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Ramadan, 2021. Às beduínas de nossas etnografias - uma leitura de A escrita dos mundos de mulheres

Abu-Lughod, Lila. . A escrita dos mundos de mulheres - histórias beduínas. Rio de Janeiro, Papéis Selvagens. 2020.

Há mais de vinte anos pesquiso comunidades islâmicas e há mais de dez anos sou docente no Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Aprendi a viver em mundos diversos: dos muçulmanos, dos não muçulmanos, dos antropólogos, dos psicólogos e dos outros; dos campi da USP da cidade e do interior. Se me perguntarem qual dos livros de Lila Abu-Lughod gosto mais só saberia responder com um poema beduíno, quando as mães respondem de qual filho gostam mais.

O que está ausente, até voltar O que está doente, até se recuperar É o que está pequeno, até morrer.

Neste ínterim, peço desculpas ao leitor, porque estou longe dos meus livros (filhos) de Lila Abu-Lughod, neste momento pandêmico. Escrevo em São Paulo, e meus livros, textos, anotações em sua maioria estão em Ribeirão Preto. Mas aceitei o desafio de escrever como quem seleciona frames da memória, passagens, contextos, por isso, os erros, as imprecisões são minhas como em um texto desbotado, cheia de elipses suspeitas, que toda antropóloga sabe bem como são. Preciso frisar o A da antropólogA, porque neste mundo das mulheres homens não entram. Sociedades islâmicas são homosociais e os espaços são fortemente marcados pelo gênero. Um antropólogO pode ter autorização para entrar, mas não vai se sentar com elas, e nem permanecerá em conversas prolongadas. Por outro lado, nós antropólogas, adentramos ao “mundo dos homens” com nossas respectivas “senhas”, quase que rituais de passagem para adentrar esses espaços sem que sejamos interpeladas ou mal interpretadas, mas se há uma vantagem nesses espaços religiosos é o fato de ser mulher. Aliás, antropólogas também fazem parte das mulheres a serem “protegidas”.

Fazer uma resenha crítica do livro A escrita dos mundos de mulheres é como mergulhar em um mundo particular de todas as antropólogas que se aventuraram a conhecer este outro mundo singular de mulheres, tão diverso, mas tão igual ao nosso. Trago na bagagem o Marrocos, a Turquia, o Irã, a Arábia Saudita e sei bem o que é estar rodeada de mulheres, que nunca vi, mas no instante em que nossos olhares se encontraram uma força quase que magnética nos atraiu. Leio Lila, como se estivesse vendo Hajja Lalla Ellou entoando suas cantigas religiosas, sobre o tapete e rodeada de mulheres, chá, pão e sorrisos em Agadir, no Marrocos, prontas para subirmos a montanha para um lindo ritual de várias Tariqas Sufi.1 1 Tariqa significa caminho, confraria. Há várias confrarias Sufi (caminho místico do Islam). Neste universo tudo tem cheiro, cor, som e delicadezas.

O primeiro livro que li de Lila foi “Veiled Sentiments”. Lila, permitam-me chama-la assim, e não com o nome de família Abu-Lughod. Em famílias árabes-islâmica, os filhos levam o nome (sobrenome) do pai, a mulher quando se casa não recebe o nome do marido, continua com o sobrenome paterno. Abu significa pai de Lughod. O sobrenome marca a tribo a qual pertence, região, profissão, etc. Sabendo da força que tem o sobrenome, e o lugar de uma mulher solteira em uma sociedade marcadamente masculina no espaço público e feminina no privado, o pai de Lila não a “deixou” ir para sua primeira pesquisa de campo desacompanhada. Quem leu Veiled Sentiments. Honor and Poetry in a Bedouin Society ([1986], 1999_____ Veiled Sentiments: Honor and Poetry in a Bedouin Society. Berkeley: University of California Press, 1999.), o livro que me apresentou à autora, sabe do que estou dizendo. Imagine uma antropóloga pronta para seu trabalho de campo entre os beduínos do Egito e seu pai a convence que sua presença é imprescindível. E é. É preciso dizer que ela tem um pai, que este pai tem um pai, e que a tradição se perpetua deste modo, a ponto de em algum momento a autora reproduzir a fala de uma de suas interlocutoras: enquanto a menina tiver pai, ela não sofre.

