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Pensar a mobilidade de religiões brasileiras: Global Trajectories of brazilian religion. Lusospheres.

OOSTERBAAN, Martijn; VAN DE KAMP, Linda; BAHIA, Joana. (org.). 2019. Global trajectories of Brazilian Religion. Lusospheres. Londres, Bloomsbury Publishing, 248 pp.

Parabenizo a recente publicação, em inglês, de um trabalho coletivo sobre a circulação transnacional de práticas e saberes religiosos, composto por dez artigos e uma introdução. Esta publicação, organizada por Martijn Oosterbaan, Linda van de Kamp e Joana BahiaOOSTERBAAN, Martijn; VAN DE KAMP, Linda e BAHIA Joana (org.). 2019. Global trajectories of Brazilian Religion. Lusospheres. Londres, Bloomsbury Publishing., foca o caso do Brasil e aborda alguns temas clássicos da antropologia da religião por meio de uma abordagem relevante, levando em conta, particularmente, o contexto eminentemente contemporâneo da mobilidade, possibilitado pela globalização.

O caso brasileiro é bastante perspicaz para pensar esses fenômenos de translocalidade religiosa. Por um lado, o país possui uma grande diversidade religiosa, oferecendo uma proliferação de práticas e representações constantemente renovadas inclusive por apropriações de elementos estrangeiros. Por outro, o Brasil também é um país de emigração de longa data. Culturas e religiões viajam, acompanham praticantes e seguidores, nos dois sentidos: para o Brasil e a partir dele. A geratividade, ou seja, as mudanças frequentemente conduzidas, é observada no país, mas também transportável. Não há, portanto, uma simples reprodução ou imitação de formas religiosas prévias, mas inovação e criatividade.

O subtítulo da obra, “lusosferas” (lusospheres), sugere a disseminação global de traços culturais e religiosos próprios da lusofonia. Os casos considerados no livro certamente dizem respeito ao Brasil, mas às vezes se fazem sentir influências lusófonas em sentido amplo. A lusofonia não se restringe às religiões brasileiras: estas, no entanto, contribuem em grande parte para o seu florescimento. As análises dizem respeito, de fato, aos vários fenômenos de translocalidade, mas também de ampliação ou transformação de localidades. Seria muito interessante aplicar este modelo às outras redes religiosas internacionais, de epicentros distintos.

Fora de seu país de origem, as religiões brasileiras discutidas no livro não exigem adesão plena, mas permitem a “navegação” (butinage). O conceito é definido na introdução do livro como um compromisso pessoal com uma multiplicidade de tradições religiosas, sem que uma delas seja dominante, ou que o indivíduo obedeça a dogmas específicos. As transformações pessoais e religiosas são consideradas nessa perspectiva: as religiões devem se adaptar a um novo contexto. O caso da União do Vegetal é relevante nesse sentido: no Brasil, é estritamente proibido que seus adeptos frequentem outras religiões. Era necessária uma acomodação ao novo público e esta proibição tornou-se obsoleta para os praticantes na Espanha, como argumentado no artigo de Joana Greganich (: 149), que integra a coletânea. O “butinage” é, acima de tudo, baseado no prazer. Greenfield (2001GREENFIELD, Sidney. 2001. “Population growth, industrialization and the proliferation of syncretised religions in Brazil”. In Greenfield, Sidney; Droogers, André. (org.), Reinventing religious: syncretism and Transformation in Africa and the Americas. Londres, Rowman and Littlefield Publishers, pp. 55-70.) falou de marketplace religioso, como uma estratégia de adaptação pessoal, da possibilidade ou mesmo da necessidade de participar de várias formas de rituais de cura. Descreve um contexto competitivo, no qual os indivíduos estão em busca de satisfações espirituais e materiais. O surgimento de novas formas religiosas, assim como a chegada de uma delas em um marketplace, exige adaptação.

Em um contexto transnacional, o turismo e a mídia desempenham um papel central na elaboração religiosa - pessoal ou estrutural - e são o tema da primeira parte do livro. Por meio de uma análise comparativa, o capítulo de Cristina Rocha discute o caso das igrejas evangélicas e a adesão de jovens brasileiros na Austrália, e do curandeiro brasileiro João de Deus entre os turistas. De acordo com Matan Shapiro, em “Appropriating Terra Santa”, terceiro capítulo da obra, muitas igrejas evangélicas se “judaizam” tomando emprestados elementos do Antigo Testamento, a fim de reivindicar autoridade e primazia. O autor descreve as “caravanas”, viagens turísticas religiosas organizadas em Israel, na origem de uma transformação gradual e relativa do povo brasileiro em povo escolhido. Em Angola, a neopentecostal Igreja Universal do Reino de Deus também se desenvolve com muitas referências a Israel, como apresentado por Claudia Swatowiski em seu retrato do estabelecimento de uma rede pentecostal transnacional.

