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A produção das diferenças e da visibilidade: reflexões sobre música, corpo, política e saberes

Neste volume, a Revista de Antropologia reúne seis artigos em torno do dossiê “ReXistências musicais entre arte e política”, organizado por Rose Satiko Gitirana Hikiji, Vi Grunvald e Paula Guerra. Neste dossiê, todos os artigos trazem questões sobre música, performatividade e política, ao revelar contextos sociais em que o musicar é um ato político de resistência que viabiliza a construção de redes e comunidades imaginadas, e ainda permite visibilizar alternativas não hegemônicas de gênero, raça e sexualidade. Os artigos se debruçam sobre populações vulnerabilizadas e performances musicais e visuais questionadoras sobre os limites dos corpos e das tradições musicais num mundo digitalmente conectado.

No dossiê, focalizando um clipe musical do universo pop com o casal Beyoncé e Jay-Z, o artigo de Kaciano Gadelha (2022)GADELHA, Kaciano. O som da negridade em Apeshit. Revista de Antropologia , 65(2): e197958. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.197958
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, “O som da negridade em Apeshit” reflete sobre o formato que busca fazer uma releitura e uma nova interpretação da história da arte, dando destaque aos corpos negros que foram excluídos do cânone. Num imaginário futurista, o autor considera que as imagens invertem a abordagem racial hegemônica, produzindo um clipe político e questionador.

Vários artigos do dossiê trazem reflexões sobre os trabalhos musicais e as performances artísticas que questionam os limites da binariedade do gênero. O artigo de Vi Grunvald (2022)GRUNVALD, Vi. Terrorismos e pontes do musicar local: Linn da Quebrada e seu artivismo de resistência e desidentificação. Revista de Antropologia , 65(2): e201257. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.201257
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, “Terrorismos e pontes do musicar local: Linn da Quebrada e seu artivismo de resistência e desidentificação” se debruça sobre o artivismo de Linn da Quebrada, artista com crescente popularidade nos últimos tempos no Brasil. As canções e as performances musicais e visuais de Linn da Quebrada jogam com os limites do gênero, e a autora sugere que permitem a criação de novas esferas públicas éticas e estéticas. O impacto do trabalho de Linn da Quebrada rompe a binariedade e gera assim a visibilização de corpos dissidentes do gênero, avindos das periferias racializadas.

O artigo sobre o instigante caso do Fado Bicha, de Paula Guerra (2022)GUERRA, Paula. Barulho! Vamos deixar cantar o Fado Bicha. Insurreição, resistência e política na música popular contemporânea. Revista de Antropologia , 65(2): e197977. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.197977
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, “Barulho! Vamos deixar cantar o Fado Bicha. Insurreição, resistência e política na música popular contemporânea”, demonstra como o grupo promove uma retomada do estilo musical tradicional, mas numa performance que desconstrói e questiona os imaginários de gênero e sexualidade hegemônicos associados do fado. Parece muito sugestivo que seja resgatando um formato musical tão tradicional e com cânones tão fortes quanto a gênero e aos sentimentos que o Fado Bicha produza, de modo surpreendente, um questionamento dos limites e das fronteiras de gênero.

Também revendo a ideia de tradição, mas agora do interior do Ceará, na região do Cariri, Roberto Marques (2022)MARQUES, Roberto. Nordeste, contracultura e Cultura Popular: lugares cognitivos e ficções persistentes na poética de João do Crato. Revista de Antropologia , 65(2): e198022. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.198022
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em “Nordeste, contracultura e Cultura Popular: lugares cognitivos e ficções persistentes na poética de João do Crato” nos apresenta o trabalho de João do Crato. O artista com suas performances, shows, e numa produtividade cultural que remonta a muitos anos, coloca em cheque a ideia de um interior tradicional e imóvel em suas formas culturais. Mesmo antes da visibilidade de artistas que dialogam com a teoria queer, João do Crato nos é apresentado por sair dos padrões de gênero, mostrando que mesmo advindo do “interior” do Ceará, sua produção questiona a binariedade, e o faz em intenso diálogo com grupos diversos de cultura popular e manifestações próximas às culturas de matrizes africanas.

