Acessibilidade / Reportar erro

A Política e o Direito como os ossos, as emoções como a carne e o sangue: elegibilidade nos relatos de fuga dos refugiados internacionais

Politics and Law as bones, emotions as flesh and blood: eligibility in international refugee’s scape reports

RESUMO

Mobilizando dados do trabalho de campo etnográfico do autor como antropólogo e advogado de migrações, o artigo parte da técnica de escrita aqui nomeada de “procuração ficcional” para analisar a estrutura e as condições de elegibilidade e veracidade exigidas das narrativas biográficas que justificam os pedidos de refúgio dos migrantes internacionais, conforme o “Formulário de Solicitação de Reconhecimento da Condição de Refugiado”, as normas jurídicas pertinentes e as práticas cotidianas que se reiteram nesse contexto, na cidade de São Paulo. São discutidas, então, as diferentes funções exercidas pelo Direito, pela política e pelas emoções na composição do discurso verdadeiro e os efeitos de sentido e de poder que esta produção suscita tanto no narrador quanto em suas relações com os Estados de origem e de acolhida.

PALAVRAS-CHAVE:
Antropologia do Direito; Antropologia do Estado; refugiados; emoções; verdade

ABSTRACT

Based on data from the author’s ethnographic fieldwork as anthropologist and migration lawyer, the article starts from the writing technique here named “fictional proxy”. It aims to analyze the structure and the conditions of eligibility and veracity required of the biographical narratives that justify the requests for refuge made by international migrants, according to the “Formulário de Solicitação de Reconhecimento da Condição de Refugiado”, the pertinent legal norms and the daily practices that are reiterated in this context, in the city of São Paulo. Hence, it also discusses the different functions performed by Law, politics and emotions in the composition of the true speech and the effects of meaning and power that this production arouses both in the narrator and in their relations with the States of origin and reception.

KEYWORDS:
Anthropology of Law; Anthropology of the State; refugees; emotions; truth

DOIS RELATOS DE FUGA1 1 São apresentados aqui resultados parcelares da pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, processo n. 2019/13162-5). ,2 2 Os dois “relatos de fuga” que apresento são baseados inteira e exclusivamente em depoimentos publicados voluntariamente pelos sujeitos a que se referem, os quais estão compilados, junto com os depoimentos de outras pessoas refugiadas, em Carraro e Souza (2020). Não realizei entrevistas suplementares com os protagonistas dessas histórias, servindo-me de seus depoimentos como elementos bibliográficos neste trabalho.

Abdulbaset Jarour, desde a Síria

Nasci em 1990. Sou o mais velho dentre seis irmãos. Nossa vida era tranquila. Tive muitas oportunidades até chegar à idade adulta. Na adolescência, trabalhei com meus pais na empresa de construção civil da família. Mas já aos 16 abri meu próprio negócio, vendendo equipamentos eletrônicos. As vendas iam muito bem, e cheguei a cursar a faculdade de Administração. Mas, quando fiz 19 anos, tive que me alistar no serviço militar, que é obrigatório na Síria.

Eu já tinha ouvido sobre os protestos nos países vizinhos, e até em África. Mas ninguém podia ter previsto a guerra que estouraria no meu país. Eu era motorista no serviço militar, e o posto a que servia ficava no alto da Qasioun, a montanha mais próxima de Damasco. Durante muito tempo, eu pude ver a cidade ser bombardeada. Contei a morte de 115 de meus companheiros da Guarda Republicana Síria. As noites na montanha eram repletas do som das bombas, e, numa madrugada dessas, eu pensei em me despedir da minha família e me matar. Liguei para minha irmã, Gharam, mas ela implorou que eu pensasse no mal que isso faria à minha mãe. Ouvi o conselho da minha irmã, por respeito a ela. E aguentei firme. Até 2013, quando um avião israelense invadiu Damasco pelo sul do Líbano e bombardeou meu posto. Tudo ficou coberto por um pó branco e eu não enxergava nada. Só percebi que estava dentro de um quarto que tinha sido partido ao meio. Acordei de novo em um hospital. Era 5 de maio.

Foi um milagre eu ter conseguido a dispensa do exército. O governo havia anunciado que ninguém poderia deixar o posto até que a revolta fosse controlada e, na Síria, a dispensa médica só é possível para quem fere mais de 50% do corpo. Eu feri cerca de 5%, mas consegui. Ainda no hospital, entrei em contato com conhecidos para me ajudarem a encontrar um meio de sair do país. Quando avistei o porto de Trípoli, no norte do Líbano, a partir do ônibus que peguei algum tempo depois de ter alta, me senti livre. Liguei para a minha mãe. Ela ficou muito emocionada. Não podia acreditar que eu havia escapado, depois de tantas das suas amigas terem perdido os filhos na guerra. Mas, ainda assim, passado um tempo naquele lugar, descobri que eu ainda estava muito perto da Síria, e que isso me trazia muitas memórias ruins. Eu precisava começar outra vida, longe do meu país e da guerra. Conhecidos me indicaram uma saída pelo Egito, de onde eu poderia viajar até a Itália, de barco. Mas naquela época havia muitas notícias sobre pessoas morrendo no mar, ou sendo enganadas por coiotes. Eu queria algum país que me tratasse como humano, como o Canadá ou a Austrália. Mas ambos rejeitaram meu pedido de refúgio. Então, depois de ter ouvido de um amigo que eu deveria vir para o Brasil, porque daqui nunca mais ia querer sair, resolvi juntar meus documentos e ir até a embaixada brasileira pedir ajuda.

Prudence Kalambay, desde a República Democrática do Congo

Nasci na capital, Kinshasa, em 1980, numa família com outros sete irmãos, mas fui criada por uma tia, que logo me mandou para escola. Cheguei a terminar o ensino médio, mas, em 2001, acabei engravidando de um namorado, que não assumiu nosso filho, e me tornei mãe solo. Meu sonho de me tornar aeromoça foi interrompido. Voltar a estudar era impossível para uma mãe solteira, já que somos consideradas “velhas demais”. Mas minha experiência com o meu bebê me fez começar a pensar em formas de ajudar outras mães solo, e, no mesmo ano, apresentei um projeto, com boas chances de ser posto em prática, para políticos da região.

Mas a guerra e as dificuldades econômicas me fizeram fugir. A guerra começou em 1988 e, oficialmente, só durou cinco anos. As pessoas dizem que meu país está em paz. Só que as milícias e os grupos armados nunca pararam de lutar, principalmente no leste do país. Até então, esses conflitos ficavam longe de nós, da capital. Acompanhávamos no rádio, no entanto, o avanço das forças rebeldes na direção de Kinshasa. Eu comecei a ter medo de andar na rua. Ninguém saía mais de casa. Teve pessoas morrendo porque havia rebeldes que fingiam ser loucos ou moradores de rua pela cidade, estando cheios de armas para exterminar o povo, para fazer guerra na capital. Reagindo a isso, o povo ia atrás de qualquer desconhecido e matava. Vi muitos corpos assim, de o povo matar e queimar no pneu.

Decidi fugir com a ajuda do meu pai e da minha madrasta. Peguei um ônibus até a fronteira com a Angola e entrei ilegalmente no país. Lá eu conheci o pai dos meus outros quatro filhos. O problema é que a Angola era vizinha do meu país, e os dois presidentes são amigos. Como refugiada, tive medo de ser obrigada a voltar. Vivia escondida em Luanda, sem poder trabalhar. E foi assim que comecei a assistir a novela brasileira Alma Gêmea. Me apaixonei. O Brasil parecia um lugar receptivo. Eu queria vir pra cá. Então, peguei um avião, com uma das minhas filhas no colo e grávida de outra, e vim, esperando poder chamar o resto da minha família para ficar comigo.

PROCURAÇÃO FICCIONAL E ESCRITA ETNOGRÁFICA

Os dois textos acima são exemplares do que nomeei “relatos de fuga”. Esses relatos podem ser definidos como excertos biográficos narrados por requerentes de refúgio ao Estado em que procuram abrigo, como condição para o seu reconhecimento jurídico como sujeitos em condição de refúgio.3 3 Neste artigo o itálico é usado para destacar categorias operacionais e descritivas que organizam o universo etnográfico apresentado. Em menor medida, é usado também para destacar estrangeirismos e títulos de obras. Para serem efetivos, estes relatos devem conter uma série de elementos, os quais, por sua vez, devem satisfazer a uma série de requisitos. Alguns dos elementos e requisitos mais importantes são aqueles que, a fim aferir a elegibilidade do requerente, conferem credibilidade a este. Consoante o manual de Metodologia e Técnicas para Entrevistar Solicitantes de Refúgio do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) “avaliar a credibilidade do solicitante é determinar a veracidade de sua declaração” (2013: 53, grifos meus). Assim, esses elementos e requisitos se relacionam com o problema da verdade do discurso, conforme ela é juridicamente apreensível - ou, mais propriamente, com a questão da produção de condições adequadas para a veridicção, ou de “aleturgia"4 4 Este termo foi recuperado por Foucault para se referir ao conjunto de procedimentos exigidos para a manifestação da verdade em determinados contextos. O conceito pode ser aplicado a qualquer exercício do poder que se realiza através da enunciação da verdade. (Foucault, 2014 FOUCAULT, Michel. 2014. Do governo dos vivos. São Paulo: WMF Martins Fontes .: 8) no interior do registro linguístico e, sobretudo, epistêmico do Direito.

O objetivo desse trabalho é o de descrever etnograficamente essas condições discursivas tal como elas são performadas, embora implicitamente, na prática das solicitações de refúgio no direito brasileiro. Isso a fim de sublinhar os efeitos de sentido e de poder que essas condições - ou, melhor, que os discursos elaborados no cumprimento dessas condições - produzem nas relações do sujeito-narrador para consigo mesmo, para com o seu Estado de origem e para com o seu Estado de chegada. Com isso em mente, proponho a análise dos “relatos de fuga” na grade conceitual de um “gênero literário”, manifesto em uma estrutura espaciotemporal característica e em uma peculiar “economia política da sensibilidade”. Antes disso, contudo, é preciso explicar a maneira pela qual eu construí os exemplares acima.

