019 injetaram, segundo os cálculos de Marcelo, R$ 1500000,00 reais na comunidade. Após essa experiência, no mesmo ano, fizeram um outro grande evento, o São João Antecipado da Preguiça.

O Banho de Mar à Fantasia é uma tradição que, segundo Seu Guiga, começou na década de 1930. Era uma festa pré-carnavalesca, daí as fantasias. Contava com uma rainha, carroça e batucada com estandarte. Devido às limitações financeiras, as pessoas faziam suas fantasias com papel crepon e os gastos eram pagos com doações, contribuições e rifas, devidamente registradas num livro de ouro. Entre 1993 e 2012 a tradição não foi mantida; foi esse precisamente o período de surgimento e vertiginoso crescimento do crack no centro de Salvador, assim como da criminalização e feroz estigmatização de seus usuários como “zumbis” violentos (Malheiro, 2013MALHEIRO, Luana Silva Bastos 2013. “Entre sacizeiro, usuário e patrão: Um estudo etnográfico sobre consumidores de crack no Centro Histórico de Salvador”. In: MACRAE, Edward, TAVARES, Luís Antônio, NUÑEZ, Maria Eugênia (orgs.). Crack: contextos, padrões e propósitos de uso. Salvador, Editora UFBA, Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas, pp. 223-314; Alves, 2015ALVES, Ygor Diego Delgado. 2015. Jamais fomos zumbis: contexto social e craqueiros na cidade de São Paulo. Salvador (BA), Tese de doutoramento, Universidade Federal da Bahia.). Em 2013, por iniciativa do Centro Cultural, a tradição foi recuperada e o evento, que costumava agregar 200 pessoas, conseguiu atingir o número de 800 pessoas em 2018 e 15.000 em 2019. Esse número foi alcançado graças às muitas alianças e parcerias desenvolvidas e, principalmente, em razão do patrocínio de uma importante marca nacional de cerveja, responsável por pagar o grupo de músicos que fez o cortejo e os cantores e bandas que se apresentaram no palco montado na praia da Preguiça. Estas parcerias e patrocínios fazem parte da nova estratégia de abertura, de alianças, do Centro Cultural (cf. Figura 17).

Figura 17
Banners que mostram a organização e parcerias diversas da edição 2019 do Banho de Mar à Fantasia, da Preguiça

Nesse mesmo ano, 2019, Marcelo abriu um bar/restaurante e espaço cultural chamado Mirante Tropical da Ladeira, com uma programação variada que incluía apresentações de samba, desfile negro, roda de conversa, transmissão de jogos de futebol do campeonato brasileiro etc. O músico e compositor Guiga de Oxum também pensava em abrir um espaço semelhante. Estas inciativas revelam uma vontade de (re) inserir e (re)integrar a Preguiça à cidade.

Para aqueles que conhecem o que a Preguiça foi até o século XIX, a atual estratégia de abertura nada mais é do que uma reabertura após um longo período de fechamento. O tempo da abertura, esmagado pela espacialidade própria do século XX, reemerge das cinzas no século XXI. Volta, não por inércia ou destino, mas pela luta pelo direito à cidade de seus moradores. Com receio de serem expulsos de suas casas e do bairro onde nasceram e foram criadas várias gerações de famílias, os moradores reagem ao fato de 1/3 dos imóveis da área estarem desabitados! Com efeito, dos 53 imóveis existentes, 10 estão em ruínas, 7 fechados e apenas 1 imóvel está disponível para locação (Montoya Uriarte et al., 2020MONTOYA URIARTE. 2020. BARRETO, Natália; CARIA, Luisa; NOVAES, Marina; PRUDENTE, Artur, O Censo da Gente e para a Gente. Dados socioeconômicos da Comunidade da Preguiça. Disponível em: https://www.panoramasurbanos.com.br/censo-preguica
https://www.panoramasurbanos.com.br/cens...
). A especulação imobiliária é clara: os proprietários dos 10 imóveis em ruínas e dos 7 imóveis fechados aguardam, há anos, momentos economicamente mais “favoráveis” para sua construção ou comercialização. Diante dessa situação e da ameaça iminente dela se intensificar, os moradores se organizam chamando a atenção da cidade para a sua comunidade, convidando todos a visitá-la, convertendo-a em centro colorido e carnavalesco.

