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Gringos, nômades, pretos - políticas do musicar africano em São Paulo

RESUMO

Ao acompanhar nos últimos anos músicos africanos recém-chegados ao Brasil, observamos como seu musicar em São Paulo cria um mundo de imaginação e potencialidade política, um espaço para a solidariedade, habitado por entidades africanas e afrodiaspóricas da história passada e presente, de lutas e manifestações artísticas anticoloniais, antiescravistas ou afropolitanas (Mbembe, 2015MBEMBE, Achille. 2015. “Afropolitanismo”. Tradução de Cleber Daniel Lambert da Silva. Áskesis, vol. 4, n. 2: 68-71. DOI https://www.doi.org/10.46269/4215.74
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). Como estes músicos lidam com as políticas raciais e culturais do país? Como o racismo e os movimentos afro-brasileiros os interpelam? Que capitais transculturais (Glick-Schiller e Meinhof, 2011GLICK-SCHILLER, Nina; MEINHOF, Ulrike H. 2011. “Singing a New Song? Transnational Migration, Methodological Nationalism and Cosmopolitan Perspectives”. Music and Arts in Action, vol. 3, n. 3: 21-39.) ou formas de “ação social” (Blacking, 1995BLACKING, John. 1995. Music, culture & experience. Chicago, University of Chicago Press.) mobilizam para navegar na cena artística brasileira? Como lidam com as instituições culturais e com os movimentos sociais? Ser africano no Brasil seja no palco, no estúdio de gravação, em eventos artivistas ou solidários é sempre um ato de resistência. “Gringos” ou “nômades” estes artistas constituem uma “comunidade musical” (Shelemay, 2011SHELEMAY, Kay Kaufman. 2011 “Musical Communities: Rethinking the Collective in Music.” Journal of the American Musicological Society, vol. 64, n. 2: 349-390. DOI https://www.doi.org/10.1525/jams.2011.64.2.349
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) com quem dialogamos num fazer etnográfico fílmico e compartilhado.

PALAVRAS CHAVE:
Musicar; imigração africana; artivismo; diáspora criativa

ABSTRACT

Following African musicians who arrived in Brazil in recent years, we observe how their musicking in São Paulo creates a world of imagination and political potential, a space for solidarity, inhabited by African and Afro-diasporic entities from past and present history, of anti-colonial, anti-slavery or Afropolitan struggles and artistic manifestations (Mbembe, 2015MBEMBE, Achille. 2015. “Afropolitanismo”. Tradução de Cleber Daniel Lambert da Silva. Áskesis, vol. 4, n. 2: 68-71. DOI https://www.doi.org/10.46269/4215.74
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). How do these musicians deal with the racial and cultural politics in the country? How do racism and Afro-Brazilian movements challenge them? What transcultural capitals (Glick-Schiller and Meinhof, 2011GLICK-SCHILLER, Nina; MEINHOF, Ulrike H. 2011. “Singing a New Song? Transnational Migration, Methodological Nationalism and Cosmopolitan Perspectives”. Music and Arts in Action, vol. 3, n. 3: 21-39.) or forms of “social action” (Blacking, 1995BLACKING, John. 1995. Music, culture & experience. Chicago, University of Chicago Press.) are mobilized to navigate the Brazilian art scene? How do they deal with cultural institutions and social movements? Being African in Brazil whether on stage, in the recording studio, in artivist or solidarity events is always an act of resistance. “Gringos” or “nomads” these artists constitute a “musical community” (Shelemay, 2011SHELEMAY, Kay Kaufman. 2011 “Musical Communities: Rethinking the Collective in Music.” Journal of the American Musicological Society, vol. 64, n. 2: 349-390. DOI https://www.doi.org/10.1525/jams.2011.64.2.349
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) with whom we dialogue in a shared and filmic ethnographic making.

KEYWORDS:
Music; African migration; artivism; creative diaspora

APRESENTAÇÕES [ESCUTA CRIATIVA E MUSICAR COMPARTILHADO]

“Me diz uma coisa, Lenna: como você caiu nesse negócio de música aqui em Sampa? É que você é bem famosa. A diva da música africana...”. O músico congolês Yannick Delass puxa conversa com a moçambicana Lenna Bahule em um restaurante na Vila Madalena, bairro boêmio na zona oeste de São Paulo, que abriga bares, restaurantes, espaços culturais. Eles não se conheciam pessoalmente e foram apresentados por nós, antropólogos realizando uma pesquisa e filmes sobre a diáspora criativa africana no Brasil. No restaurante em que paramos para beliscar alguma coisa, próximo à escola de música onde gravaríamos o encontro entre ambos, encontramos Pitchou Luambo, outro congolês que conhecemos no movimento ativista pela causa do refúgio em São Paulo, e que é também chef. Pitchou serviu um prato vegano da República Democrática do Congo, e sentou-se à mesa com os músicos.

Nós os antropólogos-cineastas seguíamos filmando, e Ricardo Dionisio gravava o áudio dessa conversa improvisada. “Eu sou músico internacional”, continuava Yannick, se apresentando para Lenna mas também para as câmeras. “Até agora, em Minas, Bahia…”. E concluindo num tom lamentoso: “Só em São Paulo que eu estou sendo músico refugiado! Parece que está no ar aqui de São Paulo: o preto vem pro Brasil, e em São Paulo é refugiado. Só porque sou preto me chamam de refugiado”.

Os rumos da conversa poderiam ter sido outros, talvez, se não tivéssemos encontrado Pitchou no comando da cozinha. O chef é também o coordenador do Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem Teto (GRIST), que conhecia Yannick, seu conterrâneo, de eventos que organizara com artistas africanos em prol do movimento. Uma vez introduzido o tema, o improviso seguiria nesse ritmo. Para Lenna, mais que a questão do refúgio (que ela afirma teria surgido com mais força a partir de 2014), foi o interesse pela cultura africana que marcou sua chegada na cidade: “São Paulo estava passando por um momento de demanda, de uma procura sobre a cultura africana… Porque os assuntos africanos começaram a ser falados bastante no ambiente público, nas escolas públicas”.

Saindo do restaurante, andamos cerca de 300 metros na rua Paulistânia até o Espaço Musical, escola na qual atuam vários músicos ligados à cena da nova música popular1 1 Nova música popular brasileira, música independente ou música alternativa são denominações utilizadas pelos artistas e analistas desta cena, caracterizada pela distância dos grandes meios de comunicação, o recurso a editais e mecenato privado. Para mais sobre a cena ver Faraco, 2020. em São Paulo, e que nos cedeu espaço para a gravação do encontro entre Lenna e Yannick. Por cerca de duas horas, observaríamos com nossas câmeras e microfones o resultado de nossa provocação: troca de ideias musicais mas não só entre dois artistas africanos diaspóricos, vindos de países diversos, com trajetórias e experiências particulares a partir de sua presença em território brasileiro e paulistano.

Iniciamos este artigo com um diálogo extraído de “Afro-Sampas”, o terceiro filme que resulta do projeto “Ser/Tornar-se africano no Brasil - Fazer musical e patrimônio cultural africano em São Paulo”.2 2 Pesquisa dos autores deste artigo realizada junto ao Projeto Temático “O musicar local - Novas trilhas para a etnomusicologia” (processo FAPESP 2016/05318-7), que integramos como pesquisadora principal e pesquisador associado. Rose Satiko G. Hikiji é bolsista de produtividade do CNPq. Na pesquisa, desde 2016, acompanhamos o que temos definido como a diáspora criativa africana em São Paulo, constituída por músicos e artistas provenientes de diferentes países do continente africano que chegaram ao Brasil nos últimos anos, observando sua ação nos espaços culturais da cidade, sua relação com os movimentos sociais, seu cotidiano nesta megalópole diversa, desigual e complicada.

Nossa observação não é distanciada. Esta pesquisa tem como método e resultado o fazer audiovisual compartilhado, experimentamos o filme como etnografia, somos antropólogos e realizadores, por vezes coautores, por vezes coartistas.3 3 As referências aqui são várias: a antropologia compartilhada de Jean Rouch (Hikiji, 2013), as discussões do campo do filme etnográfico (Crawford e Turton, 1995), os experimentos com arte e antropologia (Schneider e Wright, 2010). Discutimos alguns destes aspectos colaborativos no fazer do filme etnográfico em Chalcraft e Hikiji, 2020. Neste momento de textualização, a questão sobre como inscrever um conhecimento que se dá a partir de escuta, fazer musical, audiovisual e troca criativa traz a intermidialidade como caminho.

Steven Feld se depara com esta questão ao lidar com a etnografia a partir da pesquisa com músicos da cena jazzística em Accra, capital de Gana, baseada na produção colaborativa musical, na discussão de referências, na gravação de CDs, na realização de filmes. Para Feld, a textualização em tal contexto implica refletir sobre voz, polifonia e dialogismo. Na progressão do som para a imagem e depois para o texto, Feld (2020FELD, Steven et al. 2020. “Ressoar a antropologia: uma jam session com Steven Feld”. Mana - Estudos de Antropologia Social, vol. 26, n. 3: 1-23. DOI https://www.doi.org/10.1590/1678-49442020v26n3e600.
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: 4) destaca uma “sequência de movimentos representacionais”, na qual subjetividade e intersubjetividade deslocam-se. Para produzir música com seus interlocutores, o antropólogo deve escutar gravações com eles, falar sobre elas, fazer música junto. A produção de filmes também é incorporada neste movimento, e a colaboração torna-se intermidialidade. Para completar, no momento da escrita, os comentários de seus interlocutores sobre o texto por ele produzido são incorporados, por vezes como longas notas de rodapé. É dessa “conjunção entre mídia sônica, visual, sônico-visual e textual” que se constitui, segundo Feld, a “intervocalidade, intermidialidade e intersubjetividade” (Feld, idem: 5).

