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"Expedição portuguesa ao Muatiânvua" como fonte para a história social dos grupos de carregadores africanos do comércio de longa distância na África centro-ocidental* * Este artigo se baseia na minha dissertação de mestrado Barganhando sobrevivências: os trabalhadores centro-africanos da expedição de Henrique de Carvalho a Lunda (1884-1888), orientada pela profa. dra. Maria Cristina Wissenbach, Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo, 2010, que contou com bolsa Fapesp.

"Portuguese Expedition to MuAtiânvua" as a source for the social history of groups of African porters of long distance trade in western central Africa

Resumos

O objetivo deste artigo é analisar os espaços e os agentes africanos descritos na obra Expedição portuguesa ao Muatiânvua, de Henrique de Carvalho. Considerando o discurso civilizacional de fim de século oitocentista presente na obra, pretendemos argumentar que tais descrições dos trajetos da expedição, por coincidirem com as rotas do comércio regional e por serem espaços de atuação de diferentes carregadores africanos, podem ser utilizadas como fonte da história social do comércio de longa distância da África centro-ocidental.

Carregadores africanos; comércio de longa distância; Henrique de Carvalho


The objective of this paper is to analyze the spaces and the African agents described in Henrique de Carvalho's Expedição portuguesa ao Muatiânvua. Considering the civilizational discourse of late nineteenth century, we intend to argue that such descriptions of the expedition routes, because they coincide with the regional trade routes and were performance spaces of different African porters, can be used as a source of social history of long-distance trade of western central Africa.

African porters; long distance trade; Henrique de Carvalho


Entre os anos de 1884 e 1888, o militar português Henrique Augusto Dias de Carvalho chefiou uma expedição que partiu de Luanda e atingiu a mussumba (capital) da Lunda, na África centro-ocidental, governada pelo Muatiânvua. Levou consigo vários objetivos, em parte determinados pelos interesses dos poderes governamentais de Lisboa, em parte estimulado por suas aspirações de saber científico.

Produzida a partir desta viagem, a obra Expedição portuguesa ao Muatiânvua 1884-1888 é composta de oito volumes, sendo que quatro deles referem-se à narrativa da viagem, outro corresponde à história e etnografia da Lunda, um sexto sobre a língua lunda e outro ainda sobre meteorologia, clima e colonização portuguesa em Angola. Pertence a ela ainda o volume de autoria do farmacêutico e subchefe da viagem Sisenando Marques que, conforme o título, trata dos "climas e das producções das terras de Malange à Lunda".

Além desses oito volumes, existe o álbum de fotografias tiradas pelo terceiro chefe da expedição, o capitão Sertório de Aguiar, e com legendas e comentários de Henrique de Carvalho, a partir do qual foram produzidas as inúmeras gravuras publicadas nos oito volumes.1 1 Ver, no final do artigo, a referência completa dos volumes supracitados.

Henrique de Carvalho justificou o valor científico e político de todos esses volumes na carta-dedicatória ao ministro da Marinha e Ultramar, Manuel Pinheiro Chagas, que abre o primeiro volume da Descripção:

Todas as investigações e estudos a que procedeu a Expedição foram além do que no seu inicio se podia suppor; (...) mas ainda se alargou o campo em que essas investigações e estudos deviam ser feitos, em territorios cujos habitadores não tinham ainda visto o homem branco, - o que tudo consta das minuciosas communicações mensaes e mais documentos que sempre enviei á Secretaria dos Negocios de Marinha e Ultramar, e tambem, quando isso era possivel, a tres dos nossos principaes institutos scientificos. Essas investigações e estudos constituem um volumoso e variado material que torna assaz conhecida a vasta região explorada, sob muitos pontos de vista, quer nos interesse da sciencia quer no do paiz (...) constituindo o todo um trabalho baseado em factos escrupulosamente observados, e devidamente elucidados por gravuras, chromos, cartas, mappas, schemas e diagrammas. 2 2 Cf. CARVALHO, Henrique Augusto Dias de. Descripção da viagem à Mussumba do Muatiânvua. Expedição portuguesa ao Muatiânvua 1884-1888, vol. I, De Luanda ao Cuango. Lisboa: Imprensa Nacional, 1890, s.p. Doravante Descripção.

Como corpus documental principal da obra, os quatro volumes da Descripção da viagem à mussumba do Muatiânvua foram publicados nos anos subsequentes à expedição e divididos em capítulos delimitados pelo seu percurso. Necessária para o entendimento desta Descripção é a consideração de sua inserção em um conjunto mais amplo de narrativas sobre a África centro-ocidental - pelo menos desde a segunda metade do século XVIII, a produção escrita em decorrência de tentativas portuguesas de alcançar terras mais ao longe da faixa litorânea, até os escritos de militares, sertanejos e comerciantes no século XIX. Configurada ao longo do tempo por meio de uma cadeia de transmissão de informações, esta produção instrumentalizou as ações imperiais de fim de século dos portugueses.3 3 Neste sentido, a importância de pelo menos dois relatos que influenciaram Henrique de Carvalho, pela incorporação de informações sobre a mussumba lunda e o caminho para chegar até ela: LEITÃO, Manuel Correia, Viagem que eu, sargento mor dos moradores do distrito do Dande, fiz às remotas partes de Cassange e Olos, no ano de 1755 até o seguinte de 1756. In: DIAS, Gastão de Sousa (ed.). Uma viagem a Cassange nos meados do século XVIII. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa. Lisboa: Imprensa Nacional, 56ª série, nº 1-2, 1938 e GRAÇA, Joaquim Rodrigues. Descripção da viagem feita de Loanda com destino ás cabeceiras do rio Sena, ou aonde for mais conveniente pelo interior do continente, de que as tribus são senhores, principiada em 24 de abril de 1843. In: Annaes do Conselho Ultramarino. Parte não-oficial, 1ª série, 1854-58. Lisboa: Imprensa Nacional, 1867. Relato também publicado em: GRAÇA, Joaquim Rodrigues. Expedição ao Muatiânvua - diário. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa. Lisboa: Imprensa Nacional, 9ª série, nº 8-9, 1890, p. 399-402.

As questões políticas referidas e que coincidem com o processo de edição e publicação de Expedição portuguesa ao Muatiânvua referem-se ao período em que portugueses e belgas disputavam os traçados de fronteiras na região centro-ocidental do continente.4 4 Esta disputa tornou-se conhecida em Portugal como "a questão da Lunda" e produziu uma documentação que foi inventariada por Eduardo dos Santos em: SANTOS, Eduardo. A questão da Lunda. 1885-1894. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1966.