À GUISA DE CONCLUSÃO: SOBRE A ORDEM ESPACIAL DE LONGA DURAÇÃO

Nesta parte final, peço licença para especular sobre a existência, na Preguiça, de um tempo longo no sentido braudeliano, uma estrutura urbana subjacente, caracterizada pela abertura, integração, usos mistos e diversidade social. Acho que esse tempo, como qualquer outro, não foi superado. Longe de ter desaparecido, apesar das fortes investidas contra ele, esse tempo longo reaparece, graças às fendas ou contradições do próprio sistema capitalista que se sobrepôs a ele.

Como vimos nestas páginas, essa estrutura foi formada ao longo de quase quatro séculos, nos quais a ordem urbana vigente na cidade de Salvador não se fundou na distância espacial entre classes e raças, mas, ao contrário, na proximidade, contiguidade, aproximação entre diferentes. As diferenças não deixavam por isso de existir ou ser fortes. Como sustentado por Pierre Bourdieu (2015: 158)BOURDIEU, Pierre. 2015. A distinção. Crítica social do julgamento. Porto Alegre, Zouk., a ordem social é sempre um “conjunto de distâncias, diferenças, posições, procedências, prioridades, exclusividades, distinções [...]”. Em Sobrados e mucambos, Gilberto Freyre (2004)FREYRE, Gilberto. 2004. Sobrados e mucambos. Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo, Global. descreveu de forma brilhante em que consistiam as diferenças, distinções ou “insígnias de classe” na ordem patriarcal colonial brasileira. Estas “insígnias” nada tinham a ver com o local de moradia de quem as portava. Evidenciava-se “quem era quem” por meio de distinções tais como a superornamentação ou simplicidade do homem, as mãos calejadas ou com unhas crescidas, o pé calçado ou pé-rapado, o material “nobre” ou não das casas (se pedra e cal ou adobe), o cheiro de sabão ou “de negro e pobre [...]. A tal ponto que, no meado do século XIX, grande parte das fábricas do Império eram de sabão” (Freyre, 2004FREYRE, Gilberto. 2004. Sobrados e mucambos. Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo, Global.: 314), a espécie de peixe que se consumia (cavala e pescada nos sobrados e espada e bagre nos mucambos), o tipo de madeira dos móveis domésticos (as casas nobres tinham móveis de jacarandá), o que se fumava (se “fumo de negro” ou charuto), o exemplar de leito e de sepultura, o modelo de chapéu usado (se de palha ou cartola), as maneiras de sentar-se, de divertir-se e os trajes: “o trajo [...] acusava mais visível e pitorescamente que outros estilos de cultura as diferenças de classe, de raça e de região entre os brasileiros” (ibid: 507).

Uns usavam sobrecasaca, cartola e botinas, outros, camisa fora das calças, chapéus de palha e alpercatas. Mas estavam todos na mesma cidade, nos mesmos espaços. O que estou afirmando é que a existência de uma espacialidade que podemos chamar de próxima não implica na existência de uma ordem social justa ou numa democracia racial. As diferenças não deixam de existir, longe disso, mas elas não implicam numa cidade fundada na separação, segregação, oposição, afastamento de qualquer contato com a alteridade. Na última página da conclusão de O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II, Fernand Braudel (1984: 625)BRAUDEL, Fernand. 1984. O Mediterrâneo e o Mundo mediterrânico na época de Filipe II. Vol. 2. Lisboa, Martins Fontes. escreveu, “Na análise histórica, tal como a vejo - assumindo a inteira responsabilidade - é sempre o tempo longo que acaba por vencer”. A abertura, a integração, a aproximação entre espaços da cidade proposta pela atual estratégia do Centro Cultural Que Ladeira É Essa? deve ser lida, de fato, como reabertura, reintegração, reaproximação. Como o tempo longo, espesso, lento, como estruturas “que se mantem de facto, para lá das tempestades do tempo ou - se se quiser usar a terminologia de Toynbee - para lá dos ‘saltos e dos recuos’” (Braudel, 1986BRAUDEL, Fernand. 1986. História e Ciências sociais. Lisboa, Presença, 5ª ed.: 123).