Eu os elaborei como advogado, e os examinarei como antropólogo. Mais especificamente, como um antropólogo que, para investigar etnograficamente o que a mobilidade transnacional “faz” aos Estados-nação e às pessoas que são produzidas pelo movimento que cruza fronteiras nacionais (Cf.Fernandes Jr., 2021aFERNANDES JR., João G. B. 2021a. “A ‘cena etnográfica’ e a ‘procuração ficcional’: duas técnicas de escrita etnográfica para antropólogos advogados”. In: Anais do VII Encontro Nacional de Antropologia do Direito (ENADIR). Disponível em: << Disponível em: https://www.enadir2021.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmF-tcyI7czozNToiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlF-VSVZPIjtzOjQ6IjU0NzIiO30iO3M6MToia-CI7czozMjoiOTg4ZGIyN2FjZGVkN2I5Y2F-jOGExZjFjMDNkYWUwZTgiO30%3D >>. Acesso em: 24 set2022.
https://www.enadir2021.sinteseeventos.co...
; 2021bFERNANDES JR., João G. B. 2021b. “Gobernar la migración internacional, sobrecodificar los flujos: la experiencia del Derecho brasileño em dos crisis migratórias”. In: CUENCA, Jessica Ordóñez; MACÍAS, Pacual García; BRICEÑO, Vicente Torres. (orgs.). Crisis y Migración: flujos, fronteras, integración y futuros. Loja, Equador: Egregius, 2021. pp. 109-111.; 2022FERNANDES JR., João G. B. 2022. “O parentesco de papel: direito, poder e resistência em uma cena etnográfica com migrantes estrangeiros.” Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 15, n. 2: 521-547. DOI 10.4322/dilemas. v15n2.42753
https://doi.org/10.4322/dilemas. v15n2.4...
), deu início a uma pesquisa que foi tornada possível pela sua entrada em campo por meio da advocacia migratória. Nenhum desses textos, contudo, se refere a sujeitos a quem prestei atendimento jurídico, como voluntário, no Centro de Referência e Atendimento ao Imigrante do Município de São Paulo (CRAI/SP) - aparelho público criado pela Lei Municipal n. 16.478/16, onde fiz meu trabalho de campo e atuei entre setembro de 2019 e março de 2020. Esses excertos, na verdade, são produtos da técnica de escrita etnográfica a que chamo de “procuração ficcional”.5 5 Discuti esta noção também em outro trabalho (cf. Fernandes Jr., 2021a). Eles veiculam memórias reais, que foram contadas por pessoas igualmente reais - migrantes que vieram até o Brasil, foram reconhecidos aqui como refugiados e optaram por contar publicamente suas histórias em entrevistas à televisão, livros biográficos, matérias de jornal, sítios virtuais ou qualquer outra mídia de circulação ampla no país. Acontece, no entanto, que as informações que preenchem estes relatos não decorrem de minha relação com esses sujeitos,6 6 Quando redigi as primeiras versões deste trabalho, ainda em 2021, eu não conhecia os sujeitos que são protagonistas das histórias que utilizei para produzir os dois “relatos de fuga” que inauguram este texto. Tive o prazer de conhecê-los pessoalmente, e de escutar em primeira mão suas histórias, apenas em 2022. Ainda assim, optei por não me valer de qualquer informação que extravasasse a narrativa que eles voluntariamente publicaram em Carraro e Souza (2020), mantendo inalterados os “relatos de fuga” que produzi em 2021, enquanto ainda não os conhecia. Minha intenção com isto é a de mobilizar aqui apenas informações com cuja publicação eles já concordaram há muito, e que não representam qualquer novidade ao que já está em ampla circulação editorial no país. e que estas histórias, eu tomei a liberdade de recontá-las, ou, melhor dizendo, de “re-formá-las” - no sentido de emprestar a elas uma nova e determinada “forma”, a qual, por sua vez, é resultado de minha observação no campo, e objeto precípuo da análise aqui entabulada. E fiz isso, como advogado de migrações, tal como se essas pessoas porventura houvessem acabado de chegar ao Brasil e tivessem me dado uma procuração, como se diz no meio jurídico, para redigir, em seu interesse, os documentos aptos a instaurar seus processos administrativos de reconhecimento da condição de refugiados, junto às instâncias competentes, no marco da Lei Federal n. 9.474/97.7 7 Lei que internalizou na ordem jurídica nacional o “Estatuto dos Refugiados”, de 1951.

Essa “forma”, que impus aos relatos quando os “re-formei”, é produzida pela interação entre três corpora normativos diferentes, a saber: (1) o conjunto disperso e assistemático das normas propriamente jurídicas, legais e infralegais, que determinam o conteúdo que os pedidos de reconhecimento da condição de refugiado devem apresentar para cumprirem com o seu objetivo;8 8 Refiro-me ao já citado Estatuto dos Refugiados, à Declaração de Cartagena de 1984, à Lei n. 9.474/97, à Lei de Migração (Lei n. 13.445/17, arts. 2º, 20, 30, II, 31, §4º, 82, IV e 121), ao Decreto n. 9.199/17 (arts. 1º, §ún., VII, 68, §2º, 119 a 122, 142, II, ‘d’, 181, 267, IV) e às seguintes Resoluções Normativas do Conselho Nacional para os Refugiados: 8/2002, 10/2003, 14/2011, 17/2013, 18/2014, 19/2014, 20/2015, 21/2015, 22/2015, 23/2016, 27/2018 e 28/2018. (2) o conjunto das orientações para preenchimento do Formulário de Solicitação de Reconhecimento da Condição de Refugiado (doravante, “Formulário”, como nos referimos a ele no dia-a-dia), constante do próprio documento, que é aquele no qual o solicitante de refúgio insere a maior parte das informações indispensáveis para a instrução do seu processo; e, por fim, (3) um terceiro conjunto de normas, tácitas e algo consuetudinárias, cujo cumprimento, conforme entendem meus interlocutores e colegas advogados, torna mais eficaz a redação de alguns dos mais importantes quesitos do Formulário, de maneira a aumentar as chances de sucesso do requerimento junto ao Conselho Nacional para os Refugiados (CONARE) e ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) - órgãos do Estado que julgam esses requerimentos, em primeira e segunda instâncias, respectivamente.

É principalmente sobre essas “normas consuetudinárias” que a descrição etnográfica é mais elucidativa. Até porque eu mesmo só pude apreendê-las no próprio trabalho de campo. Nada na minha formação jurídica havia me informado sobre elas, ou sobre a maneira de encontrá-las. E tampouco há doutrina jurídica9 9 Tipo de literatura instrumental, técnico-jurídica, usada para instruir a interpretação de diferentes tipos de aplicadores do Direito e também como bibliografia de disciplinas jurídicas, nos cursos universitários de Direito. sobre o assunto. Tudo se passa como se elas interessassem apenas àqueles que desempenham a função, muito específica, de auxiliar os refugiados em sua documentação. Mas, mesmo no grupo restrito de pessoas que exercem esta função, essas regras não aparecem de maneira explícita. Não há uma “tradição oral”. A compilação, a sistematização e a análise dessas normas não é sequer uma questão ou um interesse dos meus colegas e interlocutores. Para eles, tudo isso é autoevidente. Quando eu esbocei perguntas sobre o assunto, muitas vezes os confundi, fossem juristas ou não: a curiosidade lhes soava a um non sense. Noutras vezes, alguns deles - os mais pacientes, decerto - simplesmente me respondiam que eu as apreenderia “com a prática”.

Com isso, no entanto, eles não queriam dizer que a única maneira de aprender era com base na “tentativa-e-erro”. Meus colegas levavam muito a sério, e com justa gravidade, qualquer erro que pudéssemos cometer no atendimento aos migrantes que se candidatavam à tutela do refúgio: nossos deslizes podiam custar caro demais àquelas pessoas, podendo ser a causa de uma intolerável negativa dos direitos aos quais sabíamos que eles faziam jus. O termo prática, era usado por meus interlocutores como referência, na verdade, a uma série disposições incorporadas pela vivência junto aos refugiados e a outras pessoas que prestavam serviços aos refugiados - algo como os “manuais invisibilizados da prática jurídica” de que fala Lupetti (2012LUPETTI, Bárbara. 2012. Entre “quereres” e “poderes”: paradoxos e ambiguidades da imparcialidade judicial. Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro.: 32). Assim, o exercício daquela função, para eles, era como um “ofício” (no sentido forte e mesmo etimológico da palavra), ao qual integravam como membros de uma “corporação”. Para aprender o “ofício”, eu tinha que assumir o papel de um “aprendiz” ou noviço na corporação. E o que eu chamo de “normas consuetudinárias”, para eles, era como o resultado de um habitus (Bourdieu, 1989BOURDIEU, Pierre. 1989. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Difel.: 106-129) particular ligado a esse “ofício”, cuja manifestação simbolizava a integração, por direito próprio, de alguém a essa “corporação”.

Eles estavam corretos, é claro. Nenhuma ansiedade de minha parte pode acelerar o processo de aprendizado. Eu tive que “mergulhar” naquele “ofício”, nos espaços que a “corporação” ocupava e nas discussões cotidianas que eles travavam para, pouco a pouco, ir apreendendo como fazer (e, sobretudo, como não fazer) o meu trabalho. Muito do que aprendi foi durante os vários treinamentos e cursos temáticos de que participei com os sujeitos já iniciados nesse “ofício”, mas apenas através de comentários an passant, que, no momento, soavam quase despropositados, excessivamente zelosos, ou só fruto do carisma pessoal de quem falava. Talvez um de meus maiores professores, nesse sentido, tenha sido o frade do Serviço Franciscano de Solidariedade (SEFRAS) - entidade da sociedade civil que gere o CRAI/SP - que me treinou no atendimento aos imigrantes antes de eu sequer poder entrar em campo. Mas aprendi muito também com o Defensor Público da União que atende semanalmente aos seus assistidos no CRAI/SP, com seus estagiários, com os assistentes sociais, e com outros trabalhadores, muitos deles migrantes, desta instituição e de algumas das outras Organizações Não-Governamentais (ONGs) que também prestam esse serviço aos imigrantes da cidade de São Paulo. Das salas de aula às de atendimento, passando pelos corredores do CRAI/SP e pelos eventos promovidos ou frequentados pelos movimentos sociais que atuam na causa migratória - todos esses lugares formavam uma grande “oficina”.

Meu caderno de campo, assim, está povoado por conselhos sobre como deixar meus atendidos mais confortáveis, sobre como lhes fazer perguntas difíceis, sobre como me portar (e como não me portar) com sujeitos de diferentes nacionalidades, etnias, religiões, gêneros, orientações sexuais, status migratórios e raças. Em meio a esses conselhos, despontam vários insights sobre como contar a história de um migrante - e, em especial, de um refugiado - para as autoridades estatais, a fim de fazer valer, diante delas, os direitos deles. Também há várias referências a documentos técnicos que ajudam na expressão dessa pretensão, e que constituem, igualmente, o material a partir do qual empreendo aqui a minha análise - sendo, os mais emblemáticos deles, o Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado” a apostila Metodologia e Técnicas para Entrevistar Solicitantes de Refúgio e o sumário de Avaliação de Credibilidade em Procedimentos de Refúgio, todos produzidos pela ACNUR ([s.d.]ACNUR. Manual de procedimentos e critérios para a determinação da condição de refugiado. [s.d.] Disponível em: <Disponível em: https://www.acnur.org >. Acesso em: 31 maio 2021.
https://www.acnur.org...
; 2013aACNUR. 2013a. Avaliação de credibilidade em procedimentos de refúgio. Disponível em: <Disponível em: https://www.acnur.org >. Acesso em: 31 maio 2021.
https://www.acnur.org...
; 2013bACNUR. 2013b. Metodologia e técnicas para entrevistar solicitantes de refúgio. Disponível em: <Disponível em: https://www.acnur.org >. Acesso em: 31 maio 2021.
https://www.acnur.org...
).