Na pesquisa aqui apresentada, a intersubjetividade se coloca no movimento de cocriação de filmes etnográficos, a intervocalidade é tanto conversa quanto escuta, e a intermidialidade se expressa neste texto quando o mesmo é construído a partir do recurso a registros audiovisuais de momentos de criação musical e discursiva, alguns deles provocados pelos antropólogos, outros por nós observados.

A conversa entre Lenna Bahule, Yannick Delass e Pitchou Luambo seguiria tangenciando assuntos que os conectavam, como artistas ou ativistas, como africanos em São Paulo. Entre o descontentamento com a identidade atribuída - o “preto” que no Brasil é chamado de refugiado - e o diagnóstico positivo do contexto de crescente interesse pela cultura africana (que Lenna atribui a gestões petistas que estimularam uma abertura para a diversidade cultural4 4 Lenna chega ao Brasil em 2012, durante o governo de Dilma Roussef (2011-2016), a terceira gestão do Partido dos Trabalhadores na presidência do país, sucedendo 8 anos de governo de Luis Inácio Lula da Silva (2003-2011). Na cidade de São Paulo, o PT também governava entre 2013 e 2017, na gestão de Fernando Haddad. Lenna menciona o interesse sobre assuntos africanos nas escolas públicas, e este está também relacionado à lei promulgada em 2003 (10.639/03), primeiro ano do governo Lula, alterada pela Lei 11.645/08, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio. Para uma análise do papel do governo Lula nas políticas raciais no Brasil ver Lima( 2010). ), a conversa revelava nuances identitárias, de pertencimento e de experiências que o país (e a cidade) receptor proporciona para estes africanos em deslocamento. Cada qual, em sua trajetória, constrói formas de atuação (artística, política, cotidiana) e de representação que seguiremos nas próximas páginas. Ora “gringos”, ora “nômades”5 5 Gringa Music é o projeto de curadoria musical de Yannick Delass, que detalharemos a seguir. Nômades é o projeto de Lenna Bahule, que resulta em um CD e uma série de shows em São Paulo e Moçambique, com músicos dos dois países. , são autores de uma história que começa a ser escrita, e já produz bastante barulho na cena musical e paulistana.

Neste artigo, buscamos entender como nossos interlocutores lidam com as políticas raciais e culturais do Brasil. Que capitais transculturais (Glick-Schiller e Meinhof, 2011GLICK-SCHILLER, Nina; MEINHOF, Ulrike H. 2011. “Singing a New Song? Transnational Migration, Methodological Nationalism and Cosmopolitan Perspectives”. Music and Arts in Action, vol. 3, n. 3: 21-39.) mobilizam para navegar na cena artística paulistana? Qual a relação entre identidade e resistência em sua experiência de recém-chegados ao país? Como sua atuação constrói e reforça lutas locais e translocais? Qual a potência artística da resistência a partir de diferentes histórias coloniais?

Estas reflexões são construídas no contexto do projeto temático “O musicar local: novas trilhas para a etnomusicologia”, no qual uma equipe de mais de 40 pesquisadores em diferentes níveis da carreira, entre antropólogos, músicos e etnomusicólogos tem pensado como o musicar constrói localidades e como é construído por elas. Mobilizamos no projeto o conceito de musicar, nossa tradução de musicking, cunhado por Christopher Small (2012SMALL, Christopher. 2012. Musicking: The Meanings of Performing and Listening. Connecticut, Wesleyan University Press.) para designar diversas formas de engajamento com música: desde a performance musical, propriamente, até os atos de ouvir ou falar sobre música, de consumir ou participar de qualquer produção musical. Ao qualificar o musicar como local, não nos referimos necessariamente a espaços físicos, geográficos, mas, como para Appadurai (1996APPADURAI, Arjun. 1996. “The Production of Locality”. In: Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization. Minneapolis: University of Minnesota Press. pp. 178-99.), pensamos localidade como “estrutura de sentimentos”6 6 Para mais sobre a ideia de musicar local, ver Hikiji, Reily e Toni (2016). . E como nota Suzel Reily (2021REILY, Suzel. 2021. “Local musicking and the production of locality”. GIS Gesture, Image and Sound Anthropology Journal, vol. 6, n. 1: e-185341. DOI https://www.doi.org/10.11606/issn.2525-3123.gis.2021.185341
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: 11) a construção da localidade, nesta perspectiva, “se constitui em projeto político”7 7 Em um artigo em que discute o “musicar local” e a produção de localidades, Suzel Reily (2021: 12) detalha esta ideia exemplificando com o caso da África do Sul: “desde o fim do Apartheid, muitos Venda têm se voltado às práticas musicais no difícil processo de recuperação de uma estrutura de sentimentos que lhes garanta um retorno para uma localidade onde o espírito comunitário leve à redução da violência e melhores condições de vida” (grifos nossos). .

Localidades são afetadas e afetam os fazeres musicais de nossos protagonistas. Se como nota Trajano Filho (2012TRAJANO FILHO, Wilson (org.). 2012. Lugares, pessoas e grupos: as lógicas do pertencimento em perspectiva internacional. Brasília: ABA Publicações, 2012.: 7) “Nossa história, o nosso mundo do aqui e agora e o devir que projetamos para nós e para os outros estão irremediavelmente associados aos lugares que lembramos e criamos”, os espaços emergem de atos e práticas, são “lugares praticados” na perspectiva de De Certeau (1998CERTEAU, Michel de. 1998. A invenção do cotidiano - artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes.: 2001), são também “contextos de vivência” (Reily, 2021REILY, Suzel. 2021. “Local musicking and the production of locality”. GIS Gesture, Image and Sound Anthropology Journal, vol. 6, n. 1: e-185341. DOI https://www.doi.org/10.11606/issn.2525-3123.gis.2021.185341
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: 10). No caso da diáspora criativa africana, é necessário refletir sobre translocalidade, uma vez que seus fazeres musicais são constituídos com referências às experiências prévias em África, às trajetórias profissionais e geográficas de cada um, aos espaços (e lugares, pessoas, instituições, redes, público) que encontram e constroem na cidade que os recebe.

“EM TERRA DE PRETO VOCÊ NÃO PRECISA SER PRETO” [TRANSLOCALIDADE E AFROPOLITANISMO]

Lenna Bahule, “bem famosa aqui”, nas palavras de Yannick, ocupava um lugar de destaque no meio da música independente paulistana quando começamos a pesquisa, em 2016. Seu nome era lembrado em qualquer conversa em que se mencionava o interesse em pesquisar músicos africanos no Brasil. Chegou à cidade em 2012, e estabeleceu parcerias com músicos como João Taubkin, com as Clarianas, grupo que se define como “de matriz africanordestina-indígena-periférica”, pesquisou percussão corporal com os Barbatuques, fez direção musical para o Gumboot Dance Brasil, grupo que difunde dança sul-africana, formou o Bahule Quartet e desenvolveu o projeto Nômades, um ousado grupo vocal, com o qual gravou CD premiado8 8 O CD “Nômade”, de Lenna Bahule, foi selecionado como um dos 100 melhores discos nacionais de 2016 pelo site Embrulhador, uma referência da crítica da música popular brasileira. e fez shows no Brasil e Moçambique.

Realizamos com Lenna o filme Woya Hayi Mawe - para onde vais?, em que a acompanhamos, entre 2016 e 2018, em sua pesquisa musical e de referências, entre São Paulo e Maputo. Lenna também protagoniza Afro-Sampas, filme lançado em 2020, já mencionado aqui.9 9 Os filmes aqui mencionados, bem como outros materiais da pesquisa podem ser consultados no site http://www.usp.br/afrosampas. Sugerimos ao leitor a visualização dos filmes, em virtude de sua centralidade no projeto de conhecimento aqui apresentado.

Sua formação musical em Maputo foi erudita. Estudou piano por oito anos na Escola Nacional de Música. Lenna estabelece contato com a música brasileira ouvindo discos de MPB, que seu pai, engenheiro de som e colecionador de música, tinha em casa. Em Moçambique colabora com músicos moçambicanos de vários estilos, rap, jazz, soul, e em turnês como backing vocal do músico Stewart Sukuma; viaja pela Europa e chega a se apresentar no Brasil. Decide estudar no Berklee College of Music, nos Estados Unidos, mas sem recursos para a mensalidade, opta por vir ao Brasil. Vinha em busca de músicas que gostava, como as de Hermeto Pascoal e Naná Vasconcelos. Diz que não tinha nenhuma relação especial com a música moçambicana ao sair de seu país.

