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As meninas de hoje em dia: Gênero, geração e (des) afetos em conversas sobre amor e sexo em Cabo Verde

TODAY'S GIRLS: GENDER, GENERATION AND (DIS)AFFECTIONS IN CONVERSATIONS ABOUT LOVE AND SEX IN CAPE VERDE

RESUMO

O objetivo deste artigo é pensar as avaliações morais sobre os comportamentos das mulheres jovens e adultas no universo afetivo-conjugal, estando atenta para os complexos processos de transformação e reprodução social. Os dados analisados se assentam em pesquisas realizadas no arquipélago de Cabo Verde com três conjuntos de interlocutores/as, mulheres de meia idade (mães/avós), moças e rapazes. Seus discursos são atravessados por interpretações, análises, julgamentos e acusações mútuas que versam sobre os comportamentos e as condutas femininas. A partir de um diverso material etnográfico, argumento que a base de tais discursos se assenta em grades classificatórias moralizantes que têm continuidade no tempo e no espaço, porém, sendo vivenciadas diferenciadamente pelas “meninas de hoje em dia”.

PALAVRAS-CHAVE:
Etnografia; conjugalidade; geração; moralidade; gênero; Cabo Verde

ABSTRACT

The objective of this article is to think about the moral evaluations about the behavior of young and adult women in the affective and conjugal universe, paying attention to the complex processes of transformation and social reproduction. The data analyzed are based on research carried out in the Cape Verde archipelago with three sets of interlocutors, middle-aged women (mothers/grandmothers), girls and boys. Their speeches are crossed by interpretations, analyses, judgments and mutual accusations that deal with female behavior. Based on diverse ethnographic material, I argue that the core of such discourses is based on moralizing classification grids that have continuity in time and space, however, being experienced differently by these “today's girls”.

KEYWORDS:
Ethnography; conjugality; generation; morality; genre; Cabo Verde

Há 12 anos publiquei nesta mesma revista (Lobo, 2010LOBO, Andréa. 2010. “Um filho para duas mães? Notas sobre a maternidade em Cabo Verde”. Revista de Antropologia, v. 53: 117-146. https://doi.org/10.1590/S0034-77012010000100004
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) reflexões sobre as dinâmicas familiares que colocavam em relação duas gerações de mulheres, as mães e as avós, em um processo que constrói maternidades e aponta para a centralidade da filiação nestes cenários. De lá prá cá tenho direcionado meu olhar também para as relações afetivas - de namoro, casamento, dinâmicas de morar junto - enfim, tudo aquilo que associamos às conjugalidades e alianças. Entretanto, quanto mais fazia o esforço de me distanciar da verticalidade das relações de filiação e focar nos jogos e processos afetivo-sexuais entre mulheres e homens, mais se impunha sobre meu olhar a força das relações geracionais entre essas mulheres.1 1 Pensar sobre conjugalidades em Cabo Verde nos remete a uma fórmula que nos permite associar a filiação a laços fortes, duradouros e indissolúveis, especialmente quando o elo é entre mães e filhos; e a afinidade ou conjugalidade a um terreno escorregadio, de laços tênues e que se dissolvem com alguma facilidade.Certamente, por detrás de tal fórmula encontramos um universo amplo de negociações, possibilidades, aproximações e distanciamentos, uma vez que dinâmicas familiares produzem arranjos diversos não só entre sociedades, no tempo e no espaço, mas em um mesmo universo social. Dar conta desse cenário complexo tem sido objetivo de minhas pesquisas no arquipélago nos últimos anos, as quais têm o intuito mais amplo de sublinhar que, quando tratamos do contexto familiar cabo-verdiano (e não só), faz-se imperativo falar de famílias no plural. O presente artigo é, portanto, resultado da impossibilidade de pensar meus dados sobre as dinâmicas de conjugalidade entre homens e mulheres sem refletir sobre dois aspectos: 1) o atravessamento das relações geracionais nas de conjugalidade e 2) como o entrelaçar entre gênero e geração (Debert, Assis Simões e Henning, 2016DEBERT, Guita; SIMÕES, Julio; HENNING, Carlos Eduardo. 2016. “Entrelaçando gênero, sexualidade e curso da vida: apresentação e contextualização”. Sociedade e Cultura, v. 19, n. 2: 3-12. https://doi.org/10.5216/sec.v19.48680
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) se dá por meio de um idioma moral que coloca em suspeição os comportamentos femininos.2 2 Agradeço a leitura e os comentários de André Justino, Lara Noronha, Sara Santos, Vinícius Venâncio e Wilson Trajano Filho às versões deste artigo. Igualmente, expresso meus agradecimentos aos pareceres densos obtidos pela Revista de Antropologia, que me concederam sugestões valiosas. Sou inteiramente responsável pelas análises aqui empreendidas, entretanto, elas se fizeram no e pelo diálogo acadêmico de qualidade, ao qual sou grata. Por fim, agradeço ao financiamento da FAP-DF e da Capes, que tornam possível a continuidade de minhas pesquisas. Vida longa a essas agências de fomento.

Sendo assim, o objetivo deste artigo é pensar as avaliações morais sobre os comportamentos das mulheres jovens e adultas no universo afetivo-conjugal estando atenta para os complexos processos de transformação e reprodução social. Para isso, abordarei três conjuntos de interlocutores, mulheres de meia idade, moças e rapazes que podem ser classificados como jovens e adultos.3 3 As senhoras com quem conversei tinham entre 40 e 60 anos. Já as moças e os rapazes formavam um grupo etário mais amplo, de jovens e adultos na faixa entre os 17 e 35 anos de idade. Tais reflexões não seriam possíveis sem todas esssa pessoas, a elas, meu muito obrigada. Seus discursos são atravessados por interpretações, análises, julgamentos e acusações mútuas que versam sobre as condutas femininas. A base de tais discursos se assenta em grades classificatórias no tempo e no espaço, bem expressas pela noção que dá título a este artigo, as meninas de hoje em dia.

Uma abordagem moral sobre o comportamento feminino é partilhada por mulheres já em idade madura - que avaliam ter havido uma mudança considerável na postura das jovens face aos homens e ao universo familiar -, por homens quando questionados sobre as moças com quem podem vir a relacionar-se e pelas ditas “moças sérias”, que constroem sua reputação em oposição aquelas que teriam condutas questionáveis. Minha hipótese é que geração e gênero se enredam e, em alguma medida, reforçam um discurso de manutenção de padrões comportamentais femininos entendidos como “adequados”. A avaliação desses/as meus/minhas interlocutores/as é de que as meninas de hoje em dia se movem no sentido contrário a um ideal associado ao feminino e seus papeis de mãe e mulher-namorada. Como pretendo demonstrar, esse é um movimento com muitas nuances, avanços, recuos e complexidades que serão mapeados a partir das reflexões e dos debates sobre as “novas”4 4 Informo que, sempre que tiver esse sentido, a palavra “novas” terá aspas. Isso porque um dos meus objetivos é questionar a temporalidade destas classificações. Aproveito para pontuar que o itálico será utilizado para expressões e/ou categorias do crioulo de Cabo Verde, que serão devidamente explicadas à medida que forem surgindo no texto. formas pelas quais mulheres se posicionam na sociedade cabo-verdiana.

Minha abordagem vem se somar a um conjunto de estudos recentes, produzidos sobretudo por cientistas sociais cabo-verdianos, que têm se dedicado a pesquisar as relações de gênero no arquipélago (Carmelita Silva, 2018SILVA, Carmelita. 2018. A Rede Sol e a Lei Especial Contra Violência Baseada no Gênero: Processos institucionais e narrativas de mulheres e homens em situação de violências conjugais em Cabo Verde. Florianópolis, tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina., no prelo; Eufémia Rocha, 2017ROCHA, Eufémia. 2017. “Mobilidades e Gênero: deslocamentos e fronteiras na rabidância em Cabo Verde”. In: GODINHO GOMES, Patrícia; FURTADO, Claudio (orgs.). Encontros e desencontros de lá e de cá do Atlântico: mulheres africanas e afro-brasileiras em perspectiva de gênero. Salvador: UFBA, pp. 65-88.; Miranda, 2016MIRANDA, José Manuel. 2016. “Constituição de masculinidades num contexto de crise do pescado: Rincão, Ilha de Santiago/CV”. In SILVA, Carmelita; VIEIRA, Miriam (eds). Género e sociabilidades no interior de Santiago. Praia: Edições UniCV , pp. 41-72.; Maria Ivone Monteiro, 2016MONTEIRO, Maria Ivone. 2016. “Família e gênero na perspectiva de mulheres kumbossas em Santa Catarina”. In SILVA, Carmelita; VIEIRA, Miriam (eds). Género e sociabilidades no interior de Santiago. Praia: Edições UniCV , pp. 109-150.; Maria Anilda Martins da Veiga, 2016MARTINS DA VEIGA, Maria Anilda. 2016. “(Re) configurações identitárias entre mulheres cujos maridos/companheiros emigram: o caso de Pilão Cão”. In: SILVA, Carmelita; VIEIRA, Miriam (eds). Género e sociabilidades no interior de Santiago. Praia: Edições UniCV , pp. 151-180.; Manuela Furtado e Anjos, 2016FURTADO, Manuela Gomes; ANJOS, José Carlos dos.2016.“Incompatibilidades de género: caso de São Miguel”. In: SILVA, Carmelita; VIEIRA, Miriam (eds).Género e sociabilidades no interior de Santiago. Praia: Edições UniCV,pp.181-206.; Celeste Fortes, 2013FORTES, Celeste. 2013. “‘M t’studa p’m k ter vida k nha mãe tem’. Género e Educação em Cabo Verde”. Revista Ciências Sociais Unisinos, v. 49, n. 1:80-89. https://doi.org/10.4013/csu.2013.49.1.10
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; Massart, 2013MASSART, Gui. 2013. “The aspirations and constraints of masculinity in the family trajectories of Cape Verdean men from Praia (1989-2009)”. Etnográfica, v. 17, n. 2: 293-316. https://doi.org/10.4000/etnografica.3131
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, 2004MASSART, Gui. 2004. “Masculinités pour tous? Genre, pouvoir et gouvernementalité au Cap-Vert. Le foyer dans la spirale de l’ouverture et du changement à Praia”. Revue Lusotopie, v. XII, n. 1-2: 245-262. https://africabib.org/htp.php?RID=298902230
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; Anjos, 2005ANJOS, José Carlos Gomes dos. 2005. “Sexualidade juvenil de classes populares em Cabo Verde: os caminhos para a prostituição de jovens urbanas pobres”. Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 1: 163-177. https://doi.org/10.1590/ S0104-026X2005000100011
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); ou seja, compreendendo gênero como um princípio estrutural dinâmico que tanto organiza quanto é produto das condições de classe, raça, de conjugalidade, como da própria dinâmica de organização familiar. Como afirma Carmelita Silva (2021SILVA, Carmelita. 2021. “‘Kau ki galu sta,galinha ka ta kanta?’ Reflexões sobre narrativasde mulheres e homens em situação de violênciasconjugais em Cabo Verde”. In: LOBO, Andréa;GODINHO GOMES, Patrícia (orgs.). Vivências esignificados. Vozes de mulheres em perspectiva degênero de e sobre África. Revista ABEÁfrica, v. 6, n. 6: 1-35.), opressão e dominação são produtos de relações específicas que as configuram, enão apenas o reflexo da imposição dos valores culturais. Daí a importância de refletir sobre como as questões morais do campo dos valores e da imagem pública da mulher marcam as relações de gênero e poder nesse contexto (Silva, 2021SILVA, Carmelita. 2021. “‘Kau ki galu sta,galinha ka ta kanta?’ Reflexões sobre narrativasde mulheres e homens em situação de violênciasconjugais em Cabo Verde”. In: LOBO, Andréa;GODINHO GOMES, Patrícia (orgs.). Vivências esignificados. Vozes de mulheres em perspectiva degênero de e sobre África. Revista ABEÁfrica, v. 6, n. 6: 1-35.).

Para dar conta deste debate, foco nas percepções que têm como objeto a conduta feminina e organizo o artigo em três cenas5 5 Os dados que analiso aqui são oriundos de fontes diversas: desde conversas com interlocutores de ambos os sexos, momentos de debates em grupos focais, passando pelo universo da música produzida por cabo-verdianos e pelo acompanhamento de páginas de grupos do Facebook que se transformam em fóruns de debate sobre diversos temas, dentre os quais, as relações hetero e homoafetivas. que, embora diversas, têm em comum não só os conteúdos que são objeto deste artigo, mas também a forma. Nos três eventos estaremos diante de debates em que mulheres e/ou homens, em diálogo, refletem sobre situações que nos remetem a avaliações sobre os comportamentos das jovens mulheres. Preciso enfatizar ao/à leitor/a que, ao empreender tal análise, temos um subproduto lógico, a consequente reflexão sobre o comportamento masculino. Entendendo, portanto, o campo do gênero como relacional, o que espero ter ao final é um esboço que nos permita refletir sobre algumas das dinâmicas de gênero no Cabo Verde contemporâneo, mais especificamente a partir do contexto urbano da Cidade da Praia. 6 6 Desde 2012 venho empreendendo viagens anuais à Cidade da Praia com o intuito de acompanhar processos e debates locais e nacionais sobre as dinâmicas familiares (a continuidade dos contatos foi interrompida em 2020, em decorrência da pandemia do coronavirus). Tenho realizado pesquisas entre jovens, homens e mulheres, além de acompanhar os debates nacionais sobre tais questões, tanto a partir dos governos quanto de instituições da sociedade civil. Neste artigo reúno também dados de uma pesquisa sistemática, sobre o mesmo tema, em grupos de Facebook. Sendo assim, ressalto que os dados aqui analisados extrapolam, de alguma forma, o cenário da Cidade da Praia. Saliento, porém, que o foco nas avaliações sobre as condutas femininas se sobrepõe em minha análise, pois, como veremos, é sobre a mulher que incidem culpas e responsabilidades com relação aos supostos desdobramentos de sua (má) conduta para as famílias e a sociedade.