A atual segregação, que parece velha, poderia não ser mais do que um “salto ou recuo”? Vimos que se trata de um tipo de distância ou diferença (espacial) que aparece em finais do século XIX e se consolida no século XX, até os dias de hoje. Que se tornou possível a partir do momento em que os meios de transporte permitiram o crescimento físico da cidade, conjuntura que coincide com a forte presença dos europeus, principalmente dos ingleses, em Salvador, que trouxeram com eles uma forma de habitar até então desconhecida na cidade e que seduziu as elites locais. O que hoje se denomina CHS foi deixado para trás por essas elites e os gestores da cidade passaram a se ocupar do novo vetor de expansão que ia da Rua Chile até o Corredor da Vitória.

As obras em certos espaços da cidade e não em outros conferiu modernidade e nobreza a alguns e arcaísmo e abandono a outros. Vizinha de poucos metros da rua Chile, a Preguiça não foi calçada, não foi iluminada, não foi reformada. A nova ordem urbana a marginalizou em pleno centro da cidade, a estigmatizou pelas suas atividades e pobreza e acabou colocando barreiras simbólicas em suas entradas. A Preguiça foi fechada. Nas margens, desenvolveu, no entanto, um forte senso de comunidade, um estreitamento de laços entre os moradores que lhe permitiu criar e reproduzir tradições próprias, “locais”, que, hoje, pela espacialidade capitalista - que é contra toda diferença e tudo o que difere, e, ao mesmo tempo, se nutre das diferenças absorvendo-as (Lefebvre, 2000LEFEBVRE, Henri. 2000. La production de l´espace. Paris, Anthropos.: 429) -, passam a ser valorizadas pela classe média e pelas elites.

Na perspectiva da longa duração, a abertura que o Centro Cultural Que Ladeira É Essa? propõe a partir de 2019 pode ser entendida como a emersão de uma espacialidade anterior, que foi abafada por uma outra, condizente com um modo de produção emergente. Esta emersão deve ser dialeticamente entendida: são as contradições do próprio sistema capitalista que permitem sua contestação ou transformação. Nas palavras de Henri Lefebvre (2000: 76)LEFEBVRE, Henri. 2000. La production de l´espace. Paris, Anthropos.,

[...] a burguesia e o capitalismo têm dificuldades de dominar seu produto e seu meio de dominação: o espaço. Não podem reduzir a prática a seu espaço abstrato. Contradições novas, as do espaço, aparecem e se manifestam. O caos espacial engendrado pelo capitalismo, apesar do poder e racionalidade do Estado, não se tornaria seu lado fraco, seu corpo vulnerável? (tradução nossa)

Mas, além de uma estratégia urbana, ela é igualmente uma estratégia econômica daqueles que não têm “o poder de colocar a necessidade econômica à distância” (Bourdieu, 2015BOURDIEU, Pierre. 2015. A distinção. Crítica social do julgamento. Porto Alegre, Zouk.: 55). Propondo um projeto de “empoderamento financeiro” para a comunidade o Centro Cultural Que Ladeira É Essa? demonstra uma absoluta clareza tanto dos desejos de consumo da classe média soteropolitana (ávidas de festas “diferentes”) quanto da necessidade dos moradores de sobreviverem, porém, sem perder as raízes, as tradições e o discurso de militância. Daí a extrema positividade da avaliação que os moradores da área da Preguiça fazem do evento Banho de Mar à Fantasia: “a Preguiça deu show!”, “Foi um sucesso!”, “Foi tudo de bom!” “A Preguiça evoluiu. Cresceu e valorizou a rua”, “Foi nota mil”. Por um lado, ficaram felizes com o dinheiro que muitos moradores ganharam com o evento, na condição de vendedores de cerveja ou comida. Por outro, igualmente satisfeitos com o lugar de destaque que sua pequena área ganhou naquele domingo, com o fato de terem sido centrais naquele dia, de terem saído das penumbras, terem aberto as portas impostas. Acredita-se em um novo tempo, que, como vimos, não é tão novo assim.