Nesse sentido, a experiência de Lenna pode ser pensada na chave do que Hannerz (2006HANNERZ, Ulf. 2006. Two faces of cosmopolitanism: culture and politics. Barcelona: CIDOB Ediciones.: 13) chama de cosmopolitismo cultural, a habilidade de adentrar outras culturas, e a abertura para experiências culturais divergentes10 10 Hannerz descreve diferentes tipos de cosmopolitismo. Citando Piot e sua pesquisa com agricultores no Togo, propõe pensar como cosmopolitas não só moradores de megalópoles, mas também pessoas que vivem em situações caracterizadas por “fluxo, incerteza, encontros com a diferença e a experiência de processos de transculturação” (Piot, 1999, apudHannerz, 2006:.15; trad. nossa). . Sua facilidade de transitar em uma cena musical paulistana advém do domínio que possui de referências musicais e culturais, que, convém lembrar, está relacionado à sua formação em uma capital africana com influências internacionais, sua herança familiar, sua bagagem de viagens, ao domínio de um repertório cosmopolita de música popular contemporânea e estudo musical erudito. Em outras palavras, Lenna chegou ao Brasil mais como uma música global (ou uma “artista internacional”, como Yannick e outros músicos preferem se definir), que como uma cantora moçambicana. Ao chegar em São Paulo, todos (músicos, público) perguntam por suas raízes, suas referências africanas. Essa curiosidade paulistana a surpreende. “Foi um momento de questionar minha africanidade, minha cultura. Tive que me olhar para descobrir o quanto de moçambicana existia em mim. Aí eu voltei a me apaixonar por essa cultura”, nos conta em uma entrevista realizada no dia em que a conhecemos, em um show no Museu da Imigração em São Paulo, com seu quarteto11 11 A entrevista foi registrada no vídeo Lenna, disponível em https://vimeo.com/181981199. .

Se a curiosidade paulistana a interpela a olhar para suas origens, também revela para Lenna uma visão muito pouco nuançada acerca da diversidade cultural e artística do continente africano:

Quando eu cheguei, eu tive a sensação que existia uma visão bem estereotipada daquilo que eu poderia estar trazendo artisticamente, musicalmente. Existia uma certa expectativa de… vamos lá, generalizando, exagerando completamente: tambores e dança e panos e pinturas e pulos... e eu sou completamente o oposto disso. Eu sou assim em casa, mas no palco eu levo uma outra arte, uma outra forma de me relacionar com a música, de entender que existe essa diferença, que são várias Áfricas, né? É algo que ainda é muito novo para o brasileiro. (Lenna Bahule, em fala para o filme Woya Hayi Mawe - Para onde vais?, 2018).12 12 Esta e as próximas declarações de Lenna são trechos de conversas e entrevistas, registradas no filme Woya Hayi Mawe Para onde vais?, disponível também em https://vimeo.com/lisausp/woyahayimawept

Se a enorme diversidade cultural de um continente é novidade para o brasileiro, para a moçambicana o susto se deu com o racismo. Em um bairro de classe média alta em São Paulo, Lenna descobre-se “talvez a única negra moradora”. Ao atuar também na periferia metropolitana, com as Clarianas, um grupo de artistas afro-brasileiras sediado em Taboão da Serra, Lenna aprendeu a geografia racializada da megalópole. No espaço periférico, percebe que seu corpo se transforma, “se encaixa”:

Quando eu vou pra esse espaço das Clarianas, por exemplo, que fica em Taboão da Serra, que é na periferia, quando eu vou pra Zona Sul, é muito diferente. Meu corpo parece que se encaixa assim: ‘Opa, tô em casa’! Me identifico muito, porque a maioria é preta. Então, me identifico, meu corpo naturalmente se encaixa. Se eu vou para um outro lugar, onde praticamente você não vê nenhum negro, o corpo reage. Então, esse foi o maior choque pra mim, de eu ver o quanto que meu corpo foi mudando. (Lenna Bahule, em fala para o filme Woya Hayi Mawe - Para onde vais?, 2018).

Essa reflexão é tecida em entrevista para um jornalista moçambicano, num restaurante em Maputo, que filmamos acompanhando Lenna em um dia dedicado à imprensa (rádio, TV, jornal) para divulgar seu show “Nômades” no Centro Cultural Franco-Moçambicano. De volta à sua terra natal, e para seus conterrâneos, Lenna tem que explicar a experiência do racismo no Brasil, e a nova percepção de si mesma como negra em um país que tem 56,2% da população autodeclarada preta ou parda.13 13 Segundo dados do IBGE (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Anual PNAD 2019), da população total do Brasil de 209,4 milhões de pessoas, 19,7 milhões se declaram pretas e 98,1 milhões, pardas.

Em terra de preto, a gente não precisa ser preto, né? A gente simplesmente é. Aqui [em Moçambique] a gente tem outros tipos de preconceitos. Aqui a gente encontra uns pretos ricos: têm os pretos ricos e os pretos pobres, né? Somente estes. Mas lá [no Brasil], a maioria dos pretos são pobres. Então, além de ter o racismo de cor de pele, é também um racismo econômico. Arrisco a dizer que provavelmente eu sou a única negra que mora no meu bairro [em São Paulo]. (Lenna Bahule, em fala para o filme Woya Hayi Mawe - Para onde vais?, 2018)

Apesar de reconhecer a desigualdade econômica de seu país de origem, Lenna afirma ter conhecido a experiência do racismo em São Paulo: na visita ao supermercado do bairro “rico” em que não vê pessoas pretas, exceto entre os funcionários, no seu reconhecimento em outros corpos no bairro pobre e periférico. E olhando de longe para a experiência, a partir de sua terra natal, associa a experiência racial brasileira com o seu papel como artista negra africana no Brasil:

É por isso que a questão da negritude no Brasil está muito ligada a pertencimento, está ligada à identidade. Os antepassados do povo negro brasileiro tiveram todo um processo de sair da terra, enclausuramento, escravização. Então, você já não falava sua língua, você já foi tirado de sua terra, aí você tinha que achar uma outra forma… foi cortar a cultura, a identidade, na raíz. Tirar completamente e não deixar nada, nem chances de poder brotar de novo. Então, quando eles voltam pra cá, se ele sabe que o bisavô dele é daqui, ele está sedento de saber de onde ele é. Por eu ter morado fora, eu penso muito nisso: dói a gente não saber de onde a gente é. (Lenna Bahule, em fala para o filme Woya Hayi Mawe - Para onde vais?, 2018)

Esta sede de conhecimento se observa na forma como Lenna e outros artistas e músicos africanos no Brasil são abordados por movimentos culturais afro-brasileiros ou instituições com políticas culturais para a diversidade como legítimos representantes da cultura de seu país, quando não de seu continente. Lenna percebe que no Brasil sua presença e seu musicar são, para o público brasileiro, uma porta de acesso às suas raízes.

Ulrike Meinhof e Anna Triandafyllidou’s (2006MEINHOF, Ulrike H.; TRIANDAFYLLIDOU, Anna. 2006. “Beyond the Diaspora: Transnational Practices as Transcultural Capital.” In: MEINHOF, Ulrike H.; TRIANDAFYLLIDOU, Anna (orgs.). Transcultural Europe: Cultural policy in a changing Europe. London, Palgrave, pp. 200-222.) desenvolveram o conceito de capital transcultural para descrever os recursos, redes e links que os artistas imigrantes usam no seu trabalho criativo. Acompanhando músicos transnacionais vindos de Madagascar, Meinhof mostra como “para muitos artistas o potencial estratégico de seu capital transcultural emerge de sua habilidade de jogar com as cartas étnico-diaspóricas e cosmopolitas ao mesmo tempo” (Glick-Schiller e Meinhof, 2011GLICK-SCHILLER, Nina; MEINHOF, Ulrike H. 2011. “Singing a New Song? Transnational Migration, Methodological Nationalism and Cosmopolitan Perspectives”. Music and Arts in Action, vol. 3, n. 3: 21-39.: 30, tradução. nossa14 14 Na versão original: “for many artists the strategic potential of their transcultural capital emerged as an ability to play the ethnic-diasporic and the cosmopolitan card at the same time” (Glick-Schiller e Meinhof 2011: 30) ). Os músicos com os quais Meinhof trabalhou veem o seu uso do capital transcultural como uma “necessidade criativa e uma limitação, uma identificação nostálgica e uma ferramenta estratégica para sobreviver como músico profissional”(Glick-Schiller e Meinhof, 2011GLICK-SCHILLER, Nina; MEINHOF, Ulrike H. 2011. “Singing a New Song? Transnational Migration, Methodological Nationalism and Cosmopolitan Perspectives”. Music and Arts in Action, vol. 3, n. 3: 21-39.: 30, itálicos no original15 15 “as both a creative necessity and a limitation, a nostalgic identification and a strategic tool for surviving as a professional musician” (GlickSchiller e Meinhof 2011: 30). ).

Em São Paulo, vemos como os artistas africanos, como Lenna e Yannick, mantêm e desenvolvem redes e identidades diaspóricas: a experiência de viver no Brasil também amplia seu capital transcultural. Por exemplo, de volta à Maputo, Lenna carrega a “fama” de ter feito sucesso no país que exporta referências para Moçambique. Em São Paulo, seu capital cultural cosmopolita é valorizado tanto pelo domínio de referências transnacionais, como por sua origem e representatividade de cor. A africanidade e negritude de Lenna são moedas importantes no mundo dos movimentos culturais afrobrasileiros e entre cosmopolitas paulistanos interessados em ampliar suas referências musicais. Lenna agrega valor tanto para quem busca raízes quanto para quem se considera “antenado” com a música do mundo.

Acompanhar Lenna nos permite ver como a experiência da diáspora é transformativa: partindo de Moçambique como uma jovem musicista cosmopolita, Lenna assume no Brasil uma posição que, com Mbembe, descreveremos como “afropolitana”. O filósofo camaronês Achille Mbembe define o Afropolitanismo como “uma estilística, uma estética e uma certa poética do mundo” (Mbembe, 2015MBEMBE, Achille. 2015. “Afropolitanismo”. Tradução de Cleber Daniel Lambert da Silva. Áskesis, vol. 4, n. 2: 68-71. DOI https://www.doi.org/10.46269/4215.74
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: 70), que recusa identidades vitimizadoras; uma “cultura transnacional” desenvolvida por africanos, como Lenna, que decidem viver fora da África, ou em África, mas não em seus países de nascimento, e que “têm a sorte de ter feito a experiência de vários mundos e praticamente não cessaram de ir e vir, desenvolvendo, na esteira desses movimentos, uma incalculável riqueza do olhar e da sensibilidade” (idem: 71). Na conversa com o jornalista seu conterrâneo, fica evidente a marca da experiência diaspórica. Foi preciso viajar, nomadear, para perceber-se parte de uma comunidade, essa comunidade estendida que Yannick Delass chamará, como veremos a seguir, de “povo preto”.