A segunda parte desenvolve-se nas intersecções de temas como gênero, migração, sexualidade e religião. Identificações alternativas às representações genéricas de gênero e sexualidade são possibilitadas pela religião. A Metropolitan Community Church, igreja evangélica fundada em Los Angeles, defende os direitos humanos, a “inclusão radical” política e religiosa. Em Cuba, como mostra Aramis Silva, os pastores gays brasileiros participam da compreensão do lugar de cada um no mundo. No sexto capítulo, “Identity Reconstructions of Brazilian Women in Pentecostal Spaces in Portugal”, Téchio descreve que a posição e o papel dos pentecostais brasileiros permitem abordar a representação da mulher brasileira. O conteúdo sexual e erótico da lusofonia é questionado por Joana Bahia, especificamente por meio da ressemantização da Pombagira, entidade da umbanda geralmente associada à prostituição. Nos Países Baixos, Andrea Martins evoca uma Igreja Católica carismática que promove a integração e a busca de sentido para as mulheres brasileiras.

Por fim, a terceira parte é dedicada às práticas religiosas no contexto da transnacionalização. Massonnier levanta a hipótese de que a difusão da Umbanda no Uruguai é fruto de uma cultura fronteiriça com características integradoras. Na Espanha, o Santo Daime e a União do Vegetal, duas religiões ayahuasqueiras analisadas por Greganich, tiveram que se adaptar a esse novo contexto, seguindo processos de desterritorialização e reterritorialização. Finalmente, na Alemanha, a capoeira do grupo Irmãos Guerreiros é anexada a um centro de Candomblé, conforme o capítulo de Celso de Brito, que também sustenta que lá, os praticantes se apropriam de seus preceitos e descobrem a ancestralidade e a transcendentalidade dessa prática cultural.

Os diferentes temas tratados no livro só poderiam ser abordados após uma renovação metodológica. As técnicas tradicionais de investigação etnográfica parecem de fato obsoletas diante dessas mobilidades. As etnografias devem, neste contexto, ser “multi-situadas” (Marcus, 1995MARCUS, George E. 1995. Ethnography in/of the World System: The emergence of multi-sited ethnography. Annual Review of Anthropology, n. 24: 95-117.). Alguns artigos fazem mais uso de uma metodologia sociológica e de dados coletados nas redes sociais. A maioria, no entanto, aceitou o desafio etnográfico. Para peregrinações evangélicas a Israel, Shapiro seguiu repetidamente as caravanas. Os protagonistas mudam, não permitindo o estabelecimento de relações íntimas e de longo prazo, mas os discursos, ambições, intenções, processos envolvidos, servem como fio condutor. Brito, por sua vez, tem viajado por várias capitais europeias para participar em eventos de capoeira organizados pelo grupo alemão Irmãos Guerreiros, durante os quais o babalorixá Muralemsibe intervém para incutir os valores de ancestralidade e espiritualidade ligados a esta prática cultural. Para compreender as transformações e as apostas da transnacionalização, muitas vezes é necessário ter um conhecimento detalhado tanto do que era a prática no início, quanto da maneira como ela se desenvolve em seu novo ambiente. Neste contexto de religiões multilocais, o desafio etnográfico também pode ser colocado de forma mais clássica, como quando Téchio admite que “entrar no mundo da Igreja Pentecostal de Deus é Amor é um desafio” (: 87).

Vários capítulos deste livro abordam o tema do corpo, clássico da antropologia das religiões. Levar em conta a mobilidade religiosa permite considerá-la sob um novo ângulo. Téchio mostra que, em Portugal, as mulheres pentecostais brasileiras refletem uma imagem oposta àquela que lhes costuma ser atribuída no país. Para essas devotas, o corpo deve ser escondido, até mesmo “desprezado”, o que contraria a imagem que os portugueses têm da mulher brasileira, criando assim, novas dinâmicas relacionais e modificando imaginações. Essas mulheres ganham capital simbólico a partir da negação de seus corpos, exatamente o contrário das travestis e mães de santo discutidas no capítulo de Joana Bahia. Estas últimas também são reconhecidas em todos os lugares por sua vestimenta, linguagem e gestos. As prostitutas expõem seus corpos, dos quais cuidam com o maior zelo, para o mercado sexual, seguindo para isso os conselhos e preceitos da Pombagira. No contexto ibérico, uma travesti pode se tornar Mãe ou Pai de Santo, o que é muito mais raro no Brasil: segundo Bahia, poucos terreiros no Brasil aceitam travestis como líderes.