Dentro deste contexto, o expedicionário produziu um conhecimento que "se procurou servir os interesses portugueses, não pôde deixar de servir os interesses africanos, mesmo se de maneira artificial ou artificializante",5 5 Aqui concordamos com o argumento de HENRIQUES, Isabel de Castro. Presenças angolanas nos documentos escritos portugueses. In: II SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE A HISTÓRIA DE ANGOLA. Construindo o passado angolano: as fontes e a sua interpretação. Actas. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 56. já que colocou na pauta dos debates imperialistas do final do XIX, a existência de sociedades da África centro-ocidental ao nomeá-las especificamente xinjes, muxaelas, imbangalas, quiocos, lundas...6 6 Se estas denominações, tal como aparecem nos escritos de Henrique de Carvalho, estão em desacordo com as diferentes grafias utilizadas para designar as mesmas sociedades centro-africanas na atualidade, importante a menção, neste caso, da sua preocupação em indicar cada povo que estava na área de influência do Muatiânvua por nomes específicos, como os citados anteriormente, deixando-nos conhecer a sua existência naquele tempo.

Em suma, para além dos encargos de explorador e realizador da ocupação territorial portuguesa da região, o que se destaca na Descripção da viagem à mussumba do Muatiânvua de Henrique de Carvalho é sua reconhecida notoriedade na descrição das populações africanas: seus escritos são considerados como o primeiro registro sistemático sobre Lunda.

Nesta perspectiva, a obra de Henrique de Carvalho é importante porque foi feita pelo europeu que afirmou a sua intenção de produzir um conhecimento sobre as populações lundas. E mesmo que as motivações para tanto projetassem ações civilizatórias ou coloniais, ao publicar sua obra - nas relações concretas presentes nos interstícios dos discursos escritos -, não pôde evitar que os interesses africanos viessem à tona. Por esta razão, acreditamos que a sua obra enseja o conhecimento de agentes históricos variados que se relacionaram de formas também variadas com o empreendimento português de viagem a Lunda.7 7 Para uma explicação mais extensa de nosso entendimento sobre a problemática do uso dos relatos de viagem como fonte historiográfica e, especificamente, sobre o que chamamos de interstícios imperiais na obra de Henrique de Carvalho, ver RIBEIRO, Elaine. Barganhando sobrevivências: os trabalhadores centro-africanos da expedição de Henrique de Carvalho à Lunda (1884-1888). Dissertação de mestrado, História Social, Programa em História Social da Universidade de São Paulo, 2010, especialmente as p. 28-32 e 70-102. Também cabe citar o trabalho de Beatrix Heintze que também analisou a obra de Henrique de Carvalho e destacou a importância desta fonte para além do entendimento dela ser "um mero conjunto de informações isoladas, de entre as quais podemos escolher as que mais nos convêm". Para tanto, ver: HEINTZE, Beatrix. A rare insight into African aspects of Angolan history: Henrique Dias de Carvalho's records of his Lunda expedition, 1884-1888. Portuguese Studies Review, 19 (1-2), 2011, p. 93-113. Agradeço a Beatrix Heintze pela generosidade em me enviar o seu artigo.

Outra característica a ser ressaltada é que os volumes da Descripção cumprem o papel aglutinador de todos os trabalhos da Expedição, porque eles "não se esgotam na reprodução do diário de viagem", como afirma Ana Paula Tavares, mas também porque "incorpora[m] partes dos outros textos".8 8 Cf.: TAVARES, Ana Paula. Na mussumba do Muatiânvua quando a Lunda não era leste. Estudo sobre a "Descripção da viagem à mussumba do Muatiânvua" de Henrique de Carvalho. Dissertação de mestrado, Literatura Brasileira e Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1995, p. 24.

Desse modo, chamamos a atenção para os diversos textos que estão incluídos na obra e que não são de autoria de Henrique de Carvalho, tal como o relatório do ajudante, editado pelo major português e publicado em extracto o que julgava "oferecer mais interesse".9 9 CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 203-216. Mas também as cartas dos negociantes sertanejos, como Custódio Machado, dos dirigentes políticos, como Andala Quissúa Andombo, Cuigana Mogongo, Mona Samba Mahango, Mona Quienza, entre outros, na maioria escritas por ambaquistas que trabalhavam como secretários em diversas regiões da Lunda.10 10 Os ambaquistas eram africanos e luso-africanos que se destacaram nas relações comerciais e nos serviços de secretariado junto aos titulares políticos africanos. Este termo identitário, derivado do presídio português de Ambaca, mais do que se remeter a atributos físicos, já que a maioria dos ambaquistas eram homens negros que se autodenominavam brancos, ligava-se mais a características culturais. De acordo com Beatrix Heintze, na segunda metade do século XIX, fase de aprofundamento europeu nos territórios africanos, foram estes homens os pioneiros por excelência na África centro-ocidental, divulgadores "da língua portuguesa oral e escrita, além da sua língua materna, o kimbundu, de novas plantas de cultura e de novas técnicas culturais". Estes foram os conhecimentos que lhes possibilitaram o exercício dos ofícios de sapateiro, alfaiate, carpinteiro e das funções de intérprete e escriba junto aos dirigentes africanos. Sobre a figura dos ambaquistas, ver: HEINTZE, Beatrix. "Brancos" negros: os ambaquistas. Pioneiros africanos. Caravanas de carregadores na África centro-ocidental (entre 1850 e 1890). Lisboa: Editorial Caminho, 2004, p. 229-259 e ainda p. 17, 59-61, 84-89; DIAS, Jill. Estereótipos e realidades sociais: quem eram os "ambaquistas"? In: II SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE A HISTÓRIA DE ANGOLA. Construindo o passado angolano: as fontes e a sua interpretação. Actas. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 597-623. Sobre a contradição da colonização portuguesa, no século XX, com relação a estes agentes sociais, de assimilados a ameaçadores, ver: VERA CRUZ, Elizabeth Ceita. O estatuto do indigenato. Angola: A legalização da discriminação na colonização portuguesa. Lisboa: Novo Imbondeiro, 2005, p. 132-141.