CENA 1: ENTRE MULHERES E DINÂMICAS GERACIONAIS

Ana 7 7 Tal como combinado com minhas interlocutoras quando me autorizaram a dispor de suas histórias em reflexões e publicações de minha autoria, suas identidades serão preservadas. Portanto, as denominações aqui utilizadas são fictícias. - Eu já passei muito, muito mal na mão do meu marido! Mas isso é porque era naquela época, se fosse agora eu não passaria. Meu marido tem 50 e poucos anos, eu tenho 51, tenho três filhas. Mas se eu contar a vocês o que eu já passei, minhas filhas mesmo falam “Mamãe, aquilo que você passou, eu não passo”! Mas eu fiquei com ele quando eu era muito nova, e aí eu aguentei... ele já me inchou o olho, já foi e já voltou não sei quantas vezes, já arranjou várias raparigas, nunca ajudou com o estudo dos filhos! Hoje eu tenho uma vida mais ou menos, eu aguentei. Vejam que eu tenho quatro filhos e todos são só dele, não é como as moças hoje em dia que tem um filho de cada um! Eu aguentei tudo... as meninas hoje não aguentam mais, ihhh, não aguentam nem metade... Bela - A senhora disse que tem um filho policial, é homem ou mulher? Ana - Mulher.

Bela - Será por quê que ela foi ser policial?

Ana- Ah, há dias eu estava falando com ela e ela me disse “Você quer que eu fique como você? Passar pelo que você passou? Não, eu não passo por isso”. É porque ele me batia na frente deles todos, triste... ele só veio deixar de me bater da última vez que eu vim aqui e eu fui ao tribunal... [...] Fui eu quem fiz tudo, trabalhei, trabalhei para mandar meus filhos para o curso, eu que saía com o pé no chão, de empresa a empresa, para vender, para arranjar aquele dinheiro para mandar para a minha filha, hoje ela está aí formada, com seu trabalho e ela fala “Eu não aceito abuso de homem, eu não aceito desaforo, abuso, não aceito mesmo, eu que mando”

Cleusa - As moças de hoje não aturam mais tantos abusos quanto nós aturávamos não... é verdade! Diana- Mas muitas têm uma cabeça muito leve 8 8 Essa expressão será explicada mais à frente. ... algumas querem se comportar como homens... um dia com um, um dia com outro, só na paródia, deixam os filhos de lado... aí não dá também, não está certo!

Esther - Isso é verdade... eu mesma, coitado do meu neto se não fosse eu... a mãe-de-filho 9 9 Mãe-di-fidju e pai-di-fidju são termos comumente utilizados para se referir aquele ou àquela com quem ego teve um filho. Além disso, quando o casal mantém uma relação conjugal, esse é o termo que se usa para se referir ao companheiro ou companheira, meu pai-de-filho ou minha mãe-de-filho. De forma muito interessante, tais termos refletem a centralidade da filiação nesta sociedade (Lobo, 2014; Furtado & Anjos, 2016; Laurent, 2018). do meu mais novo... ah, se eu contar para vocês... é só paródia, discoteca, bebedeira, é só confusão... peguei o menino coitado, todo assado porque nem fralda ela trocava... triste!

Bela - É porque agora é diferente... mas mesmo assim ainda tem meninas novas que aguentam os mesmo abusos...

Ana- Ah, minha filha não... mas tem dias que eu chateio com ela, porque ela fica transferindo o que ela viu eu passar para o companheiro dela, só quer mandar nele... “vai fazer isso, vai fazer aquilo”... aí eu digo para ela para se acalmar...

Bela - Ela não vai acalmar porque ela tem trauma...

Ana- É, pode ser... o problema é esse... [...]

Diana- Mas no Liceu, por exemplo, tem a questão das jovens, porque há muitos problemas também... há muita revolta... porque tem moças que já começam a apanhar dos namorados, a aguentar abusos ainda muito jovens, não são nem mães-de-filho e permitem isso... então, é difícil... eu acho que as meninas jovens deveriam vir aqui para essas conversas também... 10 10 Maritza Rosabal, ativista de gênero e à época Ministra da Educação e Ministra da Família e Inclusão Social em Cabo Verde, apresenta dados interessante sobre os perfis de violência contra mulher no arquipélago: “De acordo com esse estudo (ela se refere a um estudo do Instituto Nacional de Estatística, 2005), o desencadeador dos episódios violentos estava relacionado fundamentalmente ao mau desempenho das mulheres em tarefas que eram consideradas de sua responsabilidade exclusiva, tais como o descuidar das crianças, ou queimar alimentos. Mostrou ainda que também ‘está associada a comportamento de dominação do marido/companheiro para controlar diversos aspectos da vida da mulher’. Nessa categoria podemos assinalar o controle da mobilidade, e do corpo da mulher, evidenciados pelo facto de entre as razões mais frequentes, invocadas como justificadores da agressão, era sair sem dizer nada ou negar-se a ter relações sexuais” (Rosabal 2011: 153).

(Roda de conversa entre mulheres, MORABI, tradução livre da autora a partir do crioulo, 10 de maio de 2018).

As Rodas de Conversas femininas na MORABI11 11 Morabi - Associação Caboverdiana de Auto-promoção da Mulher é uma organização não-governamental, sem fins lucrativos, criada em 1992. Ver http://www.morabi.org/ index.html - último acesso em 23/05/2022. são espaços de troca entre mulheres beneficiárias de projetos sociais coordenados pela instituição. Neste dia em específico, a roda era composta por senhoras, em sua maioria mulheres que trabalham na venda de produtos (vendedeiras ou rabidantes12 12 Sobre as vendedeiras ou rabidantes ver Grassi, 2003; Lobo, 2012b; Venancio, 2017, 2020; Rocha, 2017. ) e oriundas da classe popular; a temática era sobre dinâmicas familiares.

O que temos na conversa entre as senhoras presentes são reflexões sobre os universos de conjugalidade no tempo. Primeiramente, há uma avaliação de suas prórias dinâmicas de gênero e de construção de si nesses cenários. No relato de Ana, desenha-se um padrão de relação que tem sido objeto de diversos estudos que abordam a questão familiar em Cabo Verde (Carreira, 1972CARREIRA, António. 1972. Cabo Verde. Classes sociais, estrutura familiar, migrações. Lisboa: Ulmeiro., 2000CARREIRA, António. 2000. Cabo Verde: formação e extinção de uma sociedade escravocrata (1460- 1878). Praia: Instituto de Promoção Cultural.; Lobo, 2012LOBO, Andréa. 2012. “A Família em Cabo Verde. Uma perspectiva Antropológica”. Revista de Estudo Cabo-Verdianos, v. 4: 99-114., 2014LOBO, Andréa. 2014. Tão Longe Tão Perto. Famílias e “movimentos” na ilha da Boa Vista de Cabo Verde. Edição Revisada E-Book. Brasília: ABA Publicações.; Fortes, 2013FORTES, Celeste. 2013. “‘M t’studa p’m k ter vida k nha mãe tem’. Género e Educação em Cabo Verde”. Revista Ciências Sociais Unisinos, v. 49, n. 1:80-89. https://doi.org/10.4013/csu.2013.49.1.10
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, 2015FORTES, Celeste . 2015. “‘Casa sem homem é um navio à deriva’: Cabo Verde, a monoparentalidade e o sonho de uma família nuclear e patriarcal”. Anuário Antropológico, v. 40, n. 2: 151-172. https://doi.org/10.4000/aa.1425
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; Monteiro, 2016MONTEIRO, Maria Ivone. 2016. “Família e gênero na perspectiva de mulheres kumbossas em Santa Catarina”. In SILVA, Carmelita; VIEIRA, Miriam (eds). Género e sociabilidades no interior de Santiago. Praia: Edições UniCV , pp. 109-150.; Correia e Silva, 2013CORREIA e SILVA, Antonio. 2013. Dilemas de poder na história de Cabo Verde. Lisboa: Edições Roda de porcelana.; Laurent, 2016LAURENT, Pierre-Joseph. 2016. “Famílias sob influência de leis migratórias dos países de acolhida. Comparação das migrações cabo-verdianas nos Estados Unidos e na Itália”. In: LOBO, Andréa; BRAZ DIAS, Juliana. Mundos em Circulação: perspectivas sobre Cabo Verde. Brasília/Praia: ABA Publicações/ EDUni-CV/Letras Livres, pp. 137-193.; Anjos & Furtado, 2016ANJOS, José Carlos Gomes dos & SILVA, Talina Ben’Holiel Pereira. 2021. “‘Lasu Branku’: sobre as condições de possibilidades de uma masculinidade feminista em Cabo Verde”. IN: ROCHA, Eufemia & Miriam VIEIRA (eds.). Gênero em contextos cabo-verdianos: trânsitos de pesquisa Brasil-Cabo Verde. Praia, Santiago, Cabo Verde: Edições Uni-CV ; Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2021. Pp. 141-165.; Carvalho, 2016CARVALHO, Carla S. 2016. “Mulheres na ‘fornadja’: Tecendo caminhos (im) possíveis para a emigração”. Revista Estudos Feministas , v. 24, n. 3: 973-981. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2016v24n3p973
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) e que nos conectam às seguinte dinâmicas de gênero: de um lado, o homem que tem um comportamento autoritário (e por vezes violento), se relaciona com outras mulheres, que vive um distanciamento com relação aos filhos e um pertencimento errático ao universo doméstico. Por outro, temos a mulher que “aguenta” (suporta) e o faz por diversas razões que são associadas ao seu papel moral: aguenta pelos filhos, porque espera que este homem melhore, aguenta por sua honra, afinal, como nos revela Ana com certo orgulho “tenho quatro filhos e são todos de um homem só”. Ao fim e ao cabo, ela sinaliza que “aguentar” valeu a pena, pois os filhos estão criados e os episódios violentos já não acontecem. Como ela me diz, quando coninuamos a conversa após o debate, “agora ele sossegou e até que vivemos em paz”.

E é nessa construção de si que se desencadeia uma interessante construção da outra, as jovens. Tal percepção carrega fatores que podem ser interpretados como ambíguos: “as moças não aturam desaforos como nós aturávamos”, entretanto, têm cabeça leve, ou seja, não pensariam direito sobre suas ações, não avaliariam as consequências destas nos filhos e na sua própria reputação. O exemplo da filha de Ana marca o polo positivo desta “nova” mulher: com estudo, com emprego, com conduta oposta à da mãe - expressa na repetida afirmação de que “não sou como você” - e que nos remete à uma possível inversão sobre “quem manda”, agora papel ambicionado por ela. O polo negativo seria ocupado pela mulher que “quer se comportar como homem”, adotando os signos associados ao masculino: viver em festas, paródias regadas à alcool e se relacionando com mais de um parceiro. Para além desses há, na figura da nora de Esther, talvez o ponto mais crítico associado a essa nova persona feminina, o suposto descuido com os filhos.

No artigo publicado em 2010, decorrente de pesquisa na ilha da Boa Vista, esse foi também um dos temas centrais analisado por mim a partir de outra lente, a da maternidade (Lobo, 2010LOBO, Andréa. 2010. “Um filho para duas mães? Notas sobre a maternidade em Cabo Verde”. Revista de Antropologia, v. 53: 117-146. https://doi.org/10.1590/S0034-77012010000100004
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, 2014LOBO, Andréa. 2014. Tão Longe Tão Perto. Famílias e “movimentos” na ilha da Boa Vista de Cabo Verde. Edição Revisada E-Book. Brasília: ABA Publicações.). Na ocasião, argumentei que “ser mãe” é um processo que se inicia com o nascimento de um filho e só se conclui quando a mulher é avó. Tal processo é constituído tanto por uma complementaridade entre mulheres quanto por disputas em torno de um bem precioso para as avós, as crianças. O que desejo relembrar é o argumento de que a construção do lugar da avó se dá, em alguma medida, por uma desconstrução da capacidade da mulher jovem em bem cuidar da criança (Lobo, 2010LOBO, Andréa. 2010. “Um filho para duas mães? Notas sobre a maternidade em Cabo Verde”. Revista de Antropologia, v. 53: 117-146. https://doi.org/10.1590/S0034-77012010000100004
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).

Retomo brevemente esse argumento anterior porque desejo inserir a cena aqui apresentada em um cenário mais amplo e muito caro à etnologia da África Ocidental (e não só): a questão geracional.

Na introdução a uma coletânea organizada por Susan Reynolds Whyte, Erdmute Alber e Sjaak van der Geest (2008), encontramos uma competente síntese sobre o debate geracional em África em termos de conexões e conflitos. Como bem nos lembram, geração é uma ferramenta analítica importante para estudar as sociedades, porque ela implica em relações no tempo, ou seja, permite pensar em termos de processos. Os mais afeitos aos estudos de organização social e parentesco têm amplo conhecimento dos importantes trabalhos da antropologia clássica sobre os significados das relações intergeracionais para a reciprocidade e os processos de reprodução social no âmbito do parentesco e na estrutura social. Mais recentemente, a partir dos anos 1990, a temática retorna à cena por meio dos estudos sobre jovens em África e suas mais diversas interelações: órfãos da AIDS, crianças soldados, homens jovens marginalizados, meninas adolescentes sexualmente ativas, etc.

O autores sistematizam em sua potente introdução três conceitos de geração: 1) geração como relação genealógica de parentesco, ou seja, as ligações entre pais, filhos, filhos dos filhos (tema caro aos britânicos e sua teoria da filiação e descendência); 2) geração como princípio estruturador da sociedade para além dos laços específicos de parentesco e se sobrepondo a estes. Aqui estamos falando de geração como idade, ou como grupos de idades, seniors e juniors e sua importância para o domínio político-jurídico (Eisenstadt, 1956EISENSTADT, Shmuel N. 1956. From Generation to Generation: Age Groups and Social Structure. New York: Free Press.; Kopytoff, 1971KOPYTOFF, Igor. 1971. “Ancestors and elders in Africa”. Africa, v. 41: 129-142.); 3) geração como história, ou seja, a ideia de que localizar as faixas etárias na história levaria à percepção de que pessoas nascidas no mesmo período compartilhariam experiências, potenciais e “destinos” comuns (Whyte, Alber & Van der Geest, 2008: 06).