“GRINGO, PRETO E POBRE” [MUSICAR, ARTIVISMO, LOCALIDADES]

Conhecemos Yannick Delass poucas semanas depois de sua chegada em São Paulo, no início de 2016. Foi ele quem nos procurou, tendo ouvido falar de nossa pesquisa por meio de uma amiga em comum. Ele se apresentou como um músico imigrante, um artista internacional que veio ao Brasil pela primeira vez em 2014 para trabalhar com música.

Convidamos Yannick para um debate na Residência Artística da ocupação Cambridge16 16 A Residência Artística Cambridge teve início em 2016, proposta por Juliana Caffé, Yudi Rafael e Alex Flynn, em uma “complexa relação entre arte e ativismo”, na Ocupação do Hotel Cambridge, coordenada pelo MSTC (Movimento dos Sem Teto do Centro), um edifício ocupado pelo movimento por moradia de São Paulo, com cerca de 550 moradores. Por meio de oficinas, cineclube e palestras, promoveu o encontro dos moradores da ocupação com um público “empático ao problema de moradia”, mas que não conhecia o Hotel Cambridge (Lira, 2016). sobre música e imigração. Neste dia o apresentamos para Shambuyi Wetu, performer congolês que se tornaria um importante parceiro e amigo, e para outros artistas africanos também convidados pelos artistas organizadores da residência. Em uma sala com artistas brasileiros e imigrantes, Yannick afirmou não se identificar com a condição de imigrante ou refugiado, insistindo em sua intenção de reconhecimento como artista internacional na cena musical brasileira. Um dos moradores da ocupação Cambridge era o advogado e chef congolês Pitchou Luambo, apresentado no início deste artigo. Em diálogo com o movimento por moradia, Pitchou organizou o GRIST, e uma das ações do grupo era a promoção de atividades artísticas e culturais. Por intermédio do GRIST, Yannick Delass faria sua estreia em palcos paulistanos, no show do 1° Festival do Dia Internacional do Refugiado, organizado pela Frente Independente de Refugiados e Imigrantes (FIRI), em 19 de junho de 2016, atrás da ocupação do Hotel Cambridge, sob o viaduto 9 de julho, na região central de São Paulo.

O palco na rua foi emoldurado pelos grafites coloridos no viaduto, pichações contra o golpe que derrubaria a presidenta Dilma Roussef, algumas habitações de moradores de rua e uma enorme bandeira palestina sobrevoando a plateia. Na rua, uma senhora senegalesa vendia tecidos e ensinava as paulistanas a amarrar turbantes. A fila para o shawarma era longa no restaurante de culinária árabe que se tornou ponto de encontro de refugiados e simpatizantes da causa, mas que hoje vende fufu comida da África ocidental e central também.

No Festival, Yannick cantou à capela em diversas línguas africanas (Lingala, Kimbundu, Kicongo), em creole, português e em francês, acompanhado de seu violão, e também de três músicos congoleses do grupo gospel “Os Escolhidos”, e discursou em português e francês para o público de dezenas de pessoas, a maioria apoiadores do movimento por moradia e da causa do refúgio, e alguns transeuntes que passavam pelo local central.

Em seu show, Yannick recebe no palco seus conterrâneos Pitchou Luambo e Shambuyi Wetu. O primeiro discursa sobre o motivo do festival, a causa do refúgio, o segundo realiza uma performance envolto em jornais, carcaças de celulares e tinta vermelha, intitulada “Não à guerra do Congo”.17 17 A performance “Não à guerra do Congo” e a canção “Biliwe” são apresentadas em vídeo disponível em vimeo.com/lisausp/biliwe No palco, Yannick canta Biliwe, com alguns trechos enunciados em português: “Chega, corrupção / Chega, manipulação / Chega, racismo / Chega, xenofobia / Chega, imperialismo / Chega, injustiça / Chega, hipocrisia”. Seu canto nomeia o continente africano, não países específicos. E suas frases referem-se a uma condição que poderia ser a nossa, brasileira: “Os negros sem acesso à educação de qualidade na Babilônia / Discriminados nos parques públicos, baleados pela polícia, acusados de crimes que não foram cometidos”. Em francês, afirma: “C’ést la guerre”. E na mistura de línguas, que caracteriza sua música e sua condição diaspórica, conclui: “Et toi l’Afrique, et toi povo preto, abre os olhos!”.

Este festival ocorreu poucas semanas após a reunião na Ocupação Cambridge, em que Yannick travara contato com o movimento artivista18 18 Artivismo, como discute Raposo (2015), é um conceito instável que lida com as conexões entre arte e política, quando arte é um ato de resistência e subversão. Flynn (2016) discute artivismo e as fronteiras porosas entre arte contemporânea e movimentos sociais. e a causa dos imigrantes e refugiados. Se naquele momento o artista insistia em sua identidade como músico internacional, neste Dia dos Refugiados Yannick parecia ter consciência do papel ao qual era chamado: seu canto assume-se político, surge claramente em seu discurso a evocação panafricanista da negritude, ganha a cena “o povo preto”.19 19 No encontro na ocupação Cambridge, Yannick ouviu de seu conterrâneo Tresor Muteba, um artista congolês, que já estava em São Paulo há mais tempo: “Cheguei aqui com visto de estudante, não como refugiado, mas não sabia que o Brasil era racista e que o custo de vida era tão alto. Vivi em abrigos, com outros refugiados. Não sei se a condição do imigrante e do refugiado é tão diferente assim”. Essa experiência compartilhada talvez tenha feito Yannick repensar a distância da experiência do imigrante da do refugiado no Brasil, uma vez que ambas são marcadas pela fragilidade dada pela realidade da exclusão social e do racismo vivida pelo “povo preto”. “Essa música serve para falar de onde eu venho, da África, mas acho que serve para nós também. Mas eu canto a realidade de minha terra”.

A explicação, ainda no palco, revela o cuidado do músico imigrante, que está no Brasil em um momento de perdas democráticas importantes e no qual os estrangeiros não tinham o direito à expressão política. Durante as manifestações contra o golpe, ainda em 2016, fomos lembrados que vigia o Estatuto do Estrangeiro (Lei n° 6815/80, art.107), lei instituída durante a ditadura, que dispunha que o estrangeiro admitido em território nacional não podia exercer atividade de natureza política, nem participar de desfiles, passeatas, comícios e reuniões de qualquer natureza no Brasil, submetendo o infrator à pena de detenção de um a três anos e expulsão do país.20 20 Esta lei foi revogada em fins de 2016, mas Jair Bolsonaro se declarou contra a nova Lei da Migração, lei 13.445/17, afirmando que “ninguém quer botar certo tipo de gente para dentro de casa”... Observando esta entrada de Yannick em uma cena musical paulistana, podemos supor que apesar de sua relutância em se identificar com a condição de refugiado ou imigrante, Yannick aceita o papel de protagonizar e representar uma causa, e adequa seu discurso musical a esta realidade.

A trajetória de Yannick nos ensina sobre um aspecto do fazer musical africano em São Paulo: sua associação com a militância em torno das questões dos direitos do imigrante e refugiado e do movimento por moradia e cidadania. Em seu fazer musical nos palcos do artivismo paulistano, Yannick, avesso a rótulos e, resistente a identificações, integra uma espécie de comunidade musical. Para Kay Shelemay (2011SHELEMAY, Kay Kaufman. 2011 “Musical Communities: Rethinking the Collective in Music.” Journal of the American Musicological Society, vol. 64, n. 2: 349-390. DOI https://www.doi.org/10.1525/jams.2011.64.2.349
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: 365, trad. nossa), “uma comunidade musical é uma entidade social, resultado de uma combinação de processos sociais e musicais, fazendo com que aqueles que participam do fazer musical ou da audição musical tenham consciência de uma conexão entre si”. Observamos esse momento em que Yannick, no encontro com outros atores que protagonizam esta cena que é musical e ativista, toma consciência dessa conexão que o afeta e que é afetada por seu musicar.

Quando se fala de hospitalidade de um povo, é uma coisa. Quando se fala de hospitalidade de um país, é outra coisa. Uma coisa é eu estar aqui com um brasileiro me convidando pra ir tomar café na casa dele, jantar, me hospedar. Isso é a hospitalidade do povo. Agora, quando a gente fala que não tem hospitalidade cultural, isso não existe. O aparelho público, as leis, não estão preparados para acolher a música de outras nações. Qualquer proposta para fomento de cultura que não tenha [a possibilidade de se inscrever com] RNE [Registro Nacional do Estrangeiro] quer dizer que ignora imigrantes. (Yannick, em fala para o filme Afro-Sampas, 2020).21 21 Esta e as próximas falas de Yannick integram o filme Afro-Sampas, disponível na íntegra em https://lisa.fflch.usp.br/afrosampas.

