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Regulação das técnicas de reprodução assistida nas resoluções do Conselho Federal de Medicina: da liberalização gradativa à virada pró-vida

Resumo

O artigo analisa a regulação das técnicas de reprodução assistida no Brasil, examinando a regulamentação existente no Código Civil de 2002, na Nova lei de Biossegurança de 2005, no provimento CNJ 63/2017 e comparando as sete resoluções do Conselho Federal de Medicina emitidas em 1992, 2010, 2013, 2015, 2017, 2020 e 2021. O foco é verificar como configurações de parentesco e de pessoa (o estatuto do embrião) são apresentadas nas resoluções. Trata-se de pesquisa documental que, analisando a mudança das regras, mapeia controvérsias que revelam os sistemas de valores da sociedade. Diante da omissão legislativa, constata-se que as alterações nas normas correspondem a mudanças na legislação brasileira, mas principalmente a transformações na sociedade, nos últimos anos no tocante ao reconhecimento da constituição de novas famílias, principalmente aquelas relativas ao acesso de casais “homoafetivos”. Percebe-se também a dessacralização paulatina do embrião extracorporal até a virada pró-vida em 2021.

Palavras-chave
Novas tecnologias reprodutivas; parentesco; estatuto do embrião; regulações jurídicas

abstract

The article analyzes the regulation of assisted reproduction techniques in Brazil from the existing regulations in the Civil Code of 2002, the New Biosafety Law of 2005, the CNJ provision 63/2017, and compares the seven resolutions of the Brazilian Federal Council of Medicine issued in 1992, 2010, 2013, 2015, 2017, 2020, and 2021. The focus is to verify how configurations of kinship and personhood (the status of the embryo) are presented in the resolutions. Methodologically it is based on document analysis and the exam of changing rules and it also maps controversies that reveal society’s value systems. In view of the legislative omission, it can be seen that the changes in the rules correspond to changes in the Brazilian legislation, but mainly to transformations in society in recent years regarding the recognition of the constitution of new families, the main ones being the access of “homo-affective” couples. One can also perceive the gradual desacralization of the extracorporeal embryo until the pro-life turn in 2021.

keywords
New reproductive technologies; kinship; status of the embryo; legal regulations

[...] Acompanha uma sensação de que a família, tendo perdido a solidez do ‘natural’, é uma questão, mais do que nunca, contratual ( Fonseca, 2008FONSECA, Claudia. 2008. Homoparentalidade: novas luzes sobre o parentesco. Revista Estudos Feministas, vol. 16, n. 3: 743-768. DOI 10.1590/S0104-026X2008000300003
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: 772).

[...] We encounter the reproductive frontier as a highly political space ( Franklin, 2013FRANKLIN, Sarah. 2013. Biological relatives: IVF, stem cells and the future of kinship. Durham; London: Duke University Press.: 274).

Introdução

Este estudo aborda a regulação das técnicas de reprodução assistida (RA), com enfoque no parentesco e no estatuto do embrião, tendo como material de análise as resoluções do Conselho Federal de Medicina no Brasil. Em artigo intitulado “O parentesco é sempre tido como heterosexual?”, a filósofa Judith Butler, uma das mais influentes autoras em teoria de gênero, define assim o parentesco:

[…] Conjunto de práticas que estabelece relações de vários tipos que negociam a reprodução da vida e a demanda da morte, então as práticas de parentesco são aquelas que emergem para dirigir as formas fundamentais da dependência humana, que podem incluir o nascimento, a criação das crianças, as relações de dependência e apoio emocional, os vínculos de gerações, a doença, o falecimento e a morte. ( Butler, 2003BUTLER, Judith. 2003. O parentesco é sempre tido como heterossexual?. Cadernos Pagu, vol. 21: 219-260. DOI 10.1590/S0104-83332003000200010
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: 221)

Já o antropólogo Marshall Sahlins, no ensaio What kinship is – and is not, publicado em 2013, designa parentesco de mutualidade do ser. Segundo Sahlins, os parentes “participam intrinsecamente na existência dos outros”; eles partilham uma “mutualidade do ser” e são “membros uns dos outros” (Sahlins, apud Carsten, 2014CARSTEN, Janet. 2014. A matéria do parentesco. R@u - Revista de Antropologia da UFSCar, vol. 6: 103-118. DOI 10.52426/rau.v6i2.125 “CASAIS GAYS vão ter acesso a fertilização em laboratório”. 2011. Folha de S. Paulo, 6 jan. 2011, p. 11.
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). Estudos performativos do parentesco, inspirados em Schneider, dos quais Carsten ( 2014CARSTEN, Janet. 2014. A matéria do parentesco. R@u - Revista de Antropologia da UFSCar, vol. 6: 103-118. DOI 10.52426/rau.v6i2.125 “CASAIS GAYS vão ter acesso a fertilização em laboratório”. 2011. Folha de S. Paulo, 6 jan. 2011, p. 11.
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) é um dos expoentes, enfatizam critérios como comensalidade, corresidência e criação (em inglês nurturing: primeiros cuidados com crianças) na constituição de relações (aparentamento). 1 1 Essa descrição dos estudos performativos foi obtida a partir de Warren Shapiro. Disponível em: https://anthro.rutgers.edu/faculty/emeritusfaculty/103-warren-shapiro . Acesso em 24/05/2022. Esse debate tem deixado de lado os fatos da procriação, que fundamentam a noção euroamericana de parentesco como natural ( Strathern, 1992STRATHERN, Marilyn. 1992. Reproducing the Future: Essays on Anthropology, Kinship and the New Reproductive Technologies. Manchester, UK: Manchester University Press.). Diante desses questionamentos no campo da antropologia, como se situa outra linha de estudos do parentesco que avalia as tecnologias médicas e tecnologias jurídicas na constituição dessas relações? Tal é a contribuição do presente estudo com foco nas tecnologias reprodutivas conceptivas ou técnicas de reprodução assistida, aquelas que dispensam o ato sexual para a concepção mediante o uso de tecnologia.

Franklin considera que o aval público e a ampla celebração das novas tecnologias reprodutivas representam um grau crescente do consenso sobre seu caráter desejável e sua legitimidade (2013: 66). Olhar a fertilização in vitro (FIV) ajuda a revelar como tecnologias de gênero e parentesco, entre outras, ativam a substância reprodutiva, e não o oposto. A FIV concretiza a reprodução em uma maneira tecnicamente elaborada, empregando manipulação tecnicamente capacitada ( Franklin, 2013FRANKLIN, Sarah. 2013. Biological relatives: IVF, stem cells and the future of kinship. Durham; London: Duke University Press.: 152). Segundo Thompson ( 2005THOMPSON, Charis. 2005. Making parents. Cambridge: MIT Press.: 5), tecnologias de reprodução assistida demandam tanto inovação social como tecnológica para dar sentido aos relacionamentos biológicos e sociais que essas técnicas forjam e negam.

A abordagem etnográfica de Thompson traz o enfoque em “fazer o parentesco”, em contraste com considerar um tipo particular e fixo de parente como fato natural ou cultural ( Thompson, 2005THOMPSON, Charis. 2005. Making parents. Cambridge: MIT Press.: 146). Seu foco não está em como fazer bebês, mas em fazer pais e mães, motivado pelo interesse no que é necessário para tornar pais/mães: intervenções biomédicas, inovações legais e o trabalho de tirar a ambiguidade das categorias de parentesco relevantes ( 2005THOMPSON, Charis. 2005. Making parents. Cambridge: MIT Press.: 5). Ela descreve a tendência nos Estados Unidos em sua pesquisa de campo na década de 1990: o acesso às tecnologias reprodutivas assistidas, assim como para adoção, era governado não somente pelo desejo de uma suposta paciente de ter um filho, mas também nos julgamentos feitos por outros sobre se seria apropriado socialmente essa pessoa como mãe ou pai. É possível perceber questões semelhantes nas regulações que serão examinadas neste artigo.

A análise da evolução das resoluções do Conselho Federal de Medicina, desde a primeira em 1992 até 2021, 2 2 Em 20 de setembro 2022, foi editada a Resolução CFM n° 2320/2022, meses após a submissão deste artigo. A mesma será brevemente mencionada quanto a sua alteração mais pertinente, não sendo possível analisá-la em detalhe. mostra como a regulação sobre as técnicas de reprodução assistida se transformou gradativamente a partir dos seus usos reprodutivos (práticas que envolvem material reprodutivo de outras pessoas que não o casal heterossexual infértil) e não reprodutivos (identificação de doenças genéticas e doação de embriões para pesquisa). Contudo, ela diz respeito também, ou principalmente, ao acesso às técnicas em resposta a processos de modernização social incluindo outras identidades sexuais e de gênero além das hegemônicas.

O presente artigo analisa a regulação das técnicas de reprodução assistida no Brasil, examinando a escassa regulamentação existente e comparando as sete resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) emitidas em 1992, 2010, 2013, 2015, 2017, 2020 e 2021. O objetivo é explorar os temas do parentesco e do estatuto do embrião. Após acompanhar o desenvolvimento das técnicas médicas, a inovação está nas tecnologias jurídicas, lócus onde houve ampliação das possibilidades de escolha ( Fonseca, 2008FONSECA, Claudia. 2008. Homoparentalidade: novas luzes sobre o parentesco. Revista Estudos Feministas, vol. 16, n. 3: 743-768. DOI 10.1590/S0104-026X2008000300003
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): as resoluções do CFM respondem ao vazio legal referente à reprodução assistida no Brasil. 3 3 Esse vazio legislativo não é prerrogativa do Brasil. Nos Estados Unidos, diante da ausência de legislação federal, a American Society of Reproductive Medicine (ASRM) foi pioneira ao emitir orientações éticas e ainda hoje edita diretrizes no esforço de continuar a autorregularse ( Thompson, 2005). Nesse sentido, é importante salientar que, exceto por um número reduzido de artigos do Código Civil referentes à filiação, na Lei de Biossegurança (pesquisa com embriões humanos) e um provimento do Conselho Nacional de Justiça sobre a emissão de certidões de nascimento, a regulamentação está nas resoluções do Conselho Federal de Medicina, que não têm força de lei. A esse vazio legislativo corresponde um vazio analítico: nada se encontra nas Ciências Humanas e Sociais sobre as mudanças na regulamentação, além de artigos no campo de saber do Direito, alheios à análise da dimensão social e antropológica.

Para este estudo, emprega-se metodologia qualitativa em pesquisa documental. O trabalho de campo antropológico, neste caso, volta-se para os documentos, as resoluções do Conselho Federal de Medicina, como meios de acesso a controvérsias na sociedade brasileira que cercam as tecnologias reprodutivas na constituição do parentesco ( Fonseca, 2011FONSECA, Claudia. 2011. As novas tecnologias legais na produção da vida familiar: Antropologia, Direito e subjetividades. Civitas, vol. 11, n. 1: 8-23. DOI 10.15448/1984-7289.2011.1.9188
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; Strathern, 1992STRATHERN, Marilyn. 1992. Reproducing the Future: Essays on Anthropology, Kinship and the New Reproductive Technologies. Manchester, UK: Manchester University Press.). A pesquisa se espelha na abordagem de Giumbelli ( 2002GIUMBELLI, Emerson. 2002. Para além do “trabalho de campo”: reflexões supostamente malinowskianas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 17, n. 48: 91-107. DOI 10.1590/S0102-69092002000100007
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) para análise de controvérsias a partir de pesquisa documental, como meios de conhecer valores conflitantes de uma sociedade. Assim ao examinar essas resoluções cujo foco inicial era a infertilidade, podemos enxergar através delas demandas da sociedade.

Para orientar a presente análise da regulação do parentesco com respeito à governança reprodutiva, recorro ao conceito de biopoder enunciado por Rabinow e Rose ( 2006RABINOW, Paul; ROSE, Nikolas. 2006. O conceito de biopoder hoje” Política & Trabalho, vol. 24: 27-57.), o qual deve conter alguns desses elementos: “Um ou mais discursos de verdade sobre o caráter ‘vital’ dos seres humanos, e um conjunto de autoridades consideradas competentes para falar aquela verdade”; “estratégias de intervenção sobre a existência coletiva em nome da vida e da morte”; “Modos de subjetivação, através dos quais os indivíduos são levados a atuar sobre si próprios, sob certas formas de autoridade, em relação a discursos de verdade” ( 2006RABINOW, Paul; ROSE, Nikolas. 2006. O conceito de biopoder hoje” Política & Trabalho, vol. 24: 27-57.: 29). As resoluções sob análise seriam discursos de verdade proferidos por uma autoridade competente: o Conselho Federal de Medicina. Nesse sentido, diante do vácuo legislativo – omis são do próprio Estado – um ator não estatal, o CFM, propõe modos de regular os profissionais e suas práticas. Entendo, segundo Fonseca, essas resoluções no quadro de “novas tecnologias legais”, impondo padrões em uma arena de moralidades em disputa (Vianna, apud Fonseca, 2011FONSECA, Claudia. 2011. As novas tecnologias legais na produção da vida familiar: Antropologia, Direito e subjetividades. Civitas, vol. 11, n. 1: 8-23. DOI 10.15448/1984-7289.2011.1.9188
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).

Os textos das resoluções do Conselho Federal de Medicina 1358/1992, 1957/2010, 2013/2013, 2121/2015, 2168/2017, 2283/2020 e 2294/2021 são comparados a partir da divisão das temáticas, do acréscimo de itens ao longo dos anos e das categorias principais utilizadas.

As novas tecnologias reprodutivas (tecnologias reprodutivas conceptivas, procriação medicamente assistida ou técnicas de reprodução assistida) são procedimentos biomédicos que substituem a relação sexual no ato da concepção. As técnicas surgem como resposta à ausência involuntária de filhos ( Corrêa, 2001CORRÊA, Marilena Villela. 2001. Novas Tecnologias Reprodutivas: Limites da Biologia ou Biologia sem Limites?. Rio de Janeiro, Brasil: EDUERJ,). Embora tenham sido idealizadas como solução para infertilidade de casais heterossexuais (cf. Corrêa, 2001CORRÊA, Marilena Villela. 2001. Novas Tecnologias Reprodutivas: Limites da Biologia ou Biologia sem Limites?. Rio de Janeiro, Brasil: EDUERJ,; Luna, 2007LUNA, Naara. 2007. Provetas e clones: uma antropologia das novas tecnologias reprodutivas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.; Tamanini, 2004TAMANINI, Marlene. 2004. Novas tecnologias reprodutivas conceptivas: bioética e controvérsias. Revista Estudos Feministas, vol. 12, n. 1: 73- 107. DOI 10.1590/S0104-026X2004000100005
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), seu uso se difundiu entre pessoas cujas práticas sexuais não geram filhos por motivos não clínicos: mulheres sem companheiro, casais homossexuais masculinos e femininos. Na reprodução assistida, há manipulação de material reprodutivo (gametas: espermatozoide e óvulo, ou de embriões) fora do corpo para suscitar a gravidez. Em contraste com a inseminação que manipula apenas o sêmen injetado no útero, na FIV, os dois gametas são manipulados em laboratório: óvulos são extraídos por punção, coleta-se o sêmen e a fertilização é realizada fora do corpo feminino. A FIV demanda uma técnica auxiliar: a transferência embrionária, de inserção dos embriões no útero.