Para A escrita dos mundos das mulheres - historias beduínas, Lila vai novamente acompanhada do pai e agora também do marido sinalizando que tem uma família, como as mulheres que acompanha há tanto tempo. O gesto da antropóloga é carregado de simbolismo que os muçulmanos compreendem bem: a família, o parentesco, os presentes, os reencontros, a hospitalidade. A reciprocidade é algo previsto nos comportamentos islâmicos, mesmo daqueles que não são praticantes. Os presentes levados por Lila e o fato dela chegar acompanhada da família, me fizeram lembrar o tempo em que eu ia para o Eid (Festa) e as mulheres me mandavam buscar as crianças.

- Como assim você não trouxe seus filhos? E me faziam ligar para o pai para trazê-los.

A família é seu porto seguro. Em um dos relatos marcantes, Gateefa se entristece quando Azza a acusa de não ter família, ser órfã, e esta olha para o seu entorno e diz: esta é a minha família. Se a família é base de tudo, a honra e a modéstia estão explícitas em sociedades beduínas e em muitas sociedades muçulmanas. A autora (1999_____ Veiled Sentiments: Honor and Poetry in a Bedouin Society. Berkeley: University of California Press, 1999.) em sua etnografia dos Ali´Awlad no Egito, demonstra a participação das mulheres na promoção do valor de honra através do conceito de hasham, ou vergonha, que seria a honra das mulheres. Ela descreve o hasham como uma forma de ‘auto-controle’; é uma ação voluntária que elimina a necessidade do outro de demonstrar a sua força. O uso do lenço é muitas vezes o exemplo da não exposição (autocontrole) demonstrado como modéstia e por conseguinte a força que “não se revela”. A força feminina é latif, sútil. Latif é um dos 99 nomes de Deus (Allah). Não é necessário dizer quem manda, como os homens, porque onde estão as mulheres a sutileza aparece e o poder muitas vezes é sútil. Aprendi isso no meu campo (Barbosa-Ferreira 2001BARBOSA-FERREIRA, F. C. Imagem oculta: reflexões sobre a relação dos muçulmanos com as imagens fotográficas. 2001. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.; 2007BARBOSA-FERREIRA, F. C. Entre arabescos, luas e tâmaras: performances islâmicas em São Paulo. 2007. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.).

Compartilho o pensamento de Lila Abu-Lughod (2002)_____ Do Muslim Women Really need saving? American Anthropologist. HVol 104. n 3. September 2002., quando diz que para retratar este universo é preciso não cair nos riscos de explicações culturais sobre as diferenças. O risco é em demasia quando se trata de falar de mulher muçulmana. Ela argumenta, quando nos referimos às minorias negras ou de classe trabalhadora que esses grupos sofrem de violência estrutural, mas quando o assunto é mulheres muçulmanas o foco está nas diferenças “culturais” (Abu-Lughod, 2002_____ Do Muslim Women Really need saving? American Anthropologist. HVol 104. n 3. September 2002., p.789). Por isso, segundo a autora, é necessário pensar sobre o que nos permite, como antropólogAs, estudar determinadas comunidades, olhando para quem estava lá antes de nós e quem continua lá hoje. E através dessa análise é imprescindível perceber que as diferenças entre “nós” e “eles” são na verdade produtos de longas histórias de interações muitas vezes colonialistas. O discurso de Barbara Bush2 2 Interessante que escrevo esta resenha no dia que o atual presidente Americano Joe Biden diz que vai retirar tropas do Afeganistão, em 13 de abril de 2021. é um bom exemplo deste colonialismo quando se refere às burcas de mulheres no Afeganistão:

Graças a nossas vitórias militares recentes no Afeganistão, as mulheres não são mais encarceradas nas suas casas. Podem escutar música e educar suas filhas sem medo de castigo. A luta contra o terrorismo também é uma luta pelos direitos e a dignidade de mulheres3 3 ABU-LUGHOD, Lila. Do Muslim women really need saving: anthropological reflections on cultural relativism and its others. American Anthropologist 104(3), 2002, p.784.

Aqui a ideia de “salvar” mulheres muçulmanas ecoa nas missões civilizadoras de agentes colonizadores e de missionários: “pode-se ouvir hoje ecos sinistros de suas virtuosas metas, apesar da linguagem ser laica e do apelo ser não a Jesus, mas aos direitos humanos ou ao ocidente liberal” (Abu-Lughod, 2002_____ Do Muslim Women Really need saving? American Anthropologist. HVol 104. n 3. September 2002., p. 789).