Em cena gravada para o filme Afro-Sampas, em dezembro de 2018, Yannick Delass, em sua casa, abre uma pasta com dezenas de documentos, se apresentando não apenas como músico, mas como um empreendedor na área da cultura, que tem que aprender a linguagem do mercado e das leis de fomento no Brasil. Critica a falta de acolhimento ao artista estrangeiro por parte das instituições públicas brasileiras. Cria o conceito de hospitalidade cultural, e diferencia a hospitalidade do povo brasileiro - que o recebe, o hospeda - e a do Estado, que não fornece instrumentos para que o estrangeiro possa concorrer no mercado de editais para a área de cultura.

Em 2017, Yannick criou o projeto Gringa Music, que define, em sua página de Facebook, como “um palco de música do mundo ‘world music’ onde se apresenta a música de alta qualidade dos imigrantes residentes em São Paulo”. Na mesma página, são listados os objetivos do projeto, entre eles “revolucionar” a cena musical em São Paulo e “quebrar as fronteiras musicais invisíveis que os músicos imigrantes enfrentam na cidade”. Entre estas fronteiras estariam a “rotulação” de sua música e a “desvalorização da música” dos imigrantes. O Gringa Music aconteceu inicialmente todas as quartas-feiras no Al Janiah, com apresentação de músicos imigrantes de diferentes países e continentes. O Al Janiah é um bar, restaurante e espaço “político e cultural” fundado em 2016 por um palestino-brasileiro, militante do Movimento Palestina para Tod@s, próximo à Ocupação do Hotel Cambridge. Posteriormente, mudou-se para um espaço mais amplo no Bixiga, com capacidade para 180 pessoas sentadas, e quase sempre lotado. Às quartas, o palco era ocupado com a curadoria musical de Yannick. Não só músicos africanos se apresentam no projeto, mas de todos os continentes, Ásia, Europa, América Latina e Central, Oriente Médio. Yannick levou o projeto a outros espaços paulistanos, como a Biblioteca Mário de Andrade, e, em 2021, com a pandemia e a situação de isolamento social, as apresentações estão acontecendo semanalmente online, difundidas pelo Facebook, com apoio da Lei Aldir Blanc.22 22 Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc (Lei nº 14.017/2020) estabelece mecanismos e critérios para garantir apoio às trabalhadoras e trabalhadores da cultura e à manutenção de territórios/espaços culturais com atividades interrompidas por força da pandemia causada pelo novo coronavírus. Dois projetos de Yannick Delass foram contemplados, o Gringa Music (com o Edital Proac “Produção e realização de festival de cultura e economia criativa com apresentação online”) e Congo Ancestral (este com Edital Proac Expresso, para “Produção e temporada de espetáculo de música com apresentação online”).

“Eu me coloquei no meu lugar como estrangeiro, gringo, preto, pobre. E tentei propor alguma coisa baseado na experiência dos outros”. Yannick joga com as categorias identitárias, ressignifica termos para construir espaços autorais de atuação na cena musical paulistana. Africanos, latino-americanos, árabes, asiáticos “viram” gringos, na releitura de Yannick para um termo que no Brasil é geralmente atribuído ao estrangeiro branco, principalmente estadunidense. De “seu lugar”, o congolês agencia a identidade de imigrante e negro, com a qual se deparou quando chegou à São Paulo, e atua na construção de uma cena, apropriando-se de um cosmopolitismo cultural que percebe na cidade. Em sua trajetória pessoal e em contato com uma cena paulistana marcada pelos movimentos sociais e culturais, Yannick constrói sua ação no campo do empreendedorismo cultural, como produtor de uma cena que, para lá de africana ou congolesa, é “gringa”. Com todas as dificuldades para navegar em um universo complicado até mesmo para os artistas brasileiros, Yannick conquista espaços institucionais, inclusive no mundo dos editais. Se o Brasil não lhe oferecia a hospitalidade desejada, o artista inventa-se como anfitrião para outros músicos imigrantes.

Desde o início desta pesquisa, em 2016, observamos que os músicos africanos em São Paulo têm atuado em diferentes frentes, que identificamos como espaços culturais públicos, privados ou institucionais (Chalcraft e Hikiji, 2018CHALCRAFT, Jasper; HIKIJI, Rose Satiko G. 2018. “Opening eyes through ears: migrant Africans musiciking in São Paulo”. In: REILY, Suzel; BRUCHER, Katherine. (eds.). The Routledge companion to the study of local musicking, Oxon, New York, Routledge, v.1, pp. 473-486. DOI https://www.doi.org/10.4324/9781315687353-41
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). Acompanhamos apresentações desses artistas em bares, restaurantes e centros culturais (espaços privados), em eventos ora voltados à música do mundo, ora à “causa” do refúgio, ora à cultura afrodiaspórica. Yannick Delass promovia o Gringa Music no restaurante Al Janiah, tocava no Fatiado Discos em noite denominada “Jantar dos refugiados”, ambos espaços culturais privados, levou seus projetos de curadoria para a Biblioteca Mário de Andrade, um espaço público, tocou em festivais promovidos por organizações por causas sociais (imigrantes ou sem-teto), fez diversos shows em unidades do SESC, organização privada não lucrativa, uma das principais promotoras de atividades artísticas no país, com forte ação para a promoção do que define como diversidade cultural. Estes espaços, institucionais ou não, públicos ou privados, são ocupados com o musicar dos artistas imigrantes, e nos últimos anos observamos a constituição de uma cena de música diversa da brasileira quiçá música do mundo.23 23 Embora São Paulo seja uma megacidade global, tendo aspectos de suas cenas culturais em comum com lugares como Londres, Nova York, Berlim, uma diferença fundamental é a inexistência da world music. Em parte, isso se deve à categorização do próprio Brasil como fonte de músicas deste gênero. Para os novos artistas da diáspora africana, a inexistência da world music no Brasil se torna uma questão, uma vez que na Europa e nos Estados Unidos eles poderiam usar seu capital transcultural dentro dos circuitos de distribuição e consumo desse gênero musical. A complexidade da questão ressoa algumas das críticas feitas à categoria world music: é redutora, inconsistente, romântica e geralmente fora de sincronia com gêneros musicais, cenas e subculturas nos países de origem. Para uma discussão sobre o uso do termo world music na etnomusicologia e no mercado musical ver D’Amico (2020: 44/5).

“É ARTE, É CULTURA E É POLÍTICA” [SOLIDARIEDADE AFRO-DIASPÓRICA]

Lenna Bahule, uma musicista cosmopolita, percebeu o desconhecimento da diversidade cultural africana por parte do paulistano. Ao ser questionada sobre suas origens, seus interlocutores tinham em mente uma África uniforme, estereotipada, com “pulos, panos, tambores”. Para satisfazer a demanda por sua africanidade, Lenna decidiu buscar em sua história referências artísticas e afetivas. E apresenta ao paulistano algumas de suas descobertas. Em São Paulo, realizou oficinas de cantos e brincadeiras moçambicanas, em instituições como o Sesc e a Fundação Emma Klabin. Trouxe para São Paulo os artistas moçambicanos Cheny Wa Gune e Xixel Langa, que se apresentaram com ela tanto na periferia (no espaço Clariô, em Taboão da Serra, onde atuam as Clarianas) quanto no centro, na Casa de Francisca, espaço de shows dos mais conceituados no centro de SP. Em suas composições, seja em duo, quarteto ou no Projeto Nômades, traz ritmos, histórias e danças que recuperou a partir de sua memória da infância e de pesquisa musicológica. No álbum Nômades, por exemplo, Lenna canta uma canção machope, povo do sul de Moçambique de onde vem sua família paterna, com a qual teve contato em livro sobre músicas de seu país. Somente depois de apresentar a música em um show, Lenna viria a saber que a canção pertencia à família de seu pai, os Baule. Lenna também canta em outras línguas, como swahili, changana/ronga, mas sua pesquisa a leva também a inventar uma língua, com a qual povoa algumas de suas canções.

A língua inventada de Lenna remete às suas origens e revela aspectos difíceis das políticas linguísticas coloniais e seus ecos em Moçambique. Até 2003, as línguas locais - 43, segundo o Ethnologue: Languages of the world (Berhard, Simons e Fennig, 2021BERHARD, David; SIMONS, Gary; FENNIG, Charles (orgs.). 2021. Ethnologue: Languages of the World. 24° edição. Dallas, Texas, SIL International. Disponível em: Disponível em: http://www.ethnologue.com . Acesso em 15/05/2022
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) - não eram ensinadas nas escolas do país, e só recentemente passaram a ser aceitas em instituições públicas.24 24 Só em 2015 foi aprovado o uso de línguas moçambicanas como instrumento de trabalho nas assembleias provinciais do país. De acordo com Lemos (2018), segundo Recenseamento Geral da População (2007), 85,2% de moçambicanos falam as várias línguas bantus como língua materna contra 10,5% que falam português. Apesar disso, somente em 2003 o ensino bilíngue nas escolas foi implementado, e ainda de forma parcial (menos de 10 % das escolas) e opcional. Em outras palavras, persiste uma hierarquia linguística derivada do período colonial, na qual o domínio da língua europeia é a chave para a mobilidade social e econômica e, no caso de Moçambique, contribuindo para uma colonização linguística da população rural (de predominância Bantu) pela língua preferida das elites urbanas. No Brasil, ouvimos as canções de Lenna com sotaque “africano” e nos satisfazemos com a africanidade que ela nos traz. Em Maputo, em entrevista a uma rádio local, diante da pergunta do jornalista que não reconhecera a língua de uma canção, a compositora confessa a invenção. A criatividade de Lenna é sua resposta engenhosa à herança colonial de seu país.