Aos poucos, percebi que os “relatos de fuga” que eu escrevia começavam a se parecer cada vez mais com aqueles escritos pelos meus colegas. E percebi também que aquilo não era mais só uma “imitação” - embora de início eu certamente imitasse a estes colegas, sem pudor algum, principalmente nas conversas que travavam com os atendidos. Era um senso estético que eu adquiria, e a forma de um gênero literário que eu apreendia - e é, enfim, este o objeto que quero analisar aqui.

Mas por que, então, eu uso da “procuração ficcional” para adaptar histórias já contadas publicamente à forma das “narrativas de fuga”? Por que opto pela ficção etnográfica, ao invés de usar os dados que colhi em meu caderno de campo e nos meus prontuários de atendimento, referentes à quase meia centena de processos de refúgio, a cuja documentação eu assisti, observei ou examinei, em diferentes etapas de desenvolvimento? A resposta é simultaneamente ética e política.

Vê-se que as dimensões dos poderes institucionais investidos no meu material, de um lado, e a vulnerabilidade dos sujeitos que me ajudaram a constituí-lo, de outro, expõem os últimos a riscos imprevisíveis e gravíssimos, aos quais não cabe ao antropólogo subestimar, e contra os quais o advogado ativista se propõe, justamente, a advogar. Além disso, não havia qualquer cabimento, no tipo de relação que eu travava com meus interlocutores, em lhes pedir para assinarem um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, como sugerem os manuais de boas práticas em ética de pesquisa: na maioria das vezes, eu só me reunia uma única vez com cada atendido - o que obstava qualquer intimidade entre nós -, e, ademais, muitos atendidos sequer confiavam em mim, porque me encaravam como um representante do Estado (aquela era uma repartição pública, afinal), e não como representante deles - o que invertia completamente a relação advogado-cliente dos moldes tradicionais.

Nessas condições, qualquer relativização do sigilo profissional do advogado seria tanto ilícita quanto antiética. Todavia, como antropólogo, eu não poderia silenciar a experiência de meus interlocutores, ou torná-la abstrata ao nível ideal das elucubrações teóricas sem referência empírica, pois fazê-lo seria desrespeitar aos compromissos políticos que assumo nesse meu campo, em que o meu engajamento com os interesses dos sujeitos da investigação é, ao mesmo tempo, condição de exequibilidade da pesquisa e modo de conhecimento privilegiado sobre aspectos de sua vivência (Herzfeld, 2008HERZFELD, Michael. 2008. Intimidade cultural. Coimbra: Edições 70.: 271-286).

A “procuração ficcional” foi uma das maneiras que encontrei para resolver esse impasse, tornando viável a escrita etnográfica de meu trabalho de campo sem recorrer às identidades, às características ou às histórias de meus interlocutores. Trata-se de uma construção ficcional da qual eu, como antropólogo-e-advogado, sou autor, mas cujo roteiro e resultados são determinados pelas experiências reais que observei entre os sujeitos da pesquisa, em campo. Substituo, certamente, alguns dados por outros, mas retenho a experiência. A ficção, portanto, é a de que refugiados cujas histórias já foram voluntariamente contadas e divulgadas, ampla e publicamente, teriam outorgado a mim uma procuração que me permitisse intervir, como advogado deles, em seus processos de refúgio, redigindo, em seu nome, os seus Formulários - no que sigo, para isso, a mesma “forma” que utilizei e vi sendo utilizada por outros tantos participantes desse “ofício” para contarmos as histórias de nossos atendidos.10 10 Dito de outra forma, eu redigo o “relato de fuga”, aqui, como se a estivesse redigindo no formulário, mas o relato que exponho não é um dos relatos que redigi no meu atendimento, e sim um que formulei a partir de excertos biográficos publicados.

Na prática, procuração alguma é exigida para o processo de refúgio, e os advogados sequer são indispensáveis a ele: os migrantes podem representar a si mesmos. A interveniência de um terceiro (não necessariamente um advogado), todavia, é o que ocorre com grande frequência, e ainda mais depois de 15 de setembro de 2019, quando o Formulário, antes oferecido e preenchível em português, inglês, espanhol e francês, passou a ser oferecido e preenchível apenas em português, e pela internet. Ademais, dada a complexidade do direito migratório brasileiro, é comum que ONGs ou órgãos estatais que prestam serviço aos imigrantes empreguem advogados ou outros especialistas na temática para auxiliar aos atendidos na instrução de seus processos, com o objetivo de aumentar-lhes as chances de serem bem-sucedidos.11 11 Nesse sentido, o “ofício” de que participo lembra àquele dos despachantes. No entanto, não se reduz a um serviço burocrático, sendo também pertinente a um trabalho de persuasão.

Independentemente disso, a figura técnica da “procuração ficcional” me permite transformar as histórias reais e divulgadas de alguns refugiados em documentos fictícios que poderiam, com verossimilhança, ter integrado seus processos de refúgio, se eu tivesse sido advogado deles. E isso me possibilita falar sobre a experiência, também muito real, de meus interlocutores-clientes, aos quais, no entanto, eu asseguro. Pela procuração, portanto, eu me refiro a um modo de conhecimento propriamente jurídico, que é aquele que dá ao advogado a autoridade (e, portanto, a autoria) de fazer levar a demanda jurídica de outrem ao Estado, na sua forma e nos seus termos legais adequados. No entanto, este modo de conhecimento, eu o transporto para um contexto alienígena, o da Antropologia, constituindo aqui um simulacro (Deleuze, 1974DELEUZE, Gilles. 1974. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva.: 259-272) no qual, imitando aos meus interlocutores, eu falo de maneira “agramatical”, tal como um estrangeiro nas línguas de minhas próprias disciplinas (Deleuze; Guatarri, 2002DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. 2002. Kafka. Lisboa: Assírio & Alvim.: 54) - o Direito e a Antropologia. O juiz, dessa vez, é o leitor, e o que esta peça ventila não é tanto uma pretensão jurídica, e sim o que se pretende ser conhecimento etnográfico sobre a experiência vivida dos refugiados. Nesse sentido, dou à minha descrição e à minha análise antropológicas uma forma homóloga à do modo de conhecimento que quero descrever e analisar, aderindo às sugestões de Strathern (2020STRATHERN, Marilyn. 2020. Relations. Durham/ Londres: Duke University Press.) para a Antropologia em geral, e às de Riles (2004RILES, Annelise. 2004. Property as legal knowledge: Means and Ends. The Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 10, n. 4: 775-95. DOI 10.1111/j.1467-9655.2004.00211.x
https://doi.org/10.1111/j.1467-9655.2004...
) para a Antropologia do Direito, em especial. O valor heurístico dessa técnica fica a critério de quem a aprecie.

No que segue, primeiro contextualizo os relatos de fuga, explicitando os enquadramentos sucessivos a que eles estão submetidos. Depois, debruço-me sobre os relatos enquanto um gênero literário estruturado por esses enquadramentos. Para finalizar, proponho uma interpretação sobre os efeitos de sentido e de poder suscitado pela “aleturgia” específica desse gênero, a fim de embasar o meu argumento principal, que é o de que se deve ver, nesse “falar verdadeiro” sobre si, um modo específico de produção de pessoas enquanto refugiadas, no qual a subjetivação é sobredeterminada pela interiorização, na definição da pessoa, do microcosmo das suas relações com o Estado de partida e com o Estado de chegada - relações estas que são informadas também pelas relações entre estes diferentes Estados.

FALANDO A VERDADE SOBRE SI PARA O ESTADO: RELATOS DE FUGA E CREDIBILIDADE

A produtividade das molduras

Os relatos de fuga são inscritos em um Formulário que lhes serve de veículo através do processo de refúgio. Na medida em que este Formulário é um instrumento jurídico, ele costuma ser interpretado, e, por conseguinte, preenchido, às vistas dos efeitos que pode gerar até as últimas etapas do processo, de que é peça inaugural. A perspectiva de que a informação contida no Formulário pode favorecer ou não à concessão do refúgio o torna uma “moldura” para as respostas que exige - e uma moldura não apenas física, mas também de pensamento (Bateson, 1972BATESON, Gregory. 1972. Steps to an ecology of mind. Nova Iorque: Ballantine.: 188; Goffman, 1974GOFFMAN, Ervin. 1974. Frame analysis. Cambridge: Harvard University Press.) sobre a condição do sujeito a que ele se refere. Suscitam-se, assim, formulações biográficas enunciadas com base no que, em Direito, chamamos de indução em retrocesso - um tipo de raciocínio cuja temporalidade é semelhante à do cálculo utilitário e consequencialista: pensa-se, no presente, sobre o que fazer do passado, a partir do resultado que se quer engendrar, com o agenciamento deste, no futuro.Há, dessa maneira, uma enunciação biográfica aproximativa com relação àquilo que se imagina que o Direito reconhece como sendo a biografia “típica” de um refugiado. E esse cálculo, no caso, será tanto mais adequado quanto mais conhecido for, não apenas o significado da palavra “refugiado” no ordenamento jurídico, mas também o caminho que o Formulário deverá percorrer nas redes da Administração Pública durante o processamento de um pedido de refúgio.

Preenchido na plataforma virtual do SISCONARE, o Formulário começa a tramitar na Polícia Federal (PF), que encaminha o pedido à Coordenação-Geral do CONARE (CG-CONARE); uma entrevista, a ser realizada por um funcionário público chamado oficial de elegibilidade, é marcada com o requerente pelo CG-CONARE; este funcionário, então, elabora o seu parecer sobre o caso, com base no Formulário e na entrevista com o requerente; em seguida, o parecer é submetido ao CONARE, que decide o caso e notifica a sua decisão ao requerente. Uma vez que a decisão tenha sido pelo reconhecimento da condição de refugiado, então basta que o solicitante compareça à PF para requerer a sua Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM) - documento que comprovará a sua identidade e o seu status migratório em todo o território nacional, enquanto perdurar o refúgio. Se, contudo, a decisão for negativa, inicia-se prazo de 15 dias para que o solicitante recorra dela junto ao MJSP, que decidirá sobre o pedido em última instância (administrativa, pois cabe judicialização do requerimento).