  • 1
    O CHS é uma poligonal cujos limites foram fixados em 1984 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), abarcando uma área de menos de 1 km2.
  • 2
    A pesquisa etnográfica conta com o auxílio da aluna de Direito e bolsista de Iniciação Científica da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Natália Barreto. Desenvolvese desde fevereiro de 2019 e conta com o auxílio de uma bolsa de pesquisa da Chamada Universal, do CNPq. A recepção dos moradores da Preguiça à nossa presença e perguntas vem sendo muito generosa, devido ao fato da pesquisa ter sido apresentada à comunidade em reunião convocada pelo Centro Cultural Que Ladeira É Essa? Neste artigo, mantemos os nomes reais das pessoas e suas falas são destacadas em itálico.
  • 3
    As fontes consultadas foram: 1) Matérias jornalísticas ao longo do século XX sobre a Ladeira da Preguiça, arquivadas na Fundação Gregório de Mattos e no Centro de Documentação do jornal A Tarde (CEDOC); 2) Matérias sobre a Preguiça contidas nos periódicos baianos do século XIX, disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional; 3) Pesquisa nos Registros eclesiásticos de batismo, casamento e óbito da Freguesia de Nossa Conceição da Praia, no período de 1815 a 1835 (quando os registros foram feitos pelo pároco Manoel Dendê Bus). Sou grata aos historiadores João Reis e Iraneidson Santos Costa por me sugerirem a pesquisa de algumas destas fontes e seu local de consulta.
  • 4
    Gabriel Silva se define “como dizem, a força de expressão, nascido e criado na Ladeira da Preguiça”. Massoterapeuta, mecânico Diesel, radiocomunicador e sambista, Gabriel viveu sua adolescência na efervescência cultural da Preguiça dos anos 1970, entre o Banho de Mar à Fantasia, os blocos de carnaval (“o CCCC, Clube Carnavalesco Caídos Do Céu, tínhamos também o bloco As Mergulhas, que era um bloco travestido, na época, como se fosse uma concorrente, do bloco As Muquiranas, que também nasceram, daqui, aqui na Ladeira da Preguiça, que por sua vez, só eram dissidentes do bloco As Negas Malucas...”), os “bregas” da Gameleira e as bandas de música com os amigos. É um dos fundadores do Centro Cultural Que Ladeira é Essa?
    Gumercindo Vieira Santos, seu Guiga de Ogun, nasceu em 1942. É um funcionário aposentado, conversador e alegre. Era e continua sendo poeta, compositor e cantor. Suas músicas e sua fama são motivo de orgulho para os moradores da Ladeira. Chegou à Preguiça com 15 anos e, desde então, não saiu mais, tornando-se hoje a figura mais importante da memória oral da Preguiça.
    Zenaide Marques é uma pernambucana de 52 anos, que saiu de Jacobina aos 17, “atrás do irmão que morava no Pelourinho”. Ficou 20 anos morando na vizinha Ladeira da Praça. Embora tenha apenas 10 anos na Preguiça, é uma moradora muito querida, participante animada das atividades promovidas pelo Centro Cultural Que Ladeira é Essa? É diarista e complementa sua renda vendendo comida (maravilhosa!), que serve na sala de sua pequena casa.
  • 5
    O CAS é uma denominação mais recente, criada a partir de 2007 pelo Governo do Estado da Bahia para a implementação de políticas públicas ligadas ao patrimônio. Ele abarca uma área de aproximadamente 7 km2 2 A pesquisa etnográfica conta com o auxílio da aluna de Direito e bolsista de Iniciação Científica da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Natália Barreto. Desenvolvese desde fevereiro de 2019 e conta com o auxílio de uma bolsa de pesquisa da Chamada Universal, do CNPq. A recepção dos moradores da Preguiça à nossa presença e perguntas vem sendo muito generosa, devido ao fato da pesquisa ter sido apresentada à comunidade em reunião convocada pelo Centro Cultural Que Ladeira É Essa? Neste artigo, mantemos os nomes reais das pessoas e suas falas são destacadas em itálico. e inclui os antigos distritos do Passo, Pilar, Sé, Santo Antônio, Conceição da Praia, Santana, São Pedro e Vitória.
  • 6