A imagem da “opressão” da mulher afegã coberta pela burca, sendo a vestimenta o instrumento de opressão, “e não a destruição provocada por vinte anos de guerra subsidiada pelos Estados Unidos da América” (Barbosa-Ferreira, Francirosy 2013BARBOSA-FERREIRA, Francirosy, C. Diálogos sobre o uso de véu (hijab): Empoderamento, Identidade e Religiosidade. Perspectivas. São Paulo. V. 43. Jan/junho 2013., p. 186) que mobilizou a campanha do Feminist Majority contra o Taliban. Uma campanha criticada por Abu-Lughod (2002)_____ Do Muslim Women Really need saving? American Anthropologist. HVol 104. n 3. September 2002. e Saba Mahmood (2006MAHMOOD, Saba. Teoria Feminista, Agência e Sujeito Liberatório: Algumas Reflexões sobre o Revivalismo Islâmico no Egipto. Revista Etnográfica. Vol. X, 1, 2006, pp.121-158.), pois não há uma crítica contundente ao imperialismo americano que invade povos, impõe os seus valores, perpetuando uma concepção “salvacionista”. Algo muito mais perverso e ainda mais violento ocorria quando soldados americanos invadiram o Iraque em 2003 e estupraram mulheres muçulmanas, como bem retratou Carmen Rial (2007RIAL, Carmem. Guerra de imagens e imagens da guerra: estupro e sacrifício na Guerra do Iraque. In: Revista de Estudos Feministas, v.15. n.1. 2007.). Lila considera que a ideia salvacionista de mulheres criada por estas campanhas de culturas como distintas faz parte de uma empreitada colonial (1998_____ The Marriage of Feminism and Islamism in Egypt: Selective Repudiation as a Dynamic of Postcolonial Cultural Politics. In: ABU-LUGHOD (ed.) Remaking Women: Feminism and Modernity in the Middle East. New Jersey: Princeton University Press, 1998.).

É com este repertório de base que adentro a etnografia crítica proposta por Lila que aborda segundo palavras da autora:

...as generalizações antropológicas padrão sobre estrutura social e cultura; as interpretações feministas comuns sobre as relações de gênero nas sociedades não ocidentais; e as percepções amplamente compartilhadas da sociedade árabe muçulmana. É neste sentido que esta é uma etnografia crítica (2020, p.53).

Para compreender esta etnografia crítica, precisamos lidar com a ideia de que a antropóloga vive em dois mundos, as fronteiras entre o self e outro e isso acarreta uma potência em dizer que as halfies (pessoas de origens mistas ou que se situam entre dois mundos) precisam ser vistas, ouvidas e compreendidas. Ser antropóloga, feminista e estudar muçulmanas; ser muçulmana, feminista e estudar muçulmanas tem sido um exercício de duplo pertencimento. Com esses “experimentos” todos, Lila introduz sua etnografia falando de suas escolhas etnográficas, do seu lugar no campo, da sua etnografia crítica e das relações construídas com os beduínos, agora sendo recontada em outra perspectiva.

Leitores desavisados, talvez, não prestem atenção às epígrafes que a autora usa em cada capítulo. Alguns são citações de um versículo (aya) do Alcorão, outras são hadices (hadiths) do Profeta Muhammad (Que a Paz de Deus esteja com ele4 4 “Todo muçulmano ao falar ou escrever o nome do profeta repete esta expressão ou SAAS.. ). Muitas pessoas não sabem, mas a Sharia é composta do Alcorão e a Sunnah do Profeta SAAS. Sharia significa caminho que leva às águas, no sentido de que as palavras de Deus e os ensinamentos do Profeta limpam os muçulmanos; por sua vez, Alcorão é o texto sagrado revelado ao profeta Muhammad (SAAS) pelo anjo Gabriel durante 23 anos; e os hadices são ditos, falas e o comportamento do Profeta (SAAS) que foram registrados pelos seus companheiros próximos e distantes, por isso, há uma cadeia de transmissão e os hadices (snad) esses podem ser fortes (verídicos), medianos e fracos, depende de quem o narrou e da sua proximidade com o mensageiro (Barbosa, 2017BARBOSA. Francirosy, C. Performances islâmicas em São Paulo: entre arabescos, luas e tâmaras. São Paulo: Editora Terceira Via, 2017.).