Mais focado nas questões de raça, da visibilidade negra e das periferias, os outros três artigos do dossiê ainda visibilizam as formas de reXistência. Jasper Chalcraft e Rose Hikiji (2022)HIKIJI, Rose Satiko Gitirana; CHALCRAFT, Jasper. “Gringo, preto, pobre” - políticas do musicar africano em São Paulo. Revista de Antropologia , 65(2): e198226. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.198226
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se concentram no fazer musical dos artistas africanos recém-chegados ao Brasil, que enfrentam e se relacionam com a questão do racismo e da valorização dos grupos afrodiaspóricos. O artigo “Gringo, preto, pobre” - políticas do musicar africano em São Paulo permite expressar como o musicar destes artistas cria um mundo de imaginação e potencialidade política, marcada pela solidariedade. Estas performances musicais estão repletas de referências a entidades africanas e afrodiaspóricas, marcadas pela referência a lutas e produções culturais anticoloniais.

O artigo de Adriana Facina (2022)FACINA, Adriana. Sujeitos de sorte: narrativas de esperança em produções artísticas no Brasil recente. Revista de Antropologia , 65(2): e195924. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.195924
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, “Sujeitos de sorte: narrativas de esperança em produções artísticas no Brasil recente” se debruça sobre produções culturais dos sujeitos periféricos das favelas, negros que se encontram sob forte ameaça da violência na situação política atual, um “momento de perigo”, como diz a autora. As produções culturais desses sujeitos revelam narrativas de esperança em um contexto terrível de aprofundamento da desigualdade socioeconômica e destruição de políticas sociais, demonstrando ser a arte uma forma de luta política e de produção de possibilidades para o futuro.

Nos artigos que seguem ao dossiê deste volume, nota-se uma concentração de debates sobre temáticas associadas aos marcadores sociais da diferença, particularmente raça e gênero, assim como debates sobre corpo e políticas da memória e da transformação social, e ainda reflexões sobre o fazer antropológico.

Trazendo uma análise sobre gênero, geração e moralidades sexuais, o artigo de Andrea Lobo (2022)LOBO, Andrea. As meninas de hoje em dia. Gênero, geração e (des)afetos em conversas sobre amor e sexo em Cabo Verde. Revista de Antropologia , 65(2): e198219. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.198219
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, “As meninas de hoje em dia. Gênero, geração e (des)afetos em conversas sobre amor e sexo em Cabo Verde”, reflete sobre continuidades e transformações sociais acerca as relações afetivo-conjugais. Com longa experiência de campo em Cabo Verde, a autora focaliza os debates sobre afetos e sexualidade, debatendo com homens e mulheres jovens, e também comparando a percepção de gerações distintas de mulheres. O texto argumenta como uma grade de avaliação moral ainda persiste na região focada nos comportamentos e condutas femininas, no entanto, o modo como as jovens “de hoje em dia” experimentam essa moralidade não é mais o mesmo.

Refletindo sobre a produção que trata do processo de urbanização de São Paulo em contraste com a experiência das ocupações, o artigo de Stella Paterniani (2022)PATERNIANI, Stella. Crítica da branquidade na economia política da urbanização: equivocação controlada de trabalhador. Revista de Antropologia , 65(2): e197978. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.197978
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, “Crítica da branquidade na economia política da urbanização: equivocação controlada de trabalhador”, reflete sobre uma visão muito naturalizada e pouco refletida que imagina trabalhadores como brancos (no sentido do universal não marcado) ainda que vistos como “pobres”, no contexto das transformações urbanas. A ênfase na classe social teria apagado da visão de analistas os processos de racialização que marcam o espaço urbano. Retomando a ideia de equivocação controlada, a autora argumenta em torno da incapacidade de perceber a raça como questão associada ao processo de urbanização, contrapondo para isso uma reflexão a partir de sua experiência etnográfica com ocupações na cidade de São Paulo.