Para a discussão que quero aqui avançar, é essa terceira via que me inspira e que julgo iluminar melhor meus dados etnográficos. É nessa linha que quero refletir sobre as formas como as mulheres maduras falam de si em contraposição às moças jovens. Reciprocidade talvez seja o termo mais adequado, pois tal conceito captura tanto a partilha e a transmissão de recursos quanto a mutualidade dos cuidados e da atenção. As relações intergeracionais entre mulheres nesse contexto envolvem tanto transmissão de recursos (material e imaterial) quanto a projeção de suas experiências históricas e localizadas. Sendo assim, os discursos das senhoras estariam permeados por premissas morais com vistas a garantir sua reprodução social em dois sentidos: na passagem de suas visões de mundo para as gerações seguintes e na garantia de seu lugar de centralidade no âmbito do doméstico. Ou seja, julgamentos morais assumiriam centralidade nas discussões sobre relações intergeracionais uma vez que a transmissão de recursos estaria atrelada a um fluxo de vida e de fertilidade (2008: 08), aos valores vinculados à família e à deferência aos parentes mais velhos. Tal como mapeado em outros contextos etnográficos, tal “pacto intergeracional” (2008) pressuporia cuidado, mas também conflito e negociação, isso porque tal pacto se baseia em uma lógica de reciprocidade que está constantemente ameaçada pelos “novos tempos”.13 13 Koening, em um estudo sobre sexo transacional entre jovens na cidade de Abidjan, também aborda essa relação entre moralidade e as relações intergeracionais. Nesse contexto - de autonomia financeira delas e do interesse de todos em atualizar uma “lógica da dívida” que valoriza o “contrato intergeracional” em relações de parentesco que obrigam as/os jovens a sustentar os seus materialmente - os “negócios eróticos” delas são ressignificados moralmente pelas “mais velhas”, uma vez que é destas estratégias que podem advir o suprimento de toda a família (Koening, 2016).

O caso aqui em questão nos remonta a essa discussão mais geral de forma interessante. Se em um dado momento a visão das mães e sogras parece questionar a capacidade das jovens gerirem suas vidas, na sequência, elas mesmas observam que as moças estão cada vez mais independentes e autônomas. Ana fala de sua filha com certo orgulho, mas no debate entre elas a positividade dessa conduta é matizada uma vez que a adesão dessas jovens ao “regime de hoje em dia” pode distanciá-las de uma lógica de reciprocidade que é esperada pelas senhoras em um momento de sua trajetória no qual acolhem e esperam pelas contribuições (financeiras, materiais e afetivas por meio dos netos) feitas pelas moças que trabalham para sua própria manutenção e a do agregado familiar (Lobo, 2010LOBO, Andréa. 2010. “Um filho para duas mães? Notas sobre a maternidade em Cabo Verde”. Revista de Antropologia, v. 53: 117-146. https://doi.org/10.1590/S0034-77012010000100004
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).

Mas há ainda um aspecto pelo qual podemos analisar o discurso das senhoras: a manutenção de sua face. Afinal, a desconstrução das condutas das jovens por suspeições de imoralidade, incapacidade e desrespeito pode ser um caminho legitimo pelo qual as mulheres maduras lidam com a frustração ao ouvir das moças que “eu não quero ser igual a você”, afirmativa que questiona as condutas de mães, sogras e avós. Em sua defesa, quando Ana demonstra que, tendo “aguentado” seu fardo com o marido honrou a si e seus filhos, ela constrói positivamente sua trajetória de mulher honrada apesar de sofrida e, em alguma medida, submissa. Já sua filha apesar de forte e independente, percorre os perigosos caminhos da modernidade quando “exagera”. Nas palavras de uma outra interlocutora, “hoje as mulheres querem ser mais do que os homens e aí elas se perdem, porque isso nossa sociedade machista não permite”.

Daí chegamos a uma dimensão da Cena 1 que ainda não abordamos e que ganha expressão na fala de Diana quando nos coloca diante das continuidades nos padrões de relação conjugal nos relacionamentos entre jovens. Ao citar os casos das meninas do Liceu (jovens entre 15 e 18 anos) que vivem relações violentas apesar dos discursos e tentativas de empoderamento feminino, ela aponta para a continuidade de padrões de relação que acabam por reproduzir um sistema que vem operando no seio das dinâmicas familiares no arquipélago. A questão que surge é, portanto, sobre tais processos de mudança e de reprodução social quando entrelaçamos relações de gênero, de sexualidade e cursos de vida.

Tal questionamento ganha relevância nas preocupações de mulheres mais velhas quando se referem às filhas e afirmam que seu maior desejo é que elas tenham uma vida diferente das suas. Todavia, a reflexão que persiste ao retomarmos os distintos aspectos da Cena 1 é sobre as (des)continuidades entre um ser e um dever ser que se enredam nos universos destas mulheres, no tempo e no espaço, e que parecem se apresentar como verdadeiras armadilhas em suas trajetórias de vida, em seus processos de construção de si.14 14 É preciso sinalizar que a construção narrativa de temporalidades é sempre regulada, negociada e delimitada por argumentos elaborados a partir de um presente, ou seja, a produção discursiva de moralidades vinculadas à ideia de “hoje em dia” e de tempos pretéritos não deve ser compreendida como resquícios de um modo de vida passado, mas de suas elaborações a partir do hoje. Isso nos leva à Cena 2, que permitirá que naveguemos sobre o terreno escorregadio no qual as mulheres jovens transitam.

Cena 2: condutas femininas na berlinda

“Minha irmã está grávida do meu namorado, eu não sei o que fazer”- desabafo de uma crioula - dexamsabi.com

“Eu tenho meu namorado e moramos juntos já faz 2 anos, temos um filho e passamos por muitas dificuldades. Minha família não aceitava ele, até que com o tempo passaram a aceitar. Só que minha irmã foi morar comigo e passou a gostar dele, eles se envolveram e eu não sabia de nada. Depois minha irmã veio aparecer grávida do pai do meu filho! Eu estou sem saber o que fazer... ele me diz que foi ela quem deu em cima dele, me mostrando os SMSs que minha irmã mandava para ele! Eu não sei em quem acreditar, por favor me ajudem!” (o post é anônimo e publicado na página do Facebook FofoKa Kriolu).15 15 “Intem nha namorado nu ta mora djunto dja fase 2 ano nu tem um fidjo nu pasa pa munte deficuldade nhas familia ka ta aceitab el k tempo es pasa ta aceital so que nha irma bai mora k mi nha irma pasa ta gosta del es envolve mi sem sab de nada depos nha irma bem parce gravida de pai de nha fidjo djan fica k ta sabe kuze kin ta fase, ael e sa flam me minina k da riba del e mostran sms k nha irma ta mandab el ink sab na kal kin ta credita nhos djudan” (https://www.facebook.com/search/top/?q=nha%20 irma%20sta&epa=SEARCH_BOX - último acesso em 23/05/2022.)

Como é possível observar na imagem, a postagem teve mais de 100 comentários e muitos compartilhamentos que geraram mais centenas de comentários até o momento da escrita deste artigo. Para além das mensagens jocosas16 16 Alguns exemplos: Hollywood tem mesmo de investir nos cabo-verdianos; “Vais ser TIAMADRASTA.KKKK”; “Fiquem os três”; “Pede para ser madrinha, kkkk”; “Nhos djunta mon...kkkk” (expressão que significa literalmente juntar as mãos, mas que tem relação com a prática do mutirão em Cabo Verde), etc. , ao observar as reações, fica evidente que é a conduta da irmã e da própria mulher traída que são objeto de repreensão. Sejam os comentadores homens ou mulheres, abundam setenças como: “também, você foi dar guarida para essa irmã”; “quem tem uma irmã dessas não precisa de kumbossa”;17 17 Kumbossa é expressão utilizada na ilha de Santiago para se referir àquela mulher com quem se divide um companheiro em uma relação fixa em simultâneo. Maria Ivone Monteiro afirma que o termo designa uma “conexão entre mulheres que compartilham o mesmo homem, de forma similar aos laços de parentesco” (Monteiro, 2016: 121). “essa sua irmã é uma pixinguinha”; “Isso é falta de respeito de sua irmã”; “Não faça nada... nós mulheres também, vergonha!”. Outra categoria de comentários são os neutros - “Cabo Verde está cada dia pior”; “os dois são safados”; “o mundo está perdido”; “vá viver sua vida porque o que está feito, feito está”, etc. O interessante a observar é que são raros os comentários que condenam a conduta do homem envolvido e, nos casos em que ele é questionado, ou oé de forma indireta ou o comentário faz também referência a elas - “mesmo que sua irmã tenha provocado, ela não o obrigou”; “esse não deve ser mais seu namorado”; “arranja outro homem e refaz sua vida”.

Há cerca de cinco anos sigo sistematicamente grupos do Facebook similares ao Fofoka Kriolu (Dexam Sabi Cabo Verde, Do you... papia criolu são outros exemplos de grupos que seguem o mesmo padrão) e que publicam postagens que funcionam como enquetes sobre comportamentos de homens e mulheres no que diz respeito a afetividades, maternidades, paternidades e traições. O padrão é bem exemplificado pelo caso acima: a partir de uma história partilhada (em geral, de um/a anônimo/a), as pessoas são incentivadas a comentar ou ajudar a suposta pessoa a encontrar um caminho, uma solução. Se as histórias são reais ou inventadas, não me parece ser relevante, o que me interessa aqui é pensar nas questões que introduzimos ao final da sessão anterior - em qual universo de relações navegam estas mulheres jovens, supostamente mais independentes e que lançam mão de novos padrões de comportamento? Que desafios experimentam? Que novas (ou velhas) dinâmicas se instauram?

A postagem nos leva a dois campos analíticos que se complementam e sobre os quais gostaria de me deter. Primeiro temos o fato, o problema colocado pela autora. Como já está claro, trata-se de um drama de traição com uma complexificação, pois envolve a irmã e uma gravidez com aquele que é o pai-de-filho da nossa anônima. Segundo, temos as reações dos/as interlocutores/as da autora que, por meio dos comentários, expressam suas visões sobre o fato e corroboram perspectivas do masculino e do feminino18 18 Utilizar dados do Facebook nos permite dar conta de uma dimensão importante das formas de relacionamento na atualidade. Enquanto parte das denominadas mídias modernas, os diálogos ali não são somente formas de representação, uma vez que estas novas plataformas de mídia têm consistentemente contribuído para a formação de novos modos de percepção e conhecimento, bem como para a produção de novas formas e locais de ação social. Sua capacidade de não ser só registro do passado, mas de oferecer feedback instantâneo tem complexificado a dinâmica social de forma interessante, tal como podemos observar no exemplo etnográfico aqui apresentado. , que por sua vez guardam algumas continuidades interessantes com o sistema patriarcal e machi-centrado (Laurent, 2018LAURENT, Pierre-Joseph. 2018. Amours pragmatiques: Familles, migrations et sexualité au Cap-Vert aujourd’hui. Paris: Karthala.)19 19 Laurent argumenta que há uma estreita relação entre a família matricentrada e o machismo (Silva & Vieira, 2016), um alimentando o outro para formar o complexo sistema machi-centrado em Cabo Verde (Laurent, 2018). pelo qual as relações conjugais em Cabo Verde têm sido classificadas.

Certamente, podemos acessar tal sistema (machi-centrado) de valores para analisar processos de conjugalidade no arquipélago de Cabo Verde, qual seja: um modelo de masculinidade que permite aos homens viver relações afetivo-sexuais múltiplas (sem maiores repercussões de ordem moral para eles), participar esporadicamente da lógica de reciprocidade local e se distanciar de um tipo de comportamento esperado em relações percebidas como ideais, ou seja, com apoio financeiro e afetivo mútuo, coabitação, cuidado com os filhos e com suas companheiras. Porém, meu argumento aqui é de que, para melhor compreender os cenários em que os jovens casais transitam, faz-se necessário ir além do diagnóstico acima, mergulhar no ambiente urbano e nas vivências dos atores no campo dos afetos e da sexualidade em que as experiências do masculino e do feminino se atualizam.20 20 Partilho amplamente da percepção de que as construções, tanto das masculinidades quanto das feminilidades, são processos complexos nos quais as relações entre mulheres ou entre homens, e não apenas aquelas entre os sexos, têm tanto ou mais a revelar sobre tais identidades de gênero e a constituição de pessoas no mundo. Neste artigo, todavia, não vou me aprofundar nesse debate, uma vez que minha questão inicial tem como ponto de partida as relações entre homens e mulheres, e a consequente avaliação dos comportamentos femininos nessas relações.