Mais ainda, a carta de um carregador de cargas da expedição e os textos dos tratados e dos autos de notícia escritos pelos intérpretes africanos a serviço de Henrique de Carvalho: Antonio Bezerra de Lisboa, primeiro intérprete, Agostinho Alexandre Bezerra, segundo intérprete, e José Faustino, professor da escola da expedição que, por vezes, ocupava o cargo de intérprete e de secretário do chefe da expedição.

Todos estes textos compõem um "repositório de informações" importantes tanto por seu conteúdo quanto pelo papel desempenhado por quem os produziu. E, neste sentido, há a necessidade de estarmos atentos para a diversa autoria que a Descripção da viagem ao Muatiânvua apresenta.11 11 Parte desta correspondência foi analisada por Beatrix Heintze em: HEINTZE, Beatrix. A lusofonia no interior da África Central na era pré-colonial. Um contributo para a sua história e compreensão na actualidade. Cadernos de Estudos Africanos, n. 7-8, jul. de 2004 a jul. de 2005, p.179-207. Disponível em: http://cea.iscte.pt/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=73. Acesso em: 20/10/2010.

Tendo como base estas considerações iniciais sobre a obra, afirmamos que é nossa intenção analisar os espaços africanos nela representados ou "cartografados". Nosso argumento é que as descrições sobre os caminhos e sociedades contatadas, incluindo os agentes envolvidos no comércio de longa distância, podem ser tomadas como fonte da história social do comércio de longa distância da África centro-ocidental.

Tal argumento, como procuraremos demonstrar ao longo do trabalho, baseia-se no conhecimento de que os percursos tomados por este empreendimento português coincidiram com os trajetos das caravanas africanas especializadas no comércio de sal, borracha, marfim, entre outros produtos, que movimentavam a engrenagem econômica e social desta parte do continente africano. Neste sentido, a análise dos trajetos da expedição poderá trazer à luz uma história social dos grupos de carregadores que os percorriam.

Os caminhos...15 15 Cf.: LEITÃO, Manuel Correia, Viagem que eu ..., op. cit., p. 27. 20 20 LACERDA e ALMEIDA, F. J. Manuscrito. Ofício do governador dos Rios de Sena, para d. Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro da Marinha e Ultramar, datado de 21 e 22 de março de 1798. Coleção IHGB, DL39, 10.01.01, doc. 676, fl.6. 47 47 Interessante verificar a aproximação feita por este informante do costume imbangala ao português (das terras de muene puto) de construir altares para os zâmbi (crucifixos). Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Ethnographia e história..., op. cit., p. 517-518. 54 54 CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. IV, op. cit., p. 562-563. Mais sobre a intensiva presença dos imbangalas no comércio do interior e o controle que detinham sobre a circulação, os carregadores e as técnicas do comércio por etapas, ver: HENRIQUES, Isabel C. Percursos da modernidade em Angola..., op. cit., p. 563-585 e HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos..., op. cit., p. 163-183. 70 70 Paul Pogge, 1880, apud HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos..., op. cit., p. 40. 71 71 Max Buchners, 1878-1882, apud HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos..., op. cit., p. 43. Conhecedores das ervas locais, os ngangas eram "especialistas dos saberes ligados à religião e à medicina". Cf.: HENRIQUES, Isabel C. Percursos da modernidade em Angola..., op. cit., p. 765. 72 72 Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 198-199.

Nas últimas décadas do século XIX, a situação de Portugal como potência ultramarina tornou-se problemática, uma vez que seus interesses sobre o continente africano foram progressivamente atacados pelos imperialismos britânico, belga, francês e alemão. Novas estratégias de exploração colonial foram colocadas em prática: de uma ocupação sustentada em feitorias espalhadas pelo litoral africano e instaladas em alguns pontos do interior do continente para uma intervenção administrativa e militar mais incisiva, com definição precisa de fronteiras traçadas especialmente por interesses europeus.

Em razão deste contexto, este foi um momento que se caracterizou pela "popularização de um nacionalismo exacerbado e doloroso" em Portugal, durante o qual o debate africano se tornou vivo.12 12 A expressão nacionalismo português exacerbado e doloroso é de MATOS, Sérgio Campos. Historiografia e memória nacional no Portugal do século XIX (1846-1898). Lisboa: Edições Colibri, 1998, p. 495. Em parte, isso se expressou na divulgação das narrativas de viagens de militares como Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens que, nos anos de 1870 e 1880, enalteciam a concretização do antigo sonho português de travessia terrestre da África de "ligação" do Atlântico ao Índico por terra.13 13 PINTO, Alexandre Alberto da Rocha de Serpa. Como eu atravessei África do Atlântico ao mar Indico. Viagem de Benguella à contra-costa (1877-1879). 2 volumes. Londres: Sampson Low, Marston, 1881; CAPELLO, Hermenegildo e IVENS, Roberto. De Angola à contra-costa. 2 volumes. Lisboa: Imprensa Nacional, 1886.

Tal enaltecimento nacional luso ocorreu muito a despeito desta "travessia" já ter sido realizada, entre os anos de 1802 e 1814, pelos pombeiros africanos Pedro João Baptista e Anastácio Francisco, escravizados do tenente-coronel Francisco Honorato da Costa.14 14 Pombeiros eram africanos que atuavam entre as sociedades do interior como agentes representantes dos comerciantes estabelecidos nas regiões mais próximas da costa atlântica. Para o diário da viagem de Pedro João Baptista e Anastácio Francisco, ver: BAPTISTA, Pedro João. Viagem de Angola para Rios de Sena; Explorações dos portugueses no interior d'África meridional (...) Documentos relativos à. Annaes Maritimos e Coloniaes, v. III, 5-11, 1843, p. 162-190; 223-230; 278-297; 423-440; 493-506; 538-552.

Mais ainda, esta aspiração lusa pela "ligação terrestre" entre as costas atlântica e índica representa uma negação dos vínculos políticos e comerciais entre sociedades estabelecidas desde as margens do rio Kwango até o vale do Zambeze, as quais reconheciam na Lunda do Muatiânvua, pelas regras do parentesco, em maior ou menor grau, um poder fundador ou ancestral. Estas relações históricas, embora negadas no contexto de debates sobre a divisão territorial do continente entre as nações europeias, podem ser encontradas na própria documentação portuguesa produzida ao longo do tempo. As observações lusas demonstram que os agentes portugueses tentaram, em muitas ocasiões, valerem-se destes vínculos comerciais e políticos e, por vezes, até substituí-los.