No primeiro capítulo, sobre Patrilininearidade, o que abre o texto é um hadice. Ele enaltece o lugar da mãe na sociedade islâmica, é ela a quem os filhos devem obedecer em todos os sentidos. Interessante que o capítulo se chama patrilinearidade indicando que a estrutura familiar tem o pai como a centralidade do poder, entretanto, o hadice na abertura sinaliza que se a organização familiar é patrilinear, mas nas camadas internas são as mães que têm a força sutil (latif), são elas que fazem o cotidiano acontecer. Os conflitos de mulheres existem em várias camadas, mas elas são capazes de se reconhecer e de cuidar em momentos que só as mulheres entendem.

Lila inicia por contar a história de Migdim - a velha mãe - que de imediato sentencia: “quando a gente envelhece, a gente só pensa em Deus, em rezar, e na unidade de Deus”. Para Migdim, o que passou, passou. Mas as histórias da maternagem se estendem nas conversas. As mulheres compreendem que quando dão à luz a mulher está próxima de Deus. Muito comum, quando a gente ouve pelo sertão profundo do Brasil a expressão: que você tenha uma boa hora! A hora do parto é sempre a hora da incerteza. E por isso uma sentencia: Meu filho deveria respeitar meus desejos... ele é meu filho, saiu de dentro de mim.

As mães têm as dores todas, e muitas preferem os meninos, porque esses ficam no grupo, as meninas vão embora, mas reconhecem que as mulheres são melhores para mães, por isso, preferem que se case com primos, assim estarão sempre perto de suas mães. Se o leitor soubesse que na língua árabe há quatro tipos de primos, não basta dizer minha prima ou primo, e sim: meu/minha primo(a) filho(a) do meu tio paterno/materno. Não ficam de fora também as conversas sobre sexualidade de mulheres, inclusive de mulheres velhas. O desejo sexual não é tabu no Islam, o tabu está quando ele não é realizado dentro do casamento (Barbosa, Francirosy; Paiva, Camila 2017BARBOSA, Francirosy Campos and PAIVA, Camila Motta. Sexo/prazer no Islam é devoção. Relig. soc. [online]. 2017, vol.37, n.3, pp.198-223. ISSN 1984-0438. https://doi.org/10.1590/0100-85872017v37n3cap08.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
).

Seguimos para o capítulo da Poliginia, aqui uma aya (versículo) do Alcorão tem destaque (4:3) imprimindo a justiça que deve haver entre as mulheres, quando o homem deseja ter mais de uma esposa. A instituição da poligamia no Islam surge para organizar a sociedade onde mulheres tinham perdido seus maridos e/ou pais e não poderiam ficar desassistidas, entretanto, a regra alcorânica é clara na equidade entre elas. Hoje é consenso que a primeira esposa aprove ou não esta decisão. Para nós, ocidentais, Sul - Sul, parece muito estranho que seja (im)possível a convivência entre mulheres, crianças e um marido, mas sobre isso podemos ler um pouco mais no livro da própria autora Veiled Sentiments, e também em Sonho de Transgressão de Fatima Mernissi. Este capítulo, por sua vez, aborda uma narrativa com vários pontos de vista de uma primeira esposa e seus entornos.

O marido Sagr (ou Haj Sagr)5 5 Haj (peregrino) para homem e Hajja para mulher é o adjetivo que muitos usam depois de fazer o Hajj (peregrinação à Meca), quinto pilar da prática no Islam. Escrevi uma autoetnografia sobre este ritual Hajja, Hajja - a experiência de peregrinar (Barbosa, 2021). , segundo filho de Migdim, é casado com Gateefa, Safyaa e Azza. A convivência entre elas não era boa, cheia de conflitos e disputas, entretanto, em momento onde a natureza impera, - o nascimento de uma criança -, elas se reconhecem nas suas experiências femininas. Dar à luz é tão difícil quanto a guerra, sentenciam. A convivência de anos vivendo juntas trouxe a ela o espaço da intimidade e os vínculos costurados em momentos como esse. Azza a terceira esposa não era aceita pela sogra, por não usar véu e nem o cinto vermelho que denuncia ser uma mulher casada. Não era como uma beduína. Essas mulheres sabiam da inconveniência da demonstração de afeto, e se acostumavam a estar mais entre elas, do que com o marido.