Alguns autores que têm se dedicado ao tema a partir de pesquisas na Cidade da Praia, capital do país, podem nos auxiliar a melhor compreender tais cenários (Anjos, 2005ANJOS, José Carlos Gomes dos. 2005. “Sexualidade juvenil de classes populares em Cabo Verde: os caminhos para a prostituição de jovens urbanas pobres”. Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 1: 163-177. https://doi.org/10.1590/ S0104-026X2005000100011
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; Bordonaro, 2012BORDONARO, Lorenzo. 2012. “Masculinidade, violência e espaço público: notas etnográficas sobre o Bairro Brasil da Praia (Cabo Verde)”. Tomo: revista do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, v. 21: 101-136.; Lima, 2010LIMA, Redy Wilson. 2010. “Thugs: vítimas e/ou agentes da violência?”. Revista Direito e Cidadania (Edição Especial - Política Social e Cidadania), v. 30: 191- 220.). O sociólogo cabo-verdiano José Carlos Gomes dos Anjos, em um interessante artigo sobre a sexualidade juvenil em classe populares de Cabo Verde, analisa o fenômeno da pixingaria21 21 “Pixingaria é, em Cabo Verde, a expressão local para designar um tipo de comportamento sexual juvenil que não é necessariamente percebido como prostituição, embora se pressuponha que na maior parte das vezes envolva a troca de algo material por sexo. Desde o comportamento de meninas de classe média, que ficam com vários namorados em troca de jantares e freqüência a boates caras, até as mães precoces de classe popular, que se prostituem para alimentar filhos, são chamadas de pixinguinhas as meninas que, estigmatizadas para o mercado matrimonial, se supõe estarem expostas a um mercado sexual extraconjugal e, portanto, imoral.” (Anjos, 2005: 165). no qual o que estaria em jogo não é simplesmente a prostituição de jovens mulheres, mas uma reorganização mais geral “do sistema de classificação do processo de desmoronamento da ‘virtude feminina’”(Anjos 2005ANJOS, José Carlos Gomes dos. 2005. “Sexualidade juvenil de classes populares em Cabo Verde: os caminhos para a prostituição de jovens urbanas pobres”. Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 1: 163-177. https://doi.org/10.1590/ S0104-026X2005000100011
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: 165). Segundo o autor, o que marca esse contexto é um conjunto de mudanças estratégicas nas modalidades de dominação masculina, que acaba por constituir uma grade de classificação moral das mulheres em Cabo Verde.22 22 Indico aqui algumas referências interessante sobre “sexo transacional” a partir de pesquisas em contextos africanos: Anjos, 2005; Tamale, 2011; Castro, 2012; Hunter, 2002; Koening, 2016; Tiriba, 2019. Para o Brasil, ver Piscitelli, 2011; Olivar, 2014

Tal grade de classificação reproduz um panorama mais geral de mulheres tidas como sérias, que devem ser conquistadas, seduzidas; e as ditas pixinguinhas, que seriam mais explicitamente objetos de poder. É importante ficar claro que pixinguinha não é entendida aqui como uma categoria de pessoa, mas como um referente àquelas mulheres que, de alguma forma, não têm comportamentos adequados aos códigos de virtude local. Portanto, é uma categoria moral que, no caso analisado por Anjos, se refere às

meninas nas quais se percebe um início de carreira desviante quanto ao comportamento sexual. [...] Entre os cabo-verdianos, buscam interações sexuais com as pixinguinhas os jovens da mesma faixa etária, motivados a explorá-las sexual e/ou financeiramente e adultos com freqüência já casados que geralmente pagam para se relacionar com elas23 23 Pierre-Joseph Laurent, em seu recente livro sobre dinâmicas familiares e migrações em Cabo Verde (2018), reflete sobre as dimensões de classe social nessas relações. Em seu argumento, apresenta dados de homens mais velhos, de classe média alta, casados, que se relacionam com jovens da periferia em mais uma versão dos abusos e das relações de poder que aí se instauram. (Anjos, 2005ANJOS, José Carlos Gomes dos. 2005. “Sexualidade juvenil de classes populares em Cabo Verde: os caminhos para a prostituição de jovens urbanas pobres”. Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 1: 163-177. https://doi.org/10.1590/ S0104-026X2005000100011
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: 167).

Creio que meus dados permitem ampliar o escopo da definição de Anjos para além do mercado sexual. Como foi possível observar nos comentários à postagem, uma das categorias utilizada para se referir à mulher que teve relações com o marido da irmã foi a de pixinguinha. Isso acontece mais de uma vez e, em todos os casos, quando os comentários advêm de mulheres. Em minha pesquisa com jovens mulheres entre 15 e 20 anos na Ilha da Boa Vista, observei também a classificação de pixinguinha sendo atribuída por mulheres quando se referiam àquelas que se envolviam com homens comprometidos, que frequentavam discotecas com frequência, que consumiam bebida alcoolica de forma considerada exagerada, que trocavam de parceitros sexuais com uma frequencia tida como alta para os padrões femininos e, finalmente, para aquelas que “botavam corno” nos namorados ou maridos.

Ao trazer tais exemplos, quero salientar duas coisas. Primeiro, surge aqui uma segunda ordem de diferenciação entre mulheres. Se na Cena 1 vimos a construção de uma diferenciação geracional - de um passado e de um “hoje em dia” - agora temos uma separação entre “mulheres sérias” e pixinguinhas. Em ambos os casos o que observamos, nos discursos destas mulheres, é alguma reprodução de uma ordem discursiva fundamentalmente machista e patriarcal que, ao confirmar tais valores, acabaria por diferenciá-las e empoderá-las, ou como “senhoras” ou como “sérias”. Entretanto, reafirmar tais valores pela formulação desses pares de opostos pode fazer emergir também “um novo sistema de resistência feminina” (Anjos, 2005ANJOS, José Carlos Gomes dos. 2005. “Sexualidade juvenil de classes populares em Cabo Verde: os caminhos para a prostituição de jovens urbanas pobres”. Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 1: 163-177. https://doi.org/10.1590/ S0104-026X2005000100011
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: 168).24 24 Como afirma Saba Mahmood, em sua leitura não teleológica da agência feminina, nem sempre as agências femininas são de subversão ou de resistência, mas podem também ser estratégias de confirmação da norma (Mahmood, 2009). Se, como aponta Anjos, estamos diante de práticas e discursos que têm a sedução como arma, acrescento que ela também opera no sentido de inverter um ideal que coloca o homem em uma posição de poder - seja como provedor, seja em sua liberdade sexual, seja em seu domínio dos espaços públicos, sobretudo os de lazer.

As “novas” formas de conduta feminina têm, portanto, o potencial de colocar em questão a ordem vigente, o que desencadeia pelo menos dois movimentos: 1) desafiam o lugar das supostas mulheres “sérias”; 2) põem em risco a subjetividade masculina. Explico-me.

Como argumentarei nas páginas seguintes, pixinguinha não é uma categoria moderna. Esta atribuição (e outras semelhantes) que se opõe a um padrão ideal de “mulher para casar” ou de “mulher de família” ou de “mulher séria” não é novidade neste contexto.25 25 Voltaremos a essa questão ao final deste artigo. O que tanto Anjos quanto eu observamos é que, se, por um lado, este é um padrão machista de classificação que coloca tais moças em um polo negativo, por outro, essas mesmas moças reinterpretam tais padrões de comportamento em seu cotidiano, realocando-os em um novo lugar de poder: o de mulheres que reivindicam uma liberdade sexual, de ir e vir, de não se sujeitar aos parceiros. Nas palavras delas, de “mulheres que não aceitam abuso”. Essa construção de si desafia porque supostamente abala um sistema classificatório que colocaria as coisas em seus devidos lugares e possui fronteiras bem definidas, que separam o comportamento feminino como adequado ou desviante. Em suas condutas e discursos, essas moças jovens ensaiam formas de questionar uma moral que tradicionalmente coloca o desejo, a autonomia e a liberdade feminina em uma grade de classificação que as hierarquiza a partir de um ponto de vista patriarcal e machista.26 26 O artigo aborda pelo ao menos dois exemplos etnográficos que explicitam como tais questionamentos são verbalizados por elas, sendo objeto de suas reflexões sobre suas trajetórias, o caso da filha de Ana (Cena 1) e, mais à frente no texto, isso estará expresso na trajetória de Kátia,

Entretanto, assim como a subjetividade “tradicional” feminina está posta em questão, o lugar do masculino também o está. Para Anjos “a subjetividade masculina se constitui assim jogada em uma hermenêutica da suspeita, em que o cotidiano passa a ser a obsessiva leitura do quanto a suposta fiel companheira pode não passar de uma pixinguinha” (2005: 168).Neste processo de reordenação moral das relações de gênero-o regime moral do “hoje em dia”- o comportamento feminino navega em um terreno tortuoso em que a imagem de uma imoralidade alastrada ameaça o homem honrado que, nessa nova versão, surge como vítima desta mulher que o seduz, o conquista e diante da qual não lhe resta escolha, afinal é homem e em sua economia do desejo não lhe é permitido“ negar mulher”.27 27 Nas palavras de Anjos, “sob a erótica tradicional, a nova economia do desejo parece refletida como em um espelho invertido. No reconhecimento de que os homens de outrora com freqüência eram mulherengos e as mulheres recatadas, é como se a pixingaria invertesse esse quadro.” (2005: 170). Também na coletânea organizada por Carmelita Silva e Miriam Vieira (2016) diversos capítulos trazem exemplos etnográficos que permitem ampliar essa perspectiva de que “homem não nega mulher”.

E assim retomamos as duas cenas aqui apresentadas. A partir delas podemos seguir por dois caminhos que se complementam. Primeiro, é interessante chamar atenção para as peculiaridades das transformações dos processos de subjetivações do feminino em Cabo Verde. Se compreendemos o conceito de subjetivação como um processo fabricado e modelado sob o registro social, em que tanto os corpos se produzem quanto são produzidos coletivamentes por atos, enunciados e transformações que se atribuem aos corpos, o que fica desta análise é esse entrelaçar de avanços e recuos das percepções de si e das percepções de outros sobre si, que colocam as performances femininas em suspeição.

Diferentemente da perspectiva de Anjos no artigo com o qual dialogo - quando nos fala de uma erótica tradicional que estaria experimentando uma espécie de turning point expresso pela retórica do “hoje em dia” - eu avalio que as suspeições sobre as condutas femininas perduram no tempo e perpassam as gerações reproduzindo uma lógica classificatória dada. Ao percorrer as concepções que senhoras, “mulheres sérias”, pixinguinhas ou as “moças de hojem em dia” fazem de si e das outras, percebemos como tais dinâmicas operam em um sistema de moralidades do qual elas são o alvo e ao qual acessam para se diferenciar, se resguardar e se empoderar. Nesse sentido, poderia argumentar que o “hoje em dia” das minhas interlocutoras reflete uma contemporaneidade que se atualiza, uma vez que tanto no tempo quanto no espaço elas parecem estar na vanguarda de si mesmas e, em alguma medida, aprisionadas a um dever ser ao qual não mais pertencem, do qual são vítimas e do qual não conseguem se libertar. Por outro lado, se é certo que observamos permanências nas lógicas categoriais, os dados também nos remetem à plasticidade dos processos classificatórios. Ou seja, se tal “grade de classificação” persiste no tempo, na atualidade ela pode já não controlar ou disciplinar da mesma forma como outrora. Isso porque percebemos se delinear, no contemporâneo, uma ampliação no campo de possibilidades da vida feminina que não pode ser simplificado pela via do “aprisionamento” ou da mera reprodução no tempo de lógicas classificatórias intocadas, mas por fluxos, jogos, negociações, tensões e novas formas de disciplinamento de corpos e condutas insubmissas. Os dados que seguem podem auxiliar na compreensão de meu argumento.

CENA 3: MULHERES E HOMENS NO RINGUE

Em um dos períodos de pesquisa em Cabo Verde (no ano de 2016), tive a oportunidade de organizar grupos focais compostos por homens e mulheres adultos (entre 20 e 40 anos) cujo tema eram as relações afetivas e de gênero. Tais encontros produziram em todos nós discussões e reflexões sobre as dinâmicas familiares, com atenção especial aos jogos, táticas, estratégias e tensões que permeiam as relações afetivo-sexuais entre homens e mulheres. Nas sessões o debate era estimulado por histórias trazidas pelos presentes, por casos que se tornaram públicos e por letras de músicas que abordavam o tema proposto. Será a partir de uma dessas experiências que adentraremos para a próxima cena. Assim como ocorreu no grupo focal, aqui seremos embalados pelo debate entre Jenifer Solidade e Revan, expresso em suas canções. Esse divertido diálogo, que atingiu as paradas de sucesso em Cabo Verde, nos ajudará a ampliar o quadro e relativizar em que medida, a partir das performances desta “nova” mulher, se conjugam transformação e reprodução social.

Inciamos com o single lançado em 2014, intitulado “Rancá Djack”, de Jenifer Solidade. Trata-se de uma adaptação em crioulo do swingHit the road Jack”.28 28 Agradeço à Juliana Braz Dias por ter me apresentado à esta canção. Jenifer é uma jovem artista oriunda da cidade de Mindelo, Ilha de São Vicente, que em 2015 ganhou o título de melhor voz feminina do arquipélago no evento Cabo Verde Music Awards. Disponibilizo a tradução em português e o/a convido a seguir o vídeo da música no link: https://youtu.be/5SOC7IWjzgs (último acesso em 23/05/2022)

Djack, vaza daqui

Djack, vaza daqui

Ok, está é minha estória com Djack

Djack era um cara bonitão, gostoso, cheiroso, charmoso

Primeiro nós namorávamos, depois fomos morar junto

Aí estragou tudo!

Djack começou uma vida de sair do trabalho sexta-feira, chegar em casa,

tomar seu banho, se vestir bonitinho, colocar perfume e desaparecer!

Djack só chegava em casa domingo de tarde

Com uma bebedeira daquelas!

Cansada daquela brincadeira, eu resolvi que Djack

Iria era para a porta da rua, por isso...

Hit the road Djack

But don’t you come back

No more, no more, no more, no more

Hit the road Jack

And don’t you come back no more

O que você disse?

Pega suas coisas Djack

E vai vazando, vazando daqui

Pega suas coisas Djack e vai vazando daqui

Tudo certo, eu coloquei Djack na rua, Djack foi

Só que depois....

Passou uma semana, duas semanas, três semanas

Um mês sem Djack

A saudade apertou, eu peguei o telefone

E eu disse a Djack: “Djack, sabe de uma coisa?

Se é para eu arranjar um Djack novo

Deixa eu ficar com meu Djack velho”

Por isso

Pega suas coisas Djack

E volta, volta, volta para mim

Pega suas coisas Djack

Mas como nós todos sabemos

Djack que é Djack não se conserta nem na cova

Agora ele não desaparecia só no fim de semana

Mas sim a semana inteira!

Me davam notícia de Djack na Praia, Santo Antão, Sal...

Casa que é bom, nada!

E pior ainda, eu ligava para Djack e o seu celular me respondia:

“O telemóvel está desligado”

Cansada daquela brincadeira eu resolvi que dessa vez

Ele iria para a porta da rua

Com mala, com mobília, periquito, cachorro, tudo...

E decididamente, desta vez, ahhh

Eu ia arranjar um Djack novo!

Por isso

Pega suas coisas Djack

E vai vazando, vazando daqui

Pega suas coisas Djack e vai vazando daqui

O menina, o menina

Por favor me deixa entrar

Foi só uma voltinha que eu dei e nada peguei!

Mas se você quer para eu vazar

Então me dá minhas coisas, que eu já fui (tudo certo!)

Ô Baby, ô baby você é tão bonitinha

Bem gostosa, bem em forma, mas muito chata também

E se você quer para eu vazar

Então me dá minhas coisas, que eu já fui (tudo certo!)

Pega suas coisas Djack

E vai vazando, vazando daqui

Pega suas coisas Djack e vai vazando daqui.