    A antropóloga Jeanne Favret-Saada (1977)FAVRET-SAADA, Jeanne. 1977. Les mots, la mort, les sorts. Paris, Gallimard. propôs entender o trabalho de campo etnográfico como sendo possível somente após o etnógrafo ter sido “afetado” pelo mundo ou sistema que pretendia entender. A expressão “ser afetado” deve ser entendida como o papel de ocupar um lugar no sistema pesquisado, um lugar que deve existir nesse sistema e deve ser concedido pelos nativos. No caso da pesquisa sobre a bruxaria de Jeanne Favret-Saada, ela passou a ocupar o lugar de “enfeitiçada”, concedido pelos envolvidos nesse sistema após estes se convencerem, por uma série de sinais perceptíveis somente por eles, que ela tinha sido “pega”.
  • 7
    O Beco da Califórnia é um beco em “L” que se localiza no meio da Ladeira da Preguiça e que conta com aproximadamente 14 edificações, das quais 3 são ruínas, e 1 terreno baldio. Como muitos outros becos do centro de Salvador (Montoya Uriarte, 2019MONTOYA URIARTE. 2019. Entra em beco, sai em beco. Formas de habitar o centro: Salvador e Lisboa. Salvador, Edufba.), ele apresenta grande movimento: um entra-e-sai de gente, vozes, crianças, músicas, bichos. Outra característica que partilha com os becos da área central é a presença nele de camelôs: de tarde e de noite, são ao menos cinco os moradores que colocam suas “guias” no beco, vendendo cigarro, pacaia (fumo para cigarro), cachaças, balas, salgadinhos e doces (pé de moleque, paçoca, pirulito). Já o Beco de Ruth é o nome como se conhece hoje o antigo Beco do Seminário. Ruth é “nascida e criada no beco”, filha e neta de mulheres (ambas lavadeiras) igualmente nascidas na Preguiça. É vendedora ambulante, na entrada do beco, isto é, numa das extremidades do corredor por onde se acede à 3 casinhas geminadas. A parte de baixo da Preguiça tem a denominação oficial de Dionísio Martins e hoje só tem o bar de Paulo e o “ferro velho”, nome dado ao depósito de material reciclável. Até os anos 1930 ou 1940, havia nesse local um pequeno estaleiro e porto onde desembarcavam mercadorias que vinham da Baía de Todos os Santos, assim como também uma rampa e uma feira de peixe.
  • 8
    Entendemos a gentrificação como o processo de transformação na composição social dos habitantes de uma localidade, de popular ou pobre para um bairro de classe média (Hamnett, 1997HAMNETT, Chris. 1997. “Les aveugles et l’éléphant: l’explication de la gentrification”. Strates, Matériaux pour la recherche en sciences sociales crises et mutations des territoires. n. 9: 1-27. DOI 10.4000/strates.611
    https://doi.org/10.4000/strates.611...
    ).
  • 9
    Em Salvador, chamam-se guias aos tabuleiros feitos de madeira improvisada sobre os quais se estendem mercadorias diversas. Esta acepção nada tem a ver com uma outra, que advém do Candomblé: “colar ritual de miçangas ou contas de vidro ou louça, da cor especial de cada orixá ou entidade” (Cacciatore, 1977CACCIATORE, Olga Gudolle. 1977. Dicionário de cultos afro-brasileiros: com origem das palavras. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2ª edição atualizada.: 133).
  • 10
    Jane é moradora da Preguiça, nascida na localidade vizinha do Sodré. Com seus 60 anos, já morou em diversos locais do centro, mas diz que “da Preguiça não saio”. Sustentase como vendedora ambulante fixa no centro. Mora sozinha e é comum vê-la na porta de sua casa. Faz parte do grupo grande de moradores que tratam os usuários humanamente, dignamente: trocam palavras, dão água, assistem como podem. Embora não seja uma integrante assídua, participa de algumas atividades do Centro Cultural Que Ladeira É Essa?
  • 11
    Embora não haja consenso entre os historiadores sobre este assunto, seguimos aqui a perspectiva de Richard Graham (2010)GRAHAM, Richard. 2010. Alimentar a cidade. Das vendedoras de rua à reforma liberal (Salvador 1780-1860). São Paulo, Companhia das Letras..
  • 12