No século XVIII, por exemplo, no supracitado relato de Manuel Correia Leitão, destacam-se as informações sobre o comércio com o Muatiânvua, controlado pelos reinos de Kasanje e Malagis, que não permitiam aos brancos fazerem negócios diretamente com o dirigente máximo da Lunda:

Os práticos informantes e todos os gentios destas remotas paragens não têm licença dos da outra banda para chegarem ao menos ao Mataiiâmvua, quanto mais chegarem a esses Malagis, e por isso não têm visto com o seu olho branco da Contra-Costa, mais do que ouvirem sempre dizer que se têm visto brancos nestas partes diante do Mataiiâmvua, os quais aparecem em barcos a que o gentio chama uatos, e que tem lá seus lugares donde saem e que fazem negócio, dando por escravos zuartes e outras fazendas próprias como as que lhe vão de cá, missangas brancas e azuis e búzio; e que os potentados que tratam com os tais brancos, que eu cuido são os Malagis ou outros, impedem a este Mataiiâmvua o poder busca-los e trata-los, o que é comum entre este gentio; assim como o Cassange e os mais nomeados não querem que nós tratemos como os que além do rio Cuango e como o tal Muatiiâmvua tem também notícia dos brancos de cá, por esta razão também o quer por amigos, fazendo-os procurar por seus capitais para que lhe vendam fazendas.

Para Jan Vansina, a nomenclatura malagis referia-se a "uma subdivisão do grupo étnico conhecido como Congo-Dinga, estabelecido ao longo do rio Kasai, no oeste do reino Rund".16 16 Cf.: VANSINA, Jan; SEBESTYÉN, Evá. Angola's eastern hinterland in the 1750s: A text edition and translation of Manoel Correia Leitão's "Voyage" (1755-1756). History in Africa, vol. 26, 1999, p. 355 para a definição do termo malagi, p. 364 para o mapa que define a sua localização e p. 325 para o texto supracitado de Manuel Correia Leitão, que pode ser comparado com o da edição de Gastão de Sousa Dias anteriormente referenciado. Agradeço ao historiador Roquinaldo Ferreira pela indicação desta tradução para o inglês do relato de Correia Leitão realizada por Vansina e Sebestyén.

Neste caso, rund, aruwund, ruwund ou Lunda do Muatiânvua foi o grupo que, ao longo do tempo e através da linguagem do parentesco, conseguiu conformar-se como centro de poder e dominar um vasto território que se estendia do centro-leste ao centro-oeste do continente habitado por diversos povos.17 17 Podem ser identificados como "lunda do Mwant Yaav" os ndembu (ou lunda-ndembu do atual noroeste da Zâmbia, estudados por Victor Turner), os yaka, os luvale (ou lunda-baluvale), os imbangalas do reino de Kasanje, e as sociedades do Luapula sob o domínio de Kazembe, entre outros, que ainda hoje reivindicam esta identificação. Cf.: PALMERIM, Manuela. Identidade e heróis civilizadores: "l'empire lunda" e os aruwund do Congo. In: JORNADAS DE ANTROPOLOGIA, 1, 1998. Anais. Braga, Portugal. Disponível em: http://repositorium.sdum.uminho.pt. Acesso em: 26/08/2012.

Para nossos propósitos, a importância de verificarmos na documentação portuguesa as relações entre as sociedades estabelecidas às margens do rio Kwango, no vale do Zambeze e a Lunda do Muatiânvua está em apontarmos a existência de eixos comerciais e vias de comunicação no centro do continente, inacessíveis aos europeus até pelo menos o século XIX.18 18 Para Isabel de Castro Henriques, a transformação desta situação de inacessibilidade dos europeus a rota Mussumba-Kazembe, exclusivamente africana, e que integrava o comércio das duas costas do continente em direção à mussumba, iniciou-se na década de 1840 com a ação cada vez mais intensa das quibucas (caravanas) ovimbundas. Cf.: HENRIQUES, Isabel de Castro. Percursos de modernidade em Angola: Dinâmicas comerciais e transformações sociais no século XIX. Lisboa: IICT, 1997, p. 391.

O eixo oriental desta relação pode ser visualizado no relato do governador dos Rios de Sena, em fins do século XVIII, Francisco José de Lacerda e Almeida. Na ocasião em que recebeu a embaixada do Kazembe, ficou sabendo das ligações deste reino com a Lunda do Muatiânvua, que chamou de Morupue:19 19 Morupue era a forma como os portugueses chamavam o Mulopwe, título da autoridade máxima luba adotado pelo Muatiânvua. Agradeço ao parecerista deste artigo por esta informação.

(...) que do Cazembe se pode ir ao Morupue [muatiânvua] em sessenta dias; porém os brancos em menos tempo; e finalmente, que ao Reino de Morupue vem canoas de Angola, ou de suas vizinhanças conduzir escravos; mas que o rio he pequeno. Do reino de Morupue para o de Cazembe passão fazendas, e trastes, que vem das costas occidentaes da Africa, como espelhos, aparelhos de xá, que conservão para ostentação, e grandeza; pratos, copos, avelório, missanga, couros, e fazendas de lã. (...) Os escravos, que o Cazembe faz, remete-os para o pai [muatiânvua]; e delle por qualquer via que seja, vão ter a Angola, que elles pronuncião Gora, e em retorno vem o fato de lã, como baeta, durante, sarafina, e os mais, que acima disse. Não querem vender escravos aos Portuguezes destes rios [isto é, da parte oriental do continente], nem os Portuguezes os querem comprar, porque não fazem conta, nem a huns, nem a outros: o marfim sim faz muita conta a ambos: se for possível achar-se navegação para estes rios, o lucro que se há de tirar no marfim deve ser considerável, pois o seu transporte por terra he trabalhoso, e dispendioso.

Pelo relato podemos verificar os artigos europeus transacionados no interior do continente, os quais não eram para as sociedades locais "mercadorias essenciais", mas de "ostentação e grandeza", no dizer de Lacerda e Almeida.

Se fizermos um "exame minucioso", conforme argumenta John Thornton, veremos que artigos como o marfim, citado por Lacerda e Almeida, e a "antiga manufatura africana era em muitos casos capaz de prover as necessidades do continente", como no caso dos tecidos do Kongo oriental para leste de Angola, no século XVII,21 21 Cf.: THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico. 1400-1800. Tradução de Marisa Rocha Mota. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 89 e 94. Para uma visão contrária a de Thornton ver o texto de ALPERN, Stanley B. What Africans got for their slaves: A master list of European trade goods. History in Africa, vol. 22, 1995, p. 5-43. mas também do sal produzido na região do Kazembe, capaz de abastecer redes comerciais entre as regiões ocidentais e orientais.