(Rancá Djack, Jenifer Solidade)

Jenifer, em sua relação com Djack, apresenta muitos dos elementos que constituem os debates sobre relações de gênero, conjugalidade e sexualidades heterossexuais no Cabo Verde contemporâneo. O primeiro ponto a destacar é a classificação do dito “homem cabo-verdiano” como um homem no estilo Djack, classificação esta que não é fonte de muitas contestações nem por mulheres nem por homens, tendo, seguramente, relação com concepções locais das dinâmicas familiares e dos sentidos de masculinidade e feminilidade (Lobo & Miguel, 2020LOBO, Andréa. 2020. “‘Homem é tudo igual!’: relações de gênero e economia dos afetos no arquipélago de Cabo Verde, África”. Anuário Antropológico, v. 45, n. 1: 192-212. https://doi.org/10.4000/aa.4963
https://doi.org/10.4000/aa.4963...
). Vamos entender melhor esse contexto.

Estimulados pela temática trazida por Jenifer, pude observar que a perspectiva desses grupos de jovens com quem estive e a figura de Djack corroboram o que se diz sobre as performances de conjugalidade em Cabo Verde,29 29 Inclusive na literatura que aborda tanto as relações de gênero quanto as dinâmicas familiares. ou seja, ambas as narrativas classificam pela via da “normalidade” o fato de que o homem vivencie sua sexualidade e afetividade por meio de relações com mais de uma mulher, pertença ao universo da rua e experiencie uma relação de relativa distância com o ambiente do doméstico. O tal “homem cabo-verdiano” caracterizado como um tipo conquistador, mulherengo, distante da família.30 30 Em interessante texto sobre as condições de uma masculinidade feminista em Cabo Verde, Anjos e Talina Silva (2021),argumentam acertadamente que a maioria dos estudos de gênero em África e na diáspora africana não integram as vozes de homens negros progressistas. Em uma etnografia sobre o grupo denominado Lasu Branku,uma rede de homens organizada com objetivos de combate à violência doméstica em Cabo Verde, os autores propõem uma abordagem que inclui a perspectivas de homens negros para questionar o “modo como o tema das masculinidades negras tem sido submetido a uma perspectiva de feminismo eurocentrado”(Anjos e Silva,2021: 150).Faço menção a este artigo aqui para enfatizar que, tanto no presente artigo quanto em artigo anterior (Lobo & Miguel, 2020),este citado pelos autores, partilho da perspectiva de que não só é necessário recuperar as perspectivas dos sujeitos masculinos nas análises como também relativizar suas múltiplas posições sociais em que vivenciam suas masculinidades, que não se reduz à conjugalidade ou à sexualidade. Porém, considero apressada a leitura dos referidos autores quando afirmam que as caracterizações dos homens caboverdianos como de “estilo Djack” nas etnografias resultam de referenciais que “seguem as estruturas interpretativas pautadas por vieses feministas tendencialmente eurocêntricos” (Anjos e Silva,2021: 151).As etnografias que são objeto de crítica dos autores (Lobo & Miguel,2020) tanto privilegiam o diálogo com autores/as caboverdianos/as e africanos/as quanto se pautam em dados de pesquisa que pretendem vocalizar as perspectivas femininas e de sujeitos homossexuais sobre suas experiências com homens caboverdianos. O que eu pretendo no presente artigo e em demais textos já publicados sobre o tema é, analiticamente e sempre a partir dos dados coletados junto a interlocutores de pesquisa, refletir, relativizar e complexificar tais dados para somar às reflexões que problematizam noções de ‘” masculinidade tóxica” que estigmatizam homens, sobretudo negros e de classes populares.

Complementando o quadro, ser homem estaria associado a ter uma vida sab (boa, agradável, alegre, gostosa), que consiste não só em um prazer individual, mas em um estilo de vida que está ligado à virilidade - importante símbolo para a construção da masculinidade. Nos grupos de discussão que abordo aqui, os homens falavam livremente de sua boa potência sexual, de suas conquistas e de como se saíram de situações conflituosas entre duas ou mais mulheres. Por sua vez, o costume de se relacionar com mais de uma mulher gerava comentários tanto positivos quanto negativos, a depender de quem falava. Os demais homens incitavam com interjeições de aprovação, traziam novas histórias e provocavam as moças. Já elas reagiam com certa ambiguidade, tanto riam e aceitavam as provocações como brincadeiras quanto retrucavam e censuravam os colegas por falarem e agirem desta maneira.

Fato é que, em todos os casos em que apliquei a técnica dos grupos focais para tratar dessa temática dos relacionamentos, eu experimentava a constrangedora sensação de estar como juíza em um ringue de luta. As conversas começavam calmas, cada um/a falando por vez e, com o acaloramento do debate, tudo acabava em uma interessante discussão, em que proliferavam acusações mútuas. O foco dos debates incidia exatamente nas concepções prévias sobre os comportamentos esperados de homens, mas sobretudo de mulheres, no interior dos relacionamentos. Os rapazes, ao fazerem uma apresentação de si, logo se identificavam com o perfil Djack. Por sua vez, tal como para Jenifer, esse também era o perfil que elas acessavam para falar deles. Então, aonde está o ponto de conflito, se expectativa e realidade se equivalem quando o assunto é o homem cabo-verdiano?

É Revan, um jovem músico do estilo Hip Hop que, ao gravar uma resposta de Djack a Jennifer em seu álbum “Retardado do Futuro”, vocaliza a perspectiva de Djack, “olhado como vilão nessa sociedade”. Vejamos a resposta.31 31 Acompanhe o áudio em https://youtu.be/Oj6L0QbBL6Y - último acesso em 23/05/2022.

Eu vou sim

Já que você quer mandar em mim

2 x

Prazer! Meu nome é Djack, ex-companheiro de Jenifer Solidade

Visto como um vilão em quase toda a sociedade

Sim, de facto…

Primeiro namoramos

Depois fomos morar juntos

O problema não demorou, quando ela começou a devorar

a minha Liberdade

Ela se tornou controladora

invadindo a minha privacidade

com as suas marcações a toda hora

Possessiva

Impulsiva

Com desconfiança excessiva

Deixa mantê-la sempre exclusiva

E minhas tentivas de procurar alternativas

Para me manter na defensiva, torna-a mais agressiva

Oh Deus, como eu pude me apaixonar

Por alguém tão ciumenta e tão mandona

Ela deve pensar que é a minha “dona”

Por causa dela, sequer vou hoje para a minha zona

Ela me deixou pegar no sono

Mexeu no meu telefone

Para bisbilhotar meus planos

Depois acordou-me com um pano,

Como um cyclone

Querendo me enforcar com aquele pano

Ela gosta de sentir-se soberana

É por causa disso que eu desapareço nos fins de semana

Eu não preciso de uma esposa que fica só na chatice

Deixa-me pegar nas minhas coisas e ir embora… por isso:

Eu vou sim

Já que você quer mandar em mim

2 x

Era cobrança, desconfiança, insegurança o tempo inteiro

Caindo no disparate, apagou meus contactos de quase todas as mulheres

sem mais nem menos,

criando motivos para arranjar brigas

sem parar um segundo

Deus me defenda de parar para cumprimentar uma amiga

que outrora andávamos juntos

Pior ainda se eu olhar para trás

Pior ainda se olhar o que ela tem la atrás 32 32 Se referindo a olhar para a bunda das moças

Ela é capaz

De se transformar em satanás

Eu não tinha vida social

Eu não podia sair de casa

Eu tinha vontade de mandar-lhe trabalhar na Sonasa 33 33 Empresa privada de vigilância na Cidade da Praia

Porque ela controlava tudo:

quem dá like, quem comentou, no meu chat

Quem estava lá

As amizades que aceitei no meu perfil

Quem partilhou

Eu passei a desaparecer na sexta e aparecer no domingo à tarde

Ela dizia que eu estava na festa,

Mas, eu estava na casa de meu compadre

A vizinhaça falava, inventava barbaridades

Dando conta de mim na Praia, Santo Antão e Sal

Com aquela bebedeira

Era só exagero…

Cansado dessa vida de cativeiro

Mandei-lhe arranjar um Djack novo para fazer

De prisioneiro, por isso…

Eu vou sim

Já que você quer mandar em mim

2 x

Ela falou oh baby, oh baby você é tão bonitinho, é gostoso, formoso

e resmungão também

Por isso se você quer ir…

Então pegue suas coisas e vai daqui, tudo bem?

Eu vou sim

Já que você quer mandar em mim

2 x

(Resposta de Djack, Revan) 34 34 Agradeço a Paulino Canto por ter me auxiliado na transcrição do crioulo e na tradução desta música para o português.

Djack apresenta uma faceta que complementa o que delineamos nas duas primeiras cenas deste artigo, o que nos permite ampliar para mais um aspecto de quem seria essa “nova mulher” a partir de uma percepção masculina. Tal como esboçado por Ana (Cena 1) quando se mostra preocupada com a filha que queria mandar no marido, na visão de Djack, Jenifer é mandona, chata, ciumenta, controladora, bisbilhoteira. Sua visão dos fatos, portanto, é a de que não lhe restava alternativa a “essa vida de cativeiro” a não ser desaparecer na sexta e só aparecer no domingo.

Ao expressar a perspectiva masculina, Djack pretende se deslocar da posição de vilão, e, portanto, daquele sobre quem se fala e a quem não é dado o direito de defesa, a quem não é dada voz. Essa era uma das diversas queixas dos rapazes que participaram dos grupos focais e que se diziam representados por Revan: “falam muito de nós homens, de que não servimos, não prestamos, mas e as mulheres? Delas ninguém fala”; “Vocês mulheres querem nos controlar, mas não somos cachorrinhos”; “Além de tudo, vocês também não são santas... sabem muito bem dar seus movimentos”; “Nós temos a fama de não servir, mas também não é assim, não é só o homem”; “E tem ainda a questão de que as mulheres são interesseiras, querem é quem tem dinheiro”.35 35 Não tenho tempo de entrar nessa interessante questão que relaciona o uso da sedução feminina para atingir benefícios materiais, daí seu suposto interesse por homens “com dinheiro”, mas aponto para a relevância dessa temática para esse tema mais geral e indico algumas refrerências: Castro, 2012; Anjos, 2005; Laurent, 2018; Koening, 2016.

Esse era o momento em que a batalha36 36 Essa batalha é mais uma vez encenada por Jenifer e Djack quando, em um concerto de Jenifer Solidade e Bau, no “Luar e Tamarindo”, em Mindelo, Revan é convidado a subir no palco e cantar, juntamente com Jenifer, sua versão dos fatos. Veja que bacana em: https://youtu.be/N0vp2XQZn14 - último acesso em 23/05/2022. se instaurava em nossos grupos. Se quando os rapazes vocalizavam suas versões Djack as colegas riam, complementavam e argumentavam que com elas não funciona mais assim, bem no estilo Jenifer, quando os rapazes verbalizavam suas perspectivas sobre elas, como Djack o faz, a sala virava ringue, a discussão se acalorava e ninguém mais se entendia. Uma das moças verbalizou bem o que acho que estava em questão para elas: “vocês são bons mesmo! Além de nos colocarem corno, viverem uma vida de basofaria e paródia, fazerem filhos e não cuidar deles... além de não servirem para nada, agora querem por a culpa em nós... está bom mesmo!”. Para elas, tal “discurso Djack” traduziria uma tentativa dos homens de, ao serem questionados por essa “nova mulher”, tentar inverter o jogo colocando sob suspeita a conduta dela.

Ao que parece, estamos face a negociações que se instauram diante de um processo de deslocamento das formas de construção de si e do outro quando o cenário são as relações afetivo-sexuais entre rapazes e moças. Ao observar o debate entre Jenifer e Revan, as discussões que provocaram no âmbito dos grupos focais e as formas como as senhoras e outras mulheres classificam as jovens, podemos concluir que as formas pelas quais o feminino e o masculino se constróem em Cabo Verde estão em pleno processo de questionamentos.37 37 Como dito no início, o foco aqui é no universo feminino, porém, é preciso mencionar que, assim como observamos transformações para elas, a figura de Djack deve ser entendida em sua pluralidade. Enquanto tipo, pode ser estendida a quaisquer masculinidades, porém, os tipos ideiais devem ser nuançados aqui, no mínimo, pelo marcador de geração. O que chamo atenção é para a reflexão sobre a “historicização” dessa categoria e a sua abrangência, pois certamente a figura masculina não é intocável através do tempo e nas distintas fases do ciclo de vida. Ver Lobo, 2014; Massart, 2004, 2013; Miranda, 2016.

E tudo isso não está deslocado de um movimento mais amplo desta sociedade - os crescentes debates nacionais sobre igualdade de gênero, a centralidade das políticas de combate às VBGs (violência baseada no gênero), o importante nível de desemprego que atinge sobretudo homens em idade adulta e que, cada vez mais, os coloca em uma situação de vulnerabilidade no âmbito doméstico (especialmente em uma sociedade com ideal patriarcal que os coloca na posição de provedor).

Esse é o cenário em que as “Jenifers” constroem suas percepções de si, tendo como marcadores de oposição as mulheres mais velhas e seus potenciais companheiros. É na relação de oposição a esses dois pólos, gênero e geração enquanto representantes de um ideal de conduta feminina, que persiste em subjulga-las e reduzí-las a um lugar de espera, que as “meninas de hoje em dia” tentam construir novas subjetividades, novas formas de estar no mundo e viver seus amores e afetos. Sendo assim, os dados aqui apresentados nos remetem à clássica questão da transformação e reprodução social.

SOBRE O HOJE, O ONTEM E COMENTÁRIOS FINAIS

Como temos observado até aqui, tais dinâmicas redundam em julgamentos morais que compõem um cenário social em que ecoam os ideiais de patriarcalismo e práticas machistas. As mulheres estão aí inseridas, resistindo, mas também reproduzindo. Essas dinâmicas de transformação social, expressas nas três cenas, podem ser analisadas por duas vias que quero explorar à guisa de conclusão: 1) as (des)continuidades de determinados padrões de relacionalidade pelas “meninas de hoje em dia”, e 2) a suposta contemporaneidade dos julgamentos morais sobre as condutas femininas. Trago dois breves casos que complementam os dados já apresentados nas páginas anteriores e que me dão o apoio etnográfico necessário para concatenar, no tempo e no espaço, as dimensões de mudanças e continuidades nesse complexo emaranhado de condutas e julgamentos sobre o (dever) ser mulher nesse contexto social.