O artigo de Erica Giesbrecht (2022)GIESBRECHT, Erica. Escutando com o corpo: sensibilidade, música e corpo numa cena local de dança do ventre. Revista de Antropologia , 65(2): e198224. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.198224
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, “Escutando com o corpo: sensibilidade, música e corpo numa cena local de dança do ventre”, retoma uma reflexão sobre o corpo e a experiência de aprendizado desta dança, no contexto de São Paulo. A autora argumenta como a percepção musical é marcada aqui por uma experiência corpórea, retomando reflexões sobre a antropologia e a etnomusicologia.

Buscando refletir sobre o uso do desenho na pesquisa antropológica, inspirada em sua pesquisa com os artistas Inga na Colômbia, Tatiana Lotierzo (2022)LOTIERZO, Tatiana. Amarrar ressonâncias: considerações sobre desenho e antropologia. Revista de Antropologia , 65(2): e197963. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.197963
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em “Amarrar ressonâncias: considerações sobre desenho e antropologia”, traz sua contribuição ao tema. A autora considera as inovações que o uso de desenho na pesquisa tem gerado, levando em conta as implicações de recorrer ao desenho na relação com os interlocutores da pesquisa. O artigo reflete tanto sobre os desenhos feitos pelo pesquisador como pelos pesquisados, e elabora também as noções de desenho, design, grafismo e imagem.

Refletindo ainda sobre os processos de pesquisa de campo, o instigante artigo de Bruna Triana Rastros (2022TRINA, Bruna. Rastros, ruínas e decadência: contribuições para uma antropologia dos arquivos. Revista de Antropologia , 65(2): e197956. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.RA.2022.197956
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), “Rastros, ruínas e decadência: contribuições para uma antropologia dos arquivos” traz reflexões metodológicas a partir de sua pesquisa nos arquivos e nas ruas de Maputo, Moçambique. A autora desenvolve uma leitura crítica sobre a pesquisa em arquivos, buscando desvendar também os modos de controle e silenciamento que se distribuem nos documentos, assim como nos espaços urbanos. Argumentando que o arquivo, como a cidade, é um espaço vivo marcado por tensões e ambiguidades, o texto problematiza os rastros da história oficial e as disputas de sentidos que se revelam em imagens e documentos, assim como nos monumentos que marcam o espaço urbano.

Abordando as acusações de feitiçaria assim como as técnicas de supostos feitiços num grande aldeamento da etnia Ticuna temos o artigo de Maria Isabel Cardozo da Silva Bueno (2022)BUENO, Maria Isabel Cardozo da Silva. Feitiço em relação: notas etnográficas sobre agressão e morte numa comunidade Magüta (Alto Solimões - Brasil). Revista de Antropologia, 65(2): e198227. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.198227
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, “Feitiço em relação: notas etnográficas sobre agressão e morte numa comunidade Magüta (Alto Solimões - Brasil)”. Buscando entender as teias de relações que são acionadas na busca por encontrar os responsáveis por feitiços, a pesquisa se concentra numa situação de crise no terrível contexto de uma série de mortes por enforcamento, encontrando também práticas advindas de um objeto exógeno, o livro de magia de São Cipriano. O artigo busca analisar as implicações contemporâneas destas acusações de feitiçaria no caso Ticuna.

Por fim o artigo de Diana Cecilia Rodríguez Ugalde (2022)RODRÍGUEZ UGALDE, Diana Cecilia. “Nosotros no vamos a dejar al Río”: re-existencias de maestras/os indígenas en la lucha por los commons en el norte del Cauca, Colombia. Revista de Antropologia , 65(2): e198220. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.198220
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, “‘Nosotros no vamos a dejar al Río’: re-existencias de maestras/os indígenas en la lucha por los commons en el norte del Cauca, Colombia”, objetiva analisar as tensões entre “Educación Propia” e as práticas de re-existência entre professores indígenas naquela região. Analisando as tensões políticas daquele território e os mecanismos de luta por uma educação anticolonial e anticapitalista, os professores buscam manter a prevelência de ontologias e projetos de vida dos indígenas. O artigo, baseado em pesquisa de campo feita em 2017, propõe manter um olhar decolonial e uma abordagem da pedagogia crítica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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