O terceiro capítulo Reprodução - o paraíso está nos pés das mães, mais um hadice do Profeta SAAS, o qual credita à mãe a educação dos filhos, se o pai é o provedor, aquele que se responsabiliza pelas despesas da casa, a mãe é aquela que fará dos seus filhos grandes homens ou mulheres. A maternidade vista por várias perspectivas é revelada neste capítulo. A centralidade da importância da maternidade, da mãe, dos valores atribuídos ao nascimento de um menino, afinal se o grupo é patrilinear nada mais evidente que a necessidade de que nasçam meninos, pois assim, o nome de família será perpetuado. Gateefa afirma: Meninas e meninos são iguais perante Deus, algumas filhas valem mais que mil homens. No capítulo vemos a busca incessante por ter filhos, praticamente uma obrigação da mulher. Um repertório de simpatias para engravidar, e depois para evitar que as crianças recebam mal olhado enchem a narrativa de histórias singulares que reforçam a proteção do recém-nascido, da mãe no pós-parto.

Passamos para o capítulo - O casamento com o primo paralelo patrilateral. E novamente um versículo do alcorão abre o capítulo falando da regra de casamento. Interessante que ela repete justamente a surata das Mulheres - An Nissa. É o capítulo no qual a centralidade do casamento é fundamental na estrutura religiosa islâmica. Orientei alguns trabalhos em que o tema casamento e sexualidade apresentam um eixo estrutural (Pasqualin, Flávia 2018PASQUALIN, Flávia. A. O (des)encanto do casamento intercultural: brasileiras casadas com muçulmanos estrangeiros. Tese de doutorado em Psicologia. FFCLRP/USP/2018.). E por que gostam tanto de casamento essas meninas? Talvez, porque seja o momento que a sociedade muda, se transforma por meio das canções entoadas pelas as mulheres, as recitações dos poemas, e porque abre para o espaço do universo que elas conhecem bem: cuidar uma das outras, das crianças, do marido. Este terreno é de domínio exclusivo das mulheres, as festas de hena (Pasqualin, Flávia 2018PASQUALIN, Flávia. A. O (des)encanto do casamento intercultural: brasileiras casadas com muçulmanos estrangeiros. Tese de doutorado em Psicologia. FFCLRP/USP/2018.) sempre animadas, são aqueles momentos de alegrias e de revelações trocadas pelos poemas/músicas. O dote, o enxoval, as cantigas este é o momento no qual mulheres se sobressaem.

Como uma lua crescente em uma noite sem nuvens A honra da nossa querida aparece...

No último capítulo voltamos à temática que entrelaça a vida de mulheres e homens beduínos, mas podemos dizer que isso extrapola a aldeia ou a “colônia” como costumo conversar com as minhas interlocutoras de campo: Honra e vergonha. No início do texto tratei da acepção de honra e vergonha compreendida por Lila em seus estudos. A abertura com a surata Nur (Luz): “Diga aos homens que creem que devem abaixar o olhar e manter o recato...” durante anos fui aprendendo as regras de comportamento islâmico, como conversar com homens e mulheres. O significado de estar só com um homem onde não há presença de outras pessoas. Às vezes era-me perturbador conversar com o Sheik que desviava do meu olhar o tempo todo, como se olhasse para um ponto que não existia. A carta de Kamla para Lila relatando a vida entre ser beduína e estar fora da tribo nos posiciona como halfies em nosso campo de pesquisa e na vida, assim como ela, diz em seu relato tomada em voz alta, e que de forma singular une presente e passado.

“Ei, Kamla, então você também sabe fiar?”. Ela dera uma risada. “sim, eu posso ser as duas coisas. Se for preciso ser urbanizada, eu sou. E se for preciso ser beduína, também sei”.

Nossas etnografias são permeadas deste passado-presente onde beduínas saem do seu mundo particular para fora do grupo. Muitas vezes, é a escola que traz novos contornos, as novelas radiofônicas egípcias tão famosas, mas o certo mesmo é que a cultura é movimento, não está congelada, e estar em campo nos mobiliza a perceber mudanças, que não dependem de nós, mas da percepção de quem as vive. A menina que aprende a ler ganha o mundo, passa a sonhar para fora da tribo, mas sabe a importância das tradições em sua vida. Confesso que me emociono na página 265, quando Kamla relata o que quer ver preservado da vida beduína: a obediência às tradições do Profeta no topo da lista dá o tom de que quer permanecer na sunnah, a generosidade, a hospitalidade, os laços de parentesco, em resumo, posso adentrar um outro mundo, secular, com outras possibilidades de ver, mas sem perder a essência tão marcante de quem sou: uma mulher muçulmana e beduína.