A história contada por Mariana, vendedeira que conheci em minhas tardes na Feira de Sucupira, no ano de 2012, nos fornece a conjugação dessas duas dimensões:

Eu tive uma filha com um homem mais velho. Depois que eu já estava grávida eu descobri que ele tinha uma mulher em casa. E aí começaram os problemas com ela e com ele, muito sofrimento até que eu consegui sair daquilo tudo e seguir meu caminho [...]. Não queria saber de homem, mas aí conheci o Marcos. Mulherengo... (risos). Sempre foi uma confusão de mulheres na minha vida! Era a maior confusão, muita faladeireza (fofocas) porque diziam que eu tinha “me metido” na relação dele com sua primeira mãe-de-filho. Eu passei mal, Andréa, fui chamada de tudo, até de pixinguinha. Mas eu não perdi não, estamos juntos até ainda e há uns anos moramos (se referindo a morar na mesma casa)! Ele ainda não sossegou, eu tenho que ter paciência. Mas isso é para todas nós, eles são nossa sina! Você não vê a minha filha, a Kátia? É moça jovem, estudada, tem seu trabalho, é basofa, sempre me criticou por causa do Marcos e suas pequenas e eu trabalhei duro nas vendas para ela ter uma vida diferente... mas no fundo, qual é? Somos iguais... ter mais de um pai-de-filho é difícil, você fica falada, foi assim comigo e agora vejo a história se repetir com ela... pior!

Em nossas conversas, Mariana se questionava sobre o porquê de manter uma relação que tanto lhe desgastava (já que não dependia dele financeiramente). Em meio às tentativas de encontrar uma resposta prática como a de Jenifer - “eles são todos iguais, portanto fico com ele mesmo” ou “se é para ficar comum Djack novo eu fico com o Djack velho” -, Mariana acabava por concluir que ela era “doida por ele”, que ele era o homem de sua vida e que teria paciência até ele “sossegar”.38 38 Manuela Furtado e José Carlos dos Anjos (2016), em um estudo sobre violência conjugal em Calheta, interior da Ilha de Santiago, também se perguntam sobre o porquê da manutenção de tais relações por suas interlocutoras. Sua resposta aponta para os elementos que estruturam a conjugalidade e o casamento como segurança para as mulheres, o que coloca a violência como um dos elementos que estrutura as relações. Fortes (2014), em um artigo intitulado “Casa sem homem é um navio à deriva”, em alusão à frase de uma interlocutora, também vai explorar tais aspectos. Por fim, terminamos o trecho de seu relato com um pesar por observar na trajetória de sua filha Katia, uma reprodução da sua própria história.

Posso complementar informando que Katia vive, hoje, uma relação um tanto quanto complicada com seu segundo pai-de-filho. Por muito tempo ela esteve vinculada ao pai do primeiro filho, com diversas idas e vindas. Após anos de luta, como ela diz, conseguiu se desvencilhar dele e conheceu o pai de sua filhinha. Em dada ocasião em que nos encontramos perguntei por ele. Ela me respondeu que mais uma vez tudo era muito complicado, que ele era mais um desses homens que tem outra mulher com filhos. Porém, seu discurso não era o do sofrimento, a independência não só financeira, mas sobretudo o fato de ser “dona de sua vida”, era o que ganhava destaque ao falar de si. Em suas palavras, “vou para as minhas paródias, ele fica furioso, a gente dá cada guerra (briga)! Mas não estou nem aí, eu não tenho medo dele, não vou sofrer por homem, estamos juntos, temos nossa filha, ok! Mas se ele pode fazer das suas eu também posso! Ele fica louco com isso, Andréa!”

Esse é o ponto em que quero chegar. E para melhor desenvolver meu argumento volto ao aspecto geracional que me estimulou a questionar o que muda e o que continua. Se o estereótipo do cabo-verdiano estilo Djack parece perdurar no tempo, os dados aqui apresentados nos levam a concluir que houve uma mudança de postura das mulheres com relação ao caráter masculino; quando, na Cena 1, Ana nos falou das “meninas de hoje em dia” que não aturam mais desaforo dos homens, ela se referia a um aspecto mais geral de que as moças não ficam presas a um homem só, aturando seu comportamento abusivo e violento a vida toda. Por outro lado, essa independência é percebida por ela e as demais mulheres presentes na Roda de Conversas com ressalvas morais. Afinal, as mulheres não devem se comportar como os homens, deixando os filhos em casa, vivendo uma vida de festas e tendo mais de um pai-de-filho! Tais avaliações sobre a conduta feminina são corroboradas nos comentários (quase todos femininos) à postagem do Facebook que analisamos, nos quais mulheres acabam por culpabilizar as duas moças envolvidas pela conduta não adequada do homem diante da traição. Por fim, tais discursos vêm à tona nos debates dos grupos focais, quando, estimulados pelo diálogo entre as canções de Jenifer e Revan, e acuados pelas acusações de suas colegas, os rapazes anunciam: as mulheres são interesseiras.

Em meio a transformações não só nos contextos, mas nos discursos e práticas cotidianas que permeiam as relações entre homens e mulheres, não podemos deixar de observar que, especialmente as mulheres mais velhas, priorizam em suas falas as continuidades, o que se reproduz nas trajetórias geracionais dessas mulheres. Mariana, de maneira perspicaz, conecta duas dimensões em que essa reprodução operaria. A primeira, talvez mais aparente, se expressa na trajetória de Katia, que reproduz elementos da história de vida de sua mãe ao se relacionar com homens que seguem sendo descritos pela categoria “difícil”. Mas Mariana vai além, quando aponta para o fato de que os julgamentos morais sobre o comportamento feminino não são restritos à ordem do “hoje em dia”. Tal como ela aponta, em sua juventude também foi alvo das faladeirezas, acusações e questionamentos que derivavam de sua trajetória, qual seja, ter mais de um pai-de-filho, ser “a outra”, brigar com as suas “rivais”, enfim, dimensões relativas à conduta sexual-afetiva que seriam classificadas como questionáveis.

Martins da Veiga (2016MARTINS DA VEIGA, Maria Anilda. 2016. “(Re) configurações identitárias entre mulheres cujos maridos/companheiros emigram: o caso de Pilão Cão”. In: SILVA, Carmelita; VIEIRA, Miriam (eds). Género e sociabilidades no interior de Santiago. Praia: Edições UniCV , pp. 151-180.), em seu trabalho sobre esposas de homens emigrantes no interior da Ilha de Santiago vem somar à análise de Mariana, quando nos relata os percursos de vida de dezenas de interlocutoras que, por estarem presas a homens emigrantes pelo vínculo do casamento, vivem vigiadas pela comunidade e a família do marido, relatando trajetórias marcadas não só pelo abandono de seus companheiros que partiram para a emigração, mas pela violência física e simbólica que sofrem pelo fato de terem suas vidas sob contante suspeita e julgamentos. Mas é Ti Goy, músico e letrista cabo-verdiano que, na voz de Cesária Évora, nos aponta para a continuidade da classificação das “meninas de hoje em dia”. A música Nutridinha, no estilo Koladera39 39 Não deixe de acompanhar a música na voz de Cesária Évora no vídeo oficial disponível no link: https://youtu.be/31FpnWnZCZI - último acesso em 23/05/2022. , gravada por Cesária Évora nos anos 1960, é meu último exemplo etnográfico que vem reforçar a continuidade das classificações no tempo.40 40 Tal como expresso no site “Cabo Verde e a Musica, Museu Virtual”, Ti Goy (Gregório Gonçalves) foi um dos representantes do estilo de Koladera, muito em voga nos anos 1960, estilo “caracterizado por letras irônicas e impiedosas contra o sexo feminino por qualquer deslize. Um exemplo é Nutridinha, que trata do tema da gravidez precoce”. Fonte: https://www.caboverdeamusica.online/ti-goy/ - último acesso em 23/05/2022

A nutridinha do sal

De barriguinha não está mal

Apesar da pouca idade

Já vai pra maternidade

Ó que bela menininha

Mas como está nutridinha

Não esconde a barriguinha

E vai, toda morna, dançar

Atendeu ao sentimento

E com muito merecimento

Aproveitou seu momento

E não teve medo de amar

As meninas de hoje em dia

Não usam de covardia

Vão dançar a coladeira

Com o bebê na algibeira

Olha só, é tão mocinha

Mas como está bonitinha

Dançando até de manhã

E já é futura mamã

(Nutridinha, Ti Goy Álbum São Vicente, Cesária Évora) 41 41 Não me foi possível encontrar a data exata em que Ti Goy teria escrito a letra de Nutridinha. Em conversa com Gláucia Nogueira, especialista em música cabo-verdiana e criadora e responsável pelo projeto do site “Cabo Verde e a Musica, Museu Virtual”, chegamos à conclusão de que teria sido escrita nos anos 1950. Agradeço à Gláucia pela preciosa ajuda.

Meninas de hoje em dia, portanto, parecem constituir um tipo feminino que perdura no tempo, enfrentando e questionando um sistema que, com as diferenças inerentes a cada tempo histórico, vigia, regula e classifica as condutas femininas em um regime de constante suspeição, inserindo-as numa grade classificatória que, diante de qualquer deslize, as categoriza como inadequadas, interesseiras, pixinguinhas ou incapazes. Gênero e geração se combinam para compor esse mosaico, que age sobretudo sobre mulheres em idade sexual-reprodutiva, mas não de maneira uniforme, pois, tal como vem sendo apontado por algumas pesquisas (Silva, 2018SILVA, Carmelita. 2018. A Rede Sol e a Lei Especial Contra Violência Baseada no Gênero: Processos institucionais e narrativas de mulheres e homens em situação de violências conjugais em Cabo Verde. Florianópolis, tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.; Laurent, 2018LAURENT, Pierre-Joseph. 2018. Amours pragmatiques: Familles, migrations et sexualité au Cap-Vert aujourd’hui. Paris: Karthala.; Furtado & Anjos, 2016FURTADO, Manuela Gomes; ANJOS, José Carlos dos.2016.“Incompatibilidades de género: caso de São Miguel”. In: SILVA, Carmelita; VIEIRA, Miriam (eds).Género e sociabilidades no interior de Santiago. Praia: Edições UniCV,pp.181-206.), são observadas variações significativas no que concerne às desigualdades de classe, raça e idade. Por sua vez, ao mesmo tempo em que algumas são julgadas, outras são “santificadas” ou admiradas por suas condutas adequadas, mas também por serem molas propulsoras de potenciais mudanças em um sistema que as oprime e violenta material e simbolicamente, inclusive atualizando a cisão santa-puta que se renova com o tempo, aqui expressa no par mulher séria-pixinguinha.

Tal como expresso nos diferentes exemplos etnográficos que compõem o artigo, sim, as mulheres fazem o cálculo de manutenção de relações que são avaliadas por elas mesmas como conflituosas, abusivas e até violentas. E não só hoje. Retomo a trajetória de Kátia para salientar que se ela reproduz um padrão relacional de suas ascendentes, ela não o faz da mesma forma ou a partir do mesmo lugar. Tal como ela mesmo enuncia, se há alguma continuidade das práticas e das categorias morais e/ou acusatórias e disciplinadoras, os seus efeitos e implicações nas vidas concretas e nas formas como essas mulheres se percebem não são os mesmos.

Em termos gerais, da Cena 1 para a Cena 3 parecem haver transformações significativas. Se para aquelas mulheres maduras a conduta moralmente aceita da mulher seria a de sofrer - até certo ponto - calada e “dignamente”, na Cena 3 as jovens parecem considerar isso intolerável. Isso não seria, em si, uma alteração significativa entre tais cenários? Entretanto, entre o ontem e o hoje em dia parece haver algo que se reproduz, o caráter forte destas mulheres que, historicamente em Cabo Verde, assumem a gestão de suas famílias, tal como Ana, Mariana e tantas outras que tomaram para si o protagonismo de suas vidas e das de seus filhos. Sendo assim, mais interessante do que falar em resistências, o que visualizamos são as condições nas quais essas mulheres constroem suas histórias em meio a superações, julgamentos e conciliações.

Ainda que os discursos e práticas dessas mulheres, em seus julgamentos mútuos, tenha o potencial de endossar e renovar as normas associadas ao do papel do masculino e do feminino de seus mais velhos, penso que há peculiaridades em seus modos de pensar e agir no mundo. Elas residem nas formas diferenciadas pelas quais contornam em seu proveito a ordem de gênero, na tentativa de se afirmar em não só no plano socioeconômico, mas tomando as rédeas de seu desejo e destino.

Minha análise vasculha, assim, a questão das subjetividades em negociação, ressaltando como noções do feminino e do masculino (atravessadas pelas de classe social, cor e hierarquia sexual) se reproduzem nesse processo. Partilho da percepção de que é preciso ver as sociedades compostas por relações sociais em movimento. Como afirmou Lia Zanotta42 42 Em sua cerimônia de outorga de professora emérita da UnB: https://youtu.be/s4Gv7oLhA-o - último acesso em 23/05/2022. , se podemos afirmar que as desigualdades de gênero, raça e classe se devem à estruturas históricas e hierárquicas, não é razoável pensar que são ou será sempre assim ou que os diferentes atores vivenciam as relações desiguais da mesma forma. Portanto, é possível pensar em mudanças, pois as relações sociais estão permeadas por sensibilidades e percepções distintas e que se movem. Se as narrativas hegemônicas se pretendem únicas, elas não o são, e graças às constantes disputas que permeiam a vida social.

É por isso que o discurso feminino por maior autonomia frente ao estilo Djack de masculinidade é cada vez mais corrente nos debates sobre relações de gênero em diversos níveis em Cabo Verde, desde conversas entre amigos, na mídia, nos fóruns da internet até nos discursos de ONGs, órgãos governamentais e na produção científica sobre o arquipélago. Por sua vez, a trajetória de Katia, a temática da música de Jenifer e os debates nos grupos focais que participei vêm demonstrar que os padrões de masculinidade e feminilidade seguem num zigue-zague que, em diferentes roupagens, são marcados por (des)continuidades que carecem de nosso olhar atento.