FIV é tecnologia que se desdobra e serve a diferentes conjuntos de propósitos ( Franklin, 2013FRANKLIN, Sarah. 2013. Biological relatives: IVF, stem cells and the future of kinship. Durham; London: Duke University Press.). As técnicas de criopreservação permitem conservar o material reprodutivo e deslocar o ato da concepção no tempo e no espaço quanto aos fornecedores de material germinativo, ao possibilitar o congelamento de gametas e embriões ( Tamanini, 2004TAMANINI, Marlene. 2004. Novas tecnologias reprodutivas conceptivas: bioética e controvérsias. Revista Estudos Feministas, vol. 12, n. 1: 73- 107. DOI 10.1590/S0104-026X2004000100005
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). Esses procedimentos facilitaram a obtenção do anonimato dos doadores e permitem a reprodução póstuma. Uma inovação mais recen te, a oferta da técnica de vitrificação de oócitos é anunciada por clínicas como procedimento corrente, 4 4 O congelamento de óvulos foi matéria de capa da Revista O Globo em 2009. Nesta são citadas mulheres que teriam usado a técnica e uma clínica que oferece o procedimento de vitrificação (cf. Monteiro, 2009). centrando o discurso da publicidade na ampliação do campo de possibilidades da mulher, como o investimento primeiro na carreira profissional ( Grudzinski; Allebrandt; Macedo, 2007GRUDZINSKI, Roberta Reis. 2007. “A divulgação de alternativas tecnológicas e os projetos de maternidade: o discurso científico sobre a criopreservação de óvulos”. In: ALLEBRANDT, Débora; MACEDO, Juliana Lopes (orgs.). Fabricando a vida: implicações éticas, sociais e culturais do uso de novas tecnologias reprodutivas. Porto Alegre: Metrópole, p. 163- 171.). 5 5 Atestando que o procedimento não é tão difundido na clínica médica, em busca na Plataforma Scielo sobre vitrificação de oócitos, encontrei 32 resultados, sendo 9 não relacionados a animais (botânica e cerâmica), 21 da área de veterinária e apenas os dois mais recentes da Ginecologia, porém um se referia a embriões e não a ovócitos. O único caso era voltado à extração de óvulos diretamente do ovário para preservação de fertilidade em uma mulher com câncer. Nova busca foi realizada via Google: dos dez resultados iniciais, nove eram divulgação de clínicas de fertilização humana e apenas um de artigo científico argumentava pela eficácia da vitrificação em humanos, contudo com resultados inferiores à taxa obtida a fresco ( Morishima et al, 2017). Já o diagnóstico genético pré-implantação (PGD) visa avaliar a qualidade do embrião antes da transferência quando há suspeita de doenças genéticas ou cromossômicas, mas também pode ser empregado para seleção de sexo.

Entre os riscos da FIV, as resoluções do CFM mencionam as gestações múltiplas, decorrentes da transferência de vários embriões no mesmo ciclo a fim de maximizar as chances de gestação. 6 6 Segundo Thompson ( 2005), 5% dos bebês nascidos de tecnologias reprodutivas realizadas nos Estados Unidos são gestações múltiplas de trigêmeos ou mais. As gestações múltiplas apresentam risco aumentado de morbidade e mortalidade, além de efeitos duradouros nos bebês nascidos ( Thompson, 2005THOMPSON, Charis. 2005. Making parents. Cambridge: MIT Press.). O recurso médico seria a redução embrionária: o aborto seletivo de um ou mais embriões. Tal técnica não é permitida pelas resoluções do CFM, que se amparam na legislação brasileira sobre aborto. Outra questão ética diz respeito ao destino dos embriões excedentes, gerados em número maior do que é seguro transferir em um único ciclo: criopreservação, doação, uso em pesquisa, descarte ( Luna, 2007LUNA, Naara. 2007. Provetas e clones: uma antropologia das novas tecnologias reprodutivas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.). Esses questionamentos se relacionam ao uso instrumental do embrião ( Franklin, 2013FRANKLIN, Sarah. 2013. Biological relatives: IVF, stem cells and the future of kinship. Durham; London: Duke University Press.: 311).

As novas tecnologias reprodutivas separam elementos do processo biológico que eram contidos no corpo feminino: primeiramente propiciam a concepção sem a relação sexual, em segundo lugar, ao colocar fora do corpo feminino material reprodutivo, essas tecnologias permitem circular substâncias germinativas, transcendendo o par reprodutivo heterossexual. A manipulação externa de gametas e embriões cria figuras como doadores de sêmen, de óvulos, de embriões ou de serviços de gestação (gestante portadora) na configuração de parentesco ( Strathern, 1992STRATHERN, Marilyn. 1992. Reproducing the Future: Essays on Anthropology, Kinship and the New Reproductive Technologies. Manchester, UK: Manchester University Press.). Pode-se comparar com os processos de adoção ou diversos outros arranjos de parentesco que implicam procriação (cf. Héritier-augÉ, 1985HÉRITIER-AUGÉ, Françoise. 1985. La cuisse de Jupiter: réflexions sur les nouveaux modes de procréation. L’Homme, n. 94, t. XXV: 5-22.). Na linguagem do Direito ( Leite, 1995LEITE, Eduardo Oliveira. 1995. Procriações Artificiais e o Direito: Aspectos Médicos, Religiosos, Psicológicos, Éticos e Jurídicos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.), reprodução assistida homóloga envolve apenas o material germinativo do casal e seus órgãos reprodutores. A reprodução heteróloga envolve doadores de gametas, embriões ou cessão temporária do útero (gestação substituta popularmente conhecida como barriga de aluguel). Na doação de sêmen, reconhece-se o laço a partir da intenção de paternidade do companheiro da mulher inseminada, e não o vínculo biológico do genitor, fornecedor de material germinativo. Significados distintos são atribuídos a procedimentos clinicamente idênticos, mas contrastantes no tocante à intencionalidade dos sujeitos envolvidos, o que explicita o caráter socialmente construído desses laços de parentesco ( Strathern, 1992STRATHERN, Marilyn. 1992. Reproducing the Future: Essays on Anthropology, Kinship and the New Reproductive Technologies. Manchester, UK: Manchester University Press.). Uma mulher pode gestar o óvulo de outra: no caso de doação de óvulos (ou de embriões), ela manterá o bebê e será considerada a mãe, embora não tenha vínculo genético com a criança (possivelmente seu companheiro tenha). Se uma mulher gestar o óvulo ou embrião em favor de outra mulher ou par reprodutivo, ela será a gestante portadora e entregará a criança mesmo que seja a mãe genética (nos casos de inseminação artificial) ou apenas a mãe gestacional. No caso da gestante portadora, o companheiro de outra será o inseminador e pai da criança. A legislação no Brasil reconhece a maternidade pelo parto ( Luna, 2007LUNA, Naara. 2007. Provetas e clones: uma antropologia das novas tecnologias reprodutivas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.; Tamanini, 2004TAMANINI, Marlene. 2004. Novas tecnologias reprodutivas conceptivas: bioética e controvérsias. Revista Estudos Feministas, vol. 12, n. 1: 73- 107. DOI 10.1590/S0104-026X2004000100005
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), ou seja, mãe é aquela que prova ter dado à luz e deixa a maternidade com uma declaração de nascido vivo, ou, quando fora do sistema hospitalar, deve arrolar testemunhas do nascimento. No caso da gestação substituta, existe a possibilidade de o serviço ser remunera do, caso da barriga de aluguel, ou implicar compensação. Poucos países permitem a gestação substituta comercial ( Soderstrom-Anttila, 2016SODERSTROM-ANTTILA, Viveca et al. 2016. Surrogacy: outcomes for surrogate mothers, children and the resulting families—a systematic review. Human Reproduction Update, vol. 22, n. 2: 260–276. DOI: 10.1093/humupd/dmv046
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), 7 7 Israel, Georgia, Ucrânia, Russia, Índia e o estado da Califórnia nos Estados Unidos permitem gestação substituta comercial, segundo Soderstrom- Anttila e colegas (2016). mas mesmo em países restritos à gestação substituta altruísta admite-se alguma compensação para a proteção da saúde da gestante: seguro de saúde, viagens, consultas, tratamento médico ( Ragoné, 1994RAGONÉ, Helena. 1994. Surrogate motherhood: Conception in the heart. Boulder; San Francisco; Oxford: Westview Press.; Stuvøy, 2018STUVØY, Ingvill. 2018. Troublesome reproduction: surrogacy under scrutiny. Reproductive BioMedicine and Society Online, vol. 7: 33-43. DOI 10.1016/j.rbms.2018.10.015
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).

É necessário confrontar as tecnologias reprodutivas conceptivas com os modelos de parentesco vigentes. Segundo Strathern, a noção de parentesco “euroamericano” é um híbrido de natureza e cultura (1992). Esse aspecto híbrido é explícito no modelo que Schneider ( 1968SCHNEIDER, David. 1968. American Kinship: A cultural account. Englewood Cliffs, USA: Prentice-Hall.) formulou para o parentesco americano (dos Estados Unidos), que serve aqui de referência para o sistema de parentesco ocidental. O parentesco seria composto de dois aspectos: laços de substância e o código de conduta. Na simbólica ocidental, representam-se os laços de substância pelo “sangue”, no modelo antigo, ou substância biogenética: a ordem da Natureza nas palavras de Schneider. O código de conduta refere o aspecto intencional do parentesco, a demonstração dos laços pelo comportamento, ou a ordem da Lei, segundo Schneider. Para Franklin, as tecnologias reprodutivas vão remodelar o relacionamento entre substância e código de conduta não apenas ao fazer a substância o objeto da conduta, mas ao fazer a conduta (pesquisa científica) a origem da substância. Além dos novos parentescos estabelecidos pela disseminação da substância reprodutiva compartilhada, emerge como “fatos da vida” a relação biológica com a própria tecnologia através da fertilização in vitro e pesquisa com embriões ( Franklin, 2013FRANKLIN, Sarah. 2013. Biological relatives: IVF, stem cells and the future of kinship. Durham; London: Duke University Press.: 66). Estudos posteriores do próprio Schneider criticaram essa formulação do parentesco como grade genealógica (relações biológicas presumidas como verdadeiras) subjacente ao produto sociocultural chamado parentesco (Schneider apud Franklin, 2013FRANKLIN, Sarah. 2013. Biological relatives: IVF, stem cells and the future of kinship. Durham; London: Duke University Press.: 170). Nesse sentido, Carsten, em vez de focar no que é ou não parentesco, pretende se afastar da dicotomia englobante do “biológico” e do “social” (2014). Já a análise das resoluções do CFM desenvolvida neste trabalho levanta a questão: é possível sair dessa dicotomia entre biológico e social quando ela estrutura as regulações?

As novas tecnologias reprodutivas permitem a circulação de substâncias germinativas de modo distinto do que ocorreria em uma relação sexual com intuito procriativo entre um par heterossexual. Tal circulação pode abranger outros indivíduos que não o par reprodutivo intencional no caso da doação de gametas, embriões e da gestação substituta ( Franklin, 2013FRANKLIN, Sarah. 2013. Biological relatives: IVF, stem cells and the future of kinship. Durham; London: Duke University Press.; Luna, 2001LUNA, Naara. 2001. Pessoa e parentesco nas novas tecnologias reprodutivas. Revista Estudos Feministas, vol. 9, n. 2: 389-413. DOI 10.1590/S0104-026X2001000200005
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, 2007LUNA, Naara. 2007. Provetas e clones: uma antropologia das novas tecnologias reprodutivas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.; Thompson, 2005THOMPSON, Charis. 2005. Making parents. Cambridge: MIT Press.). Essa circulação gera entes de parentesco inusitados e situações de mistura que remetem a lógica de pureza e perigo. Em estudo sobre a doação de óvulos e a gestação substituta nos EUA, Cussins ( 1998CUSSINS, Charis M. 1998. “Quit sniveling, cryo-baby. We’ll work out which one’s your mama”. In: DAVIES-FLOYD, Robbie; DUMIT, Joseph (eds.). Cyborg babies: from techno-sex to techno-tots. New York: Routledge. p. 40-67.) propõe um modelo para análise das relações de parentesco considerando os vários estágios que podem ser ou não configurados em uma rede de parentesco. Um estágio é opaco (renomeado de relacional em Thompson, 2005THOMPSON, Charis. 2005. Making parents. Cambridge: MIT Press.) se contribui para o estabelecimento de laços de parentesco e para a constituição de pessoa, sendo configurado na teia de parentesco, e transparente (de custódia) se não é configurado ( Thompson, 2005THOMPSON, Charis. 2005. Making parents. Cambridge: MIT Press.). Recursos biológicos, assim como fatores socioeconômicos (quem paga o tratamento), legais (donos dos embriões) e familiares (o parceiro de quem fornece o sêmen para a fecundação, quem planejou a criança e vai assumi-la) podem contribuir para essa rede de parentesco. Dimensões biológicas e sociais podem ser coordenadas de modo a tornar uma etapa relacional (opaca), isto é, contando na configuração de parentesco, ou de custódia (transparente), quando é ignorada. Tal é o caso do fornecimento de óvulo para a gravidez: uma etapa relacional (opaca) nos casos de gestação substituta (a fornecedora de óvulo será a mãe da criança e a gestante uma intermediária que gesta em seu favor), enquanto será uma etapa de custódia (transparente) no caso da doação anônima de óvulos, quando a mãe é aquela que gesta. Assim é necessário definir o que conta ou não para o estabelecimento do parentesco e em qual circunstância. 8 8 A pesquisadora Charis Cussins do estudo de 1998 passou a assinar Charis Thompson no livro de 2005. Eis as regras de parentesco alterando sobrenomes!

O vazio legal e as regulações jurídicas

No vazio legal referente às tecnologias reprodutivas no Brasil, sua breve menção no Código Civil de 2002, as resoluções do CFM pretendem regular e colocar limites. Outra legislação que intersecta com as resoluções do CFM no tocante à governança reprodutiva é a Nova Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005) apenas no tocante à manipulação de embriões humanos, autorizando a obtenção de células tronco de embriões descartados por serem inviáveis ou criopreservados por três anos no momento da aprovação da lei, com o fim de pesquisa ou terapia, além de proibir a engenharia genética em embriões. As resoluções são fonte de jurisprudência na Justiça brasileira. O primeiro bebê gerado por fertilização in vitro no Brasil nasceu em 1984. Apenas em 1992, o CFM emitiu sua primeira resolução sobre o tema. Em 2010, a segunda resolução foi elaborada em cima do texto da primeira e assim ocorreu sucessivamente com as demais.