Embora já haja consistente material etnográfico produzido sobre a “vida social” (Appadurai, 1986APPADURAI, Arjun. 1986. La vida social de las cosas. Miguel Hidalgo: Ed. Grijalbo.: 17-88) dos papéis que compõem esse processo,12 12 Para algumas das contribuições mais relevantes vejam-se: Hamid, 2019; Facundo, 2018; e os textos reunidos nas coletâneas de Facundo et al., (2019) e de Gediel e Gomes (2016). o fato de a sua tramitação correr em segredo, sem qualquer possibilidade de análise e controle externos de seus méritos (ou seja, das razões que orientam as decisões de seus diferentes atores institucionais), tem dificultado uma compreensão mais ampla sobre os critérios que orientam a concessão ou não do refúgio, ao menos para além daquilo que se fala oficial e ostensivamente sobre o assunto. Waldely (2016WALDELY, Aryadne. 2016. Narrativas da “vida em fuga”. Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 55-94), que teve a rara oportunidade de fazer o seu trabalho de campo junto à ACNUR e ao CONARE, todavia, apontou que a etapa mais decisiva do processo é aquela da emissão do parecer pelo funcionário da elegibilidade. De acordo com a autora, esse parecer acaba por condicionar, na prática, as decisões do CONARE e do MJSP - cujos membros, afinal, não tem contato, por si mesmos, com o requerente. Afora os já mencionados documentos técnicos produzidos pela ACNUR, há também, sobre essa entrevista, a etnografia de Benevides (2001BENEVIDES, Sérgio. 2001. Nos refúgios da memória: um estudo sobre histórias de refugiados no Rio de Janeiro. Rio de janeiro, dissertação de mestrado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.) sobre a maneira pela qual o oficial tenta estabelecer a credibilidade do requerente e a veracidade da história que ele conta oralmente. Meu material de campo, entretanto, diz respeito apenas ao Formulário e ao seu preenchimento, e é a ele que me aterei a partir de agora - embora os documentos que orientem à realização das entrevistas sejam instrutivos também sobre o que se espera que haja neste Formulário.

O objeto do parecer do oficial da elegibilidade é a elegibilidade ou a inelegibilidade do solicitante de refúgio. Refere-se a uma característica do requerente, e não do requerimento em si. O que vale é o que requerimento expressa sobre o próprio requerente. A veracidade do relato de fuga, portanto, é uma relação que se estabelece juridicamente entre a palavra escrita no requerimento e a experiência vivida pelo requerente. De acordo com a boa dogmática jurídica, o parecer do oficial é eminentemente técnico. O caráter “técnico”, aqui, se opõe ao caráter discricionário, que é característica de todo “ato jurídico” em que o agente tem o poder para decidir entre pelo menos duas condutas alternativas, igualmente lícitas e aplicáveis a determinada situação de fato. Juridicamente falando, por conseguinte, o funcionário da elegibilidade não decide, portanto, dizendo-se que seu parecer é objetivo e vinculado. Ele apenas verifica se estão presentes: (1) na biografia apresentada a ele pelo solicitante os “elementos” legais para concessão do refúgio; e (2) os “requisitos” de uma relação de veracidade entre o relato e a experiência vivida pelo requerente.

Os elementos legais (1) aparecem discriminados nos anexos do Formulário e decorrem de duas definições jurídicas distintas, uma mais estrita e outra mais ampla, do que venha a ser um refugiado. A definição mais estrita é estabelecida pelo art. 1º da Lei n. 9.474/97. De acordo com ela, deve ser reconhecido como refugiado todo indivíduo: (i) que, tendo fundados temores de perseguição, por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo nacional ou opiniões políticas, se encontre fora de seu país de nacionalidade e não possa, ou não queira, acolher-se à proteção desse país; (ii) que, não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas na hipótese anterior; e (iii), que, devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país. Já a definição mais ampla, disposta pela Declaração de Cartagena de 1984 determina que também serão consideradas refugiadas as pessoas que (iv) fugirem de seus países porque sua vida, sua segurança e/ou a sua liberdade foram ameaçadas por: (iv-a) violência generalizada; (iv-b) agressão estrangeira; (iv-c) conflitos internos; (iv-d) violação massiva de direitos humanos; e (iv-e) outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública.

Não tenho a intenção de analisar essas hipóteses. O que me importa, ao enumerá-las, é fazer ver os elementos que o oficial da elegibilidade deverá apontar como presentes ou ausentes nos relatos biográficos fornecidos pelos requerentes para fundamentar o seu parecer - e, consequentemente, aquilo que deve orientar a redação do Formulário. Mostrarei à frente, contudo, que esses elementos legais aparecem, nos juízos de elegibilidade, como condições necessárias, mas não suficientes, para a concessão do refúgio - convivendo eles, portanto, de acordo com a experiência de meus interlocutores, com certos requisitos tácitos, atinentes à verificação da veracidade, que qualificam os elementos legais, mas que apenas as “normas consuetudinárias” do ofício de auxílio à documentação dos refugiados revelam.

O Formulário em si, como documento que enquadra, por sua própria estrutura, a biografia do requerente, é composto por 85 campos a que o solicitante é chamado a preencher. Estes campos estão distribuídos em 13 quesitos temáticos, quais sejam: identificação pessoal (13 campos); contatos pessoais (11 campos); educação (3 campos); experiência profissional (2 campos); serviço militar no país de origem (5 campos); antecedentes criminais (3 campos); viagem e rota feitas pelo solicitante (14 campos); informações sobre seus familiares (9 campos); proteção internacional já concedida por outros Estados (6 campos); circunstâncias biográficas da solicitação (10 campos); documentos possuídos pelo solicitante (2 campos); enquadramento legal na condição de refugiado no Brasil (4 campos); e informações adicionais (3 campos).

De todos esses quesitos, o mais importante é das “circunstâncias biográficas da solicitação”, porque é nele que o solicitante conta sua história de forma a tornar, a si próprio, elegível ou inelegível, e, ao seu relato, credível ou incredível, consoante os elementos expressos e os requisitos tácitos que são apreciados pelo oficial da elegibilidade. O primeiro campo desse quesito vem acompanhado das seguintes instruções:

10. Circunstâncias da solicitação.

Por favor, explique as razões pelas quais você decidiu deixar seu país de origem ou residência e buscar a proteção como refugiado no Brasil.

Dê explicações detalhadas, descrevendo qualquer acontecimento, experiência pessoal ou medidas adotadas contra você ou membros de sua família que o (a) levaram a abandonar seu país de origem ou residência habitual. Se possuir provas das alegações, favor anexá-las. Se necessitar de mais espaço, utilize o verso e outras folhas.

A impassibilidade com que essas instruções são redigidas contrasta tremendamente com o significado dado à entrada neste quesito pelo habitus que descrevi no começo desse texto. Para quem é do “ofício”, os quesitos anteriores são sentidos como uma longa introdução que prepara para a chegada neste. Nos termos do que Flávia Rodrigues de Castro chamou de um “ritual de preenchimento do formulário” (2020CASTRO, Flávia Rodrigues de. 2020. Refúgio e injustiça epistêmica: uma análise a partir do Brasil. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.: 100 e ss.), tratar-se-ia de uma fase preliminar, à qual seguiria a fase liminar - uma das várias margens por que o requerente deve passar durante todo o processo de refúgio. Todas as pessoas que conheci e que trabalhavam com imigrantes eram muito cônscias da profunda indelicadeza que é questionar esses sujeitos sobre seus motivos para estarem no Brasil - até porque a pergunta e o ritual que a envolve supõem que “aqui” não é o “lugar deles”. Quando sabemos que nosso interlocutor é um refugiado, o pressuposto de que ele foi forçado a fugir de seu país agrava essa indelicadeza ao ponto de ela ser considerada uma verdadeira agressão.

Em todos os atendimentos que fiz e ajudei um requerente a preencher seu Formulário, quando chegávamos ao décimo quesito, eu fazia uma pausa para que eles descansassem, oferecia-lhes água, e procurava algum assunto mais ameno para conversarmos durante um instante, se pudesse: um comportamento que parecia tentar compensar com alguma simpatia aquilo que eu devia fazer a seguir. Ao traduzir para eles essas instruções, eu por vezes não sabia se falar num tom mais grave, retificador da impassibilidade, ajudava ou piorava a situação. Também não sabia se devia olhar nos olhos deles para tentar criar uma cumplicidade, ou desviar os meus para lhes dar alguma privacidade. A largura da mesa que nos separava muitas vezes parecia insuficiente, e era como se eu estivesse invadindo seu espaço pessoal sem a devida autorização. Os trejeitos causados por essas impressões eram reproduzidos também pelos meus colegas, ainda que alguns deles parecessem lidar melhor com isso, devido ao costume ou ao fato de serem, eles mesmos, refugiados. Tudo isso acontecia porque, ainda que não pudéssemos adivinhar os detalhes das trajetórias dos sujeitos que atendíamos, sabíamos o tipo de relato que “deveria vir” deles. Havia já a expectativa, incorporada em nós, de que aqueles seriam “relatos de fuga”. E, se por acaso não o fossem, então nós mesmos já estaríamos pré-condicionados a pensar que nossos atendidos não eram, de fato, refugiados de verdade.

E isso importa. Não apenas para descrever a mim mesmo como um dos termos das interações que travei no escritório, mas porque essa expectativa era, por si mesma, preenchedora das “molduras” semânticas do Formulário: ela não era externa ao preenchimento, e o possibilitava mesmo quando havia ruídos no diálogo entre atendente e atendido. Houve algumas situações em meu trabalho de campo em que isso ficou absolutamente patente. Foram vezes em que atendi a requerentes de refúgio sobre cuja língua materna eu não tinha conhecimento algum. Uma senhora, por exemplo, que nasceu e cresceu na porção norte da República Democrática do Congo (RDC), e que tinha como primeira língua a de sua própria etnia. Eu não entendia essa língua, e tampouco compreendia totalmente o francês, em que ela era fluente. E essa senhora, que nunca ouvira o português até chegar ao Brasil, dias antes, por sua vez, não sabia o suficiente do inglês ou do espanhol para que nos comunicássemos apenas nesses idiomas. O diálogo, numa situação assim, poderia ter encontrado entraves tais que se tornasse quase impossível. No entanto, aquela não era a primeira vez que minha atendida preenchia a um requerimento de refúgio - antes de vir ao Brasil, ela havia “tentado a Europa”. Por isso, tinha uma boa ideia sobre o que o Formulário exigia dela: logo quando chegara, e antes mesmo de isso ser requisitado, a mulher me oferecera os seus documentos, indicando neles as informações que as respostas aos primeiros quesitos demandavam. E eu, de minha parte, já havia atendido a outros congoleses, inclusive antigos habitantes do norte da RDC, e acompanhava as notícias sobre o país para me manter informado sobre o meu trabalho com os migrantes. Dessa forma, tinha alguma ideia de quais poderiam ser os motivos gerais, de ordem geopolítica, que haviam feito minha atendida fugir - o que me tornava capaz de extrair os sentidos de suas memórias, mesmo nos intervalos de ininteligibilidade que nosso diálogo suscitava.