Na Espanha, conforme descreve Graganich, a ayahuasca surgiu recentemente. Esta bebida, que causa alucinações visuais, modifica a relação com o corpo, algo que muitos turistas na América do Sul procuram ativamente (ver por exemplo Amselle, 2014AMSELLE, Jean-Loup. 2014. Le tourisme chamanique en Amazonie., Études, n. 2 : 33-42. Disponível em: Disponível em: https://www.cairn.info/revue-etudes-2014-2-page-33.htm , acesso em 29 nov. 2022
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), mas também praticantes na Espanha. Durante os eventos de capoeira, o trabalho do babalorixá é conscientizar os seguidores sobre o aspecto transcendente dessa prática. As “rodas de capoeira” ocorrem frequentemente durante as cerimônias do Candomblé, o que permite a aquisição de uma percepção distinta. Transmite-se a noção de mandinga, que valoriza a reelaboração da relação entre sensações (corpo) e sentidos (mente). O desenvolvimento da mandinga consiste em uma profunda modificação da percepção corporal. Ao juntá-lo ao Candomblé, os corpos dos capoeristas europeus são preparados para experiências transcendentais. As viagens à Terra Prometida também mudam o corpo das pessoas. Os turistas são purificados durante as “bênçãos divinas”, diz Shapiro. Além disso, os efeitos desses rituais não se restringem ao espaço-tempo da estadia, pois repercutem após o retorno ao Brasil. Estas viagens são ocasiões para a atribuição de novos marcadores simbólicos de identidade: são distribuídos certificados de residência e frequentemente os padres têm novos títulos.

Rituais e religiosidade na migração também alimentam o debate sobre integração pessoal e bem-estar. Vários capítulos sublinham de maneira interessante a importância dos espaços religiosos como lugares de performance que criam pertencimento. Não só valores comuns, mas também emoções específicas são compartilhadas. Igrejas e movimentos religiosos oferecem um espaço simbólico e material que promove rapidamente a adaptação social, por meio da integração em uma rede pré-existente. A participação em uma comunidade religiosa permite o surgimento de um sentimento de “lar” (home) e não apenas de “casa” (house). Martins sustenta a hipótese de que a transnacionalização dos movimentos religiosos envolve uma dinâmica de produção e reprodução de normas simbólicas, tornando possível vincular a terra de acolhimento com a terra de origem.

A presença de uma Igreja Católica carismática nos Países Baixos ajuda as mulheres migrantes a desenvolver um sentimento de pertencimento, encontrando nesta igreja o apoio moral que podem necessitar. Muitos discursos e práticas dizem respeito à produção de um lar. Segundo Shapiro, a participação pessoal em viagens organizadas pela Igreja na Terra Santa permite, além da partilha de valores comuns, a de emoções particulares e das confidências íntimas. Swatowiski descreve uma rede pentecostal internacional, ideia encontrada também no capítulo de Silva, que revela uma estrutura institucional policêntrica, mas que cria uma comunidade de sentido e um sentimento de pertencimento familiar. Trata-se, então, de uma família escolhida, cujos membros compartilham valores, convicções, formas de falar, formas de interpretar os acontecimentos ou mesmo de liderar a luta. No Candomblé, conforme Bahia e Brito, o vocabulário do parentesco é institucionalizado: os especialistas rituais são os pais ou mães de santos, enquanto os seguidores são os filhos. Nesse contexto, trata-se de uma relação cósmica, que pode ser acionada em centros internacionais de candomblé.

Existem várias razões pelas quais eu recomendo a leitura deste livro. Em primeiro lugar, ele leva em consideração a mobilidade religiosa, permitindo a renovação de temas clássicos. Além disso, inspira reflexões sobre os vários temasabordados, que vão além das poucas palavras que pude dizer aqui e que deixo ao leitor descobrir por si mesmo. É provável que a coletânea contribua para o desenvolvimento de reflexões metodológicas que o contexto das novas mobilidades exige, mas também de análises cada vez mais refinadas da propagação religiosa, dos deslocamentos de rituais, práticas, objetos e de sua ressemantização ou transformações posteriores.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • AMSELLE, Jean-Loup. 2014. Le tourisme chamanique en Amazonie., Études, n. 2 : 33-42. Disponível em: Disponível em: https://www.cairn.info/revue-etudes-2014-2-page-33.htm , acesso em 29 nov. 2022
    » https://www.cairn.info/revue-etudes-2014-2-page-33.htm
  • GREENFIELD, Sidney. 2001. “Population growth, industrialization and the proliferation of syncretised religions in Brazil”. In Greenfield, Sidney; Droogers, André. (org.), Reinventing religious: syncretism and Transformation in Africa and the Americas. Londres, Rowman and Littlefield Publishers, pp. 55-70.
  • MARCUS, George E. 1995. Ethnography in/of the World System: The emergence of multi-sited ethnography. Annual Review of Anthropology, n. 24: 95-117.
  • OOSTERBAAN, Martijn; VAN DE KAMP, Linda e BAHIA Joana (org.). 2019. Global trajectories of Brazilian Religion. Lusospheres. Londres, Bloomsbury Publishing.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023
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