A reprodução medicamente assistida é contemplada no Código Civil Brasileiro de 2002 apenas no tocante à filiação. O artigo 1.597 do Código Civil trata da presunção dos filhos nascidos no casamento. Os incisos III, IV e V regulamentam os casos:

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

  1. III.

    havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

  2. IV.

    havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

  3. V.

    havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. (Brasil, 2002).

O Código Civil presume como concebidos na constância do casamento os filhos nascidos de reprodução assistida com uso apenas dos materiais reprodutivos do casal (reprodução homóloga), mesmo na morte do marido (ponto que abriu a oportunidade de reprodução póstuma), e a partir do uso de embriões excedentes formados com os gametas do casal e na inseminação artificial com doação, desde que haja consentimento prévio do marido. Os autores do Código Civil não distinguiram inseminação artificial da fertilização in vitro, tomando-a como sinônimo de reprodução assistida. Assim, o Código Civil presume a filiação quando a técnica substitui a relação sexual (caso da fecundação artificial homóloga no inciso III), presume a filiação de embriões excedentes gerados com gametas do casal mesmo fora do período da relação matrimonial (concebidos a qualquer tempo no inciso IV); admite a doação, isto é, a entrada de substância germinativa externa ao casal, apenas com o consentimento prévio no inciso V. A intencionalidade na doação de gametas para gerar laços de filiação é reconhecida em termos comparáveis ao que ocorre na adoção, quando o código de conduta (a dimensão da Lei) se superpõe aos laços de substância biogenética.

O Código Civil integra as leis que se aplicam a todos de um país, sendo uma norma geral de conduta. Já as resoluções do Conselho Federal de Medicina regulamentam a ética da prática médica e não têm caráter de lei. Trata-se de uma “norma imperativa”, como analisa Rodrigo Pereira ( 1991PEREIRA, Rodrigo da Cunha. 1991. O código de ética e a ética do código: algumas considerações jurídicas. Psicologia: Ciência e Profissão. Vol. 11: 32-35. DOI 10.1590/S1414-98931991000100006
https://doi.org/10.1590/S1414-9893199100...
), oponível a toda uma categoria profissional no Brasil e dotado de “força coercitiva e de sanção”: 9 9 Uma análise sobre o ordenamento jurídico que distingue a especificidade dos códigos profissionais está em Pereira ( 1991) que aborda o Código de Ética Profissional dos Psicólogos..

Não sendo o código (resolução) Lei no sentido estrito, ele tem um aspecto que poderíamos denominar de dinâmico, ou seja, de acordo com a evolução das idéias e da própria profissão, alguns artigos podem ser revistos, transformados ou reeditados. ( Pereira, 1991PEREIRA, Rodrigo da Cunha. 1991. O código de ética e a ética do código: algumas considerações jurídicas. Psicologia: Ciência e Profissão. Vol. 11: 32-35. DOI 10.1590/S1414-98931991000100006
https://doi.org/10.1590/S1414-9893199100...
: 33).

Tal observação é apropriada se julgamos a dinâmica de aprovação de resoluções sobre reprodução assistida no CFM. As resoluções do Conselho regulamentam o uso das novas tecnologias reprodutivas de modo mais abrangente que o Código Civil. Após 18 anos de vigência, a Resolução CFM nº 1.358/92 10 10 | Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/1992/1358 . Acesso em 25/05/2022. recebeu modificações e foi substituída na íntegra pela Resolução CFM nº 1.957/10. 11 11 Disponível em : https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2010/1957 . Acesso em 25/05/2022. Esta, por sua vez, foi revogada após dois anos e quatro meses pela Resolução CFM 2.013/2013. 12 12 Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2013/2013 . Acesso em 25/05/2022. Em seguida, em maio de 2015, foi publicada a resolução CFM 2.121/2015 13 13 Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2015/2121 . Acesso em 25/05/2022. que revogou a anterior. A resolução seguinte foi publicada em novembro de 2017: Resolução CFM 2.168/2017 14 14 Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2017/2168 . Acesso em 25/05/2022. , e a Resolução 2.283/2020 15 15 Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2020/2283. Acesso em 25/05/2022. . em 1/10/2020. A Resolução 2.294/2021 foi publicada em 27/05/2021. 16 16 Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2021/2294_2021.pdf . Acesso em 25/02/2022. A presente exposição abordará o que está presente nas sete resoluções e apontar as diferenças.

A ementa das resoluções de 1992, de 2010, 2013, 2015, 2017 e 2021 discorre sobre “normas éticas para a utilização de técnicas de reprodução assistida” e sua finalidade de “dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos”, ou seja, colocar as balizas para a prática e ética médicas no Brasil.

O texto das cinco primeiras resoluções começa com cinco “considerando”, dos quais dois são idênticos: “a importância da infertilidade humana como um problema de saúde, com implicações médicas e psicológicas, e a legitimidade do anseio de superá-la”; “a necessidade de harmonizar o uso dessas técnicas com os princípios da ética médica”. O segundo “considerando” traz diferenças sutis e significativas ao longo dos anos: na redação de 1992, o “avanço do conhecimento científico já permite solucionar vários dos casos de infertilidade humana” (grifo meu). O termo “infertilidade” é substituído em 2010 por “problemas de reprodução”, um texto mantido nas resoluções seguintes (de 2013, de 2015 e 2017). Assim o avanço do conhecimento científico não se restringe a solucionar a infertilidade, mas casos de problemas de reprodução humana que nem sempre seriam decorrências de problemas clínicos de infertilidade. A resolução 2.294/2021 radicalizou ao abreviar o segundo considerando: “auxiliar nos processos de procriação”, o que afasta cada vez mais a conotação de problema ou doença, enfatizando a escolha.

Esse aspecto foi abordado na menção ao uso de novas tecnologias reprodutivas no início deste artigo. A mudança referida é a principal em todo o texto da resolução de 2010, mas nem sempre é levada às últimas consequências. Há a substituição do considerando “que as técnicas de reprodução assistida têm possibilitado a procriação em diversas circunstâncias, o que não era possível pelos procedimentos tradicionais” presente nas resoluções de 1992 e 2010, em 2013 por “considerando que o pleno do Supremo Tribunal Federal, na sessão de julgamento de 5.5.2011, reconheceu e qualificou como entidade familiar a união estável homoafetiva (ADI 4.277 e ADPF 132)”. 17 17 Para uma análise da moralidade que norteou o julgamento, veja Coitinho Filho e Rinaldi ( 2018). Trata-se de uma diferença fundamental quanto às resoluções anteriores, de modo que o CFM, amparado pela decisão da corte mais alta do país, leva às últimas consequências o que a resolução de 2010 apenas sugeria, garantindo o acesso aos casais homoafetivos. Isso resolverá várias pendências deixadas pela resolução anterior. Esse ponto permanece nas resoluções de 2015 e 2017. A resolução CFM 1.068/2017 introduz dois novos considerandos:

CONSIDERANDO o aumento das taxas de sobrevida e cura após os tratamentos das neoplasias malignas, possibilitando às pessoas acometidas um planejamento reprodutivo antes de intervenção com risco de levar à infertilidade;

CONSIDERANDO que as mulheres estão postergando a maternidade e que existe diminuição da probabilidade de engravidarem com o avanço da idade; (Resolução CFM 1.068/2017)

A preocupação passa a ser com a idade, tanto em termos das transformações sociais que fazem a mulher postergar a maternidade, 18 18 Uma das dimensões do processo de postergação da maternidade é a profissionalização das mulheres ( et al, 2018). Sobre essa dinâmica na população da América Latina, ver ( Cabella e Pardo, 2016). como com o aumento de incidência de neoplasias com aumento da expectativa de vida no Brasil.

A resolução 2283/2020 apresenta dois considerandos diferentes:

CONSIDERANDO a necessária observância do princípio da isonomia, insculpido na Constituição Federal (art. 5º, caput);

CONSIDERANDO a autonomia profissional do médico, nos termos do inciso VII do Capítulo I, “Princípios fundamentais”, do Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018)CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA: Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019. 2019. Conselho Federal de Medicina: Brasília.;

O princípio da isonomia vai fundamentar a inclusão de um novo grupo de pacientes nas técnicas, já o último considerando refere-se a excluir a expressão “objeção de consciência” do item 2, inciso II por considerar que tal aspecto já seria contemplado no código de ética médica.

O caráter inclusivo exposto nos “considerandos” está presente no item 1 da seção I “Princípios gerais” alterado ao longo dos anos:

1 As técnicas de Reprodução Assistida (RA) têm o papel de auxiliar na resolução dos problemas de infertilidade humana, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes para a solução da situação atual de infertilidade. (Resolução CFM nº 1.358/92, item 1 da seção I princípios gerais). [grifos meus]

1 As técnicas de reprodução assistida (RA) têm o papel de auxiliar na resolução dos problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham se revelado ineficazes ou consideradas inapropriadas. (Resolução CFM nº 1.957/10, item 1 da seção I princípios gerais) [grifos meus]

1 As técnicas de reprodução assistida (RA) têm o papel de auxiliar a resolução dos problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação. (Resolução CFM nº 2.013/13, item 1 da seção I princípios gerais)

Nesse item dos princípios gerais na resolução de 2010, a infertilidade dá lugar aos problemas de reprodução humana. A resolução de 2013 é mais sucinta e não cita terapêuticas, apenas a resolução de problemas, o que sugere que os últimos não seriam clínicos. Isso é mantido na resolução de 2015 e de 2017. Na resolução de 2021, adota-se a formulação resumida: o “papel de auxiliar no processo de procriação”.

Exceto pela diferença no tocante à infertilidade e à reprodução no item 1, os itens 3, 4, 5 e 7 da seção I Princípios gerais, são coincidentes nas três primeiras resoluções e abordam os seguintes temas, apresentados aqui de forma sintética: 3. Consentimento informado para pacientes e doadores; 4. Proíbe seleção de sexo do embrião exceto por razões de saúde do mesmo; 19 19 A proibição da seleção de sexo do embrião a não ser por razões de saúde, isto é, evitar o desenvolvimento de doenças genéticas relacionadas ao sexo, é um dos exemplos do limite, na regulação brasileira, à escolha na constituição do parentesco, o que visa a manter a técnica próxima do que acontece na natureza ( Salem, 1995). 5. Proíbe fecundação de oócitos a não ser para procriação; 20 20 Regra conforme a Nova Lei de Biossegurança de 2005, que proíbe a fabricação de embriões humanos sem a finalidade de reprodução, permitindo apenas o uso dos excedentes para produção de células-tronco. 7. Proíbe redução embrionária. 21 21 Os excludentes de punibilidade na legislação sobre aborto no Brasil não preveem essa opção O item 6 da resolução de 2010, mantido em 2013, traz uma importante diferença: limita o número de oó citos ou embriões transferidos e conforme a idade da mulher (Resolução CFM nº 1.957/10), especificando o número de embriões de acordo com intervalos de idade, com o número máximo de 4 nas mulheres mais velhas, enquanto a versão anterior apenas estabelecia o limite máximo de 4 para evitar a multiparidade (Resolução CFM nº 1.358/92, item 6, seção I princípios gerais). A esse respeito, a resolução de 2021, além de mudar o número conforme a idade (dois embriões para mulheres até 37 anos, e três embriões para acima de 37), permite apenas a transferência de até dois embriões que tenham passado por diagnóstico genético. Já o item 2 que abor da o uso da reprodução assistida desde com a condição de probabilidade efetiva de sucesso sem risco à saúde, presente na resolução de 1992 e mantido em 2010, sofre importante alteração em 2013, quando se estabelece 50 anos como “idade máxi ma das candidatas à gestação de RA”. O limite no número de embriões transferidos pretende lidar com o decréscimo de fertilidade decorrente do aumento da idade da mulher, e evitar nascimentos múltiplos nas mais jovens. O aumento da incidência de gemelaridade é constatado nessas técnicas ( Thompson, 2005THOMPSON, Charis. 2005. Making parents. Cambridge: MIT Press.). Por outro lado, a idade máxima de 50 anos para as candidatas sugere dois aspectos: a preocupação com o aumento de riscos à saúde, mas também a intenção que a reprodução medicalizada imite os limites entendidos como naturais (cf. Salem, 1995SALEM, Tania. 1995. O Princípio do Anonimato na Inseminação Artificial com Doador (IAD). Physis – Revista de Saúde Coletiva, vol. 5, n. 1: 33-68.).

A resolução de 2015 tem um princípio geral a mais, trazendo uma novidade a esse respeito: uma ponderação que permite exceções à idade limite de 50 anos:

3 As exceções ao limite de 50 anos para participação do procedimento serão determinadas, com fundamentos técnicos e científicos, pelo médico responsável e após esclarecimento quanto aos riscos envolvidos (Resolução CFM 2.121/2015 item 3 da seção I princípios gerais

Essa decisão permite flexibilidade quanto ao limite etário, exigindo fundamentos científicos pelo médico responsável, além do esclarecimento de riscos.

A partir de 2017, introduz-se novo princípio: “As técnicas de RA podem ser utilizadas na preservação social e/ou oncológica de gametas, embriões e tecidos germinativos” (Resolução CFM 2.168/2017 item 2 da seção I princípios gerais). As técnicas transcendem a reprodução e permitem melhor planejamento reprodutivo: a preservação social diria respeito à idade de pessoas saudáveis que adiam a reprodução (observado na exposição de motivos da resolução), e a outra razão é de saúde: preservar do câncer. Em 2021, houve um acréscimo esclarecedor ao referido princípio: “por razões médicas e não médicas” (Resolução CFM 2.294/2021 item 2 da seção I princípios gerais). Isso frisa a possibilidade de escolha que transcende a medicina. O caráter inclusivo surge no item 1 da seção II “Pacientes das técnicas de RA” (reprodução assistida) na resolução de 2010, e é mantido em 2013:

  1. Toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta Resolução, pode ser receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de maneira livre e consciente em documento de consentimento informado.