O sal deste comércio era acinzentado e produzido a partir de plantas que o pombeiro Pedro João Baptista chamou de "palhas" de onde os produtores "tiram o sal, o qual sal cortam a palha [...] e vão queimando a cinza em umas panelas pequenas que eles fazem e vão cozinhando água lauda [enlameada]", servindo estas "panelinhas" de medição com vistas a valoração do produto: "dez panelinhas valem um xuabo" ou peças de tecido de algodão, que serviam como moeda nas trocas realizadas nos entrepostos do comércio regional, as "casas já feitas dos compradores de sal".22 22 Apud HENRIQUES, Isabel de Castro. Percursos de modernidade em Angola ..., op, cit., p. 266 e 768, respectivamente.

No tempo de Henrique de Carvalho, final do século XIX, as salinas valorizadas pelos povos estabelecidos nos caminhos pelos quais a expedição passou eram as da região do rio Lui. Com o sal produzido nesta localidade, o major português pagou os trabalhadores da expedição e aproveitou para estabelecer a "estação civilizadora Paiva de Andrade" em Quibutamêna, na margem direita do mesmo rio, em razão do intenso trânsito de caravanas envolvidas no comércio local.23 23 CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. I, op. cit., p. 325-326.

Desse modo, a partir dos registros de observadores portugueses, somos capazes de perceber a organização do comércio nas regiões mais ao centro do continente, com suas rotas especializadas nas trocas de produtos específicos (os tecidos do Kongo, o marfim da Lunda, o sal do Zambeze e do rio Lui); formas de empacotamento e transporte (no caso do sal do Lui, "em folhas de arvores, a formar um rolo de 70 cm de comprimento e 6 cm de diâmetro, a que chamam muxa", sendo que uma carga de sal comportava de 25 a 30 muxas24 24 CARVALHO, Henrique A. D. Expedição portuguesa ao Muatiânvua. Ethnographia e história tradicional dos povos da Lunda. Lisboa: Imprensa Nacional, 1890, p. 707. Doravante Ethnographia e história. e maneiras de valorar as mercadorias (no caso, três muxas equivaliam a uma jarda de fazenda ou cada uma, 30 réis).

Apesar do inventário do comércio regional realizado por diferentes agentes lusos ao longo do tempo - no geral, o discurso do "nacionalismo exacerbado e doloroso português" finissecular não admitiu a existência de uma racionalidade africana na gestão de territórios e negócios e propôs projetos coloniais em África que primavam por torna-la "moderna", no sentido de viabilizar caminhos por terra e água possíveis de serem trilhados e navegados pelos portugueses.

É por esta razão que as instruções governamentais às diferentes expedições requisitavam, a partir do uso de instrumentos técnicos, a produção de esboços dos caminhos percorridos, a medição de terrenos, observações meteorológicas e fluviais para posterior elaboração de mapas e estudos de implantação de estradas e ferrovias. E, ainda, registros sobre rotas comerciais, aptidões do solo, hábitos das diferentes populações contatadas e, se possível, a produção de algum material fotográfico e ilustrativo.

Deviam também construir, em diferentes pontos do caminho, abrigos que oferecessem proteção aos viajantes, incentivando, por meio das chamadas "estações civilizadoras, comerciais e hospitaleiras", a comunicação e o comércio regional com as cidades litorâneas controladas pelos portugueses.

Embora a expedição chefiada por Henrique de Carvalho tenha exercido menor impacto na opinião pública portuguesa em comparação com as de Serpa Pinto, Capello e Ivens, em alguma medida elas podem ser comparadas em vista da ação da Sociedade de Geografia de Lisboa que ajudou o Ministério da Marinha e Ultramar a elaborar as instruções das diferentes expedições.25 25 Sobre a elaboração das instruções da expedição, ver: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. I, op. cit., p. 7-14 e 35-42.

Considerando as intenções colonizadoras presentes nestas instruções, reafirmamos nosso interesse pelas descrições do comércio africano nos relatos portugueses pela possibilidade de resgatar, do implícito do discurso civilizacional, a história social dos grupos caravaneiros envolvidos no comércio de longa distância.

Desse modo, a pertinência dos relatos de viagem como fonte historiográfica está na possibilidade de resgatar, para além de suas representações, os papéis históricos de pessoas que, embora com presença ostensiva, foram ao longo do tempo socialmente desvalorizadas. Portanto, "o território não é o mapa"26 26 Verso do poeta açoriano Emmanuel J. Botelho citado por HENRIQUES, Isabel Castro. Território e identidade. O desmantelamento da terra africana e a construção da Angola colonial (c. 1872-1926). Lisboa, 2003. Disponível em: http://www.ics.ul.pt/agenda/seminarioshistoria/pdf/isabelcastrohenriques. Acesso em: 20/10/2010.

Sobre o contexto de conformação do atual território angolano, em estudo de 2004, Isabel de Castro Henriques pretendeu compreender como os poderes africanos locais ocuparam estes mesmos espaços segundo premissas próprias, por meio do "gerenciamento da violência das operações colonizadoras europeias".

A historiadora justificou a importância deste seu trabalho pela necessidade de rever chavões que articulam a história da criação e colonização de Angola, tais como, do lado do colonizador, "campanhas militares", "guerras de pacificação", "operações de ocupação efetiva" e "operações de polícia" e, do lado dos colonizados, "ações de protesto", "guerras, combates ou atividades de resistência". Expressões que são "provocadas pela visão da primazia europeia e que chegam a suscitar a vitimização ou inferiorização africana".27 27 HENRIQUES, Isabel de Castro. A materialidade do simbólico: marcadores territoriais, marcadores identitários angolanos (1880-1950). Textos de História, vol. 12. Brasília: UnB, nº 1/2, 2004, p. 9-10.

Tal exigência de revisão fez com que Henriques desenvolvesse uma proposta metodológica de análise dos espaços angolanos descritos nos textos portugueses partindo de duas premissas: a "descoincidência africana e europeia" quanto à visão de terra, território e identidade; e a "coabitação conflitual" destes dois grupos, marcada pelos "antagonismos, mas também em cumplicidades, em compromissos estratégicos, assim como em choques violentos".28 28 Cf.: HENRIQUES, Isabel Castro. A materialidade do simbólico..., op. cit., p.11.