É de se reconhecer nesses fatores, desde a indução em retrocesso a partir do fluxo pré-concebido para o processo de refúgio, até as expectativas dos intérpretes e redatores dos requerimentos, passando pelas definições legais do termo “refugiado” e pela forma do próprio Formulário, a produtividade de molduras que se sucedem, inscrevendo-se umas nas outras de maneira a não apenas determinar os traços de uma estrutura para os “relatos de fuga” como também de introjetar neles sentidos que são, em grande medida, vinculativos. E isso vai muito além das situações de difícil comunicação entre atendente e atendido: é algo inerente ao próprio requerimento de refúgio. E é este o argumento que desenvolvo a seguir:

O RELATO DE FUGA COMO GÊNERO LITERÁRIO

Um relato de fuga é um texto narrativo não-ficcional feito na primeira pessoa do singular. Em todos os casos em que ajudei um solicitante a preencher o Formulário, narrador e escritor, aquele que rememora e aquele que estrutura e digita o texto, não eram a mesma pessoa. Ainda assim, em todo caso o intérprete deve fazer as vezes do seu atendido, e falar com a voz dele, flexionando a história como ele o faria, na primeira pessoa.

Meus interlocutores, ao rememorarem a sua “fuga”, tinham graus diferentes de compreensão sobre o que o Formulário demandava deles. Quando já tinham passado por um ou vários outros países, ou tinham tentado ser reconhecidos como refugiados por outros Estados, eles me ofereciam memórias cronologicamente encadeadas, das mais antigas para as mais novas, e ainda selecionavam aquelas que já sabiam serem as mais proveitosas para suscitar um juízo positivo de elegibilidade. Seus “depoimentos”, por assim dizer, já estavam ordenados com relação ao tempo, ao espaço, à natureza e à intensidade das experiências, seguindo uma pré-concepção que, se não é a mais espontânea no mais das vezes, ainda assim corresponde à formatação demandada pela racionalidade jurídica. Nesses casos, meu trabalho era principalmente o de tradução, organização e síntese, reforçando aqui ou ali algo que pudesse causar mais impacto - veremos o que isso significa mais adiante.

Quando, ao contrário, eu atendia a pessoas que estavam requerendo o refúgio pela primeira vez, suas memórias me eram contadas numa ordem diferente da cronológica. Eles me relatavam espontaneamente apenas os eventos de menor impacto, e só quando provocados - algo que ninguém “do ofício” gosta de fazer - abordavam as memórias de maior impacto, que eram, justamente, as mais necessárias para o texto que redigiríamos. Isso, é claro, implicava algo que eu sabia ser uma nova agressão. E não apenas porque a prática consubstancia uma demanda por revitimização que é constante e reiterada ao longo do processo de refúgio, mas também porque, afinal, não tínhamos tempo de construir, realmente, nenhuma intimidade ou confiança entre nós, e, se ainda assim, eles respondiam às minhas provocações, era porque sua alternativa era desistir do atendimento e recomeçar o preenchimento do Formulário em outro lugar. De qualquer maneira, quando era assim, eu anotava os eventos na ordem em que eles me contavam e, depois, dava uma nova ordenação a eles, concatenando-os cronologicamente, e, muitas vezes, “filtrando-os” também para selecionar apenas os que impactariam mais no texto. A minha presença, como advogado, no relato resultante, portanto, era muitas vezes a “causa eficiente” de sua estrutura.

Essa estrutura, conforme apreendida no exercício do meu “ofício”, é um gênero literário que expressa e faz encadear, geralmente, três cronotopos (Bakhtin, 2014BAKHTIN, Mikhail. 2014. Questões de literatura e de estética. São Paulo: HUCITEC.: 211), isto é, três particulares configurações de tempo e espaço, as quais não se diferenciam apenas pela sucessão dos momentos e dos lugares - marcando uma trajetória -, mas também pela representação que a linguagem e o discurso criam e partir de e sobre eles, associando-os a tipos de sensações, emoções, significados e memórias distintos. Encadeados, estes cronotopos podem ser vistos como compondo um “mapa mnemônico” (Marques, 2013MARQUES, Ana Claudia. 2013. Founders, ancestors and enemies: memory, family, time and space in the Pernambuco sertão. The Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 19, n. 4: 716-33. DOI 10.1111/1467-9655.12061
https://doi.org/10.1111/1467-9655.12061...
) da fuga, que, superposto neste caso ao atlas geopolítico dos Estados-nação, se oferece ao sujeito como uma cartografia em cujo traçado contínuo suas experiências, enquanto requerente de refúgio ou refugiado, e no desempenho deste papel social, se orientam. Em cada um dos exemplos que dei no começo deste trabalho, eu dividi, esquematicamente, os cronotopos dos textos, dando um parágrafo a cada um deles, a fim de facilitar a sua identificação na descrição a seguir:

(I) O primeiro cronotopo é aquele no qual o narrador conta como era a sua vida no país de origem, antes da ruptura que virá em seguida. Ele pode ou não, excepcionalmente, estar presente: sua exigência depende do contexto histórico do país de origem do requerente. Sua definição se dá em relação a um segundo momento, do qual ele é, ao mesmo tempo, uma antecipação e um parâmetro para avaliação: a ruptura tem sentido apenas se rompe com alguma coisa, estabelecendo um marco diferencial entre o passado e o futuro - um antes e um depois dela. Além disso, o impacto dessa ruptura aparecerá como um efeito de contraste com o momento anterior, quando ele existe. Aqui o narrador trata de dar uma noção da sua vida antes de aparecer a causa da fuga. Fala-se dos membros da família, dos amigos, da rotina, do trabalho, da escolaridade, dos gostos e desgostos, às vezes dos hobbies, e, principalmente, dos projetos que o sujeito tinha para o futuro. Para estes últimos, o futuro do pretérito é a conjugação verbal mais adequada, e para os demais o pretérito perfeito serve bem.

Faz-se um levantamento de tudo que se perderá no momento narrativo seguinte. É recomendável que a escrita deixe entrever traços de saudosismo ou saudade. Ao mesmo tempo, frisam-se elementos que produzam uma aproximação entre leitor e narrador, estabelecendo-se símiles entre seus modos de vida, para além das diferenças culturais (que às vezes são até ignoradas): quantos mais pontos em comum houver entre ambos, tanto maior será o impacto causado pelo próximo cronotopo. Apela-se, então, para uma “natureza humana comum”, a fim de se estabelecerem as bases de uma empatia entre leitor e narrador, a despeito das particulares sensibilidades envolvidas nas diferenças culturais e nas idiossincrasias pessoais, fazendo-se imiscuir no texto o pressuposto de que os sentimentos do narrador podem ser, afinal, traduzidos para a sensibilidade do leitor (Cf.Le Breton, 2019LE BRETON, David. 2019 Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Vozes.: 9-14). Esse é o menor momento do relato em extensão, entretanto - e, em alguns casos, quando há a percepção local (i.e., no Brasil) de que o país de origem do narrador vive uma crise persistente e antiga, este cronotopo pode estar ausente, ou, estando presente, trazer elementos dessa crise contrapostos às maneiras pelas quais o sujeito e/ou seu círculo social mais próximo resistiam a eles, criando para si uma vida passível de ser vivida.

(II) O segundo cronotopo é o da ruptura, quando o narrador perde tudo o que tinha, vivencia pelo menos uma perda irreparável, ou tem a percepção de que tem tudo, ou muito, a perder. É este o momento em que o texto deve expressar o “fim do mundo” narrado no primeiro cronotopo, veiculando o surgimento da violência originária daquilo que Veena Das (2011DAS, Veena. 2011. “O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade”. Cadernos Pagu, vol. 37: 9-41. DOI 10.1590/S0104-83332011000200002
https://doi.org/10.1590/S0104-8333201100...
) chamou de “conhecimento venenoso”. Os refugiados palestinos, tem um nome para ele: al nakba, a catástrofe - tema objeto de outros trabalhos antropológicos, feitos junto a essa população, em especial (Cf.Jardim, 2000JARDIM, Denise. 2000. Palestinos no extremo sul do Brasil: identidade étnica e os mecanismos sociais de reprodução da etnicidade. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.). Não é só a perda que importa aqui, mas a sensação causada por ela - a dor, tanto do corpo quanto do espírito. E não basta nomeá-la para evocá-la ao leitor - isto, aliás, não sendo de todo recomendável. É preciso que a narração apresente cenas ou fatos nos quais o leitor possa, de alguma maneira, imaginar a si mesmo no lugar do narrador e concluir que, nessa posição, sentiria tanta dor que, no fim, ele mesmo fugiria.

A dor deixa de ser apenas uma sensação pessoal ou uma construção cultural, para se tornar um significado autoevidente, além de um elemento persuasivo no discurso. Quanto maior for a dor, maior será o impacto causado - e, então, já podemos definir o impacto como a força retórica que a narrativa tem para afetar o leitor (Favret-Saada, 2005FAVRET-SAADA, Jeanne. 2005. Ser afetado. Cadernos de Campo, n. 13: 155-161. DOI 10.11606/issn.2316-9133.v13i13p155-161
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133....
), promovendo um “alinhamento” específico, e emocional, deste para com o narrador (Ahmed, 2014AHMED, Sarah. 2014. The cultural politics of emotions. Edimburgo: Edinburgh University Press.: 21). E é justamente para endereçar esse alinhamento a uma direção específica que se torna necessário apontar uma causa político-conjuntural destas cenas, fatos e sensações - retomarei isso mais adiante.

Enfim, esse é o momento tendencialmente mais longo do relato, devido ao mesmo motivo pelo qual ele também é o mais difícil de narrar e de rememorar, na prática: nele se requerem todos os detalhes inventariáveis sobre os casos supostamente mais sofridos da vida do solicitante de refúgio, de forma a conferir uma individualidade ao relato. Desfazem-se os laços; morrem, desaparecem, fogem, são presas ou agredidas as pessoas mais próximas; os projetos e as esperanças futuros são destroçados pelo medo, pelo desespero, pela violência. Trata-se da descrição de um evento abismal, o qual, pela sua própria natureza, é, de alguma maneira, repetível, ou ainda está em curso, mas do qual o narrador foi capaz de escapar, mesmo que momentaneamente. Tanto assim que uma das perguntas seguintes do Formulário, nesse mesmo quesito, é sobre qual o destino que o requerente imagina que teria, caso fosse forçado a voltar para seu país de origem - o exercício dessa “futurologia” não sendo mais do que uma destemporalização da ruptura, que se torna essencial e permanentemente ligada a um território. Trata-se, ademais, de um evento do passado ao qual a concessão presente do refúgio poderá esconjurar do futuro do narrador: a conjugação verbal, no pretérito perfeito, esconde a potencialidade de que o passado se converta em um dos dois futuros possíveis quando do término do relato.

(III) O último cronotopo é o da fuga, aquele para o qual todos os outros momentos se dirigem, sendo aquele que justifica tanto o relato quanto a presença do solicitante no país de chegada. Aqui o narrador deve fazer referência ao momento em que decidiu fugir de seu país de origem, concatenando-o com as providências que tomou para fazê-lo e com todo o seu percurso até alcançar o país de chegada.

Os detalhes do trajeto percorrido pelo solicitante são absolutamente necessários, porque a ausência deles não só fará inverossímil o trajeto em si, mas todo o relato anterior também, consoante uma lógica do tudo-ou-nada, presidente da análise de veracidade, na qual ou o relato pode ser tomado integralmente como verdadeiro, ou então deve ser completamente falso.