    Segundo Seu Guiga, chamava-se “castelos” aos estabelecimentos que além de aglomerar prostitutas, também alugavam quartos; já os “bregas” eram locais onde as prostitutas ofereciam seus serviços e as “boites”, lugares onde se dançava.
  • 13
    Claudine é “nascida e criada na Preguiça”, mais especificamente na Rocinha dos Marinheiros. Como filha e neta de moradoras da Preguiça, ela e sua irmã conhecida como Biscoito são a terceira geração de uma família que permanece no local. Claudine morou em um dos cortiços da Gameleira, que hoje não existem mais.
  • 14
    O antropólogo José Luís Lopes Fernandes (1997: 13)FERNANDES, José Luís Lopes. 1997. Territórios psicotrópicos. Etnografia das drogas numa periferia urbana. Porto, Tese de Doutorado. Universidade do Porto. caracterizou o território psicotrópico como o “mundo de grupos que se expõem pouco, que se resguardam, pela própria condição criminalizada do comportamento que adoptam; mundo de esquinas e de contatos e encontros breves, realizados nos interstícios de espaço e de tempo da cidade - lado clandestino da urbe”.
  • 15
    Marcelo Teles é um jovem de 35 anos, poeta e ativista do movimento negro, “nascido e criado na Ladeira da Preguiça”. Até os 16 anos morou com seus pais adotivos em um quarto de um cortiço da Preguiça. Foi frequentador de seus “bregas” e admirador do ambiente que neles se desenvolvia: “o ambiente não era um ambiente de sexo, era um ambiente de encontro!”. É fundador do Centro Cultural e um de seus membros mais conhecidos e ativos. Para além da ação interna na Preguiça, ele tenta, por meio de diversos contatos, alianças e parcerias, conectar a comunidade a instituições, empresas e agências que possam oferecer o que ela precisa: insumos, capital, patrocínio, informação, reportagens etc.
  • 16
    A estratégia de luta do Centro Cultural Que Ladeira é Essa? não se restringe, evidentemente, à consecução do “empoderamento financeiro”. Ela é diversificada. A meu ver, cada estratégia atende a objetivos específicos definidos para atingir segmentos diferenciados. Em busca do “empoderamento econômico” o Centro Cultural se abre a parcerias com grandes empresas midiáticas, indústria cultural ou fabricantes de tintas ou cerveja. Para o que poderíamos chamar de “empoderamento da autoimagem”, o Centro amplia seu raio de ação para além da Preguiça, conclamando a participação de jovens negros e lideranças de diversos movimentos populares. Nesta linha, ele promove eventos como o “Defesa Quilombola”, que reúne periodicamente jovens negros para a discussão de temas tais como racismo, movimento negro, emancipação, direitos etc. Ainda nessa linha de atuação, Marcelo Teles e Nilma Santos lançaram em fevereiro de 2021 o primeiro número da Revista AglomeraDores, que “aquilomba experiências dos quatro cantos de Salvador”. A revista procura formar opinião entre leitores de territórios populares da cidade, chamando sua atenção para a discussão das transformações urbanas e seus impactos nas comunidades. Não é casualidade o uso da palavra quilombo tanto no evento “Defesa Quilombola” quanto na descrição da revista feita pelo seu idealizador Marcelo Teles. Com efeito, o “aquilombamento” é parte importante da estratégia do Centro Cultural e de outras organizações populares semelhantes. Trata-se de um conceito que procura amalgamar as práticas territoriais à luta racial. Assim, aquilombar-se é lutar pela produção de um território desde e a partir de experiências de organização e intervenção social protagonizadas pela população negra. Devido à importância e complexidade do assunto, reservo a discussão deste conceito e suas práticas na Preguiça para um outro artigo.
  • FINANCIAMENTO: Este artigo é um dos produtos da pesquisa O passado (n)o presente: a permanência da tradicional forma de habitar (n)o centro histórico de Salvador, financiada pelo CNPQ (Chamada Universal) no período 2019-2021.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2019
  • Aceito
    05 Ago 2021
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
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