Propôs, então, três tópicos a serem analisados no inventário dos símbolos que instituíram a criação de Angola: a laicização da terra africana pela ação científica dos europeus; a tentativa de salvaguarda dos valores fundamentais das identidades africanas pela apropriação de aspectos culturais dos europeus como uma maneira de "criar estruturas de proteção dos valores e práticas próprios" e, por fim, advindo do ato da apropriação, o reconhecimento de que a identidade também não é estática para os africanos.29 29 Cf.: HENRIQUES, Isabel Castro. A materialidade do simbólico..., op. cit., p. 11-12.

Neste sentido, devemos analisar a "polissemia dos símbolos" pelos recursos imagéticos e materiais. Metodologicamente, Henriques organizou os recursos africanos em cinco categorias de marcadores: vivos, religiosos/sagrados, fabricados, históricos e musicais ou sonoros, sendo possível apresentarem por vezes funções sobrepostas. Já para os europeus, a historiadora sugeriu os marcadores advindos da ciência e da técnica, aqueles que impuseram a laicização da terra africana e serviram para a ocupação e o controle colonial.

Entre estes estão os instrumentos técnicos como os aparelhos fotográficos, relógios e aparelhos de medição, mas também as representações cartográficas e os inventários demográficos que pretendiam responder "onde estão e quantos são". Igualmente a ferrovia, as redes rodoviárias, as estruturas urbanas, as culturas industriais do café, do açúcar e do algodão, entre outras, além da organização administrativa e jurídica e a instalação de colônias de brancos, que chamou de processo de branquização.

Depois de realizado o inventário dos recursos imagéticos e materiais de africanos e europeus, a proposta metodológica de Isabel Castro Henriques prevê a verificação simultânea desses recursos que compõem os "sistemas culturais e os processos de socialização inventados pelos diferentes grupos no longo curso das suas histórias".30 30 Cf.: HENRIQUES, Isabel Castro. Território e identidade..., op. cit., p. 20.

Nesta perspectiva, com o fim de refletirmos sobre o processo de apropriação como uma via de mão-dupla entre africanos e europeus, passamos a analisar, de agora em diante, alguns marcadores contidos nas descrições dos caminhos presentes em Expedição portuguesa ao Muatiânvua, com o objetivo de apreendermos significados dos elementos constituintes da organização do comércio de longa distância.

Entre os marcadores vivos, aqueles naturais que assegurariam a socialização do espaço e a conformação do território e suas fronteiras, estão a vegetação e as águas: a importância dos rios para as sociedades locais, mas também para os portugueses que instalaram o centro da sua colônia Luanda em uma região privilegiada próxima ao oceano Atlântico e aos rios Kwanza e Bengo, este último de extrema importância para a sociedade luandense, uma vez que era dele que provinha boa parte da água potável que abastecia a cidade.31 31 Segundo o cronista anônimo, a água do rio Bengo era: "...transportada em pipas que os pretos conduzem n'umas barcas bastante mal construídas, a que dão o nome de dongos, e que fazem navegar á força de remos, quando a brisa, que é o vento que reina de dia de oeste a leste, não é suficientemente forte para poderem usar d'umas velas d'esteira fabricadas por eles..." Cf.: ANÔNIMO. Quarenta e cinco dias em Angola. Apontamentos de viagem. Porto: Typographia de Sebastião José Pereira, 1862, p. 20-21.

Esta intenção lusa de estabelecimento na região configurou especialmente o Kwanza como um marco histórico de disputas entre os poderes locais e a administração portuguesa, mesmo que os primeiros acessos dos europeus a este rio tenham se dado a partir da orientação de especialistas locais: os nambios, pilotos de dongos (canoas), conforme nos relata a historiadora Rosa Cruz e Silva.32 32 Para o importante estudo de Rosa Cruz e Silva sobre a urbanidade antiga das regiões ao longo do rio Kwanza, ver: SILVA, Rosa Cruz e. O corredor do Kwanza: a reurbanização dos espaços - Makunde, Kalumbo, Massangano, Muxima, Dondo e Kambambe. Século XIX. In: SANTOS, Maria Emilia Madeira (dir.). III REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DE ÁFRICA. A África e a instalação do sistema colonial (c. 1885 - c. 1930). Actas. Lisboa: IICT, 2000, p. 157-173.

No decorrer do tempo, o rio Kwanza agregou o importante significado de definidor do espaço colonial português, a que estes chamaram de Angola, especialmente no que concerne à divisão regional da administração, grosso modo, no norte, de Cabinda até as regiões do rio Zaire; no centro, de Luanda até Ambaca (Mbaka) e seguindo a linha do Kwanza até Kasange; e, no sul, de Benguela até o Bié.

Esta divisão administrativa foi posta em prática por meio de presídios, fortes ou feitorias, os quais detinham, dependendo do contexto, um maior ou menor controle sobre as populações ao seu redor, segundo as regras dadas pelos acordos de vassalagem estabelecidos entre os dirigentes políticos africanos e o governo geral da colônia.33 33 Conformados em presídios e distritos, eram eles: os presídios da Muxima, Massangano, Pungo Andongo, Ambaca, Duque de Bragança, Cambambe, Novo Redondo, São José de Encoje, Benguela e Caconda e os distritos da Barra do Bengo, Barra do Dande, Barra de Calumbo, Dande, Icolo e Bengo, Zenza e Quilengues, Dembos e Golungo e Dombe Grande, Bailundo, Bié, Huambo e Quilengues de Benguela. Cf.: DIAS, Jill. Angola. In: ALEXANDRE, Valentim e DIAS, Jill (eds.). Nova história da expansão portuguesa. O império africano 1825-1890. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 357.

Insigne no caso da resistência a estas zonas de poder português foi aquela exercida pelos Kisamas, estabelecidos imediatamente na região sul de Luanda, portanto, muito próximos ao centro de domínio português. Os diversos ataques desta população ao presídio da Muxima podem ser encontrados na documentação portuguesa ao longo do tempo.34 34 Para uma análise da importância da região da Muxima e, especialmente, da padroeira da igreja do presídio, Nossa Senhora da Muxima, para as populações locais, inclusive para os Kisamas, ver o quarto capítulo de RIBEIRO, Elaine. Barganhando sobrevivências..., op. cit., p. 146-197.