Por fim, finalizo com os poemas escolhidos por Lila (p.273) para Kamla, mas vale a pena conferir no livro As transcrições de poemas e canções árabes em inglês e árabe transliterado.

O pai dela tem um bom nome E aqueles que vierem se casar encontrarão a felicidade... A manhã dela é abençoada Ela conseguiu o que queria e foi honrada... Vizinhos, venham dizer adeus Uma gazela da nossa terra já vai partir.

Por fim, escrevi várias vezes Lila (mas se lê Laila), o sobrenome conto pessoalmente, narrando mais histórias de beduínas.

REFERÊNCIAS

  • ABU-LUGHOD, Lila. (ed.) Remaking Women: Feminism and Modernity in the Middle East. New Jersey: Princeton University Press, 1998.
  • _____ The Marriage of Feminism and Islamism in Egypt: Selective Repudiation as a Dynamic of Postcolonial Cultural Politics. In: ABU-LUGHOD (ed.) Remaking Women: Feminism and Modernity in the Middle East. New Jersey: Princeton University Press, 1998.
  • _____ Do Muslim Women Really need saving? American Anthropologist. HVol 104. n 3. September 2002.
  • _____ Veiled Sentiments: Honor and Poetry in a Bedouin Society. Berkeley: University of California Press, 1999.
  • BARBOSA-FERREIRA, F. C. Imagem oculta: reflexões sobre a relação dos muçulmanos com as imagens fotográficas. 2001. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
  • BARBOSA-FERREIRA, F. C. Entre arabescos, luas e tâmaras: performances islâmicas em São Paulo. 2007. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
  • BARBOSA. Francirosy, C. Performances islâmicas em São Paulo: entre arabescos, luas e tâmaras. São Paulo: Editora Terceira Via, 2017.
  • BARBOSA-FERREIRA, Francirosy, C. Diálogos sobre o uso de véu (hijab): Empoderamento, Identidade e Religiosidade. Perspectivas. São Paulo. V. 43. Jan/junho 2013.
  • BARBOSA, Francirosy Campos and PAIVA, Camila Motta. Sexo/prazer no Islam é devoção. Relig. soc. [online]. 2017, vol.37, n.3, pp.198-223. ISSN 1984-0438. https://doi.org/10.1590/0100-85872017v37n3cap08.
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/0100-85872017v37n3cap08
  • PASQUALIN, Flávia. A. O (des)encanto do casamento intercultural: brasileiras casadas com muçulmanos estrangeiros. Tese de doutorado em Psicologia. FFCLRP/USP/2018.
  • MAHMOOD, Saba. Teoria Feminista, Agência e Sujeito Liberatório: Algumas Reflexões sobre o Revivalismo Islâmico no Egipto. Revista Etnográfica. Vol. X, 1, 2006, pp.121-158.
  • RIAL, Carmem. Guerra de imagens e imagens da guerra: estupro e sacrifício na Guerra do Iraque. In: Revista de Estudos Feministas, v.15. n.1. 2007.
  • 1
    Tariqa significa caminho, confraria. Há várias confrarias Sufi (caminho místico do Islam).
  • 2
    Interessante que escrevo esta resenha no dia que o atual presidente Americano Joe Biden diz que vai retirar tropas do Afeganistão, em 13 de abril de 2021.
  • 3
    ABU-LUGHOD, Lila. Do Muslim women really need saving: anthropological reflections on cultural relativism and its others. American Anthropologist 104(3), 2002, p.784.
  • 4
    “Todo muçulmano ao falar ou escrever o nome do profeta repete esta expressão ou SAAS..
  • 5
    Haj (peregrino) para homem e Hajja para mulher é o adjetivo que muitos usam depois de fazer o Hajj (peregrinação à Meca), quinto pilar da prática no Islam. Escrevi uma autoetnografia sobre este ritual Hajja, Hajja - a experiência de peregrinar (Barbosa, 2021).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023
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