O sucesso de Lenna em São Paulo, com um álbum que ficou entre os 100 melhores de 2016, mostra a abertura do público para uma música que mistura referências moçambicanas, com improvisação vocal, percussão corporal e participações de instrumentistas importantes da cena musical paulistana, além de composições de seus conterrâneos, como Cheny Wa Gune. Lenna encontra em São Paulo um público cosmopolita aberto às experimentações musicais que seu capital transcultural lhe permite realizar. Entre seus apreciadores, além do público com histórico interesse nas culturas afrodiaspóricas, podem estar “onívoros culturais”, com “abertura para apreciar tudo” (Peterson e Kern, 1996PETERSON, Richard A; KERN, Roger M. 1996. “Changing Highbrow Taste: From Snob to Omnivore”. American Sociological Review vol. 61, n. 5: 900-07. DOI https://www.doi.org/10.2307/2096460
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: 904), alguns mais abertos política e culturalmente, outros interessados em ostentar um conhecimento artístico, ainda restrito a uma elite cultural.25 25 Para uma discussão sobre “cultural omnivores’, ver Chan (2019). Esse capital, tantas vezes mobilizado na construção de sua própria trajetória artística, ganha dimensões ativistas quando Lenna decidiu, em maio de 2019, promover um grande show em prol de Moçambique, que enfrentava então a maior tragédia natural de sua história.26 26 O ciclone Idai foi o mais forte ciclone tropical a atingir Moçambique desde 2008. Causou graves inundações no país, e também em Madagascar, Malauí e Zimbábue, deixou mais de mil mortos e afetou centenas de milhares de pessoas. Para realizar “Somos Moçambique”, Lenna conseguiu o apoio da casa de espetáculos Natura Musical, de toda a equipe técnica e mais de 40 artistas brasileiros que se revezam em um show de mais de três horas, celebrando os “fortes elos que ligam Brasil e Moçambique”. O evento foi prestigiado por mais de 600 pagantes (o valor arrecadado com os ingressos, vendidos entre 60 e 120 reais, foi doado, via Cruz Vermelha, para ações de cuidados às vítimas do ciclone). Dentre os artistas que participaram gratuitamente do evento, estavam Alessandra Leão, Anelis Assumpção, Anna Setton, Anna Tréa, Arnaldo Antunes, Batucada Tamarindo, Clarianas, Craca e Dani Negra, Curumin, Diego Moraes, Fabiana Cozza, Gumboot Dance Brasil, Horoya, Ian Cardoso, Illy, Jaloo, Josyara, Karol Conka, Kastrup, Lucas Santtana, Luedji Luna, Luiza Lian, Márcia Castro, Mc Tha, Mestrinho, Mondhoro, Nicolas Krassik, Nina Oliveira, Nômade, Otis, Pipoquinha, Preta Rara, Samba da Nega Duda, Samuca e a Selva, Simoninha, Timeline Trio, Tulipa Ruiz, Tuto Ferraz, Xênia França, entre outros. Artistas de gêneros musicais diversos, muitos afro-brasileiros, mas não só, alguns parceiros de Lenna em outras colaborações.

Entre cada apresentação27 27 O show foi transmitido pelo Canal Futura e está gravado no Facebook: https://fb.watch/4oj2lI2L6q/ , a dupla de apresentadores fazia menções de solidariedade à Moçambique, e em diversos momentos as falas dos músicos mencionavam não só a nação africana, mas o “povo preto”, aquilo que une Brasil e Moçambique para além da língua portuguesa. Em uma das mais longas apresentações da noite, e a única não protagonizada por um músico, a deputada estadual Erica Malunguinho fez por 17 minutos um discurso potente, acompanhada apenas pelos percussionistas que estavam no palco. Erica é primeira mulher trans a ser eleita para uma assembleia legislativa no Brasil e criadora do espaço cultural Aparelha Luzia, dedicado à arte afro-brasileira e autodefinido como um “quilombo urbano”.28 28 Criado em 2016, o Aparelha Luzia abrigou diversas performances de artistas africanos recémchegados a São Paulo.

Erica entra no palco, corpo em movimento, dança de orixá, saúda Exu, a Jurema sagrada e outras entidades de religiões afro-indígenas e afro-brasileiras. É aplaudida pelo público e pelos músicos no palco. Ao som da percussão, entoa frases ritmadas, repetindo-as lentamente várias vezes. “É disso que se trata, é arte, é cultura e é política”. Repete quatro vezes a frase. “Preeetaaaa, preeetaaa, preeetaaa”. O grito-chamado soa, evoca. “Salve Moçambique, salve o Haiti, salve Etiópia, salve Nigéria, salve Itaim Paulista, salve Guaianases, salve Jardim Ângela….”. Sua fala aproxima países africanos, afrodiaspóricos e bairros periféricos, de maioria negra, pobre. Explica: “Significa dizer que Moçambique é aqui, Guaianases é aqui, Itaim Paulista é aqui…. A diáspora é aqui”. A percussão sobe. Erica continua dançando e mexendo nas tranças.

Nossos passos vêm de longe, vêm de Áfricas, dos pretos de lá, dos que já estavam cá, salve povos indígenas. Vêm dos navios negreiros, das senzalas, vêm dos quilombos, do Quilombo dos Palmares, nosso único real e verdadeiro governo (…) “Vêm dos maracatus, maculelês, do semba ao samba, do semba ao samba, do semba ao samba”. Erica samba agora, tem samba no pé. “Nossos passos vêm de muito longe, vêm da Revolução Haitiana. Nossos passos vêm dos Panteras Negras, do Teatro Experimental do Negro, da luta pelas cotas, da intelectualidade negra, vêm do candomblé, vêm do emprego doméstico, do trabalho na construção civil, da moradia de rua, do cárcere, do crack…” . Sua fala aproxima lutas e condições locais e transnacionais, incluindo o Brasil em uma história geral de lutas anticoloniais e socialistas afro-diaspóricas. (Érica Malunguinho durante performance no Somos Moçambique, 2019).

‘Mas essa luta é também negra e feminina. “Essa narrativa recomeça pelas mulheres, por nós mulheres… Preeeetaaaa… As mulheres cis, e as transexuais e travestis”. E Erica recita nomes: Angela Davis, Lélia Gonzales, Dona Ivone Lara; negras intelectuais, militantes, artistas. “Negro é a raiz da liberdade”, repete quatro vezes. “Vidas negras importam, importam sim”, quatro vezes. “A luta negra fala sobre si, mas é para a emancipação coletiva”.

Lenna Bahule subiu ao palco logo após esta contundente apresentação de Erica Malunguinho. Hostess desses 40 performers quase todos brasileiros, negros, muitas mulheres, Lenna exerce uma hospitalidade reversa: recebe, em um palco paulistano, músicos brasileiros para apoiar uma causa moçambicana. “Moçambique, minha terra, agradece. Nós moçambicanos sempre vimos o Brasil como uma referência”. Menciona a “decepção, angústia e até um certo medo” dos tempos que testemunhou emergir nos últimos anos. Mas ao lado do medo, há a arte “forte e potente” vivida em São Paulo. Em seguida, faz sua chamada, povoada por protagonistas do “povo preto”, a qual a plateia responderá sempre: “presente”. O panteão homenageado agrega lideranças brasileiras no campo da política e da cultura assassinadas neste momento de “medo” (Marielle, Mestre Moa), artistas, intelectuais e religiosos disseminadores da cultura afro-brasileira (Raquel Trindade, Mãe Stella de Oxóssi, Beth Carvalho, Luiz Melodia, Beatriz Nascimento, Tula Pilar), guerreiras de lutas anti-coloniais no Brasil e Angola do século XVII (Dandara, Rainha Nzinga), lideranças de lutas pela independência moçambicana (Samora Machel, Josina Machel, Eduardo Mondlane) e anti-apartheid (a música “Mama África” Miriam Makeba) no século XX.

Este megaevento - mais que um show ou uma ação solidária - ganha uma dimensão de “arte, cultura e política” pela intervenção dessas duas mulheres negras: uma musicista moçambicana vivendo em São Paulo, uma mulher transexual nascida em Pernambuco e deputada pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) na Assembleia Legislativa de São Paulo. Seus discursos - em meio às manifestações musicais diversas entre o rap, o funk, o afrobeat, o samba e outras misturas da nova MPB - criam um mundo de imaginação e potencialidade política, um espaço para a solidariedade, habitado por entidades africanas e afrodiaspóricas da história passada e presente, de lutas e manifestações artísticas anticoloniais, antiescravistas, panafricanistas.

WARETHWA”, ESTAMOS JUNTOS [MUSICAR E AÇÃO]

Lenna encerra sua fala ao final do megaevento “Somos Moçambique” com um agradecimento em changana, “kanimambo”, e com a expressão chope “warethwa”, que significa “estamos juntos”. Enunciadas na língua de sua família paterna e em português, essas palavras são evocativas, suscitam a ação. John Blacking, em Music, culture & experience, afirma que o fazer musical é um “tipo especial de ação social que pode ter importantes consequências para outros tipos de ação social” (Blacking, 1995BLACKING, John. 1995. Music, culture & experience. Chicago, University of Chicago Press.: 223, trad. nossa). O etnomusicólogo defende a agência do fazer musical, para além de seu potencial apenas reflexivo. A música, mais que “mero som”, é uma linguagem para comunicar ideias. Ela não faz necessariamente as pessoas agirem, mas pode fazê-lo, caso haja uma disposição cultural e social para a ação (idem: 35-6). Música não é “diretamente política”, mas pode gerar sentimentos e relações entre pessoas que possibilitam pensamentos e ações positivos nos campos que não são musicais” (idem: 198). Música não é o motor da mudança, mas pode ser uma ferramenta indispensável para a transformação da consciência, “um primeiro passo para a transformação das formas sociais” (idem: 232).