  2. Estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou do companhei ro, após processo semelhante de consentimento informado. (Resolução CFM nº 1.358/92, itens 1 e 2 da seção II “Pacientes das técnicas de RA”) [grifos meus]

  3. Todas as pessoas capazes, que tenham solicitado o procedimento e cuja indicação não se afaste dos limites desta resolução, podem ser receptoras das técnicas de RA desde que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos sobre o mesmo, de acordo com a legislação vigente. (Resolução CFM nº 1.957/10, item 1 da seção II “Pacientes das técnicas de RA”)

A resolução de 1992 centra-se na situação da mulher que pode ter ou não um companheiro como paciente das técnicas de reprodução assistida. A resolução 1.957/10 abrange todas as pessoas capazes, e nesse sentido, aponta na seção referente aos pacientes de reprodução assistida de forma mais explícita uma meta de transcender as divisões decorrentes do dimorfismo sexual e da orientação sexual com respeito ao acesso às técnicas. 22 22 Héritier-Augé ( 1985) levanta várias comparações entre as novas tecnologias reprodutivas e os arranjos de parentesco, a partir de dados etnográficos coletados em povos que não integram a simbólica de parentesco ocidental. Esse caráter inclusivo não se adequará a todos os itens, contudo. Quando publicada a resolução, a cobertura de imprensa televisiva e da mídia impressa em janeiro de 2011 ressaltou que autorizava “casais gays” a ter acesso a fertilização, 23 23 Cf. os títulos: “Casais gays vão ter acesso a fertilização em laboratório” (Folha de S Paulo, 6 jan. 2011 p.1) e “Conselho de Medicina autoriza casais homossexuais e utilizarem fertilização” ( Éboli, 2011, p. 13). embora o texto da resolução fosse sutil a esse respeito. Como efeito, na época isso espelhou o aumento de sensibilidade no tocante às demandas de acesso à reprodução assistida como opção para casais homoparentais terem filhos, conforme atestam diversas pesquisas ( Fonseca, 2008FONSECA, Claudia. 2008. Homoparentalidade: novas luzes sobre o parentesco. Revista Estudos Feministas, vol. 16, n. 3: 743-768. DOI 10.1590/S0104-026X2008000300003
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; Tarnovski, 2013TARNOVSKI, Flávio Luiz. 2013. Parentalidade e gênero em famílias homoparentais francesas. Cadernos Pagu, vol. 40: 67-93. DOI 10.1590/S0104-83332013000100002
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; Uziel, 2009UZIEL, Anna Paula. 2009. Homossexualidades e formação familiar no Brasil contemporâneo. Revista Latinoamericana de Estudios de Familia, vol. 1: 1-12.). Essa alteração antecedeu a decisão pelo STF acerca da união homoafetiva ( Coitinho Filho; Rinaldi, 2018COITINHO FILHO, Ricardo Andrade; RINALDI, Alessandra de Andrade. 2018. O Supremo Tribunal Federal e a “união homoafetiva”: onde os direitos e as moralidades se cruzam. Civitas, vol. 18, n. 1: 25-39. DOI 10.15448/1984-7289.2018.1.28419
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2018....
). Já a resolução 2.013/13 é explícita quanto ao acesso.

  1. 2.

    É permitido o uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras, respeitado o direito da objeção de consciência do médico. (Resolução CFM 2.013/13, item 2 da seção II “Pacientes das técnicas de RA”).

No tocante ao acesso, a resolução 2283/2020, a mais breve de todas, contendo apenas essa alteração, faz um acréscimo no espírito da inclusão:

2. É permitido o uso das técnicas de RA para heterossexuais, homoafetivos e transgêneros. (Resolução CFM nº 2.283/2020, item 2 da seção II “Pacientes das técnicas de RA”).

Isso revela o propósito inclusivo da resolução ao explicitar que transgêneros também podem ter acesso, além de eliminar a ressalva sobre o direito de objeção de consciência do médico. 24 24 O direito de objeção de consciência tem sido incentivado por setores religiosos conservadores para envolver sua militância em uma “cidadania religiosa” contrária aos direitos sexuais e reprodutivos ( Vaggione, 2017)

A seção II “Pacientes das técnicas de RA” traz uma importante alteração em 2015.

3 É permitida a gestação compartilhada em união homoafetiva feminina em que não exista

infertilidade. (Resolução CFM nº 2.121/15, item 3 da seção II “Pacientes das técnicas de RA”)

Essa alteração explicita o acesso para união, que não fica mais sujeito à interpretação, caso da resolução de 2010. A resolução de 2017 vai definir o que é gestação compartilhada: “Considera-se gestação compartilhada a situação em que o embrião obtido a partir da fecundação do(s) oócito(s) de uma mulher é transferido para o útero de sua parceira”. Na resolução de 2021, elimina-se a referência à infertilidade. Um casal de mulheres pode ter a maternidade compartilhada, isto é, uma gestar o óvulo fecundado da outra, por razões afetivas de escolha, sem indicação médica. Esse é um dos pontos em que mostra a ênfase das resoluções mais atuais na dimensão de escolha do parentesco e dos direitos relativos à população LGBT.

Em trabalho de campo realizado em 2002 ( Luna, 2007LUNA, Naara. 2007. Provetas e clones: uma antropologia das novas tecnologias reprodutivas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.), uma médica relatou ter negado o pedido de um casal de mulheres, por falta de amparo na Resolução 1058/92, embora não se opusesse se fosse demanda por um homem homossexual que apresentasse uma amiga para ser sua parceira na reprodução. Turte-Cavadinha ( 2013TURTE-CAVADINHA. Edu. 2013. “Mulheres lésbicas em busca da maternidade: desafios e estratégias”. In: SILVA, Daniele Andrade da; GARAY HERNÁNDEZ, Jimena de; SILVA JUNIOR, Aureliano Lopes da; UZIEL, Anna Paula. (Org.). Feminilidades: corpos e sexualidades em debate. 1ed. Rio de Janeiro: EdUERJ, p. 241-257.), em trabalho de campo anterior à aprovação da Resolução CFM, de 2013, já menciona o interesse de casais de lésbicas pelo uso da técnica ROPA (recepção de óvulos da parceira) que permite essa gestação com a participação de ambas e sem pai legal, o que daria segurança ao casal. Em entrevistas, casais de lésbicas verbalizam o interesse pela técnica ROPA “como promotora de um ideal de filho gerado biologicamente pelas duas mães, assim como acontece em uma reprodução sexuada com casais heterossexuais” ( Vitule; Couto; Machin, 2015VITULE, Camila; COUTO, Marcia Thereza; MACHIN, Rosana. 2015 Casais de mesmo sexo e pa-rentalidade: um olhar sobre o uso das tecnologias reprodutivas. Interface (Botucatu), vol. 19, n. 55: 1169-1180. DOI 10.1590/1807-57622014.0401
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: 1176), e se registram alguns casais que fizeram uso da técnica antes da resolução de 2013 a autorizar. Assim, a formulação das regras do CFM segue a mudança nas práticas das clínicas de fertilidade que ofertam o serviço. A dimensão jurídica desse laço se explicita no relato de Fonseca (2008) sobre o reconhecimento desse tipo de coparentalidade em 2003 por uma vara de família no estado de New Jersey (Estados Unidos), de modo a constarem os nomes de ambas as mães na certidão de nascimento. Essa aceitação é objeto de controvérsia quando se contrasta com a realidade da França, um país avançado na pauta de costumes, que proibia até recentemente o acesso às tecnologias reprodutivas a casais de mesmo sexo ( Amorim, 2019AMORIM, Anna Carolina Horstmann. 2019. Entre calçadas, pixações e parentesco: a cidade como campo de batalha em torno das lesbo/homoparentalidades e do acesso à PMA na França. Horizontes Antropológicos, vol. 25, n. 55: 209-242. DOI 10.1590/S0104-71832019000300008
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), posição divergente de outros países na Europa. Contudo a nova lei de bioética aprovada na França em 2021 facultou o projeto parental de casais formados por homem e mulher, por duas mulheres e por mulheres solteiras ( Barry et al., 2022 BARRY, F.; RAYSSAC, M.; GALA, A.; FERRIÈRES-HOA, A.; LOUP, V; ANAHORY, T.; BROUILLET, S.; HAMAMAH, S. 2022. Quels enjeux et adaptations pour les centres d’AMP dans le cadre de la mise en place de la nouvelle loi de bioéthique ?. Gynecologie, Obstetrique, Fertilite & Senologie, vol. 50, n. 12: 777-787. DOI 10.1016/j.gofs.2022.08.005
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). 25 25 Outras alterações introduzidas foram a possibilidade de acesso por parte de pessoas adultas nascidas de reprodução assistida à identidade do doador; possibilidade de criopreservação autóloga de gametas sem justificativa médica ( Barry et al, 2022).

A seção “III – Referente às clínicas, centros ou serviços que aplicam técnicas de RA” mantém o mesmo texto desde 1992 e estabelece a necessidade de: controle do material; a obrigação de manter registro permanente das gestações; e um registro permanente das provas diagnósticas. A resolução de 2013 acrescenta um importan te item: “4 Os registros deverão estar disponíveis para fiscalização dos Conselhos Regionais de Medicina”, mantido nas resoluções de 2015, 2017 e 2021. Tal item implica o aumento do controle dos centros que oferecem os serviços, um exemplo da governança reprodutiva que afeta os centros de reprodução humana.

A seção IV aborda a “doação de gametas ou embriões” e tem redação idêntica nas resoluções de 1992 e 2010, com dois acréscimos em 2013. Proíbe-se caráter lucrativo ou comercial da doação no item 1. Nos itens 2 e 3, é estabelecido o sigilo de identidade entre doadores e receptores, e se restringe o acesso a informações somente por motivo médico e para médicos, com o resguardo da identidade do doador. O item 4 estabelece a obrigação das clínicas e serviços de reprodução assistida manterem um registro de dados clínicos e características fenotípicas. O item 5 propõe um limite de nascimentos de crianças de sexo diferente por um mesmo doador em região de um milhão de habitantes. 26 26 Segundo pesquisa realizada por Machin ( 2022), que avaliou o mercado de células sexuais no Brasil, em função de vazios legais e da ausência de legislação específica, o que cria muitas ambiguidades, além das forças do mercado médico, tensionando as regras altruístas, o controle geral das clínicas não é possível, inexistindo condições de fiscalizar o cumprimento desse limite. O item 6 atribui à unidade médica a responsabilidade pela escolha dos doadores que deve garantir semelhança fenotípica, imunológica e compatibilidade entre doadores e receptores. Por fim, o último item de número 7 proíbe membro da equipe médica de participar como doador de programas de reprodução assistida. Alguns itens dessa seção IV foram estabelecidos desde 1992 sem alterações, o que mostra o seu valor consolidado: a proibição do caráter comercial dessas transações de material reprodutivo; 27 27 Resumindo, a resistência à comercialização corresponde à tentativa de manter o mercado separado de filhos e família ( Stuvøy, 2018). o sigilo de identidade de doadores e de receptores (que recebeu uma ressalva na resolução de 2021); 28 28 O ponto permanece, mas com ressalva, porque a resolução de 2021 abriu como exceção a possibilidade de parentes doadores de gametas. O anonimato de doadores de gametas e de embriões, regra que permanecera inalterada desde a primeira resolução do CFM 1358/92 até a resolução de 2021, era demandado na Alemanha e na Noruega, mas não nos Estados Unidos, e na Inglaterra (nesta apenas no caso de autoinseminação), segundo quadro comparativo elaborado por Allebrandt ( 2007). Isso mostra como a dimensão da escolha e do conhecimento é diferentemente articulada pelas legislações e regulamentações de países distintos. Trabalho mais recente de Rosana Machin mostra tendência a abolir o anonimato do doador, considerando os direitos da criança concebida mediante reprodução medicamente assistida ( 2016). o limite de nascimentos por doador em dada região, artifício para prevenir que relações incestuosas involuntárias entre pessoas nascidas das doações. O registro de dados clínicos de doadores concretiza a medicalização da herança genética, por extensão, medicalização do parentesco ( Finkler, 2000FINKLER, Kaja. 2000. Experiencing the new genetics; Family and kinship on the medical frontier. Philadelphia, University of Pennsylvania Press.). A demanda de semelhança fenotípica remete a práticas tão antigas como o segredo da adoção, propiciado pela semelhança e agora repetido nas dinâmicas da reprodução assistida ( Costa, 2004COSTA, Rosely Gomes. 2004. O que a seleção de doadores de gametas pode nos dizer sobre noções de raça. Physis: Revista de Saúde Coletiva, vol. 14, n. 2: 235-255. DOI 10.1590/S0103-73312004000200004
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). Para além do segredo da doação, essa exigência de semelhança fenotípica e imunológica e de compatibilidade, ou esse esforço para compatibilizar as características físicas representa a manipulação social das origens genéticas, nas palavras de Salem ( 1995SALEM, Tania. 1995. O Princípio do Anonimato na Inseminação Artificial com Doador (IAD). Physis – Revista de Saúde Coletiva, vol. 5, n. 1: 33-68.). Nesse sentido, a semelhança fenotípica substitui simbolicamente a transmissão de genes Costa ( 1995SALEM, Tania. 1995. O Princípio do Anonimato na Inseminação Artificial com Doador (IAD). Physis – Revista de Saúde Coletiva, vol. 5, n. 1: 33-68.).

Naresoluçãode 2013, aseção IVtemnoveitens: onovoitem 3 estabeleceaidade máxima para a doação de gametas, de 35 anos para a mulher e de 50 para o homem. Um último item permite a doação compartilhada de óvulos, quando a doadora e a receptora (ambas sofrendo de problemas para se reproduzir) compartilham do material biológico e dos custos financeiros, dando preferência à doadora sobre o material produzido. A resolução de 2015 mantém idêntico o texto dessa seção exceto pelo item 9 em que restringe a doação de gametas aos masculinos e à doação compartilhada de óvulos. A resolução de 2017 tem uma alteração no item 9 e permite novamente a “doação voluntária de gametas”. O último item regulamenta a doação compartilhada de óvulos, uma prática corrente nas clínicas registrada em relatos de campo ( Luna, 2007LUNA, Naara. 2007. Provetas e clones: uma antropologia das novas tecnologias reprodutivas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.), usada para contornar dificuldades de acesso ao tratamento por conta do preço da assistência clínica e de laboratório, enquanto outras necessitariam de ovodoação e teriam condições financeiras de subsidiar o tratamento da parceira doadora ( Correa; Loyola, 2015CORREA, Marilena C. D. V; LOYOLA, Maria Andrea. 2015. Tecnologias de reprodução assistida no Brasil: opções para ampliar o acesso. Physis: Revista de Saúde Coletiva, vol. 25, n. 3: 753-777. DOI 10.1590/S0103-73312015000300005
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). A resolução de 2021 representa importante ruptura do princípio do anonimato na doação de gametas ( Salem, 1995SALEM, Tania. 1995. O Princípio do Anonimato na Inseminação Artificial com Doador (IAD). Physis – Revista de Saúde Coletiva, vol. 5, n. 1: 33-68.), ao permitir doação entre parentes até quarto grau (pais/filhos, avós/irmãos, tios/sobrinhos, primos). Estabelece o limite de idade para doação de gametas: 37 (mulheres) e 45 (homens), exceto quando o material estiver congelado, e o dever de esclarecer receptores sobre riscos para a prole. A segunda ruptura diz respeito à escolha do doador, antes concentrada em mãos médicas buscando semelhança, agora facultada a escolha pelo usuário em bancos de gametas ou de embriões. Por fim, garante que embriões transferidos sejam de uma única procedência.

