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Os sonhos da antropologia

O número 65(3)-2022 da Revista de Antropologia reúne um conjunto importante de artigos dedicados ao rendimento dos sonhos para povos ameríndios, que integram o dossiê “Novas perspectivas sobre os sonhos ameríndios: uma apresentação”, organizado por Karen Shiratori, Majoí Fávero Gongora, Renato Sztutman e Roberto Romero Ribeiro Júnior (2022)SHIRATORI, Karen, GONGORA, Majoí Fávero, SZTUTMAN, Renato, RIBEIRO JÚNIOR, Roberto Romero. Novas perspectivas sobre os sonhos ameríndios: uma apresentação. Revista de Antropologia , 65(3): e202767. https://www.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.202767
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. Os artigos pretendem reavaliar o papel que os sonhos exercem na antropologia, tendo em vista o seu caráter secundário e frequentemente relegado à esfera da individualidade e da psicologia. Com foco nos povos indígenas das terras baixas da América do Sul, os artigos partem de etnografias detalhadas que evidenciam a relação entre sonhos e cosmopolíticas ameríndias, tendo em vista o fato de que, entre povos indígenas, a dimensão onírica não se compreende bem a partir da invenção ocidental da psique e se projeta, antes, para a exterioridade. A entrevista que compõe o dossiê, realizada com Sandra Benites, Alberto Álvares e Sérgio Yanomami mostra como “os sonhos podem ser uma potente tecnologia de aliança e reconexão, desvelando outros modos de subjetivação e de atuação política” (Shiratori; Orobitg; Ribeiro Júnior; Gongora; Hotimsky, 2022SHIRATORI, Karen, OROBITG, Gemma, RIBEIRO JÚNIOR, Roberto Romero, GONGORA, Majoí Fávero, HOTIMSKY, Marcelo. “Nós que sabemos sonhar”: Entrevista com Sandra Benites, Sérgio Yanomami e Alberto Álvares. Revista de Antropologia , 65(3): e202953. https://www.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.202953
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: XX). A reflexão parece servir como lição para o conturbado mundo não indígena, pois os brancos, como já lembrava Davi Kopenawa em A queda do céu, sonham sempre com eles mesmos. Como é de costume, o presente número da Revista de Antropologia apresenta também uma gama diversificada de estudos que atualizam as perspectivas para o estudo antropológico sobre temas tão distintos quanto a pandemia da Covid 19, o parentesco amazônico, o simbolismo místico do MST, as relações entre comunicação e antropologia, a formação de policiais, a entrada da pixação nas instituições de arte contemporânea e a atualidade do pensamento de Lévi-Strauss. Em “Rituais da Mística. A mística do MST e as aporias da ação coletiva”, Christine Chaves (2022)CHAVES, Christine. Rituais da Mística. A mística do MST e as aporias da ação coletiva. Revista de Antropologia , 65(3): e197973. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.197973
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trata da mística como um instrumento ritual de organização e de ação política do Movimento Sem Terra, tendo em vista o direcionamento da massa social para uma configuração política com objetivos definidos. A autora mostra como a ligação do movimento com a igreja católica termina por estabelecer uma produção simbólica capaz de propiciar vigor e dinâmica ao movimento social. Gabriela Leal (2022)LEAL, Gabriela Pereira de Oliveira, CAMPOS, Ricardo. Ocupando o cubo branco. Reflexões sobre a entrada da pixação no mundo da arte. Revista de Antropologia , 65(3): e197969. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.197969
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, por sua vez, em “Ocupando o cubo branco: reflexões sobre a entrada da pixação no mundo da arte”, analisa as dinâmicas de artificação da pixação que se desenvolve através de processos considerados como “deslocamento”, “renomeação”, “patrocínio” e “intelectualização” característicos das instituições de arte. O estudo mostra como a pixação vai assim sendo inventada como expressão artística, a partir de sua origem no espaço urbano. Em “‘E o fuzil, tu vende pra quem?’: Os diferentes significados da corrupção entre candidatos à carreira de policial militar no Rio de Janeiro”, Eduardo de Oliveira Rodrigues (2022)RODRIGUES, Eduardo de Oliveira. “”E o fuzil, tu vende pra quem?”: Os diferentes significados da corrupção entre candidatos à carreira de policial militar no Rio de Janeiro. Revista de Antropologia , 65(3): e195921. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.195921