De qualquer maneira, o que cabe a este momento expressar é o ressurgimento da esperança enquanto motor que anima o sujeito durante toda a sua fuga, após a ruptura. É a possibilidade de construir outra vida, de reparar o que foi destruído, de ter uma oportunidade para repor à existência aquilo que foi injustamente obliterada pela ruptura. Este é o outro futuro do presente possível para o término do relato: o da redenção catártica, que, uma vez contrário ao anterior, leva o leitor a uma encruzilhada fatal entre a concessão e a denegação do refúgio, com a aceitação das consequências existenciais pertinentes a cada opção para o requerente. O efeito estilístico da narração é o da outorga de um direito de vida ou morte ao leitor - um refraseamento próprio da soberania na fronteira do Estado-nação.

REQUISITOS DE CREDIBILIDADE

O que nesta estrutura, descrita conforme as “regras de gênero” que regem, no “ofício” de que participo, o preenchimento do Formulário, atrai com maior probabilidade um juízo de elegibilidade positiva do que o seu contrário? Isso diz respeito à veracidade do relato, e, portanto, a relações entre o sujeito que narra, os fatos narrados, e determinada concepção sobre o “dizer verdadeiro”, podendo conduzir, estas relações, à veracidade ou à inveracidade. Argumentarei que são quatro os requisitos do relato de fuga que conduzem estas relações à veracidade:

O primeiro requisito é o da qualificação jurídica, que é aduzida pela aptidão dos elementos fáticos do relato de fuga para descreverem, de maneira cabal, circunstâncias de violação dos direitos humanos de forma geral, e da perseguição e dos efeitos da violência generalizada, da agressão estrangeira, dos conflitos internos e da perturbação da ordem pública, de forma especial. Do lado do narrador (requerente), no momento da escrita do relato, a qualificação jurídica potencial de cada fato rememorado serve para distinguir os fatos cujo relato é oportuno daqueles que são despiciendos, exercendo já uma primeira função de seleção mnemônico-biográfica. Do lado do leitor (oficial da elegibilidade), verificar-se-á se a qualificação realmente se aplica aos fatos selecionados. Assim, ao mesmo tempo em que a qualificação atua como metalinguagem e como elemento de crítica literária ao relato, ela também faz com que a elegibilidade não seja simbolizada como um “poder de eleger” exercido pelo oficial da elegibilidade, mas como uma característica da posição ocupada pelo próprio narrador, à qual só corresponde, para o leitor, a “faculdade de ler” (a legibilidade).

O segundo requisito é o da capacidade do relato de apresentar uma justificativa político-conjuntural para a ruptura e para a fuga. Este requisito tem natureza histórico-política e é, na verdade, uma vez histórico e duas vezes político. Isso porque ele relaciona a cadeia dos fatos biográficos narrados à cadeia de eventos que compõem a história política de seu país de origem. No entanto, esta história política não é apenas uma “história da política”, ou uma auto-história, e sim uma “história política da política dos outros”, e, portanto, uma narrativa oficial dada pelo país de chegada à história política recente do país de origem14 14 Uma fonte segura desse discurso oficial, no Brasil, se encontra nas “Resenhas de Política Externa”, publicadas semestralmente pelo próprio Ministério das Relações Exteriores. . A margem de tolerância da credibilidade a qualquer contraposição a este juízo, no relato biográfico, é extremamente estreita - processando-se aqui, na formatação do texto, um silenciamento de perspectivas históricas divergentes (Trouillot, 2016). O relato, quando desmente a visão política hegemônica no país de chegada sobre o país de origem, não será tomado como uma crítica a esta visão, mas como prova de sua própria incredibilidade. A questão é mesmo da ordem do discurso (Foucault, 1996 FOUCAULT, Michel. 1996. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola.): ao requerente é vedado o discurso negativo e incentivado o discurso positivo sobre “nós”, enquanto lhe é vedado o discurso positivo e demandado o discurso negativo sobre “eles” (sobre sua cultura, seu Estado, seu país de origem).

O terceiro requisito é o da verossimilhança do processo mnemônico de que é produto a autobiografia do narrador. Há sobre isso uma longa literatura no Direito e em outras disciplinas que tomam o Direito por objeto, principalmente no que toca às memórias de testemunhas e de vítimas de violência em investigações ou processos judiciais. Aqui, no entanto, a administração migratória difere da administração judicial, porque os órgãos de controle da migração - e principalmente do refúgio - erigiram a partir de sua prática uma verdadeira “ciência de Estado” sobre a memória. A ACNUR, que atualmente treina os oficiais da elegibilidade contratados pelo Estado brasileiro junto ao CONARE, sumariza essa ciência no seu documento sobre a “Avaliação de Credibilidade em Processos de Refúgio” (2013-a). Ali se movimenta algum arcabouço teórico da Psicologia para definir diversos tipos de memória e as suas respectivas limitações em situação de “normalidade biográfica”. Em seguida, parte-se para modulações dessas categorias de acordo com as especificidades da memória autobiográfica, da memória em outras culturas (descrevendo-se inclusive algumas “espécies” de memória em determinadas culturas mais “exóticas”, como a islâmica, v.g.) e, finalmente, da memória traumática. Esses procedimentos teóricos importam na medida em que preparam o oficial da elegibilidade para esperar e valorar como verdadeiras apenas certas expressões mnemônicas do requerente de refúgio - um sujeito de outra e determinada cultura, que procede a uma autobiografia necessariamente traumática - em detrimento de outras expressões, que são diversamente ou não normalmente qualificadas. Relatos extremamente detalhados e muito técnicos, ou impessoais e desprovidos de experiências concretas, sem o engajamento explícito das emoções do narrador, ou então em absoluta e inexplicável discordância com as expectativas que se tem da sua cultura, soam inverossímeis e o narrador, portanto, incredível.

Por fim, o quarto requisito é o da expressão, no relato, do que chamei de uma peculiar “economia política da sensibilidade”.15 15 A noção, que diz respeito à administração das emoções suscitadas (e nem sempre anunciadas) nos “relatos de fuga” não só decorre genealogicamente das ideias ideia de “economia política das emoções” e de “moral humanitária” ou “razão humanitária”, mas, verdadeiramente, as pressupõe (ver: Boltanski, 1993; Fassin, 2011; 2014; Ahmed, 2014; Graham, 2016; Heyman, 1998). A maneira como o gênero literário dos “relatos de fuga” administra as emoções que serão suscitadas pelo narrador no leitor depende, afinal, de que estas emoções já tenham sido significadas e valoradas num determinado campo de debate. Trata-se, por conseguinte, de uma atualização concreta, individual e sobretudo textual e literária daquelas noções. Eu o sugeri na minha descrição pelo encadeamento dos termos “saudade”, no primeiro cronótopo, da “dor”, do “medo” e do “desespero”, no segundo, e da “esperança”, no último. A distribuição das diferentes emoções nos distintos momentos da narração estabelece valorações propriamente geopolíticas, conquanto os afetos positivos e negativos se incarnam em diferentes tempos e lugares por onde o narrador passa, respondendo à série de seus acontecimentos biográficos. A “saudade”, como disposição subjetiva para o passado, valora positivamente um lugar estrangeiro que já não existe mais no tempo; a “dor”, o “medo” e o “desespero” atribuem negatividade à fantasmagoria desse mesmo lugar, que agora aparece “outro”, tal como existe no presente; e a “esperança”, como uma disposição subjetiva para o futuro, valoriza o “aqui”, o país a que se chegou, em oposição ao “lá”, o país de origem de que se fugiu, antecipando, no país de chegada, um destino melhor do que aquele que se teria no outro. Configurações muito discrepantes em relação à expectativa, nessa “economia política da sensibilidade”, atribuem valorações geopolíticas desviantes, que contrastam com a visão que o Estado de chegada tem sobre si e/ou sobre o Estado de saída, e podem levar à impressão de que o refúgio não é justificável (se não há dor e medo, por que se fugiu “de lá”? se não há esperança, por que se fugiu “para cá”?), ou de que falta veracidade ao relato.

A interação entre esses quatro requisitos revela algo sobre o modo de produção da verdade no Formulário e, por conseguinte, nos processos de refúgio. A “qualificação jurídica” e a “justificativa político-conjuntural” aparecem como que sob a superfície do relato verdadeiro, determinando-lhe a forma “por dentro”, sem, no entanto, se explicitarem - ao requerente não cabe falar diretamente sobre elas, porque são assuntos de Estado. Já as memórias e as emoções revestem de uma individualidade sensível esse discurso, encontrando-se sobre a superfície, à mostra, e imprimindo o alinhamento necessário entre leitor e narrador para que o primeiro possa, considerando-se nisso “empático”, atribuir credibilidade à relação entre o segundo e a sua biografia. Nesse sentido, os dois primeiros requisitos estabelecem tão-só uma correção jurídico-histórica, enquanto os dois últimos elicitam a contiguidade entre a experiência relatada e o corpo do sujeito que requer refúgio.

A elegibilidade, então, antes de ser uma capacidade de ser escolhido, aparece, de novo, como “legibilidade, ou como a aptidão para travar uma interação através da qual o requerente exibe os estigmas ou as marcas corpóreas passíveis de serem interpretadas (Goffman, 2008GOFFMAN, Ervin. Estigma. Rio de Janeiro: LTC, 2008.) como sinais de um devir, este responsável por tornar aquele corpo uma testemunha da violência (Das, 2011DAS, Veena. 2011. “O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade”. Cadernos Pagu, vol. 37: 9-41. DOI 10.1590/S0104-83332011000200002
https://doi.org/10.1590/S0104-8333201100...
). Por isso mesmo, os sentimentos, que são pré-figurados pela categoria da elegibilidade e pelo relato de fuga que conduz a ela, não são propriamente obrigatórios como nas situações analisadas por Mauss (2005MAUSS, Marcel. 2005. Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva .: 325-335), mas elementos cuja escrita e suscitação no leitor são “ônus” do narrador, em sentido propriamente jurídico. Para que o relato possa ser considerado autêntico, essas emoções devem ser impressas no leitor (Ahmed, 2014AHMED, Sarah. 2014. The cultural politics of emotions. Edimburgo: Edinburgh University Press.: 6-7) pela leitura do texto. Trata-se uma performance específica a que se condicionam efeitos jurídicos atributivos de status. Para um refugiado, por conseguinte, a parresía - a veridicção que arrisca ao próprio sujeito que fala - é tal que é preciso que ele esteja ferido para que se lhe possa reconhecer a idoneidade (cf.Foucault, 2011 FOUCAULT, Michel. 2011. A coragem da verdade. São Paulo: WMF Martins Fontes.: 4-15).