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  • VENANCIO, Vinícius. 2017. Compra ali, vende aqui: Comércio transnacional e relações familiares em Mindelo - Cabo Verde. Brasília, monografia de graduação, Universidade de Brasília.
  • VENANCIO, Vinícius. 2020. Created in Cabo Verde: Discursos sobre a nação na produção de suvenires “genuinamente” cabo-verdianos na ilha de Santiago. Brasília, dissertação de mestrado, Universidade de Brasília.
  • REYNOLDS WHYTE, Susan; ALBER, Erdmute; VAN DER GEEST, Sjaak. 2008. “Generational connections and conflicts in Africa: An introduction”. In: ALBER, E.; VAN DER GEEST, S.; REYNOLDS WHYTE, S. (eds.). Generations in Africa: connections and conflicts. Beiträge zur Afrikaforschung, n. 33, pp. 1-23.
  • 1
    Pensar sobre conjugalidades em Cabo Verde nos remete a uma fórmula que nos permite associar a filiação a laços fortes, duradouros e indissolúveis, especialmente quando o elo é entre mães e filhos; e a afinidade ou conjugalidade a um terreno escorregadio, de laços tênues e que se dissolvem com alguma facilidade.Certamente, por detrás de tal fórmula encontramos um universo amplo de negociações, possibilidades, aproximações e distanciamentos, uma vez que dinâmicas familiares produzem arranjos diversos não só entre sociedades, no tempo e no espaço, mas em um mesmo universo social. Dar conta desse cenário complexo tem sido objetivo de minhas pesquisas no arquipélago nos últimos anos, as quais têm o intuito mais amplo de sublinhar que, quando tratamos do contexto familiar cabo-verdiano (e não só), faz-se imperativo falar de famílias no plural.
  • 2
    Agradeço a leitura e os comentários de André Justino, Lara Noronha, Sara Santos, Vinícius Venâncio e Wilson Trajano Filho às versões deste artigo. Igualmente, expresso meus agradecimentos aos pareceres densos obtidos pela Revista de Antropologia, que me concederam sugestões valiosas. Sou inteiramente responsável pelas análises aqui empreendidas, entretanto, elas se fizeram no e pelo diálogo acadêmico de qualidade, ao qual sou grata. Por fim, agradeço ao financiamento da FAP-DF e da Capes, que tornam possível a continuidade de minhas pesquisas. Vida longa a essas agências de fomento.
  • 3
    As senhoras com quem conversei tinham entre 40 e 60 anos. Já as moças e os rapazes formavam um grupo etário mais amplo, de jovens e adultos na faixa entre os 17 e 35 anos de idade. Tais reflexões não seriam possíveis sem todas esssa pessoas, a elas, meu muito obrigada.
  • 4
    Informo que, sempre que tiver esse sentido, a palavra “novas” terá aspas. Isso porque um dos meus objetivos é questionar a temporalidade destas classificações. Aproveito para pontuar que o itálico será utilizado para expressões e/ou categorias do crioulo de Cabo Verde, que serão devidamente explicadas à medida que forem surgindo no texto.
  • 5
    Os dados que analiso aqui são oriundos de fontes diversas: desde conversas com interlocutores de ambos os sexos, momentos de debates em grupos focais, passando pelo universo da música produzida por cabo-verdianos e pelo acompanhamento de páginas de grupos do Facebook que se transformam em fóruns de debate sobre diversos temas, dentre os quais, as relações hetero e homoafetivas.
  • 6
    Desde 2012 venho empreendendo viagens anuais à Cidade da Praia com o intuito de acompanhar processos e debates locais e nacionais sobre as dinâmicas familiares (a continuidade dos contatos foi interrompida em 2020, em decorrência da pandemia do coronavirus). Tenho realizado pesquisas entre jovens, homens e mulheres, além de acompanhar os debates nacionais sobre tais questões, tanto a partir dos governos quanto de instituições da sociedade civil. Neste artigo reúno também dados de uma pesquisa sistemática, sobre o mesmo tema, em grupos de Facebook. Sendo assim, ressalto que os dados aqui analisados extrapolam, de alguma forma, o cenário da Cidade da Praia.
  • 7
    Tal como combinado com minhas interlocutoras quando me autorizaram a dispor de suas histórias em reflexões e publicações de minha autoria, suas identidades serão preservadas. Portanto, as denominações aqui utilizadas são fictícias.
  • 8
    Essa expressão será explicada mais à frente.
  • 9
    Mãe-di-fidju e pai-di-fidju são termos comumente utilizados para se referir aquele ou àquela com quem ego teve um filho. Além disso, quando o casal mantém uma relação conjugal, esse é o termo que se usa para se referir ao companheiro ou companheira, meu pai-de-filho ou minha mãe-de-filho. De forma muito interessante, tais termos refletem a centralidade da filiação nesta sociedade (Lobo, 2014LOBO, Andréa. 2014. Tão Longe Tão Perto. Famílias e “movimentos” na ilha da Boa Vista de Cabo Verde. Edição Revisada E-Book. Brasília: ABA Publicações.; Furtado & Anjos, 2016FURTADO, Manuela Gomes; ANJOS, José Carlos dos.2016.“Incompatibilidades de género: caso de São Miguel”. In: SILVA, Carmelita; VIEIRA, Miriam (eds).Género e sociabilidades no interior de Santiago. Praia: Edições UniCV,pp.181-206.; Laurent, 2018LAURENT, Pierre-Joseph. 2018. Amours pragmatiques: Familles, migrations et sexualité au Cap-Vert aujourd’hui. Paris: Karthala.).
  • 10
    Maritza Rosabal, ativista de gênero e à época Ministra da Educação e Ministra da Família e Inclusão Social em Cabo Verde, apresenta dados interessante sobre os perfis de violência contra mulher no arquipélago: “De acordo com esse estudo (ela se refere a um estudo do Instituto Nacional de Estatística, 2005), o desencadeador dos episódios violentos estava relacionado fundamentalmente ao mau desempenho das mulheres em tarefas que eram consideradas de sua responsabilidade exclusiva, tais como o descuidar das crianças, ou queimar alimentos. Mostrou ainda que também ‘está associada a comportamento de dominação do marido/companheiro para controlar diversos aspectos da vida da mulher’. Nessa categoria podemos assinalar o controle da mobilidade, e do corpo da mulher, evidenciados pelo facto de entre as razões mais frequentes, invocadas como justificadores da agressão, era sair sem dizer nada ou negar-se a ter relações sexuais” (Rosabal 2011ROSABAL, Maritza. 2011. “As Faces (In) visiveis da Violência de Género”. In SILVA, Carmelita; FORTES, Celeste (orgs). As mulheres em Cabo Verde: experiências e perspectivas. Praia: Edições Uni-CV, pp. 141-166.: 153).
  • 11
    Morabi - Associação Caboverdiana de Auto-promoção da Mulher é uma organização não-governamental, sem fins lucrativos, criada em 1992. Ver http://www.morabi.org/ index.html - último acesso em 23/05/2022.
  • 12
    Sobre as vendedeiras ou rabidantes ver Grassi, 2003GRASSI, M., 2003. Rabidantes, Comércio Espontâneo Transnacional em Cabo Verde. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais.; Lobo, 2012bLOBO, Andréa. 2012b. “Negociando pelo mundo: as rabidantes cabo-verdianas e suas rotas comerciais”. In: TRAJANO FILHO, Wilson (ed.). Travessias Antropológicas: estudos em contextos africanos. ABA Publicações, pp. 317-338.; Venancio, 2017VENANCIO, Vinícius. 2017. Compra ali, vende aqui: Comércio transnacional e relações familiares em Mindelo - Cabo Verde. Brasília, monografia de graduação, Universidade de Brasília., 2020VENANCIO, Vinícius. 2020. Created in Cabo Verde: Discursos sobre a nação na produção de suvenires “genuinamente” cabo-verdianos na ilha de Santiago. Brasília, dissertação de mestrado, Universidade de Brasília.; Rocha, 2017ROCHA, Eufémia. 2017. “Mobilidades e Gênero: deslocamentos e fronteiras na rabidância em Cabo Verde”. In: GODINHO GOMES, Patrícia; FURTADO, Claudio (orgs.). Encontros e desencontros de lá e de cá do Atlântico: mulheres africanas e afro-brasileiras em perspectiva de gênero. Salvador: UFBA, pp. 65-88..
  • 13
    Koening, em um estudo sobre sexo transacional entre jovens na cidade de Abidjan, também aborda essa relação entre moralidade e as relações intergeracionais. Nesse contexto - de autonomia financeira delas e do interesse de todos em atualizar uma “lógica da dívida” que valoriza o “contrato intergeracional” em relações de parentesco que obrigam as/os jovens a sustentar os seus materialmente - os “negócios eróticos” delas são ressignificados moralmente pelas “mais velhas”, uma vez que é destas estratégias que podem advir o suprimento de toda a família (Koening, 2016KOENING, Boris. 2016. “Amour, ruse et érotisme dans les transactions intimes de jeunes de la ville d’Abidjan (Côte d’Ivoire)”. Recherches féministes, v. 29, n. 2: 63-85. https://doi.org/10.7202/1038721ar
    https://doi.org/10.7202/1038721ar...
    ).
  • 14
    É preciso sinalizar que a construção narrativa de temporalidades é sempre regulada, negociada e delimitada por argumentos elaborados a partir de um presente, ou seja, a produção discursiva de moralidades vinculadas à ideia de “hoje em dia” e de tempos pretéritos não deve ser compreendida como resquícios de um modo de vida passado, mas de suas elaborações a partir do hoje.
  • 15
    “Intem nha namorado nu ta mora djunto dja fase 2 ano nu tem um fidjo nu pasa pa munte deficuldade nhas familia ka ta aceitab el k tempo es pasa ta aceital so que nha irma bai mora k mi nha irma pasa ta gosta del es envolve mi sem sab de nada depos nha irma bem parce gravida de pai de nha fidjo djan fica k ta sabe kuze kin ta fase, ael e sa flam me minina k da riba del e mostran sms k nha irma ta mandab el ink sab na kal kin ta credita nhos djudan” (https://www.facebook.com/search/top/?q=nha%20 irma%20sta&epa=SEARCH_BOX - último acesso em 23/05/2022.)
  • 16
    Alguns exemplos: Hollywood tem mesmo de investir nos cabo-verdianos; “Vais ser TIAMADRASTA.KKKK”; “Fiquem os três”; “Pede para ser madrinha, kkkk”; “Nhos djunta mon...kkkk” (expressão que significa literalmente juntar as mãos, mas que tem relação com a prática do mutirão em Cabo Verde), etc.
  • 17
    Kumbossa é expressão utilizada na ilha de Santiago para se referir àquela mulher com quem se divide um companheiro em uma relação fixa em simultâneo. Maria Ivone Monteiro afirma que o termo designa uma “conexão entre mulheres que compartilham o mesmo homem, de forma similar aos laços de parentesco” (Monteiro, 2016MONTEIRO, Eurídice. 2016. “Crioulidade, colonialidade e género: as representações de Cabo Verde”. Revista Estudos Feministas , v. 24, n. 3: 983-996. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2016v24n3p983
    https://doi.org/10.1590/1806-9584-2016v2...
    : 121).
  • 18
    Utilizar dados do Facebook nos permite dar conta de uma dimensão importante das formas de relacionamento na atualidade. Enquanto parte das denominadas mídias modernas, os diálogos ali não são somente formas de representação, uma vez que estas novas plataformas de mídia têm consistentemente contribuído para a formação de novos modos de percepção e conhecimento, bem como para a produção de novas formas e locais de ação social. Sua capacidade de não ser só registro do passado, mas de oferecer feedback instantâneo tem complexificado a dinâmica social de forma interessante, tal como podemos observar no exemplo etnográfico aqui apresentado.
  • 19
    Laurent argumenta que há uma estreita relação entre a família matricentrada e o machismo (Silva & Vieira, 2016SILVA, Carmelita; VIEIRA, Miriam. 2016. Género e sociabilidades no interior de Santiago. Praia: UniCV.), um alimentando o outro para formar o complexo sistema machi-centrado em Cabo Verde (Laurent, 2018LAURENT, Pierre-Joseph. 2018. Amours pragmatiques: Familles, migrations et sexualité au Cap-Vert aujourd’hui. Paris: Karthala.).
  • 20
    Partilho amplamente da percepção de que as construções, tanto das masculinidades quanto das feminilidades, são processos complexos nos quais as relações entre mulheres ou entre homens, e não apenas aquelas entre os sexos, têm tanto ou mais a revelar sobre tais identidades de gênero e a constituição de pessoas no mundo. Neste artigo, todavia, não vou me aprofundar nesse debate, uma vez que minha questão inicial tem como ponto de partida as relações entre homens e mulheres, e a consequente avaliação dos comportamentos femininos nessas relações.
  • 21
    “Pixingaria é, em Cabo Verde, a expressão local para designar um tipo de comportamento sexual juvenil que não é necessariamente percebido como prostituição, embora se pressuponha que na maior parte das vezes envolva a troca de algo material por sexo. Desde o comportamento de meninas de classe média, que ficam com vários namorados em troca de jantares e freqüência a boates caras, até as mães precoces de classe popular, que se prostituem para alimentar filhos, são chamadas de pixinguinhas as meninas que, estigmatizadas para o mercado matrimonial, se supõe estarem expostas a um mercado sexual extraconjugal e, portanto, imoral.” (Anjos, 2005ANJOS, José Carlos Gomes dos. 2005. “Sexualidade juvenil de classes populares em Cabo Verde: os caminhos para a prostituição de jovens urbanas pobres”. Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 1: 163-177. https://doi.org/10.1590/ S0104-026X2005000100011
    https://doi.org/10.1590/ S0104-026X20050...
    : 165).
  • 22
    Indico aqui algumas referências interessante sobre “sexo transacional” a partir de pesquisas em contextos africanos: Anjos, 2005ANJOS, José Carlos Gomes dos. 2005. “Sexualidade juvenil de classes populares em Cabo Verde: os caminhos para a prostituição de jovens urbanas pobres”. Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 1: 163-177. https://doi.org/10.1590/ S0104-026X2005000100011
    https://doi.org/10.1590/ S0104-026X20050...