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investiga a diversidade de valores simbólicos atribuídos à prática de corrupção entre candidatos a policiais militares, assim contribuindo para a compreensão da formação da identidade policial. Ao invés de se tratar apenas de um “atributo inerente” (Rodrigues, 2022RODRIGUES, Eduardo de Oliveira. “”E o fuzil, tu vende pra quem?”: Os diferentes significados da corrupção entre candidatos à carreira de policial militar no Rio de Janeiro. Revista de Antropologia , 65(3): e195921. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.195921
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: 15), a corrupção estaria antes vinculada a “processos de classificação social informados por moralidades situacionalmente localizadas” (Rodrigues, 2022RODRIGUES, Eduardo de Oliveira. “”E o fuzil, tu vende pra quem?”: Os diferentes significados da corrupção entre candidatos à carreira de policial militar no Rio de Janeiro. Revista de Antropologia , 65(3): e195921. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.195921
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: 15). Mercedes Calzado (2022)CALZADO, Mercedes, IRISARRI, Victoria. Antropología de los medios: entre los estudios de comunicación y los culturales. Pliegues, tensiones y desafios. Revista de Antropologia, 65(3): e197981. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.197981
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, em seu artigo “Antropología de los medios: entre los estudios de comunicación y los culturales. Pliegues, tensiones y desafíos”, trata das relações entre antropologia e comunicação, tendo em vista as transformações sofridas pelas críticas pós-coloniais e as tensões entre os dois campos, derivadas de compreensões distintas do próprio estatuto da etnografia. Em “Vírus, guerras e novos heróis: a pandemia da Covid-19 sob o biomilitarismo”, Otavio Sacramento (2022)SACRAMENTO, Octávio. Vírus, guerras e novos heróis: a pandemia da Covid-19 sob o biomilitarismo. Revista de Antropologia , 65(3): e195914. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.195914
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estuda o uso de metáforas bélicas como forma de produção de significado frente a situações de emergência. É desta forma que a eclosão da pandemia termina por se configurar através de uma compreensão militarista generalizada, seja no nível das relações geopolíticas, seja no nível das ações médicas e da própria compreensão antropomórfica do sistema imunológico, que deixa de lado compreensões alternativas tais como as assentadas em perspectivas ecológicas. O artigo “Um sistema iroquês amazônico: parentesco e aliança Enawene-Nawe”, de Marcio Silva (2022)SILVA, Marcio Ferreira da. Sistema iroquês amazônico: classificações de parentesco Enawene-Nawe. Revista de Antropologia , 65(3): e195922. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.195922
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, retoma a tradição dos estudos de parentesco que marcam a antropologia social a partir de um caso amazônico, do povo Enawene-Nawe. A partir de uma análise elegante, o autor demonstra que o sistema Enawene-Nawe “articula um regime elementar de troca restrita inclusiva (Viveiros de Castro, 1998) que opera nos horizontes de uma estrutura complexa, que define apenas proibições matrimoniais” (Silva, 2022SILVA, Marcio Ferreira da. Sistema iroquês amazônico: classificações de parentesco Enawene-Nawe. Revista de Antropologia , 65(3): e195922. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.195922
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: 17).

Ao tratar da reciprocidade de perspectivas que permite recalibrar a relação entre humanidade, cultura e natureza no Pensamento selvagem de Lévi-Strauss, Marco Antonio Valentim (2022)VALENTIM, Marco Antonio. Viola tricolor: Lévi-Strauss e o pensamento selvagem. Revista de Antropologia , 65(3): e197970. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.197970
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mostra, por fim, como o autor antecipa reflexões sobre o antropoceno. É assim que, de acordo com Valentim, relações de reversão e de imbricação entre história e natureza que marcam os problemas contemporâneos poderiam ser compreendidas pelo próprio pensamento de Lévi-Strauss sobre as classificações totêmicas e sobre o pensamento mítico, às voltas com as relações de inversão entre progresso cultural e regresso natural.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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