Então, se a paráfrase a Malinowski (1978MALINOWSKY, Bronislaw. 1978. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril.: 31) é autorizada, da pessoa como refugiada (i.e., no sistema simbólico puro do refúgio (Schneider, 1977SCHNEIDER, David. 1977. “Kinship, Nationality and Religion in American Culture”. In: DOLGIN, Janet; KEMNITZER, David; SCHNEIDER, David. (Eds). Symbolic Anthropology. Nova Iorque: Columbia University Press. pp. 47-62.), os fatos políticos e o direito são os ossos; mas as emoções são a carne e o sangue.

NOTAS CONCLUSIVAS: O REFUGIADO COMO UM PRODUTO NARRATIVO

Os relatos de fuga como gênero literário, assim como os requisitos de veracidade deste gênero têm como fonte principal, mas não exclusiva, as expectativas que integram o habitus do “ofício” daqueles que auxiliam os requerentes de refúgio. São estruturas de disposições subjetivas, e, sobretudo, estruturas que estruturam os relatos de fuga e, por conseguinte, do “falar sobre si” de nossos atendidos. No entanto, esse habitus encontra largo lastro de justificação nas normas, nos documentos oficiais, nos discursos e, principalmente, nos resultados positivos que suscita das decisões do CONARE e do MJSP. Assim, ele acaba por ser sempre reforçado na prática, consoante a razão utilitária muito própria desse “ofício”. É como se nós disséssemos que esta é a verdade sobre o que o oficial da elegibilidade diz ser a verdade no discurso dos requerentes de refúgio. E se isso parece ser ambíguo, de alguma maneira, acredito que não seja devido à imprecisão da observação em si, mas do fato de que, no nosso “ofício”, estamos sempre tentando prever como aquilo que produzimos será recepcionado pelos destinatários dessa produção. Ao mesmo tempo, essa é uma limitação da “procuração ficcional”, porque a técnica não permite ao antropólogo abandonar o advogado que ele é: a escrita se interrompe ao passar pela porta do escritório e, se eu posso olhar através dos batentes para o que acontece do “lado de fora”, ainda assim não posso acompanhar os requerimentos dos meus atendidos a fim de ver o que é feito deles em todo seu trajeto.

Da minha perspectiva, todavia, tenho uma visão assaz privilegiada dos efeitos de superfície, manifestamente micropolíticos, que os relatos de fuga suscitam nas relações entre o requerente de refúgio e os Estados de chegada e de saída. “Refúgio”, nesse sentido, conforme se conclui de meu trabalho de campo, é justamente o nome dado à sujeição de um indivíduo e à síntese entre as relações entabuladas por uma pessoa que é produzida e se produz como refugiada (i.e., como totalidade dividual ou como complexo de relações incorporadas (Strathern, 2006STRATHERN, Marilyn. 2006. O gênero da dádiva. Campinas: EdUnicamp.: 27-52)) em face de pelo menos dois entes que, por sua vez, se produzem a si mesmos enquanto Estados-nação e são produzidos como “produtores” e “receptores” de refugiados.

Outrossim, o que se percebe no relato é que o narrador se determina e si mesmo como um sujeito emocional, em oposição ao que seria um sujeito racional (Ahmed, 2014AHMED, Sarah. 2014. The cultural politics of emotions. Edimburgo: Edinburgh University Press.: 3). O legítimo refugiado - aquele que é elegível - não é o que escapa de seu país devido a um cálculo comparativo de vantagens e desvantagens com relação ao país de chegada, mas aquele cujas sensações corpóreas e emoções - manifestamente a “dor” - o impelem numa fuga desesperada, subsumível ao puro instinto de sobrevivência: a qualidade de agente político, conforme concebida na tradição de “nossa” teoria política, é obstada a ele. E, porque apenas as suas memórias e emoções podem ser inscritas no Formulário, só elas acabam sendo, efetivamente, expressadas pelo requerente, atuando, nesse caso, a moldura jurídico-burocrática como uma máquina que produz profecias autorrealizáveis e autodefinições alterodeterminadas: o refugiado não pode ser mais nada, exceto refugiado, e a sua história não pode ser outra, a não ser a do relato de fuga. Cria-se para ele uma história oficial que tende a ser reproduzida a todo o momento graças à ameaça incutida na sua deportabilidade.

Dessa maneira, essencializa-se, e, mais, racializa-se numa determinada raça/ nação estrangeira as contingências políticas de momento que lhe são imputadas, criando-se um estereótipo (Herzfeld, 2008HERZFELD, Michael. 2008. Intimidade cultural. Coimbra: Edições 70.: 46-61) que reproduz, no território de chegada, a vinculação território-Estado-povo-do-Outro. A comunidade nacional, portanto, deixa de ser apenas “imaginada” (Anderson, 2008ANDERSON, Benedict. 2008. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras.) para se tornar também “sentida”, completando-se o processo de encarnação de um “corpo pleno sem órgãos” (Deleuze & Guatarri, 2004DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. 2004. O anti-édipo. Lisboa: Assírio & Alvim .: 13) do Outro: puro instinto de morte.

Mas há mais. Essa economia política da sensibilidade trabalha com valores positivos e negativos. Quanto maior a discrepância entre esses valores, medida nos termos da intensidade dos afetos, mais beneficente será o refúgio concedido pelo Estado de chegada, e, portanto, maior será a dívida criada para o requerente em relação a este Estado. O dispositivo de poder que corresponde a essa relação parece ser análogo a um caso extremo da “hospitalidade” (Cf.Pitt-Rivers, 2012PITT-RIVERS, Julian. 2012. The law of hospitality. HAU, vol. 2, n. 1: 501-517. DOI 10.14318/hau2.1.022
https://doi.org/10.14318/hau2.1.022...
). Seu efeito prático é o do assujeitamento ou da submissão do sujeito hóspede-refugiado, cuja dívida, que nunca poderá finalmente ser adimplida - porque a própria vida é que é devida -, há de ser constantemente paga na moeda da lealdade e da obediência voluntárias (Boétie, 1999BOÉTIE, Étienne de la. 1999. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense.).