A seção seguinte “V. Criopreservação de gametas e embriões” aborda o congelamento de material germinativo por serviços de reprodução assistida, definindo no item 1 os elementos que podem ser criopreservados: espermatozoides, óvulos e embriões, e no item 3 que os cônjuges devem expressar por escrito o destino dos embriões em caso de divórcio, doenças graves ou morte, ou de haver desejo de doação. O item 2 aponta uma diferença importante quanto à Resolução 1.358/92, que proibia o descarte de embriões excedentes, e previa a definição pelo paciente de quantos seriam transferidos frescos e quantos deveriam ser criopreservados. A resolução 1.597/10 prevê a criopreservação apenas dos excedentes viáveis, o que permanece na resolução de 2013. A resolução de 2013, contudo, apresenta uma alteração significativa: a possibilidade de descartar embriões congelados há cinco anos ou mais, por vontade do paciente. Faz-se referência à possibilidade de doação de embriões congelados para pesquisa com células-tronco. A esse respeito, identifica-se, na resolução de 2015, uma diferença sutil, informando no item 4 que “A utilização dos embriões em pesquisas de células-tronco não é obrigatória, conforme previsto na Lei de Biossegurança”. A ênfase nessas duas resoluções é o descarte dos embriões por vontade do “paciente”, e não apenas para doar para pesquisa.

A resolução 2168/2017 traz importantes alterações na seção V.

  1. 4.

    Os embriões criopreservados com três anos ou mais poderão ser descartados se esta for a vontade expressa dos pacientes.

  2. 5.

    Os embriões criopreservados e abandonados por três anos ou mais poderão ser descartados.

Parágrafo único: Embrião abandonado é aquele em que os responsáveis descumpriram o contrato pré-estabelecido e não foram localizados pela clínica. (Resolução CFM nº 2.168/17, itens 3 e 4 da seção V – “Criopreservação de gametas ou embriões”)

É retirado o trecho referente à doação para pesquisa com células-tronco, posto que tal destino era restrito aos embriões já criopreservados na época da aprovação da Nova Lei de Biossegurança. Ainda em consonância com essa lei, reduz-se o prazo para criopreservação de embriões de 5 para 3 anos, e surge a expressão “embrião abandonado”, autorizando o descarte pela clínica, quando responsáveis omissos sobre o destino dos embriões não são localizados. 29 29 Allebrandt ( 2018) mostra em etnografia como uma clínica de reprodução assistida busca os pacientes “genitores” dos embriões para evitar acúmulo dos criopreservados. Já a resolução de 2021 faz virada pró-vida ao limitar a oito o número de embriões gerados e ressalvar a incerteza sobre sua viabilidade, além de demandar autorização judicial para o descarte por vontade dos pais ou “abandono” (itens 4 e 5). Ambos são condicionantes que endurecem as regras para dificultar o descarte.

2. O número total de embriões gerados em laboratório não poderá exceder a 8 (oito). Será comunicado aos pacientes para que decidam quantos embriões serão transferidos a fresco, conforme determina esta Resolução. Os excedentes viáveis serão criopreservados. Como não há previsão de embriões viáveis ou quanto a sua qualidade, a decisão deverá ser tomada posteriormente a essa etapa.

  1. 4.

    Os embriões criopreservados com três anos ou mais poderão ser descartados se essa for a vontade expressa dos pacientes, mediante autorização judicial.

  2. 5.

    Os embriões criopreservados e abandonados por três anos ou mais poderão ser descartados, mediante autorização judicial. (Resolução CFM nº 2.294/2021, itens 2, 4 e 5 da seção V – “Criopreservação de gametas ou embriões”).

Embora não seja possível analisar a Resolução CFM 2.320/2022 aqui, as alterações mais importantes para o argumento deste artigo dizem respeito ao embrião. Foi retirado o limite do número máximo de embriões gerados, ponto que fora duramente criticado por dificultar as chances no tratamento de pessoas com problemas de fertilidade. Se isso parece atenuar a virada pró-vida, a exclusão dos itens 4 e 5 da seção V Criopreservação de gametas ou embriões atesta cabalmente esse posicionamento: não se prevê mais o descarte de embriões viáveis. 30 30 Conforme resumido nas notícias do portal CFM, as alterações principais da resolução de 2022 são “Os novos critérios promovem a revisão do número de embriões gerados em laboratório, esclarece a idade mínima para doação de gametas e abre possibilidade para que mulheres sem parentesco com o casal possam ceder o útero para gestação”. Nota publicada em 20/09/2022 às 14h17. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/cfm-publica-atualizacaodas-regras-para-reproducaoassistida-no-brasil/ A única menção a descarte ou uso para pesquisa se refere a embriões diagnosticados com doenças genéticas (conforme seção VI – Diagnóstico genético pré-implantacional de embriões).

As regulamentações em torno do embrião extracorporal ora o despersonificam e reduzem a reverência ao ente, ora o representam como pessoa, caso da figura dos embriões “abandonados”. Franklin ( 2013FRANKLIN, Sarah. 2013. Biological relatives: IVF, stem cells and the future of kinship. Durham; London: Duke University Press.: 311) alerta para o uso instrumental do embrião extracorporal, enquanto Thompson discute o “conto do embrião”, revelador dos sentidos maiores assumidos por embriões fora do corpo, levantando as tensões entre sagrado e profano (2005: 247). No âmbito das tecnologias reprodutivas, embriões são tratados como “protopessoas” (Ibidem: 250) e podem ser considerados sagrados se mantiverem o valor intrínseco de promessa: o potencial para desenvolvimento (Ibidem: 259). Na resolução de 2021, a autorização judicial é exigência que dificulta o descarte, preservando a vida embrionária. Esse ponto confirma o embate de sagrado e profano comentado por Thompson, ilustrado na acusação de setores pró-vida que igualam a destruição de embriões a genocídio. Assim os mesmos embriões podem ser objeto de campanhas para adoção e estão no centro de batalhas regulatórias sobre seu uso ou descarte (Ibidem: 262-65). Essas batalhas se evidenciam na resolução vigente (2.320/2022) em que se consolida uma virada pró-vida impedindo o descarte de embriões de laboratório viáveis, o que acompanha o movimento antiaborto no Brasil e é proposto em projetos como o Estatuto do Nascituro ( Luna, 2019LUNA, Naara. 2019. O debate sobre aborto na câmara de deputados no Brasil entre 2015 e 2017: agenda conservadora e resistência. Sexualidad, Salud y Sociedad, vol. 33: 207-272. DOI 10.1590/1984-6487.sess.2019.33.12.a
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).

A seção VI aborda o diagnóstico e tratamento de embriões. As regras rígidas estabelecidas na resolução de 1992 permaneceram na resolução 1.957/10. Segundo o item 1, a intervenção deve visar avaliar a viabilidade do embrião ou o diagnóstico de doenças, e demanda o consentimento informado do casal. O item 2 restringe a intervenção com fim terapêutico para tratar doenças e exige o consentimento informado do casal. O item 3 define em 14 dias o tempo máximo de desenvolvimento in vitro. A resolução 2.013/13 tem a redação menos taxativa: não exige o consentimento informado do casal e reduz a reverência ao embrião. A redação da resolução 1.057/10 diz que esse tipo de intervenção com fins diagnósticos “não poderá ter outra finalidade” que não avaliar a viabilidade do embrião (no item 1) ou com fins terapêuticos (no item 2) “não terá outra finalidade que não a de tratar uma doença ou impedir sua transmissão, com garantias reais de sucesso”.

A reverência ao embrião se reduz na Resolução CFM 2.013/13 que inclui no item 2 a possibilidade de seleção de embriões compatíveis com algum filho do casal afetado por doença cujo tratamento seja o transplante de células-tronco ou de órgãos, revogando o item que permitia o uso do diagnóstico genético apenas para tratar o próprio embrião e colocando a possibilidade de seu emprego para a geração de irmãos doadores, ponto já visto em diversos casos ( Franklin, 2013FRANKLIN, Sarah. 2013. Biological relatives: IVF, stem cells and the future of kinship. Durham; London: Duke University Press.; Luna, 2004LUNA, Naara. 2004. Embriões Geneticamente Selecionados: Os Usos do Diagnóstico Genético Pré-Implantação e o Debate Antropológico sobre a Condição de Pessoa. Política & Trabalho, vol. 20: 61-79.). Nesse sentido, a nova resolução deixa de tratar o embrião extracorporal como um sujeito que é um fim em si mesmo, o agente moral no sentido kantiano que se autodetermina ( Fagot-Largeault, 2004FAGOT-LARGEAULT, Anne. 2004. Embriões, células-tronco e terapias celulares: questões filosóficas e antropológicas. Estudos Avançados, vol. 18, n. 51: 227-245. DOI 10.1590/S0103-40142004000200015
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), e permite sua geração com o propósito de servir de instrumento para outra coisa, ponto denunciado pelos movimentos próvida, especialmente a bioética personalista do magistério católico ( Luna, 2010LUNA, Naara. 2010. Aborto e células-tronco embrionárias na campanha da fraternidade: ciência e ética no ensino da Igreja. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 25, n. 74: 91-105. DOI 10.1590/S0102-69092010000300006
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).

AResolução CFM 2121 de 2015, alterasignificativamenteoitem 1, acrescentando que, nos casos de “alterações genéticas causadoras de doenças”, os embriões podem “ser doados para pesquisa ou descartados”. A reverência ao embrião se reduz ao longo dos anos, assim como aumenta a possibilidade de sua manipulação. Enquanto a resolução de 2013 prevê a seleção de embriões compatíveis para doença “que tenha como modalidade de tratamento efetivo o transplante de células-tronco ou de órgãos”, no item 2 da seção VI, a resolução de 2015 limita ao “transplante de células-tronco, de acordo com a legislação vigente”. Nesse caso, a mudança parece acompanhar não apenas as normas éticas, mas também a efetivação técnica e clínica dessas tentativas de terapia. A resolução 2.294/2021 limita a informação do sexo dos embriões para casos de doenças ligadas ao sexo e a alterações nos cromossomos sexuais.

Da resolução 1.358/92 para a 1.957/10, também permanece inalterada a seção VIISobre a gestação de substituição (doação temporária de útero). O texto estabelece como condição para tal procedimento a existência de problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética. O item 1 limita quem poderá ceder o útero: 1. Doadoras temporárias devem pertencer à família da doadora genética em parentesco até segundo grau, sendo outros casos sujeitos à autorização do CRM. O item 2 proíbe o caráter lucrativo ou comercial da cessão temporária de útero. É importante ressaltar que esse item 1 da seção VII não foi atualizado em 2010 nos termos inclusivos das seções anteriores da própria resolução. A permanência dessa restrição da prática de gestação substituta limitava o acesso de casais homossexuais à autorização do CRM. Mesmo considerando os que têm práticas heterossexuais, a regra não contempla os casos de inexistência na família da doadora genética de parente de segundo grau do sexo feminino. Outro ponto problemático é a incompreensão do sentido de parentesco de segundo grau. Há importantes alterações na resolução seguinte. Em resposta a quase todas essas pendências, a resolução CFM 2.013/13 introduz uma série de mudanças na seção VII – sobre gestação de substituição. A primeira é prever a gestação de substituição também em caso de união homoafetiva. O segundo ponto é ampliar os graus de parentesco consanguíneo até quarto grau, incluir as parentes de ambos os parceiros entre as possíveis doadoras temporárias de útero e especificar o que significa o parentesco (primeiro grau – mãe; segundo grau – irmã/avó; terceiro grau – tia; quarto grau – prima), mantendo o limite etário de 50 anos. Além disso, introduz um último item que regulamenta diversos procedimentos, exigindo a documentação: termo de consentimento informado assinado pelos pacientes (pais genéticos ou casal homoafetivo) e pela doadora temporária de útero; relatório médico sobre a adequação e perfil psicológico da gestante portadora; descrição dos aspectos médicos; contrato entre os pacientes e a gestante substituta estabelecendo a filiação da criança; “os aspectos biopsicossociais envolvidos no ciclo gravídico-puerperal”; “os riscos inerentes à maternidade”; impossibilidade de interrupção da gravidez exceto nos casos previstos em lei; garantia de tratamento médico à doadora temporária de útero até o puerpério; garantia do registro civil da criança pelos pacientes (pais genéticos); aprovação por escrito do cônjuge da gestante substituta quando casada ou em união estável. Essa lista de documentos será alterada na resolução seguinte. A resolução de 2015 altera o item 3 quanto aos documentos demandados no prontuário da paciente. 3.2: o relatório com o perfil psicológico é de todos os envolvidos e não mais da gestante substituta. Outros itens alterados são: 3.3. Termo de Compromisso entre os pacientes e a doadora temporária do útero, estabelecendo a filiação da criança; 3.4. Garantia, por parte dos pacientes contratantes de serviços de RA, de tratamento e acompanhamento médico, à mãe que doará temporariamente o útero, até o puerpério; 3.5. Garantia do registro civil da criança pelos pacientes (pais genéticos) documentação providenciada durante a gravidez.

Vários itens cuja formulação é vaga na resolução de 2013 são especificados na de 2015, o que mostra a racionalização dos procedimentos legais para a gestação substituta. A resolução 2168/2017 renomeia essa seção: VII – Sobre a gestação de substituição (cessão temporária do útero). Então não é mais “ doação temporária”, mas “ cessão temporária de útero”, caracterizando o ato como empréstimo e não como doação. A outra alteração é quanto às definições de parentesco: “parentesco consanguíneo até o quarto grau (primeiro grau – mãe/filha; segundo grau – avó/ irmã; terceiro grau – tia/sobrinha; quarto grau – prima)”. São incluídos os pares “mãe/filha” para primeiro grau e “tia/sobrinha” para terceiro grau, o que supõe relações recíprocas. Isso assinala a possibilidade de a filha ceder o útero para sua mãe, ou a sobrinha para a tia, enquanto a redação da resolução de 2013 presumia o auxílio da mais velha à mais jovem. Aparece o aspecto geracional, reconhecendo as possibilidades de maternidade mais tardia para mulheres que já geraram filhos. Para comparação, eis os pontos mais relevantes do provimento nº 63/2017 do CNJ 31 31 Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2525 . Acesso em 25/05/2022. sobre emissão de certidão de nascimento, cuja seção III trata da reprodução assistida. No caso de união homoafetiva, adequar o registro para os nomes dos ascendentes; a declaração do diretor técnico do serviço de reprodução humana informando a geração da criança por reprodução assistida heteróloga, e o nome dos beneficiários (art. 17). Nesse artigo 17, destaco três parágrafos: § 1º Na gestação por substituição, “não constará do registro o nome da parturiente, informado na declaração de nascido vivo”, devendo apresentar termo de compromisso firmado pela doadora temporária do útero”, esclarecendo a filiação; o parágrafo 2 referente à reprodução assistida póstuma exige “termo de autorização prévia específica do falecido ou falecida para uso do material biológico preservado”; “§ 3º O conhecimento da ascendência biológica não importará no reconhecimento do vínculo de parentesco e dos respectivos efeitos jurídicos entre o doador ou a doadora e o filho gerado por meio da reprodução assistida.” Enfatizo o último parágrafo por privilegiar o aspecto contratual e intencional do parentesco reconhecido legalmente, resguardando que doadores de gametas e de embriões não sejam imputados pais e mães pela lei, ponto considerado no parágrafo 1, acerca da gestação substituta. É praticamente simultânea a publicação desse provimento (14/11/2017) e da resolução CFM 2.168/2017 (10/11/2017). As normas estabelecidas pelo provimento CNJ 63/2017 estão também de acordo com as resoluções do CFM de então.