Observar o musicar de africanos imigrantes e refugiados na cidade de São Paulo, seguir suas redes, adentrar os espaços que estão construindo, ouvir seus chamados e respostas nos faz pensar no potencial da música para além da performance, do entretenimento. Musicar revela-se ação social, que move sentimentos, cria consciência, promove transformações, pauta debates, constrói imaginários, amplia imaginações.

Em “Somos Moçambique”, o capital transcultural de Lenna Bahule é mobilizado em um contexto de solidariedades transatlânticas, catalisadas por desastres naturais e sociais: um ciclone tropical, o racismo estrutural. O encontro entre músicos africanos e afro-brasileiros e as entidades criativas por eles evocadas apontam para a potência artística de resistência em diferentes histórias coloniais. O “povo preto” ao qual se dirige Yannick Delass em seu canto sob o viaduto ganha corpo(s) neste palco superpovoado do evento pró-Moçambique. Além dos 40 e poucos músicos no palco, são convocadas entidades da história africana e sua diáspora para lembrar da força das lutas antirracistas e anticoloniais. O panteão evocado e os performers presentes encenam novas realidades políticas, convocam para uma união, fundamental para vencer o “medo”.

Em diversas esferas, atuando como músicos, produtores, fomentadores, educadores, entre o palco e o ativismo, Lenna, Yannick e outros músicos africanos que enfrentam a Paulicéia Desvairada constroem formas de ação. Em um megaevento, Lenna mobiliza suas redes para reunir pessoas e instituições em prol de uma ação para seu país. Mas no palco, seus amigos artistas, quase todos brasileiros, agem também em prol de causas locais - a tragédia (natural, social) é transnacional. Em seu projeto de ação cultural, Yannick mobiliza dezenas de músicos, quase todos estrangeiros, em prol de uma cena musical diversificada. Ao se perceber “internacional”, Yannick evidencia o potencial artístico do encontro transcultural. E sua militância cultural é constantemente chamada a reforçar lutas locais e translocais (dos sem teto aos refugiados).

Para Kay Shelemay (2011SHELEMAY, Kay Kaufman. 2011 “Musical Communities: Rethinking the Collective in Music.” Journal of the American Musicological Society, vol. 64, n. 2: 349-390. DOI https://www.doi.org/10.1525/jams.2011.64.2.349
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), a performance musical é parte integral de processos que podem gerar, dar forma e sustentar novas coletividades. Em um momento de mobilidades e cosmopolitismo, mais do que comunidades localizadas, podemos pensar em comunidades “imaginadas” ou “sentidas”.29 29 Em seu artigo, Shelemay destaca as noções de Anderson (da nação e até mesmo pequenas vilas serem comunidades políticas imaginadas) e de Cohen (da comunidade como questão de sentimentos, baseada no compartilhamento de símbolos ou performances musicais). É dessa ordem o “povo preto” evocado no musicar de Lenna Bahule, Érica Malunguinho, ou Yannick Delass. Entendemos também que imaginários reconfiguram os sentidos e potenciais do pertencimento para estes artistas da diáspora: vimos como o capital transcultural afropolitano é usado e instrumentalizado em suas políticas do musicar.

Retomando Feld (2012FELD, Steven. 2012. Jazz cosmopolitanism in Accra: five musical years in Ghana. Durham: Duke University Press.) e sua etnografia da cena jazzística em Accra, a tradição pode ser uma fonte de movimento, um jeito de criar culturas presentes e futuras. Mais que um recurso cultural - a África como lugar de “origens” sem espaço para negociar uma presença histórica verdadeira - os interlocutores de Feld propõem pensar a tradição como “modo de mudança”, numa versão local da perspectiva antropológica de Marshall Sahlins. Para Ghanaba, músico de Gana que fez carreira na cena jazzística norte-americana nos anos 1950, e retornou a seu país nos anos 1960, “se você quer ir pra frente, volte a suas raízes”. Este conceito de sankofa é ilustrado por um pássaro que estica seu pescoço para trás para tirar um ovo de suas costas. Afrofuturismos e utopias precisam de um passado, mas não apenas um passado mítico (uma origem), mas um que reconheça todas as complexidades de um passado complicado.