Por fim, há de se ver que o relato de fuga, ao demandar um salvamento, implica um ato de fala que simultaneamente acusa o Estado de saída da violação aos direitos humanos que motivou a fuga, e erige, no seu “salvador”, o Estado de chegada, uma autoridade moral que é própria dos Estados que “recebem” refugiados, em face daqueles que os “produzem”. O refugiado é, nesse sentido, como a vítima, e as produções de ambos enquanto pessoas só diferem na medida em que falta, ao primeiro, uma autoridade jurídica apta a reverter a injustiça sofrida: ele está, tendencialmente, para sempre preso a essa sua condição de injustiçado, e de hóspede.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ACNUR. 2013a. Avaliação de credibilidade em procedimentos de refúgio. Disponível em: <Disponível em: https://www.acnur.org >. Acesso em: 31 maio 2021.
    » https://www.acnur.org
  • ACNUR. 2013b. Metodologia e técnicas para entrevistar solicitantes de refúgio. Disponível em: <Disponível em: https://www.acnur.org >. Acesso em: 31 maio 2021.
    » https://www.acnur.org
  • ACNUR. Manual de procedimentos e critérios para a determinação da condição de refugiado. [s.d.] Disponível em: <Disponível em: https://www.acnur.org >. Acesso em: 31 maio 2021.
    » https://www.acnur.org
  • AHMED, Sarah. 2014. The cultural politics of emotions. Edimburgo: Edinburgh University Press.
  • ANDERSON, Benedict. 2008. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras.
  • APPADURAI, Arjun. 1986. La vida social de las cosas. Miguel Hidalgo: Ed. Grijalbo.
  • BAKHTIN, Mikhail. 2014. Questões de literatura e de estética. São Paulo: HUCITEC.
  • BATESON, Gregory. 1972. Steps to an ecology of mind. Nova Iorque: Ballantine.
  • BENEVIDES, Sérgio. 2001. Nos refúgios da memória: um estudo sobre histórias de refugiados no Rio de Janeiro. Rio de janeiro, dissertação de mestrado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • BOÉTIE, Étienne de la. 1999. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense.
  • BOLTANSKI, Luc. 1993. La soufrance à distance: morale humanitaire, médias et politique. Paris: Éditions Métaillé.
  • BOURDIEU, Pierre. 1989. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Difel.
  • CARRARO, Aryane; SOUZA, Duda. 2020. Valentes. São Paulo: Seguinte.
  • CASTRO, Flávia Rodrigues de. 2020. Refúgio e injustiça epistêmica: uma análise a partir do Brasil. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
  • DAS, Veena. 2011. “O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade”. Cadernos Pagu, vol. 37: 9-41. DOI 10.1590/S0104-83332011000200002
    » https://doi.org/10.1590/S0104-83332011000200002
  • DELEUZE, Gilles. 1974. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva.
  • DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. 2002. Kafka. Lisboa: Assírio & Alvim.
  • DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. 2004. O anti-édipo. Lisboa: Assírio & Alvim .
  • FACUNDO, Angela. 2018. “Administração de refugiados e processos de formação do Estado”. In: ALMEIDA, Gelsom Rozentino de; MORRA, Brandão Rafael Vaz da. (orgs.). Estado, Democracia e Participação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda. pp. 189-220.
  • FACUNDO, Angela; HAMID, Sonia; MUNEM, Bahia; GOMES, Charles (orgs.). 2019. Pessoas em movimento: práticas de gestão, categorias de direito e agências. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa e 7Letras.
  • FASSIN, Didier. 2014. Compaixão e repressão: a economia moral das políticas de imigração na França. Ponto Urbe, vol. 15. DOI 10.4000/pontourbe.2467
    » https://doi.org/10.4000/pontourbe.2467
  • FASSIN, Didier. 2011. Humanitarian reason: a moral history of the present. Oakland: University of California Press.
  • FAVRET-SAADA, Jeanne. 2005. Ser afetado. Cadernos de Campo, n. 13: 155-161. DOI 10.11606/issn.2316-9133.v13i13p155-161
    » https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v13i13p155-161
  • FERNANDES JR., João G. B. 2021a. “A ‘cena etnográfica’ e a ‘procuração ficcional’: duas técnicas de escrita etnográfica para antropólogos advogados”. In: Anais do VII Encontro Nacional de Antropologia do Direito (ENADIR). Disponível em: << Disponível em: https://www.enadir2021.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmF-tcyI7czozNToiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlF-VSVZPIjtzOjQ6IjU0NzIiO30iO3M6MToia-CI7czozMjoiOTg4ZGIyN2FjZGVkN2I5Y2F-jOGExZjFjMDNkYWUwZTgiO30%3D >>. Acesso em: 24 set2022.
    » https://www.enadir2021.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmF-tcyI7czozNToiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlF-VSVZPIjtzOjQ6IjU0NzIiO30iO3M6MToia-CI7czozMjoiOTg4ZGIyN2FjZGVkN2I5Y2F-jOGExZjFjMDNkYWUwZTgiO30%3D
  • FERNANDES JR., João G. B. 2021b. “Gobernar la migración internacional, sobrecodificar los flujos: la experiencia del Derecho brasileño em dos crisis migratórias”. In: CUENCA, Jessica Ordóñez; MACÍAS, Pacual García; BRICEÑO, Vicente Torres. (orgs.). Crisis y Migración: flujos, fronteras, integración y futuros. Loja, Equador: Egregius, 2021. pp. 109-111.
  • FERNANDES JR., João G. B. 2022. “O parentesco de papel: direito, poder e resistência em uma cena etnográfica com migrantes estrangeiros.” Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 15, n. 2: 521-547. DOI 10.4322/dilemas. v15n2.42753
    » https://doi.org/10.4322/dilemas. v15n2.42753
  • FOUCAULT, Michel. 1996. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola.
  • FOUCAULT, Michel. 2011. A coragem da verdade. São Paulo: WMF Martins Fontes.
  • FOUCAULT, Michel. 2014. Do governo dos vivos. São Paulo: WMF Martins Fontes .
  • GEDIEL, José Antônio Peres; GODOY, Gabriel Gualano de. (orgs). 2016. Refúgio e hospitalidade. Curitiba: Kairós.
  • GOFFMAN, Ervin. 1974. Frame analysis. Cambridge: Harvard University Press.
  • GOFFMAN, Ervin. Estigma. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
  • GRAHAM, Mark. 2003. Emotional bureaucracies: emotions, civil servants and immigrants in the Swedish Welfare State. Ethos, vol. 30, n. 3: 199-226. DOI 10.1525/eth.2002.30.3.199
    » https://doi.org/10.1525/eth.2002.30.3.199
  • HAMID, Sônia Cristina. 2019. (Des)Integrando refugiados: os processos do reassentamento de palestinos no Brasil. Brasília: Editora UnB.
  • HERZFELD, Michael. 2008. Intimidade cultural. Coimbra: Edições 70.
  • HEYMAN, Josiah Mc. 1998. Finding a moral heart for U.S. Immigration Policy: an anthropological perspective. Arlington: American Ethnological Society.
  • JARDIM, Denise. 2000. Palestinos no extremo sul do Brasil: identidade étnica e os mecanismos sociais de reprodução da etnicidade. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • LE BRETON, David. 2019 Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Vozes.
  • LUPETTI, Bárbara. 2012. Entre “quereres” e “poderes”: paradoxos e ambiguidades da imparcialidade judicial. Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro.
  • MALINOWSKY, Bronislaw. 1978. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril.
  • MARQUES, Ana Claudia. 2013. Founders, ancestors and enemies: memory, family, time and space in the Pernambuco sertão. The Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 19, n. 4: 716-33. DOI 10.1111/1467-9655.12061
    » https://doi.org/10.1111/1467-9655.12061
  • MAUSS, Marcel. 2005. Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva .
  • PITT-RIVERS, Julian. 2012. The law of hospitality. HAU, vol. 2, n. 1: 501-517. DOI 10.14318/hau2.1.022
    » https://doi.org/10.14318/hau2.1.022
  • RILES, Annelise. 2004. Property as legal knowledge: Means and Ends. The Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 10, n. 4: 775-95. DOI 10.1111/j.1467-9655.2004.00211.x
    » https://doi.org/10.1111/j.1467-9655.2004.00211.x
  • SCHNEIDER, David. 1977. “Kinship, Nationality and Religion in American Culture”. In: DOLGIN, Janet; KEMNITZER, David; SCHNEIDER, David. (Eds). Symbolic Anthropology. Nova Iorque: Columbia University Press. pp. 47-62.
  • STRATHERN, Marilyn. 2020. Relations. Durham/ Londres: Duke University Press.
  • STRATHERN, Marilyn. 2006. O gênero da dádiva. Campinas: EdUnicamp.
  • TROUILLOT, Michel-Rolph. 2015. Silenciando o passado. Curitiba: huya.
  • WALDELY, Aryadne. 2016. Narrativas da “vida em fuga”. Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • 1
    São apresentados aqui resultados parcelares da pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, processo n. 2019/13162-5).
  • 2
    Os dois “relatos de fuga” que apresento são baseados inteira e exclusivamente em depoimentos publicados voluntariamente pelos sujeitos a que se referem, os quais estão compilados, junto com os depoimentos de outras pessoas refugiadas, em Carraro e Souza (2020CARRARO, Aryane; SOUZA, Duda. 2020. Valentes. São Paulo: Seguinte.). Não realizei entrevistas suplementares com os protagonistas dessas histórias, servindo-me de seus depoimentos como elementos bibliográficos neste trabalho.
  • 3
    Neste artigo o itálico é usado para destacar categorias operacionais e descritivas que organizam o universo etnográfico apresentado. Em menor medida, é usado também para destacar estrangeirismos e títulos de obras.
  • 4
    Este termo foi recuperado por Foucault para se referir ao conjunto de procedimentos exigidos para a manifestação da verdade em determinados contextos. O conceito pode ser aplicado a qualquer exercício do poder que se realiza através da enunciação da verdade.
  • 5
    Discuti esta noção também em outro trabalho (cf. Fernandes Jr., 2021aFERNANDES JR., João G. B. 2021a. “A ‘cena etnográfica’ e a ‘procuração ficcional’: duas técnicas de escrita etnográfica para antropólogos advogados”. In: Anais do VII Encontro Nacional de Antropologia do Direito (ENADIR). Disponível em: << Disponível em: https://www.enadir2021.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmF-tcyI7czozNToiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlF-VSVZPIjtzOjQ6IjU0NzIiO30iO3M6MToia-CI7czozMjoiOTg4ZGIyN2FjZGVkN2I5Y2F-jOGExZjFjMDNkYWUwZTgiO30%3D >>. Acesso em: 24 set2022.
    https://www.enadir2021.sinteseeventos.co...
    ).
  • 6
    Quando redigi as primeiras versões deste trabalho, ainda em 2021, eu não conhecia os sujeitos que são protagonistas das histórias que utilizei para produzir os dois “relatos de fuga” que inauguram este texto. Tive o prazer de conhecê-los pessoalmente, e de escutar em primeira mão suas histórias, apenas em 2022. Ainda assim, optei por não me valer de qualquer informação que extravasasse a narrativa que eles voluntariamente publicaram em Carraro e Souza (2020CARRARO, Aryane; SOUZA, Duda. 2020. Valentes. São Paulo: Seguinte.), mantendo inalterados os “relatos de fuga” que produzi em 2021, enquanto ainda não os conhecia. Minha intenção com isto é a de mobilizar aqui apenas informações com cuja publicação eles já concordaram há muito, e que não representam qualquer novidade ao que já está em ampla circulação editorial no país.
  • 7
    Lei que internalizou na ordem jurídica nacional o “Estatuto dos Refugiados”, de 1951.
  • 8
    Refiro-me ao já citado Estatuto dos Refugiados, à Declaração de Cartagena de 1984, à Lei n. 9.474/97, à Lei de Migração (Lei n. 13.445/17, arts. 2º, 20, 30, II, 31, §4º, 82, IV e 121), ao Decreto n. 9.199/17 (arts. 1º, §ún., VII, 68, §2º, 119 a 122, 142, II, ‘d’, 181, 267, IV) e às seguintes Resoluções Normativas do Conselho Nacional para os Refugiados: 8/2002, 10/2003, 14/2011, 17/2013, 18/2014, 19/2014, 20/2015, 21/2015, 22/2015, 23/2016, 27/2018 e 28/2018.
  • 9
    Tipo de literatura instrumental, técnico-jurídica, usada para instruir a interpretação de diferentes tipos de aplicadores do Direito e também como bibliografia de disciplinas jurídicas, nos cursos universitários de Direito.
  • 10
    Dito de outra forma, eu redigo o “relato de fuga”, aqui, como se a estivesse redigindo no formulário, mas o relato que exponho não é um dos relatos que redigi no meu atendimento, e sim um que formulei a partir de excertos biográficos publicados.
  • 11
    Nesse sentido, o “ofício” de que participo lembra àquele dos despachantes. No entanto, não se reduz a um serviço burocrático, sendo também pertinente a um trabalho de persuasão.
  • 12
    Para algumas das contribuições mais relevantes vejam-se: Hamid, 2019HAMID, Sônia Cristina. 2019. (Des)Integrando refugiados: os processos do reassentamento de palestinos no Brasil. Brasília: Editora UnB.; Facundo, 2018FACUNDO, Angela. 2018. “Administração de refugiados e processos de formação do Estado”. In: ALMEIDA, Gelsom Rozentino de; MORRA, Brandão Rafael Vaz da. (orgs.). Estado, Democracia e Participação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda. pp. 189-220.; e os textos reunidos nas coletâneas de Facundo et al., (2019FACUNDO, Angela; HAMID, Sonia; MUNEM, Bahia; GOMES, Charles (orgs.). 2019. Pessoas em movimento: práticas de gestão, categorias de direito e agências. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa e 7Letras.) e de Gediel e Gomes (2016GEDIEL, José Antônio Peres; GODOY, Gabriel Gualano de. (orgs). 2016. Refúgio e hospitalidade. Curitiba: Kairós.).
  • 13
  • 14
    Uma fonte segura desse discurso oficial, no Brasil, se encontra nas “Resenhas de Política Externa”, publicadas semestralmente pelo próprio Ministério das Relações Exteriores.
  • 15
    A noção, que diz respeito à administração das emoções suscitadas (e nem sempre anunciadas) nos “relatos de fuga” não só decorre genealogicamente das ideias ideia de “economia política das emoções” e de “moral humanitária” ou “razão humanitária”, mas, verdadeiramente, as pressupõe (ver: Boltanski, 1993BOLTANSKI, Luc. 1993. La soufrance à distance: morale humanitaire, médias et politique. Paris: Éditions Métaillé.; Fassin, 2011FASSIN, Didier. 2011. Humanitarian reason: a moral history of the present. Oakland: University of California Press.; 2014FASSIN, Didier. 2014. Compaixão e repressão: a economia moral das políticas de imigração na França. Ponto Urbe, vol. 15. DOI 10.4000/pontourbe.2467
    https://doi.org/10.4000/pontourbe.2467...
    ; Ahmed, 2014AHMED, Sarah. 2014. The cultural politics of emotions. Edimburgo: Edinburgh University Press.; Graham, 2016; Heyman, 1998HEYMAN, Josiah Mc. 1998. Finding a moral heart for U.S. Immigration Policy: an anthropological perspective. Arlington: American Ethnological Society.). A maneira como o gênero literário dos “relatos de fuga” administra as emoções que serão suscitadas pelo narrador no leitor depende, afinal, de que estas emoções já tenham sido significadas e valoradas num determinado campo de debate. Trata-se, por conseguinte, de uma atualização concreta, individual e sobretudo textual e literária daquelas noções.
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica.
  • FINANCIAMENTO:

    Fundação de Amparo de Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Processo n. 2019/13162-5.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2021
  • Aceito
    08 Mar 2023
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista.antropologia.usp@gmail.com