Se concordarmos com a tese de Rosa Cruz e Silva sobre o importante papel do sal extraído das minas da Kisama como um importante artigo nas relações comerciais entre várias regiões da África centro-ocidental ao longo do tempo, tais como o Ndongo, Kongo, Loango e até a Lunda, poderemos encontrar o sentido da resistência dos Kisamas às tentativas dos portugueses de dominar a região.35 35 SILVA, Rosa Cruz e. O corredor do Kwanza ..., op. cit., p. 162-163, especialmente.

O historiador David Birmingham, ao descrever o interesse português pelos mercados do antigo reino do Ndongo nos séculos XVI e XVII, apresenta-nos a carta do missionário jesuíta padre Gouveia que afirma que, na época, o sal das minas da Kisama era tido como moeda corrente no comércio da região e um bem muito valioso para os comerciantes do interior que vinham de muito longe para comprá-lo nos mercados ambundos ou mbundu.36 36 BIRMINGHAM, David. Trade and conflitc. The Mbundu and their neighbours under the influence of the Portuguese, 1483-1790. Oxford: Clarendon Press, 1966, p. 44.

Portanto, a percepção dos presídios portugueses mais como centros de comércio e menos como centros de autoridade colonial não é aleatória. Especialmente no auge do tráfico atlântico de escravizados, estas edificações podem ser vistas como pontos estratégicos dos "negócios do sertão", já que construídos próximos às rotas de comércio do interior, deveriam funcionar como polos de atração de agentes comerciais africanos que organizariam suas feiras a curtas distâncias dos presídios.37 37 Sobre a criação da feira de Kasanje na região de comércio abundante com as sociedades a leste do rio Kwango e que se tornou um empreendimento controlado por agentes portugueses e pelos imbangalas de Kasanje, ver o estudo de VELLUT, Jean-Luc. Notes sur le Lunda et la frontière luso-africaine (1700-1900). Études d'histoire africaine, t. III. 1972, p. 94-110.

No final do século XIX, estas edificações portuguesas, mesmo tendo o seu significado reconfigurado em favor do avanço colonial como zonas de civilização de acordo com as diretrizes discutidas na Conferência de Bruxelas de 1876, como a própria definição diz - estações civilizadoras, comerciais e hospitaleiras - não perderam a importância de serem vistas pelas sociedades africanas como centros comerciais.38 38 Sobre as estações civilizadoras, ver: WESSELING, Henk. Dividir para dominar: a partilha da África (1880-1914). 2ª edição. Tradução de Celina Brandt. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ; Revan, 2008, p. 92-101.

No que diz respeito à expedição portuguesa ao Muatiânvua, quanto à instalação destas edificações dividida em três seções, o grupo de carregadores que avançava na frente sob o comando do capitão Manuel Sertório de Aguiar construiu as seguintes estações: no sentido litoral-interior, a estação 24 de Julho (24-07-1884) na região de Andala Quissua, próxima de Malanje; a estação Ferreira do Amaral (15-08-1884) no Cafuxi de Sé Quitari; a estação Paiva de Andrada (01-11-1884) na margem do rio Lui, em Quibutamêna.

Após a travessia do rio Kwango, prosseguindo a leste, foram edificadas: a estação Costa e Silva (31-10-1884) nas terras do shinje Capenda-Camulemba; a estação Cidade do Porto (24-04-1885) na margem do rio Cuilo; a estação Luciano Cordeiro (31-10-1885) na região a caminho do rio Lóvua; a estação Andrade e Corvo (10-01-1886) no vale do rio Chicapa; a estação Conde de Fialho (28-02-1886) na região do rio Luachimo; a estação Serpa Pinto, Capelo e Ivens (04-08-1886) na margem esquerda do rio Cachimi; e a estação Pinheiro Chagas (18-01-1887) na mussumba lunda do Kalany.

A intenção do chefe da expedição foi construir estas estações próximas aos rios e em regiões de trânsito das caravanas do comércio do interior, tal como evidenciado na correspondência de Henrique de Carvalho ao governador-geral de Angola a respeito da localização da estação Costa e Silva, que julgava importante pela proximidade com rio Kwango e pela atuação dos agentes comerciais locais que iam ao Lui adquirir sal para trocar por borracha no Peinde ou por fazendas, missangas e pólvora com os imbangalas.39 39 Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. A Lunda ou os estados do Muatiânvua. Domínios da soberania de Portugal. Lisboa: Adolpho, Modesto & Cia., 1890, p. 32. A razão para a instalação desta estação na região do comércio promovido pelos shinjes foi a mesma utilizada para o itinerário da viagem, uma vez que independentes do controle de Kasanje, os shinjes não impuseram obstáculos a passagem da expedição, como era o costume dos imbangalas de Kasanje dificultarem a passagem por suas terras. Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. I, op. cit., p. 438-439.

Esta preocupação com a construção de edificações nas regiões de maior trânsito de pessoas é, por parte de Henrique de Carvalho, proporcional à sua ideia da precariedade dos caminhos marcados pela presença ostensiva da vegetação e por áreas alagadas.

Após passar a região de Malanje e atravessar o rio Kwango, outras descrições negativas sobre os caminhos percorridos pela expedição se seguiram. Ao atravessar o território dos shinjes, próximo ao rio Urinda, em uma montanha que "disseram chamar-se Dinga", o cansaço, o aborrecimento e a transpiração intensa não se deviam "porque a marcha fosse grande, 10:400 metros, mas devido às ondulações do caminho".40 40 CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 159. Na passagem da ponte do rio Lubale, "uma das peores que se encontraram, estando em grande ruina pela força das aguas no tempo das chuvas", os carregadores atravessaram o rio com as "cargas à cabeça, procurando com os pés os troncos mais firmes debaixo de agua e segurando-se com as mãos a umas guardas feitas de fibras vegetaes", o boi-cavalo montado pelo ajudante da expedição atravessou o rio a nado e o sub-chefe e depois o chefe passaram "aos hombros dos carregadores".41 41 CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 427.