Shelemay discute como nos anos 1980 a antropologia buscou novos modelos para pensar rotas (“routes”) em vez de raízes (“roots”). Nos anos 2000, Mbembe (2007) e Selasi (2005SELASI, Taiye. 2005. “Bye-Bye Babar”. TIle LIP. Disponível em https://thelip.robertsharp.co.uk/2005/03/03/bye-bye-barbar/
https://thelip.robertsharp.co.uk/2005/03...
) propõe com o Afropolitanismo uma relativização das raízes e pertencimentos primários, o interesse pelo estrangeiro, pelo estranho, a domesticação do que não é familiar. Seguindo as rotas percorridas por artistas africanos nômades, observamos essa “sensibilidade cultural, histórica e estética” (Mbembe, 2015MBEMBE, Achille. 2015. “Afropolitanismo”. Tradução de Cleber Daniel Lambert da Silva. Áskesis, vol. 4, n. 2: 68-71. DOI https://www.doi.org/10.46269/4215.74
https://doi.org/https://www.doi.org/10.4...
, p. 70) em ação, em um movimento constante, seja entre continentes, entre centro e periferia, entre palcos e palanques.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • TRAJANO FILHO, Wilson (org.). 2012. Lugares, pessoas e grupos: as lógicas do pertencimento em perspectiva internacional. Brasília: ABA Publicações, 2012.
  • 1
    Nova música popular brasileira, música independente ou música alternativa são denominações utilizadas pelos artistas e analistas desta cena, caracterizada pela distância dos grandes meios de comunicação, o recurso a editais e mecenato privado. Para mais sobre a cena ver Faraco, 2020FARACO, Felipe B. 2020. Música alternativa brasileira: análise de trajetórias. São Paulo, tese de doutorado, Universidade de São Paulo..
  • 2
    Pesquisa dos autores deste artigo realizada junto ao Projeto Temático “O musicar local - Novas trilhas para a etnomusicologia” (processo FAPESP 2016/05318-7), que integramos como pesquisadora principal e pesquisador associado. Rose Satiko G. Hikiji é bolsista de produtividade do CNPq.
  • 3
    As referências aqui são várias: a antropologia compartilhada de Jean Rouch (Hikiji, 2013), as discussões do campo do filme etnográfico (Crawford e Turton, 1995CRAWFORD, Peter; TURTON, David. 1995. Film as ethnography. Manchester e Nova York, Manchester University Press.), os experimentos com arte e antropologia (Schneider e Wright, 2010SCHNEIDER, Arnd; WRIGHT, Christopher. 2010. Between art and anthropology: Contemporary Ethnographic Practice. New York: Berg). Discutimos alguns destes aspectos colaborativos no fazer do filme etnográfico em Chalcraft e Hikiji, 2020CHALCRAFT, Jasper; HIKIJI, Rose Satiko G. 2020. “Collaborative post-production”, in VANNINI, Phillip. (org.). The Routledge international handbook of ethnographic film and video. Abingdon, Routledge, pp. 214-223. DOI https://www.doi.org/10.4324/9780429196997-24
    https://doi.org/https://www.doi.org/10.4...
    .
  • 4
    Lenna chega ao Brasil em 2012, durante o governo de Dilma Roussef (2011-2016), a terceira gestão do Partido dos Trabalhadores na presidência do país, sucedendo 8 anos de governo de Luis Inácio Lula da Silva (2003-2011). Na cidade de São Paulo, o PT também governava entre 2013 e 2017, na gestão de Fernando Haddad. Lenna menciona o interesse sobre assuntos africanos nas escolas públicas, e este está também relacionado à lei promulgada em 2003 (10.639/03), primeiro ano do governo Lula, alterada pela Lei 11.645/08, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio. Para uma análise do papel do governo Lula nas políticas raciais no Brasil ver Lima( 2010)LIMA, Márcia. 2010. “Desigualdades raciais e políticas públicas: ações afirmativas no governo Lula”. Novos Estudos - CEBRAP, n. 87: 77-95. DOI https://www.doi.org/10.1590/S0101-33002010000200005.
    https://doi.org/https://www.doi.org/10.1...
    .
  • 5
    Gringa Music é o projeto de curadoria musical de Yannick Delass, que detalharemos a seguir. Nômades é o projeto de Lenna Bahule, que resulta em um CD e uma série de shows em São Paulo e Moçambique, com músicos dos dois países.
  • 6
    Para mais sobre a ideia de musicar local, ver Hikiji, Reily e Toni (2016)HIKIJI, Rose Satiko G.; REILY, Suzel; TONI, Flavia Camargo. 2016. O Musicar Local - novas trilhas para a etnomusicologia. Projeto temático (Fapesp) 2016/05318-7. São Paulo, Unicamp/USP, 2016. Disponível em: http://antropologia.fflch.usp.br/sites/antropologia.fflch.usp.br/files/upload/paginas/O%20MUSICAR%20LOCAL%20projeto.pdf
    http://antropologia.fflch.usp.br/sites/a...
    .
  • 7
    Em um artigo em que discute o “musicar local” e a produção de localidades, Suzel Reily (2021REILY, Suzel. 2021. “Local musicking and the production of locality”. GIS Gesture, Image and Sound Anthropology Journal, vol. 6, n. 1: e-185341. DOI https://www.doi.org/10.11606/issn.2525-3123.gis.2021.185341
    https://doi.org/https://www.doi.org/10.1...
    : 12) detalha esta ideia exemplificando com o caso da África do Sul: “desde o fim do Apartheid, muitos Venda têm se voltado às práticas musicais no difícil processo de recuperação de uma estrutura de sentimentos que lhes garanta um retorno para uma localidade onde o espírito comunitário leve à redução da violência e melhores condições de vida” (grifos nossos).
  • 8
    O CD “Nômade”, de Lenna Bahule, foi selecionado como um dos 100 melhores discos nacionais de 2016 pelo site Embrulhador, uma referência da crítica da música popular brasileira.
  • 9
    Os filmes aqui mencionados, bem como outros materiais da pesquisa podem ser consultados no site http://www.usp.br/afrosampas. Sugerimos ao leitor a visualização dos filmes, em virtude de sua centralidade no projeto de conhecimento aqui apresentado.
  • 10
    Hannerz descreve diferentes tipos de cosmopolitismo. Citando Piot e sua pesquisa com agricultores no Togo, propõe pensar como cosmopolitas não só moradores de megalópoles, mas também pessoas que vivem em situações caracterizadas por “fluxo, incerteza, encontros com a diferença e a experiência de processos de transculturação” (Piot, 1999, apudHannerz, 2006HANNERZ, Ulf. 2006. Two faces of cosmopolitanism: culture and politics. Barcelona: CIDOB Ediciones.:.15; trad. nossa).
  • 11
    A entrevista foi registrada no vídeo Lenna, disponível em https://vimeo.com/181981199.
  • 12
    Esta e as próximas declarações de Lenna são trechos de conversas e entrevistas, registradas no filme Woya Hayi Mawe Para onde vais?, disponível também em https://vimeo.com/lisausp/woyahayimawept
  • 13
    Segundo dados do IBGE (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Anual PNAD 2019), da população total do Brasil de 209,4 milhões de pessoas, 19,7 milhões se declaram pretas e 98,1 milhões, pardas.
  • 14
    Na versão original: “for many artists the strategic potential of their transcultural capital emerged as an ability to play the ethnic-diasporic and the cosmopolitan card at the same time” (Glick-Schiller e Meinhof 2011GLICK-SCHILLER, Nina; MEINHOF, Ulrike H. 2011. “Singing a New Song? Transnational Migration, Methodological Nationalism and Cosmopolitan Perspectives”. Music and Arts in Action, vol. 3, n. 3: 21-39.: 30)
  • 15
    “as both a creative necessity and a limitation, a nostalgic identification and a strategic tool for surviving as a professional musician” (GlickSchiller e Meinhof 2011: 30).
  • 16
    A Residência Artística Cambridge teve início em 2016, proposta por Juliana Caffé, Yudi Rafael e Alex Flynn, em uma “complexa relação entre arte e ativismo”, na Ocupação do Hotel Cambridge, coordenada pelo MSTC (Movimento dos Sem Teto do Centro), um edifício ocupado pelo movimento por moradia de São Paulo, com cerca de 550 moradores. Por meio de oficinas, cineclube e palestras, promoveu o encontro dos moradores da ocupação com um público “empático ao problema de moradia”, mas que não conhecia o Hotel Cambridge (Lira, 2016LIRA, Icaro (org.). 2016. Residência ocupação Cambridge. São Paulo, Edições Aurora. Disponível em Disponível em https://issuu.com/icarolira/docs/cambridge_icaro_final_baixa . Acesso em 15/05/2022
    https://issuu.com/icarolira/docs/cambrid...
    ).
  • 17
    A performance “Não à guerra do Congo” e a canção “Biliwe” são apresentadas em vídeo disponível em vimeo.com/lisausp/biliwe
  • 18
    Artivismo, como discute Raposo (2015)RAPOSO, Paulo. 2015. “‘Artivismo’: articulando dissidências, criando insurgências. Cadernos de Arte e Antropologia, vol. 4, n. 2: 3-12. DOI https://www.doi.org/10.4000/cadernosaa.909
    https://doi.org/https://www.doi.org/10.4...
    , é um conceito instável que lida com as conexões entre arte e política, quando arte é um ato de resistência e subversão. Flynn (2016) discute artivismo e as fronteiras porosas entre arte contemporânea e movimentos sociais.
  • 19
    No encontro na ocupação Cambridge, Yannick ouviu de seu conterrâneo Tresor Muteba, um artista congolês, que já estava em São Paulo há mais tempo: “Cheguei aqui com visto de estudante, não como refugiado, mas não sabia que o Brasil era racista e que o custo de vida era tão alto. Vivi em abrigos, com outros refugiados. Não sei se a condição do imigrante e do refugiado é tão diferente assim”. Essa experiência compartilhada talvez tenha feito Yannick repensar a distância da experiência do imigrante da do refugiado no Brasil, uma vez que ambas são marcadas pela fragilidade dada pela realidade da exclusão social e do racismo vivida pelo “povo preto”.
  • 20
    Esta lei foi revogada em fins de 2016, mas Jair Bolsonaro se declarou contra a nova Lei da Migração, lei 13.445/17, afirmando que “ninguém quer botar certo tipo de gente para dentro de casa”...
  • 21
    Esta e as próximas falas de Yannick integram o filme Afro-Sampas, disponível na íntegra em https://lisa.fflch.usp.br/afrosampas.
  • 22
    Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc (Lei nº 14.017/2020) estabelece mecanismos e critérios para garantir apoio às trabalhadoras e trabalhadores da cultura e à manutenção de territórios/espaços culturais com atividades interrompidas por força da pandemia causada pelo novo coronavírus. Dois projetos de Yannick Delass foram contemplados, o Gringa Music (com o Edital Proac “Produção e realização de festival de cultura e economia criativa com apresentação online”) e Congo Ancestral (este com Edital Proac Expresso, para “Produção e temporada de espetáculo de música com apresentação online”).
  • 23
    Embora São Paulo seja uma megacidade global, tendo aspectos de suas cenas culturais em comum com lugares como Londres, Nova York, Berlim, uma diferença fundamental é a inexistência da world music. Em parte, isso se deve à categorização do próprio Brasil como fonte de músicas deste gênero. Para os novos artistas da diáspora africana, a inexistência da world music no Brasil se torna uma questão, uma vez que na Europa e nos Estados Unidos eles poderiam usar seu capital transcultural dentro dos circuitos de distribuição e consumo desse gênero musical. A complexidade da questão ressoa algumas das críticas feitas à categoria world music: é redutora, inconsistente, romântica e geralmente fora de sincronia com gêneros musicais, cenas e subculturas nos países de origem. Para uma discussão sobre o uso do termo world music na etnomusicologia e no mercado musical ver D’Amico (2020D’AMICO, Leonardo. 2020. Audiovisual ethnomusicology: filming musical cultures. New York: Peter Lang.: 44/5).
  • 24
    Só em 2015 foi aprovado o uso de línguas moçambicanas como instrumento de trabalho nas assembleias provinciais do país. De acordo com Lemos (2018)LEMOS, Amélia Francisco Filipe da C. 2018. “Língua e cultura em contexto multilingue: um olhar sobre o sistema educativo em Moçambique”. Educação em Revista, vol. 34, n. 69: 17-32. DOI https://www.doi.org/10.1590/0104-4060.57228.
    https://doi.org/https://www.doi.org/10.1...
    , segundo Recenseamento Geral da População (2007), 85,2% de moçambicanos falam as várias línguas bantus como língua materna contra 10,5% que falam português. Apesar disso, somente em 2003 o ensino bilíngue nas escolas foi implementado, e ainda de forma parcial (menos de 10 % das escolas) e opcional. Em outras palavras, persiste uma hierarquia linguística derivada do período colonial, na qual o domínio da língua europeia é a chave para a mobilidade social e econômica e, no caso de Moçambique, contribuindo para uma colonização linguística da população rural (de predominância Bantu) pela língua preferida das elites urbanas.
  • 25
    Para uma discussão sobre “cultural omnivores’, ver Chan (2019)CHAN, Tak Wing. 2019. “Understanding cultural omnivores: social and political omnivores”. The British Journal of Sociology, vol. 70, n. 3: 784-806. DOI https://www.doi.org/10.1111/1468-4446.12613
    https://doi.org/https://www.doi.org/10.1...
    .
  • 26
    O ciclone Idai foi o mais forte ciclone tropical a atingir Moçambique desde 2008. Causou graves inundações no país, e também em Madagascar, Malauí e Zimbábue, deixou mais de mil mortos e afetou centenas de milhares de pessoas.
  • 27
    O show foi transmitido pelo Canal Futura e está gravado no Facebook: https://fb.watch/4oj2lI2L6q/
  • 28
    Criado em 2016, o Aparelha Luzia abrigou diversas performances de artistas africanos recémchegados a São Paulo.
  • 29
    Em seu artigo, Shelemay destaca as noções de Anderson (da nação e até mesmo pequenas vilas serem comunidades políticas imaginadas) e de Cohen (da comunidade como questão de sentimentos, baseada no compartilhamento de símbolos ou performances musicais).
  • FINANCIAMENTO:

    Pesquisa realizada com apoio da Fapesp e CNPq: Processos Fapesp 16/05317-7 (projeto temático “O musicar local”); 19/09397-7 (pesquisador visitante), e CNPq (Bolsa de produtividade Rose Satiko Hikiji: 311537/2019-7). A tradução do artigo foi realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Brasil (CAPES) Código de Financiamento 001.
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    ambos os autores realizam a pesquisa em parceria (Processos Fapesp 16/05317-7 e 19/09397-7) e contribuíram igualmente com as reflexões para o artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2021
  • Aceito
    01 Dez 2021
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
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