Voltando às resoluções do CFM, mais uma vez a resolução de 2021 é inovadora: demanda que a “cedente temporária de útero” tenha ao menos um filho vivo. 32 32 Essa recomendação aparece também na ASRM ( Soderstrom-Anttila, 2016). Também proíbe que a clínica intermedeie a escolha da cedente, no mesmo item que veda o caráter comercial da prática. Para simplificar, demanda-se um relatório médico de todas as pessoas envolvidas, retirando o perfil psicológico.

A seção final da resolução 1957/10, considerado o item mais polêmico na abordagem da imprensa e mantido nas seguintes, trata da reprodução póstuma: VIII – reprodução assistida post mortem, segundo o qual “Não constitui ilícito ético a reprodução assistida post mortem desde que haja autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente”. O CFM inspirou-se na “legislação vigente”: incisos III e IV do artigo 1.597 do Código Civil descritos acima. O inciso III admite a concepção por fecundação artificial sem doador mesmo que o marido tenha falecido, e o inciso IV considera os nascidos a qualquer tempo quando se trata de embriões excedentes formados apenas do material reprodutivo do casal. O Código Civil não esclarece se o cônjuge deveria estar vivo no momento da fertilização ou da transferência de embrião. A resolução CFM 1.957/10 apenas exige autorização prévia do falecido sobre o material criopreservado. Nesse sentido, a resolução leva às últimas consequências uma brecha da lei. Não toma em consideração o efeito da morte sobre a condição de pessoa, tornada incapaz de constituir laços de parentesco.

Uma última seção IX é acrescentada na resolução 2013/13 e mantida em todas as seguintes. É uma disposição final prevendo que casos de exceção dependerão da autorização do Conselho Regional de Medicina.

A resolução de 2021 pode dar margem a diversas interpretações. Tanto aumenta possibilidade de escolha (escolha de doadores entre parentes) como restringe essa escolha ao impor que a gestante substituta já tenha filhos vivos, além de reforçar a proibição da escolha do sexo. Na exposição de motivos da referida resolução, consta a justificativa com base na jurisprudência para a mudança com respeito à possibilidade de apresentar parentes doadores de gametas: houve decisões judiciais nesse sentido. Por outro lado, as medidas que limitam a geração de embriões em laboratório ou exigem autorização judicial foram de início fundamentadas no código de ética médica aprovado em momento de ascensão ao poder de governos conservadores 33 33 O código de ética médica foi aprovado em 27/09/2018 (no final do governo Temer), mas entrou em vigor 180 dias depois, no governo Jair Bolsonaro. Os embriões são citados apenas no capítulo III, artigo 15, que proíbe “criar embriões para investigação”, “criar embriões com finalidades de escolha de sexo, eugenia ou para originar híbridos ou quimeras”, mostrando intenção de restringir os embriões excedentes: a fertilização “não deve conduzir sistematicamente à ocorrência de embriões supranumerários”. . É importante ressaltar que no governo Bolsonaro, houve o maior número de resoluções alteradas (três: 2020, 2021 e 2022) no menor intervalo de tempo, em contraste com os governos anteriores (2010: Lula; 2013 e 2015: Dilma; 34 34 publicada após 2 anos e 4 meses da anterior de 2013. A resolução de 2013 foi movida principalmente pelo julgamento do STF de reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo com mesmo estatuto do casamento, o que já consta no 4º considerando, já a de 2015 basicamente especifica pontos deixados vagos na resolução anterior, sem alterações substantivas. 2017: Temer). É possível especular se a posição favorável ao presidente Bolsonaro da direção do CFM então vigente teria repercutido na Câmara Técnica, resultando em uma virada pró-vida, depois de uma sequência ininterrupta de resoluções desde 2010 que relativizavam a sacralidade do embrião humano extracorporal. 35 35 Nota 35: ver próxima página (23) No portal do CFM, consta o contato com o presidente e a lista de reivindicações apresentadas junto com o novo código de ética médica. Cf. “Ao apresentar novo Código de Ética Médica, CFM faz pedidos”. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/ao-apresentar-novo-codigo-deetica-medica-cfm-faz-pedidosao-presidente-jair-bolsonaroem-nome-dos-medicos/ . Acesso em 17/05/2022. Durante a pandemia, reportagens jornalísticas comentaram da posição do CFM pró-Bolsonaro inclusive no tocante à prescrição de medicamentos comprovadamente ineficazes em nome da autonomia médica, o que contrastava com a crítica de diversas associações médicas. Tal foi o comparecimento do representante do CFM na CPI da Covid, um dos vice-presidentes do CFM e bolsonarista. Cf. Eduardo Gonçalves. Médico vicepresidente do Conselho Federal de Medicina é bolsonarista filiado ao PSL Emmanuel Fortes, do CFM, fez campanha por uso de cloroquina e tenta entrar para a política. O Globo, 9/10/2021. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/medico-vice-presidentedo-conselho-federal-demedicina-bolsonaristafiliado-ao-psl-25231622 . Acesso em 19/05/2022. Em uma live de 7/05/2020, com publicação editada pelo portal de notícias Metrópoles, depois compartilhada na rede social Twitter por Fernando Haddad, o presidente do CFM fala do alinhamento da entidade com o governo Bolsonaro e com o Ministério da Saúde por ter atendido todas as reivindicações feitas, ressaltando haver “diálogo” (foi recebido 5 vezes em 1 ano e quatro meses de governo), além de externar críticas à presidente Dilma e ao Ministro Alexandre Padilha pela “popularização da medicina”: “Nós não vamos recuperar o dano do governo da presidente Dilma e do ministro Alexandre Padilha. Nós teremos aproximadamente um milhão e quinhentos mil médicos. É a popularização da medicina”. Disponível em: https://t.co/Bx4xFewjmU<https://twitter.com/Haddad_Fernando/status/1446535800817082373?s=20. Acesso em 19/05/2022. A resolu ção CFM de 2022, excluindo a possibilidade de descarte de embriões viáveis confirma a posição alinhada ao viés antiaborto do governo Bolsonaro.

Considerações finais

Entre as várias implicações do modo de reprodução biomédico para a identidade e parentesco, o mais impressionante é o potencial de subverter a identidade e categorias de parentesco que a biomedicina era inicialmente designada de afirmar e reparar ( Thompson, 2005THOMPSON, Charis. 2005. Making parents. Cambridge: MIT Press.: 267). Assim as tecnologias são tanto altamente conservadoras como socialmente e tecnicamente inovadoras.

O percurso de mudanças nas resoluções sugere que a sequência de alterações vai no sentido observado no contexto estadunidense de cambiar da ideia do melhor interesse das crianças para a extensão de uma ideia de direitos reprodutivos centrada na escolha dos pais ( Thompson, 2005THOMPSON, Charis. 2005. Making parents. Cambridge: MIT Press.: 7).

Rever todas as resoluções ao longo dos anos desde 1992 e suas alterações permite verificar algumas tendências na governança reprodutiva, perceptíveis já na resolução de 2010, com abertura para demandas da sociedade, para além de questões médicas. De modo geral a resolução de 2013 apresenta uma preocupação maior com o tempo, estabelecendo limites para a idade de acesso das candidatas a RA, para doadores de gametas e para a gestante substituta. Há uma ênfase em regulamentar questões abertas: fiscalização das clínicas, procedimentos para o registro do nascido de gravidez de substituição. As resoluções de 2015 e 2017 vêm basicamente acertar lapsos deixados nas modificações principais da resolução de 2013.

Observa-se mudança significativa com respeito ao estatuto do embrião extracorporal: as resoluções de 2010, de 2013, 2015 e 2017 tendem a relativizar o direito absoluto do embrião à vida, implícito na resolução de 1992 que impedia o descarte e supunha o congelamento permanente dos não aproveitados mesmo que inviáveis. Tal impedimento do descarte de embriões se assemelha à posição da Igreja Católica de defesa da vida, que recusa inclusive a fertilização in vitro de modo geral como crime ( Luna, 2010LUNA, Naara. 2010. Aborto e células-tronco embrionárias na campanha da fraternidade: ciência e ética no ensino da Igreja. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 25, n. 74: 91-105. DOI 10.1590/S0102-69092010000300006
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; Sales, 2014SALES, Lílian. 2014. A controvérsia em torno da liberação das pesquisas com células tronco embrionárias no Brasil: Posições e argumentos dos representantes da Igreja Católica. Revista de Antropologia, vol. 57, n. 1: 112-142. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2014.87758
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). Quando se exige apenas a criopreservação dos embriões viáveis em 2010 e se permite na resolução de 2013, por vontade dos “pacientes”, o descarte dos congelados há cinco anos, período reduzido para três anos na resolução de 2017, ou seu aproveitamento nas pesquisas com células-tronco, o embrião fora do corpo produzido em laboratório é tratado como um objeto e não como um ente dotado de direitos conforme exigem os movimentos pró-vida ( Thompson, 2005THOMPSON, Charis. 2005. Making parents. Cambridge: MIT Press.: 267). Essa nova situação no Brasil reencena em parte o que ocorre há anos na Inglaterra, onde mais radicalmente os “pais” (sic) dos embriões congelados por cinco anos são obrigados a optar por transferência para si, doação para outros casais ou para pesquisa, ou pelo descarte desses entes ( Franklin, 2013FRANKLIN, Sarah. 2013. Biological relatives: IVF, stem cells and the future of kinship. Durham; London: Duke University Press.; Luna, 2001LUNA, Naara. 2001. Pessoa e parentesco nas novas tecnologias reprodutivas. Revista Estudos Feministas, vol. 9, n. 2: 389-413. DOI 10.1590/S0104-026X2001000200005
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) e poderia se tornar rotina em clínicas brasileiras conforme assinalado por Allebrandt ( 2018ALLEBRANDT, Débora. 2018. Negociando o Destino dos Embriões Humanos Produzidos na Reprodução Assistida: Criopreservação, descarte, doação e seus agenciamentos em uma clínica de Porto Alegre. Interseções - Revista de Estudos Interdisciplinares, vol. 20, n. 1: 114-140. DOI 10.11606/2179-0892. ra.2012.46971
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), até as resoluções de 2021 e 2022. Esse relativizar do embrião como indivíduo, um sujeito que é um fim em si, é confirmado na possibilidade de uso do diagnóstico genético pré-implantação a fim de gerar bebês doadores compatíveis com irmãos doentes. Por outro lado, mostrando como esse processo abarca tensões e contradições, a expressão “embrião abandonado”, surgida na resolução de 2017, vai na direção contrária, ao personificar esse ente, comparado a uma criança.

No tocante à constituição das relações de parentesco, a diferença de regras com respeito à doação de gametas e embriões e no tocante à cessão temporária de útero merece uma análise mais detida. Exige-se anonimato e sigilo de identidade dos fornecedores de material genético no primeiro caso, enquanto no segundo a demanda é que a mulher que se propõe a gestar em favor de outra seja parente próxima de um dos parceiros reprodutivos. Há uma dinâmica entre o que ameaça as relações de parentesco, requerendo distância de um lado e proximidade controlada de outro. Se o modelo proposto por Cussins ( 1998CUSSINS, Charis M. 1998. “Quit sniveling, cryo-baby. We’ll work out which one’s your mama”. In: DAVIES-FLOYD, Robbie; DUMIT, Joseph (eds.). Cyborg babies: from techno-sex to techno-tots. New York: Routledge. p. 40-67.)/Thompson ( 2005THOMPSON, Charis. 2005. Making parents. Cambridge: MIT Press.) afirma que algumas etapas na constituição do parentesco podem ser reconhecidas ou não, a análise de Salem ( 1995SALEM, Tania. 1995. O Princípio do Anonimato na Inseminação Artificial com Doador (IAD). Physis – Revista de Saúde Coletiva, vol. 5, n. 1: 33-68.) desvenda os princípios subjacentes a essa lógica que rege essa diferença de regras. Quando as normas exigem o anonimato dos doadores de material genético (gametas e embriões), a necessidade de ocultação de tais laços de parentesco afirma a prevalência dos laços naturais sobre os sociais, ou “a fragilidade intrínseca dos laços socialmente estabelecidos” ( Salem, 1995SALEM, Tania. 1995. O Princípio do Anonimato na Inseminação Artificial com Doador (IAD). Physis – Revista de Saúde Coletiva, vol. 5, n. 1: 33-68.: 60), o que representaria uma estratégia de intervenção humana que visa a encobrir a própria interven ção na natureza (reprodução) ( Salem, 1995SALEM, Tania. 1995. O Princípio do Anonimato na Inseminação Artificial com Doador (IAD). Physis – Revista de Saúde Coletiva, vol. 5, n. 1: 33-68.: 59). No exemplo sob exame, deve-se perguntar por que não se exige igual anonimato para a cessão de útero como na doação de gametas e embriões. Uma primeira razão seria de ordem pragmática: a dificuldade de conseguir uma mulher disposta a engravidar em favor de outra. Por isso na primeira resolução 1358/92, o CFM exigia relações de proximidade e de parentesco com a doadora (mãe) genética a fim de desestimular a forma comercial na prestação do serviço de gestação. Porém vê-se uma razão na simbólica de parentesco para além do motivo prático. A existência de regras diferentes sugere hierarquia entre os diferentes laços de parentesco biológico em que o vínculo genético seria uma relação mais verdadeira que a própria gestação. Por isso, quando uma mulher sugere sua irmã para ser doadora, ela recebia uma negativa da clínica segundo as normas éticas (até a resolução de 2021), enquanto a cooperação dessa irmã como gestante substituta é prevista e recomendada. Essa hierarquia que prioriza os laços genéticos contradiz a legislação brasileira, pois nesta a maternidade é estabelecida pelo parto. A “verdade” dos laços genéticos obriga o anonimato dos doadores de gametas na regulamentação bioética sobre reprodução assistida 36 36 A importância dos laços genéticos assumidos como verdade do parentesco também aparece em contexto distinto: a atitude de juízes exigindo a comprovação de parentesco pelo exame de DNA ( Fonseca, 2011) como fator acima de qualquer testemunho de laço social. Com tal hierarquia, a relação estabelecida pela gravidez entre a gestante e o feto é equiparada a uma relação social, de valor secundário aos laços da natureza. A despeito das implicações da fertilização in vitro, o vocabulário referente às relações de parentesco e filiação mantém com respeito aos fornecedores dos gametas a expressão “pai biológico” e “mãe biológica”, oriunda do debate sobre adoção. Isso se explicita em projeto de lei (PL 120/2003) que dispõe sobre investigação de paternidade de pessoas nascidas de técnicas de reprodução assistida. 37 37 O inteiro teor do PL 120/2003 de autoria de Roberto Pessoa (na época PFL-CE) está disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/104774 Acesso em 5 jun. 2023. O projeto de lei pretende garantir que “a pessoa nascida de técnicas de reprodução assistida tenha o direito de saber a identidade de seu pai ou mãe biológicos” ( apud Diniz, 2003DINIZ, Débora. 2003. Tecnologias Reprodutivas Conceptivas: O estado da arte do debate legislativo brasileiro. Jornal Brasileiro de Reprodução Assistida, vol. 7, n. 3: 10-19.: 15). A designação “mãe biológica”, como equivalente da “mãe genética” ou fornecedora de gametas, se contrapõe à de “mãe gestacional” como se a gestação não implicasse relação biológica, outro sinal da hierarquia entre os laços.