    ; Tamale, 2011TAMALE, Sylvia (ed.). 2011. African Sexualities. A reader. Cape Town: Pambazuka Press.; Castro, 2012CASTRO, Julie. 2012. “Les filles sont trop matérialistes : Tensions et soupçons dans les transactions sexuelles au Mali”. In: FASSIN, Didier et al. (orgs.). Economies morales contemporaines. Paris: La Découverte - Recherches, pp. 309-330.; Hunter, 2002HUNTER, Mark. 2002. “The Materiality of Everyday Sex: Thinking beyond ‘prostitution’”. African Studies, v. 61: 1, 99-120.; Koening, 2016KOENING, Boris. 2016. “Amour, ruse et érotisme dans les transactions intimes de jeunes de la ville d’Abidjan (Côte d’Ivoire)”. Recherches féministes, v. 29, n. 2: 63-85. https://doi.org/10.7202/1038721ar
    https://doi.org/10.7202/1038721ar...
    ; Tiriba, 2019TIRIBA, Thais Henriques. 2019. “Sugar relationships: sexo, afeto e consumo na África do Sul e no Brasil”. Revista Estudos Feministas , v. 27, n. 3: 1-15. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v27n366921
    https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v2...
    . Para o Brasil, ver Piscitelli, 2011PISCITELLI, Adriana. 2011. “Amor, apego e interesse: trocas sexuais, econômicas e afetivas em cenários transnacionais”. In: PISCITELLI, Adriana; ASSIS, Gláucia de Oliveira; OLIVAR, José Miguel Nieto (orgs.). Gênero, sexo, afetos e dinheiro: mobilidades transnacionais envolvendo o Brasil. Campinas: EDUNICAMP/PAGU, pp. 537-587.; Olivar, 2014OLIVAR, José Miguel Nieto. 2014. “Adolescentes e Jovens nos Mercados do Sexo na Tríplice Fronteira Brasil, Peru, Colômbia: Três Experiências, um Tour de force e Algumas Reflexões”. Revista Artemis, v. 18, n. 1: 87-102. https://doi.org/10.15668/1807- 8214/artemis.v18n1p87-102
    https://doi.org/10.15668/1807- 8214/arte...
  • 23
    Pierre-Joseph Laurent, em seu recente livro sobre dinâmicas familiares e migrações em Cabo Verde (2018), reflete sobre as dimensões de classe social nessas relações. Em seu argumento, apresenta dados de homens mais velhos, de classe média alta, casados, que se relacionam com jovens da periferia em mais uma versão dos abusos e das relações de poder que aí se instauram.
  • 24
    Como afirma Saba Mahmood, em sua leitura não teleológica da agência feminina, nem sempre as agências femininas são de subversão ou de resistência, mas podem também ser estratégias de confirmação da norma (Mahmood, 2009MAHMOOD, Saba. 2009. Politique de la piété: le féminisme à l’épreuve du renouveau islamique. Paris, La Découverte.).
  • 25
    Voltaremos a essa questão ao final deste artigo.
  • 26
    O artigo aborda pelo ao menos dois exemplos etnográficos que explicitam como tais questionamentos são verbalizados por elas, sendo objeto de suas reflexões sobre suas trajetórias, o caso da filha de Ana (Cena 1) e, mais à frente no texto, isso estará expresso na trajetória de Kátia,
  • 27
    Nas palavras de Anjos, “sob a erótica tradicional, a nova economia do desejo parece refletida como em um espelho invertido. No reconhecimento de que os homens de outrora com freqüência eram mulherengos e as mulheres recatadas, é como se a pixingaria invertesse esse quadro.” (2005: 170). Também na coletânea organizada por Carmelita Silva e Miriam Vieira (2016SILVA, Carmelita; VIEIRA, Miriam. 2016. Género e sociabilidades no interior de Santiago. Praia: UniCV.) diversos capítulos trazem exemplos etnográficos que permitem ampliar essa perspectiva de que “homem não nega mulher”.
  • 28
    Agradeço à Juliana Braz Dias por ter me apresentado à esta canção.
  • 29
    Inclusive na literatura que aborda tanto as relações de gênero quanto as dinâmicas familiares.
  • 30
    Em interessante texto sobre as condições de uma masculinidade feminista em Cabo Verde, Anjos e Talina Silva (2021ANJOS, José Carlos Gomes dos & SILVA, Talina Ben’Holiel Pereira. 2021. “‘Lasu Branku’: sobre as condições de possibilidades de uma masculinidade feminista em Cabo Verde”. IN: ROCHA, Eufemia & Miriam VIEIRA (eds.). Gênero em contextos cabo-verdianos: trânsitos de pesquisa Brasil-Cabo Verde. Praia, Santiago, Cabo Verde: Edições Uni-CV ; Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2021. Pp. 141-165.),argumentam acertadamente que a maioria dos estudos de gênero em África e na diáspora africana não integram as vozes de homens negros progressistas. Em uma etnografia sobre o grupo denominado Lasu Branku,uma rede de homens organizada com objetivos de combate à violência doméstica em Cabo Verde, os autores propõem uma abordagem que inclui a perspectivas de homens negros para questionar o “modo como o tema das masculinidades negras tem sido submetido a uma perspectiva de feminismo eurocentrado”(Anjos e Silva,2021ANJOS, José Carlos Gomes dos & SILVA, Talina Ben’Holiel Pereira. 2021. “‘Lasu Branku’: sobre as condições de possibilidades de uma masculinidade feminista em Cabo Verde”. IN: ROCHA, Eufemia & Miriam VIEIRA (eds.). Gênero em contextos cabo-verdianos: trânsitos de pesquisa Brasil-Cabo Verde. Praia, Santiago, Cabo Verde: Edições Uni-CV ; Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2021. Pp. 141-165.: 150).Faço menção a este artigo aqui para enfatizar que, tanto no presente artigo quanto em artigo anterior (Lobo & Miguel, 2020LOBO, Andréa; MIGUEL, Francisco. 2015. “‘I want to marry in Cabo Verde’: Reflections on homosexual conjugality in contexts”. Vibrant, v. 12: 37-66. https://doi.org/10.1590/1809-43412015v12n1p037
    https://doi.org/10.1590/1809-43412015v12...
    ),este citado pelos autores, partilho da perspectiva de que não só é necessário recuperar as perspectivas dos sujeitos masculinos nas análises como também relativizar suas múltiplas posições sociais em que vivenciam suas masculinidades, que não se reduz à conjugalidade ou à sexualidade. Porém, considero apressada a leitura dos referidos autores quando afirmam que as caracterizações dos homens caboverdianos como de “estilo Djack” nas etnografias resultam de referenciais que “seguem as estruturas interpretativas pautadas por vieses feministas tendencialmente eurocêntricos” (Anjos e Silva,2021ANJOS, José Carlos Gomes dos & SILVA, Talina Ben’Holiel Pereira. 2021. “‘Lasu Branku’: sobre as condições de possibilidades de uma masculinidade feminista em Cabo Verde”. IN: ROCHA, Eufemia & Miriam VIEIRA (eds.). Gênero em contextos cabo-verdianos: trânsitos de pesquisa Brasil-Cabo Verde. Praia, Santiago, Cabo Verde: Edições Uni-CV ; Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2021. Pp. 141-165.: 151).As etnografias que são objeto de crítica dos autores (Lobo & Miguel,2020LOBO, Andréa; MIGUEL, Francisco. 2015. “‘I want to marry in Cabo Verde’: Reflections on homosexual conjugality in contexts”. Vibrant, v. 12: 37-66. https://doi.org/10.1590/1809-43412015v12n1p037
    https://doi.org/10.1590/1809-43412015v12...
    ) tanto privilegiam o diálogo com autores/as caboverdianos/as e africanos/as quanto se pautam em dados de pesquisa que pretendem vocalizar as perspectivas femininas e de sujeitos homossexuais sobre suas experiências com homens caboverdianos. O que eu pretendo no presente artigo e em demais textos já publicados sobre o tema é, analiticamente e sempre a partir dos dados coletados junto a interlocutores de pesquisa, refletir, relativizar e complexificar tais dados para somar às reflexões que problematizam noções de ‘” masculinidade tóxica” que estigmatizam homens, sobretudo negros e de classes populares.
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    Acompanhe o áudio em https://youtu.be/Oj6L0QbBL6Y - último acesso em 23/05/2022.
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    Se referindo a olhar para a bunda das moças
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    Empresa privada de vigilância na Cidade da Praia
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    Agradeço a Paulino Canto por ter me auxiliado na transcrição do crioulo e na tradução desta música para o português.
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    Não tenho tempo de entrar nessa interessante questão que relaciona o uso da sedução feminina para atingir benefícios materiais, daí seu suposto interesse por homens “com dinheiro”, mas aponto para a relevância dessa temática para esse tema mais geral e indico algumas refrerências: Castro, 2012CASTRO, Julie. 2012. “Les filles sont trop matérialistes : Tensions et soupçons dans les transactions sexuelles au Mali”. In: FASSIN, Didier et al. (orgs.). Economies morales contemporaines. Paris: La Découverte - Recherches, pp. 309-330.; Anjos, 2005ANJOS, José Carlos Gomes dos. 2005. “Sexualidade juvenil de classes populares em Cabo Verde: os caminhos para a prostituição de jovens urbanas pobres”. Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 1: 163-177. https://doi.org/10.1590/ S0104-026X2005000100011
    https://doi.org/10.1590/ S0104-026X20050...
    ; Laurent, 2018LAURENT, Pierre-Joseph. 2018. Amours pragmatiques: Familles, migrations et sexualité au Cap-Vert aujourd’hui. Paris: Karthala.; Koening, 2016KOENING, Boris. 2016. “Amour, ruse et érotisme dans les transactions intimes de jeunes de la ville d’Abidjan (Côte d’Ivoire)”. Recherches féministes, v. 29, n. 2: 63-85. https://doi.org/10.7202/1038721ar
    https://doi.org/10.7202/1038721ar...
    .
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    Essa batalha é mais uma vez encenada por Jenifer e Djack quando, em um concerto de Jenifer Solidade e Bau, no “Luar e Tamarindo”, em Mindelo, Revan é convidado a subir no palco e cantar, juntamente com Jenifer, sua versão dos fatos. Veja que bacana em: https://youtu.be/N0vp2XQZn14 - último acesso em 23/05/2022.
  • 37
    Como dito no início, o foco aqui é no universo feminino, porém, é preciso mencionar que, assim como observamos transformações para elas, a figura de Djack deve ser entendida em sua pluralidade. Enquanto tipo, pode ser estendida a quaisquer masculinidades, porém, os tipos ideiais devem ser nuançados aqui, no mínimo, pelo marcador de geração. O que chamo atenção é para a reflexão sobre a “historicização” dessa categoria e a sua abrangência, pois certamente a figura masculina não é intocável através do tempo e nas distintas fases do ciclo de vida. Ver Lobo, 2014LOBO, Andréa. 2014. Tão Longe Tão Perto. Famílias e “movimentos” na ilha da Boa Vista de Cabo Verde. Edição Revisada E-Book. Brasília: ABA Publicações.; Massart, 2004MASSART, Gui. 2004. “Masculinités pour tous? Genre, pouvoir et gouvernementalité au Cap-Vert. Le foyer dans la spirale de l’ouverture et du changement à Praia”. Revue Lusotopie, v. XII, n. 1-2: 245-262. https://africabib.org/htp.php?RID=298902230
    https://africabib.org/htp.php?RID=298902...
    , 2013MASSART, Gui. 2013. “The aspirations and constraints of masculinity in the family trajectories of Cape Verdean men from Praia (1989-2009)”. Etnográfica, v. 17, n. 2: 293-316. https://doi.org/10.4000/etnografica.3131
    https://doi.org/10.4000/etnografica.3131...
    ; Miranda, 2016MIRANDA, José Manuel. 2016. “Constituição de masculinidades num contexto de crise do pescado: Rincão, Ilha de Santiago/CV”. In SILVA, Carmelita; VIEIRA, Miriam (eds). Género e sociabilidades no interior de Santiago. Praia: Edições UniCV , pp. 41-72..
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    Manuela Furtado e José Carlos dos Anjos (2016FURTADO, Manuela Gomes; ANJOS, José Carlos dos.2016.“Incompatibilidades de género: caso de São Miguel”. In: SILVA, Carmelita; VIEIRA, Miriam (eds).Género e sociabilidades no interior de Santiago. Praia: Edições UniCV,pp.181-206.), em um estudo sobre violência conjugal em Calheta, interior da Ilha de Santiago, também se perguntam sobre o porquê da manutenção de tais relações por suas interlocutoras. Sua resposta aponta para os elementos que estruturam a conjugalidade e o casamento como segurança para as mulheres, o que coloca a violência como um dos elementos que estrutura as relações. Fortes (2014FORTES, Celeste . 2015. “‘Casa sem homem é um navio à deriva’: Cabo Verde, a monoparentalidade e o sonho de uma família nuclear e patriarcal”. Anuário Antropológico, v. 40, n. 2: 151-172. https://doi.org/10.4000/aa.1425
    https://doi.org/10.4000/aa.1425...
    ), em um artigo intitulado “Casa sem homem é um navio à deriva”, em alusão à frase de uma interlocutora, também vai explorar tais aspectos.
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    Não deixe de acompanhar a música na voz de Cesária Évora no vídeo oficial disponível no link: https://youtu.be/31FpnWnZCZI - último acesso em 23/05/2022.
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    Tal como expresso no site “Cabo Verde e a Musica, Museu Virtual”, Ti Goy (Gregório Gonçalves) foi um dos representantes do estilo de Koladera, muito em voga nos anos 1960, estilo “caracterizado por letras irônicas e impiedosas contra o sexo feminino por qualquer deslize. Um exemplo é Nutridinha, que trata do tema da gravidez precoce”. Fonte: https://www.caboverdeamusica.online/ti-goy/ - último acesso em 23/05/2022
  • 41
    Não me foi possível encontrar a data exata em que Ti Goy teria escrito a letra de Nutridinha. Em conversa com Gláucia Nogueira, especialista em música cabo-verdiana e criadora e responsável pelo projeto do site “Cabo Verde e a Musica, Museu Virtual”, chegamos à conclusão de que teria sido escrita nos anos 1950. Agradeço à Gláucia pela preciosa ajuda.
  • 42
    Em sua cerimônia de outorga de professora emérita da UnB: https://youtu.be/s4Gv7oLhA-o - último acesso em 23/05/2022.
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica.
  • FINANCIAMENTO:

    FAP-DF, CNPq, CAPES-Print.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2021
  • Aceito
    18 Out 2021
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