Retomando o argumento de Cussins ( 1998CUSSINS, Charis M. 1998. “Quit sniveling, cryo-baby. We’ll work out which one’s your mama”. In: DAVIES-FLOYD, Robbie; DUMIT, Joseph (eds.). Cyborg babies: from techno-sex to techno-tots. New York: Routledge. p. 40-67.) quanto às configurações da teia de parentesco se coordenarem de maneiras distintas, se segundo a lei a maternidade é estabelecida por quem dá à luz, e a paternidade, pelo companheiro da mãe, essas regras criam por um lado uma circunstância favorável à regulamentação das relações de parentesco nas práticas de doação de óvulos e sêmen, mas por outro lado uma situação complicada para os casos de gestação substituta. Um exemplo é o de casais masculinos ou femininos que escolhem um mesmo doador de gametas a fim de garantir que os filhos sejam irmãos genéticos ( Fonseca, 2008FONSECA, Claudia. 2008. Homoparentalidade: novas luzes sobre o parentesco. Revista Estudos Feministas, vol. 16, n. 3: 743-768. DOI 10.1590/S0104-026X2008000300003
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), como no caso noticiado em 2012 de um casal masculino de Recife que teve um filho e guarda os embriões congelados para o nascimento do “filho biológico” do companheiro. 38 38 O casal obteve óvulos de uma doadora anônima e contou com a colaboração da prima de um deles para a cessão de útero, como também conseguiu o registro duplo de paternidade para o filho pela Vara de Família. Cf, LINS, Letícia. “Casal obtém dupla paternidade inédita: empresários de PE, juntos há 15 anos, contaram com a ajuda de uma prima, que se ofereceu para ser barriga de aluguel”. O Globo, 31 mar. 2012, O País, p. 18. Esses exemplos mostram a importância da criação da consanguinidade em nosso contexto, como na fantasia recorrente em jovens lésbicas no Brasil de ter o irmão da parceira como o doador de sêmen ( Grossi, 2003GROSSI, Miriam Pillar. 2003. Gênero e parentesco: famílias gays e lésbicas no Brasil. Cadernos Pagu, vol. 21: 261-280. DOI 10.1590/S0104-83332003000200011
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). Por outro lado, Vitule e colegas (2015) identificaram que casais masculinos teriam preferência por adoção, justamente para evitar envolver uma terceira pessoa, mãe biológica, que teria direito legal à maternidade, no temor de uma disputa judicial, o que contrasta com os casais femininos que preferiam opções que possibilitassem a gravidez.

Outro sinal de mudança é a oferta pelas próprias clínicas da técnica chamada ROPA: “recepção de óvulos da parceira”, direcionada a casais femininos ( Turte-Cavadinha, 2013TURTE-CAVADINHA. Edu. 2013. “Mulheres lésbicas em busca da maternidade: desafios e estratégias”. In: SILVA, Daniele Andrade da; GARAY HERNÁNDEZ, Jimena de; SILVA JUNIOR, Aureliano Lopes da; UZIEL, Anna Paula. (Org.). Feminilidades: corpos e sexualidades em debate. 1ed. Rio de Janeiro: EdUERJ, p. 241-257.; Vitule; Couto; Machin, 2015VITULE, Camila; COUTO, Marcia Thereza; MACHIN, Rosana. 2015 Casais de mesmo sexo e pa-rentalidade: um olhar sobre o uso das tecnologias reprodutivas. Interface (Botucatu), vol. 19, n. 55: 1169-1180. DOI 10.1590/1807-57622014.0401
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), técnica médica associada às tecnologias jurídicas incluídas nas últimas resoluções do CFM. Nesse caso, a dimensão da escolha se sobrepõe à hierarquia entre parentesco genético e gestacional, de modo que ambas as parceiras sejam legalmente reconhecidas como mães. Tal representação em termos de gênero coloca uma mulher no papel masculino de inseminadora, no sentido de fornecer a semente ou gameta para a outra engravidar ( Strathern, 1991STRATHERN, Marilyn. 1991. Disparities of Embodiment: Gender Models in the Context of the New Reproductive Technologies. Cambridge Anthropology, vol. 15, n. 2: 25-43.), mas o que parece interessar aos casais é a comunhão de substância na reprodução como símbolo do amor ( Schneider, 1968SCHNEIDER, David. 1968. American Kinship: A cultural account. Englewood Cliffs, USA: Prentice-Hall.). A mudança na resolução de 2021 que permite incluir parentes entre doadores de gametas reforçou a possibilidade de atingir por meio da técnica a comunhão de substância, mesmo lançando mão de material genético de doadoras integrantes da família, como na notícia “Nascem os primeiros gêmeos do casal gay no Brasil que têm o material genético dos dois pais: o sêmen de Robert e o óvulo da irmã de Gustavo geraram Marc e Maya na barriga de aluguel de uma prima, Lorenna”. 39 39 Cf. “O dia mais longo e emocionante das nossas vidas”. O Globo. 26 fev. 2022, p. 10. Ali, o material genético de um dos pais foi mediado pelo óvulo da irmã. Como exemplo do laço transparente ou de custódia, na teoria de Thompson, essa conexão instrumental permite a geração, mas não suscita a relação, por isso não é considerada incestuosa pelos envolvidos no arranjo reprodutivo.

No Brasil, são escassas as regulações jurídicas sobre a reprodução assistida. A análise dos diferentes contextos de uso das novas tecnologias reprodutivas sugere valores culturais subjacentes que afetam o estabelecimento das configurações de parentesco, revelando a tensão entre a dimensão dada e a dimensão construída, entre o que é possível escolher ou laços a ativar e o que parece a injunção de uma lei natural externa. Corpos se reproduzem e sujeitos negociam suas opções de constituir parentesco diante das possibilidades oferecidas pelas técnicas e das regulações formais ou informais existentes no contexto ( Fonseca, 2011FONSECA, Claudia. 2011. As novas tecnologias legais na produção da vida familiar: Antropologia, Direito e subjetividades. Civitas, vol. 11, n. 1: 8-23. DOI 10.15448/1984-7289.2011.1.9188
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). Tais são os arranjos clandestinos de barriga de aluguel, assim como a decisão quanto ao acesso às técnicas no tocante à idade, existência de parceiros estáveis ou vivos, orientação sexual, entre outros aspectos A primeira grande restrição é a pequena oferta da reprodução assistida em serviços públicos e seus altos custos nas clínicas privadas ( Correa; Loyola, 2015CORREA, Marilena C. D. V; LOYOLA, Maria Andrea. 2015. Tecnologias de reprodução assistida no Brasil: opções para ampliar o acesso. Physis: Revista de Saúde Coletiva, vol. 25, n. 3: 753-777. DOI 10.1590/S0103-73312015000300005
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). Em seguida é necessário analisar que valores fundamentam o acesso às tecnologias de procriação.

Considerando que, no Brasil, editou-se uma resolução sobre reprodução assistida apenas em 1992, oito anos depois do nascimento do primeiro bebê (1984), e que essa resolução permaneceu 18 anos sem modificação até 2010, nota-se que a alteração dessas resoluções virou prática rotineira, registrada em 2010, 2013, 2015, 2017, 2020, 2021 e 2022. Essa renovação indica a necessidade de ajustes relacionados às mudanças na legislação brasileira (a Nova Lei de Biossegurança) ou às interpretações que o Supremo Tribunal Federal dá às leis brasileiras (o reconhecimento da união das pessoas de mesmo sexo), ou ao novo código de ética médica ou ain da à jurisprudência acerca da doação de gametas. Mas também está associada ao processo de modernização de valores da sociedade e de liberalização dos costumes com progressiva individualização, daí o interesse em reconhecer as minúcias do uso de tecnologias reprodutivas por casais de mesmo sexo, o que vem sendo alterado desde a resolução de 2010, mesmo antes da decisão do STF e progride a cada nova resolução. O que era inaceitável em 2002, quando eu fiz trabalho de campo passa a ser regulado em 2015 no tocante à maternidade compartilhada. Observa-se um aumento nas possibilidades de escolha, em tensão com a ideia de determinação natural do parentesco, ou parafraseando Fonseca ( 2008FONSECA, Claudia. 2008. Homoparentalidade: novas luzes sobre o parentesco. Revista Estudos Feministas, vol. 16, n. 3: 743-768. DOI 10.1590/S0104-026X2008000300003
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: 772), diante da sensação de que a família perdeu a solidez do natural, a questão seria contratual, assinalando o incremento da escolha no terreno das leis.

No vazio legal sobre a reprodução assistida no Brasil, as resoluções do CFM aparecem como autoridade competente para se pronunciar sobre a vida ( Rabinow; Rose, 2006RABINOW, Paul; ROSE, Nikolas. 2006. O conceito de biopoder hoje” Política & Trabalho, vol. 24: 27-57.) e a fronteira reprodutiva se revela espaço político ( Franklin, 2013FRANKLIN, Sarah. 2013. Biological relatives: IVF, stem cells and the future of kinship. Durham; London: Duke University Press.) com viés pró-vida incitado pela ascensão conservadora ao governo. São batalhas regulatórias sobre o uso e descarte de embriões ( Thompson, 2005THOMPSON, Charis. 2005. Making parents. Cambridge: MIT Press.) como evidenciado nas resoluções de 2021 e 2022, interditando o descarte e consolidando a perspectiva pró-vida cujo alvo é ressacralizar o embrião como pessoa e sujeito de direitos.

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    » https://doi.org/10.1590/1807-57622014.0401
  • 1
    Essa descrição dos estudos performativos foi obtida a partir de Warren Shapiro. Disponível em: https://anthro.rutgers.edu/faculty/emeritusfaculty/103-warren-shapiro . Acesso em 24/05/2022.
  • 2
    Em 20 de setembro 2022, foi editada a Resolução CFM n° 2320/2022, meses após a submissão deste artigo. A mesma será brevemente mencionada quanto a sua alteração mais pertinente, não sendo possível analisá-la em detalhe.
  • 3
    Esse vazio legislativo não é prerrogativa do Brasil. Nos Estados Unidos, diante da ausência de legislação federal, a American Society of Reproductive Medicine (ASRM) foi pioneira ao emitir orientações éticas e ainda hoje edita diretrizes no esforço de continuar a autorregularse ( Thompson, 2005THOMPSON, Charis. 2005. Making parents. Cambridge: MIT Press.).
  • 4
    O congelamento de óvulos foi matéria de capa da Revista O Globo em 2009. Nesta são citadas mulheres que teriam usado a técnica e uma clínica que oferece o procedimento de vitrificação (cf. Monteiro, 2009MONTEIRO, Karla. “Até quando esperar? A corrida das brasileiras para congelar seus óvulos e garantir uma gravidez tardia é o mais novo capítulo da história da mulher contemporânea, para o bem ou para o mal”. Revista O Globo, Rio de Janeiro, ano 4, n. 261. 26 jul. 2009.).
  • 5
    Atestando que o procedimento não é tão difundido na clínica médica, em busca na Plataforma Scielo sobre vitrificação de oócitos, encontrei 32 resultados, sendo 9 não relacionados a animais (botânica e cerâmica), 21 da área de veterinária e apenas os dois mais recentes da Ginecologia, porém um se referia a embriões e não a ovócitos. O único caso era voltado à extração de óvulos diretamente do ovário para preservação de fertilidade em uma mulher com câncer. Nova busca foi realizada via Google: dos dez resultados iniciais, nove eram divulgação de clínicas de fertilização humana e apenas um de artigo científico argumentava pela eficácia da vitrificação em humanos, contudo com resultados inferiores à taxa obtida a fresco ( Morishima et al, 2017MORISHIMA, Christina; SANTOS, Thamara Braga dos; TAKAHIRA, Agnes Mayumi; DONADIO, Nilka; CAVAGNA, Mário; DZIK, Artur; GEBRIM, Luiz Henrique . 2017. Crianças nascidas após vitrificação de oócitos em reprodução assistida em hospital público. Reprodução & Climatério, vol. 32, n. 2: 148-151. DOI: 10.1016/j.recli.2016.06.002
    https://doi.org/10.1016/j.recli.2016.06....
    ).
  • 6
    Segundo Thompson ( 2005THOMPSON, Charis. 2005. Making parents. Cambridge: MIT Press.), 5% dos bebês nascidos de tecnologias reprodutivas realizadas nos Estados Unidos são gestações múltiplas de trigêmeos ou mais.
  • 7
    Israel, Georgia, Ucrânia, Russia, Índia e o estado da Califórnia nos Estados Unidos permitem gestação substituta comercial, segundo Soderstrom- Anttila e colegas (2016).
  • 8
    A pesquisadora Charis Cussins do estudo de 1998 passou a assinar Charis Thompson no livro de 2005. Eis as regras de parentesco alterando sobrenomes!
  • 9
    Uma análise sobre o ordenamento jurídico que distingue a especificidade dos códigos profissionais está em Pereira ( 1991PEREIRA, Rodrigo da Cunha. 1991. O código de ética e a ética do código: algumas considerações jurídicas. Psicologia: Ciência e Profissão. Vol. 11: 32-35. DOI 10.1590/S1414-98931991000100006
    https://doi.org/10.1590/S1414-9893199100...
    ) que aborda o Código de Ética Profissional dos Psicólogos..
  • 10
  • 11
  • 12
  • 13
  • 14
  • 15
  • 16
  • 17
    Para uma análise da moralidade que norteou o julgamento, veja Coitinho Filho e Rinaldi ( 2018COITINHO FILHO, Ricardo Andrade; RINALDI, Alessandra de Andrade. 2018. O Supremo Tribunal Federal e a “união homoafetiva”: onde os direitos e as moralidades se cruzam. Civitas, vol. 18, n. 1: 25-39. DOI 10.15448/1984-7289.2018.1.28419
    https://doi.org/10.15448/1984-7289.2018....
    ).
  • 18
    Uma das dimensões do processo de postergação da maternidade é a profissionalização das mulheres ( et al, 2018VIANA, Renata Brum; PAULA Hermes Candido de; VALENTE, Geilsa Soraia Cavalcanti; CAROPES, Viviane Brasil Amaral dos Santos; PAULA, Carmen Lúcia de. 2018. Dilemas da maternidade das mulheres contemporâneas: revisão integrativa. Revista Enfermagem Atual In Derme, vol. 85, n. 23: 76-81. DOI 10.31011/reaid-2018-v.85-n.23-art.248). Sobre essa dinâmica na população da América Latina, ver ( Cabella e Pardo, 2016CABELLA, Wanda; PARDO, Ignacio. 2016. Es hora de usar indicadores refinados para estudiar la fecundidad en América Latina?. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, vol. 33, n. 3: 475-493. DOI 10.20947/S0102-30982016c0002
    https://doi.org/10.20947/S0102-30982016c...
    ).
  • 19
    A proibição da seleção de sexo do embrião a não ser por razões de saúde, isto é, evitar o desenvolvimento de doenças genéticas relacionadas ao sexo, é um dos exemplos do limite, na regulação brasileira, à escolha na constituição do parentesco, o que visa a manter a técnica próxima do que acontece na natureza ( Salem, 1995SALEM, Tania. 1995. O Princípio do Anonimato na Inseminação Artificial com Doador (IAD). Physis – Revista de Saúde Coletiva, vol. 5, n. 1: 33-68.).
  • 20
    Regra conforme a Nova Lei de Biossegurança de 2005, que proíbe a fabricação de embriões humanos sem a finalidade de reprodução, permitindo apenas o uso dos excedentes para produção de células-tronco.
  • 21
    Os excludentes de punibilidade na legislação sobre aborto no Brasil não preveem essa opção
  • 22
    Héritier-Augé ( 1985HÉRITIER-AUGÉ, Françoise. 1985. La cuisse de Jupiter: réflexions sur les nouveaux modes de procréation. L’Homme, n. 94, t. XXV: 5-22.) levanta várias comparações entre as novas tecnologias reprodutivas e os arranjos de parentesco, a partir de dados etnográficos coletados em povos que não integram a simbólica de parentesco ocidental.
  • 23
    Cf. os títulos: “Casais gays vão ter acesso a fertilização em laboratório” (Folha de S Paulo, 6 jan. 2011 p.1) e “Conselho de Medicina autoriza casais homossexuais e utilizarem fertilização” ( Éboli, 2011ÉBOLI, Evandro. 2011. “Conselho de Medicina autoriza casais homossexuais e utilizarem fertilização”. O Globo, Rio de Janeiro, 6 jan. 2011, p. 13., p. 13).
  • 24
    O direito de objeção de consciência tem sido incentivado por setores religiosos conservadores para envolver sua militância em uma “cidadania religiosa” contrária aos direitos sexuais e reprodutivos ( Vaggione, 2017VAGGIONE, Juan Marco. 2017. La Iglesia Católica frente a la política sexual: la configuración de una ciudadanía religiosa. Cadernos Pagu, vol. 50: e175002. DOI 10.1590/18094449201700500002
    https://doi.org/10.1590/1809444920170050...
    )
  • 25
    Outras alterações introduzidas foram a possibilidade de acesso por parte de pessoas adultas nascidas de reprodução assistida à identidade do doador; possibilidade de criopreservação autóloga de gametas sem justificativa médica ( Barry et al, 2022BARRY, F.; RAYSSAC, M.; GALA, A.; FERRIÈRES-HOA, A.; LOUP, V; ANAHORY, T.; BROUILLET, S.; HAMAMAH, S. 2022. Quels enjeux et adaptations pour les centres d’AMP dans le cadre de la mise en place de la nouvelle loi de bioéthique ?. Gynecologie, Obstetrique, Fertilite & Senologie, vol. 50, n. 12: 777-787. DOI 10.1016/j.gofs.2022.08.005
    https://doi.org/10.1016/j.gofs.2022.08.0...
    ).
  • 26
    Segundo pesquisa realizada por Machin ( 2022MACHIN, Rosana. 2022. Reproducción transnacional con terceros: el mercado reproductivo en Brasil. Inter Disciplina, vol. 10, n. 28: 27-49. DOI 10.22201/ceiich.24485705e.2022.28.83288.
    https://doi.org/10.22201/ceiich.24485705...
    ), que avaliou o mercado de células sexuais no Brasil, em função de vazios legais e da ausência de legislação específica, o que cria muitas ambiguidades, além das forças do mercado médico, tensionando as regras altruístas, o controle geral das clínicas não é possível, inexistindo condições de fiscalizar o cumprimento desse limite.
  • 27
    Resumindo, a resistência à comercialização corresponde à tentativa de manter o mercado separado de filhos e família ( Stuvøy, 2018STUVØY, Ingvill. 2018. Troublesome reproduction: surrogacy under scrutiny. Reproductive BioMedicine and Society Online, vol. 7: 33-43. DOI 10.1016/j.rbms.2018.10.015
    https://doi.org/10.1016/j.rbms.2018.10.0...
    ).
  • 28
    O ponto permanece, mas com ressalva, porque a resolução de 2021 abriu como exceção a possibilidade de parentes doadores de gametas. O anonimato de doadores de gametas e de embriões, regra que permanecera inalterada desde a primeira resolução do CFM 1358/92 até a resolução de 2021, era demandado na Alemanha e na Noruega, mas não nos Estados Unidos, e na Inglaterra (nesta apenas no caso de autoinseminação), segundo quadro comparativo elaborado por Allebrandt ( 2007ALLEBRANDT, Débora. 2007. “Entre movimento e interdição: novas tecnologias reprodutivas conceptivas postas em prática”. In: ALLEBRANDT, Débora; MACEDO, Juliana Lopes (orgs.). Fabricando a vida: implicações éticas, sociais e culturais do uso de novas tecnologias reprodutivas. Porto Alegre: Metrópole, p. 127-138.). Isso mostra como a dimensão da escolha e do conhecimento é diferentemente articulada pelas legislações e regulamentações de países distintos. Trabalho mais recente de Rosana Machin mostra tendência a abolir o anonimato do doador, considerando os direitos da criança concebida mediante reprodução medicamente assistida ( 2016MACHIN, Rosana. 2016. Anonimato e segredo na reprodução humana com participação de doador: mudanças em perspectivas. Saúde e Sociedade, vol. 25, n. 1: 83-95. DOI 10.1590/S0104-12902016149132
    https://doi.org/10.1590/S0104-1290201614...
    ).
  • 29
    Allebrandt ( 2018ALLEBRANDT, Débora. 2018. Negociando o Destino dos Embriões Humanos Produzidos na Reprodução Assistida: Criopreservação, descarte, doação e seus agenciamentos em uma clínica de Porto Alegre. Interseções - Revista de Estudos Interdisciplinares, vol. 20, n. 1: 114-140. DOI 10.11606/2179-0892. ra.2012.46971
    https://doi.org/10.11606/2179-0892....
    ) mostra em etnografia como uma clínica de reprodução assistida busca os pacientes “genitores” dos embriões para evitar acúmulo dos criopreservados.
  • 30
    Conforme resumido nas notícias do portal CFM“CFM PUBLICA atualização das regras para reprodução assistida no Brasil”. 20 set 2022. Portal CFM. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/cfm-publica-atualizacao-das-regras-para-reproducao-assistida-no-brasil/ . Acesso em 17 abr. 2023.
    https://portal.cfm.org.br/noticias/cfm-p...
    , as alterações principais da resolução de 2022 são “Os novos critérios promovem a revisão do número de embriões gerados em laboratório, esclarece a idade mínima para doação de gametas e abre possibilidade para que mulheres sem parentesco com o casal possam ceder o útero para gestação”. Nota publicada em 20/09/2022 às 14h17. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/cfm-publica-atualizacaodas-regras-para-reproducaoassistida-no-brasil/
  • 31
    Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2525 . Acesso em 25/05/2022.
  • 32
    Essa recomendação aparece também na ASRM ( Soderstrom-Anttila, 2016SODERSTROM-ANTTILA, Viveca et al. 2016. Surrogacy: outcomes for surrogate mothers, children and the resulting families—a systematic review. Human Reproduction Update, vol. 22, n. 2: 260–276. DOI: 10.1093/humupd/dmv046
    https://doi.org/10.1093/humupd/dmv046...
    ).
  • 33
    O código de ética médica foi aprovado em 27/09/2018 (no final do governo Temer), mas entrou em vigor 180 dias depois, no governo Jair Bolsonaro. Os embriões são citados apenas no capítulo III, artigo 15, que proíbe “criar embriões para investigação”, “criar embriões com finalidades de escolha de sexo, eugenia ou para originar híbridos ou quimeras”, mostrando intenção de restringir os embriões excedentes: a fertilização “não deve conduzir sistematicamente à ocorrência de embriões supranumerários”.
  • 34
    publicada após 2 anos e 4 meses da anterior de 2013. A resolução de 2013 foi movida principalmente pelo julgamento do STF de reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo com mesmo estatuto do casamento, o que já consta no 4º considerando, já a de 2015 basicamente especifica pontos deixados vagos na resolução anterior, sem alterações substantivas.
  • 35
    Nota 35: ver próxima página (23) No portal do CFM, consta o contato com o presidente e a lista de reivindicações apresentadas junto com o novo código de ética médica. Cf. “Ao apresentar novo Código de Ética Médica, CFM faz pedidos”“AO APRESENTAR novo Código de Ética Médica, CFM faz pedidos”. Portal CFM notícias. 16 abr 2019. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/ao-apresentar-novo-codigo-de-etica-medica-cfm-faz-pedidos-ao-presidente-jair-bolsonaro-em-nome-dos-medicos/. Acesso em 17 maio 2022.
    https://portal.cfm.org.br/noticias/ao-ap...
    . Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/ao-apresentar-novo-codigo-deetica-medica-cfm-faz-pedidosao-presidente-jair-bolsonaroem-nome-dos-medicos/ . Acesso em 17/05/2022. Durante a pandemia, reportagens jornalísticas comentaram da posição do CFM pró-Bolsonaro inclusive no tocante à prescrição de medicamentos comprovadamente ineficazes em nome da autonomia médica, o que contrastava com a crítica de diversas associações médicas. Tal foi o comparecimento do representante do CFM na CPI da Covid, um dos vice-presidentes do CFM e bolsonarista. Cf. Eduardo Gonçalves. Médico vicepresidente do Conselho Federal de Medicina é bolsonarista filiado ao PSL Emmanuel Fortes, do CFM, fez campanha por uso de cloroquina e tenta entrar para a política. O Globo, 9/10/2021GONÇALVES, Eduardo. 2021. “Médico vice-presidente do Conselho Federal de Medicina é bolsonarista filiado ao PSL”. O Globo, Rio de Janeiro, 9 out 2021. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/medico-vice-presidente-do-conselho-federal-de-medicina-bolsonarista-filiado-ao-psl-25231622 . Acesso em 19 maio 2022.
    https://oglobo.globo.com/politica/medico...
    . Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/medico-vice-presidentedo-conselho-federal-demedicina-bolsonaristafiliado-ao-psl-25231622 . Acesso em 19/05/2022. Em uma live de 7/05/2020, com publicação editada pelo portal de notícias Metrópoles, depois compartilhada na rede social Twitter por Fernando Haddad, o presidente do CFM fala do alinhamento da entidade com o governo Bolsonaro e com o Ministério da Saúde por ter atendido todas as reivindicações feitas, ressaltando haver “diálogo” (foi recebido 5 vezes em 1 ano e quatro meses de governo), além de externar críticas à presidente Dilma e ao Ministro Alexandre Padilha pela “popularização da medicina”: “Nós não vamos recuperar o dano do governo da presidente Dilma e do ministro Alexandre Padilha. Nós teremos aproximadamente um milhão e quinhentos mil médicos. É a popularização da medicina”. Disponível em: https://t.co/Bx4xFewjmU<https://twitter.com/Haddad_Fernando/status/1446535800817082373?s=20. Acesso em 19/05/2022.
  • 36
    A importância dos laços genéticos assumidos como verdade do parentesco também aparece em contexto distinto: a atitude de juízes exigindo a comprovação de parentesco pelo exame de DNA ( Fonseca, 2011FONSECA, Claudia. 2011. As novas tecnologias legais na produção da vida familiar: Antropologia, Direito e subjetividades. Civitas, vol. 11, n. 1: 8-23. DOI 10.15448/1984-7289.2011.1.9188
    https://doi.org/10.15448/1984-7289.2011....
    ) como fator acima de qualquer testemunho de laço social.
  • 37
    O inteiro teor do PL 120/2003 de autoria de Roberto Pessoa (na época PFL-CE) está disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/104774 Acesso em 5 jun. 2023.
  • 38
    O casal obteve óvulos de uma doadora anônima e contou com a colaboração da prima de um deles para a cessão de útero, como também conseguiu o registro duplo de paternidade para o filho pela Vara de Família. Cf, LINS, Letícia. “Casal obtém dupla paternidade inédita: empresários de PE, juntos há 15 anos, contaram com a ajuda de uma prima, que se ofereceu para ser barriga de aluguel”. O Globo, 31 mar. 2012LINS, Letícia. 2012. Casal obtém dupla paternidade inédita: empresários de PE, juntos há 15 anos, contaram com a ajuda de uma prima, que se ofereceu para ser barriga de aluguel. O Globo, Rio de Janeiro, 31 mar 2012, p. 18., O País, p. 18.
  • 39
    Cf. “O dia mais longo e emocionante das nossas vidas”. O Globo“O DIA mais longo e emocionante das nossas vidas”. 2022. O Globo. Rio de Janeiro, 26 fev. 2022, p. 10.. 26 fev. 2022, p. 10.
  • Financiamento:

    bolsa de produtividade em pesquisa nível 2 CNPq. Projeto Valores

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Contribuição de autoria:

não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2022
  • Aceito
    03 Abr 2023
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