A despeito dos caminhos serem descritos como difíceis, não foi possível a Henrique de Carvalho deixar de reconhecer neles cultivos, como a mandioca, o trânsito das caravanas e a perícia de seus membros na travessia de trajetos com cargas sobre os ombros. Por exemplo, no início da viagem, sobre a região do Cazengo escreveu que, na margem do rio Mucozo, achou prudente passar a noite porque na região estavam "acampadas comitivas de cargas que chegavam de diversos pontos", porque este era um "ponto de muita passagem do commercio", que se justificava por ser "ao pé de um rio, para descanso das caravanas e incentivo áquella feira diária".42 42 Nesta região, Henrique de Carvalho reconheceu o caminho como "largo e direito", de "bom piso e limpo de capim". O major português mencionou ainda a "vozearia da gente acampada" e o caso do ambaquista que foi até ele oferecer seus serviços e que a tudo que lhe era perguntado respondia: "pois não! é verdade!". Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. I, op. cit., p. 110-111.

Acampado no vale de Camau, em território do shinje Caianvo, o major descreveu a média do movimento de cargas que em "cincoenta dias (...) pelas nossas notas foi de 70 a 80 por dia. Até setembro augmentou muito esta media, não só por se a epocha mais propria para a saida das caravanas, como ainda pelo regresso das que invernaram nos mercados distantes onde se tinham dirigido".43 43 CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 249.

De fato são inúmeras as descrições do chefe da expedição sobre seus encontros com as caravanas, especialmente aquelas compostas de carregadores imbangalas de Kasanje, que eram "os carregadores de suas mercadorias".44 44 CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. I, op. cit., p. 271-272. Os primeiros encontros de Henrique de Carvalho com estas caravanas após a travessia do rio Kwango se deram em território shinje, próximo ao riacho Camau, com uma que retornava do interior com cargas de borracha, "e que [lhes] deram noticia que a comitiva que na véspera mandára cumprimentar já marchava adeante".45 45 CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 180.

O major português relatou a convivência próxima com os imbangalas destas caravanas que, por vezes, solicitavam ajuda com os doentes, pedindo para os deixarem ficar nos acampamentos da expedição até o regresso do grupo ou até a sua melhora, quando poderiam ir ao encontro da caravana. "Da mesma sorte, não [era] raro achar-se nas povoações de Quiôcos e de Lundas, algum Bângala ou Quimbare hospedado, esperando que as comitivas a que pertencem [voltassem] ali de novo, para pagarem a boa hospitalidade e tratamento que ahi tiveram".46 46 CARVALHO, Henrique A. D. Ethnographia e história...., op. cit., p. 463.

Foi com os membros destas caravanas que Henrique de Carvalho pôde colher informações que serviram de fonte para a sua obra Expedição portuguesa ao Muatiânvua. Com estes agentes ficou sabendo sobre os povos da Lunda e sobre o comércio que praticavam nesta grande região, quanto aos itinerários, produtos e caravanas nele envolvidos.

Um imbangala que viveu com a expedição por um ano informou sobre a crença nos zâmbi, "que os interpretes teem tomado por Deus, sendo certo que aos crucifixos que o commercio lá tem levado deram o nome de Zâmbi":

Na minha terra (Cassanje) os paes ensinam aos filhos a ter respeito pelo Zâmbi que nos vê e ouve, sem que nós o possamos ver, e que tem a sua morada lá em cima (apontando para o céu). Quando estamos afflictos, a elle pedimos que venha em nosso auxilio e nos ajude a livrar-nos de afflicção; que proteja as boas pessoas e castiga os criminosos (e poz as mãos em attitude de adoração olhando para cima). É elle quem pode dar felicidade ás pessoas e ás terras. Não fazemos como os Lundas que trazem o Zâmbi (crucifixo) suspenso ao pescoço; não senhor, seguimos o uso das terras de Muene Puto. Todas os Ambanzas fazem de proposito uma casa pequena, onde na parede do fundo, sobre baeta encarnada se põe o Zâmbi e os Santos, que cada um pode arranjar, ou então na parede da cubata de cada um, mas em resguardo, se colloca o Zâmbi tapado.

Uma das grandes caravanas que cruzou os caminhos da expedição portuguesa ao Muatiânvua foi aquela chefiada por Xa Muteba, "um grande Ambanza da margem direita do Cuango", que tinha por muári (mulher principal) a irmã do Muatiânvua eleito Xa Madiamba, que lhe fora concedida pelo pai, o falecido Muatiânvua Muteba, "de quem elle tomára o nome".48 48 Xá e ambanza são títulos ou expressões de grandeza e de superioridade que correspondem ao "dom" em português. Xa era mais utilizado entre os lundas, enquanto que ambanza, entre os imbangalas e os songos, e também se referia às localidades. Cf. HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos ..., op. cit., p. 441 e 449. Carvalho descreveu Xa Muteba como "muito bem conceituado nos estabelecimentos commerciaes europeus do Dondo, Pungo Andongo e Malanje". Na ocasião, o chefe imbangala conduzia uma caravana de trezentos homens que carregavam fazendas, sal e pólvora, além de alguns bois e cabras e nos encontros com o chefe da expedição portuguesa o informou a respeito da eleição e entronização dos jagas de Kasanje.49 49 CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 510-513; 520 e passim

No vale do rio Chicapa, na região da chefe Anguina Ambanza, local de abastecimento de muitas "comitivas de commercio", a expedição conviveu por algum tempo com mais três caravanas imbangalas, chefiadas por Angonga, Quimburi e Madamba. Com os dois primeiros, Henrique de Carvalho conseguiu registrar mais informações sobre o comércio da região de Kasanje e "dar mais desenvolvimento ao [seu] vocabulario bangala".50 50 CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. III, op. cit., p. 47 e 49.

Madamba era o ambanza "de maior categoria" entre eles.51 51 CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. III, op. cit., p. 51. O chefe Angonga era especialista no conserto de armas lazarinas e foi quem reparou para Henrique de Carvalho cinco das suas que estavam quebradas.52 52 CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. III, op. cit., p. 120. Segundo Isabel Castro Henriques, as armas lazarinas eram "espingardas de carregar pela boca, utilizando pederneira, muito procuradas pelos Quiocos, originalmente fabricadas em Braga e, mais tarde, principalmente em Liège". Cf.: HENRIQUES, Isabel C. Percursos da modernidade em Angola..., op. cit., p. 761. Mais sobre a importância destas espingardas para os quiocos ver, no mesmo estudo de Henriques, as páginas 617 a 619. Já Quinguri, originário da região do Quinguixi, afluente do lado direito do rio Kwango (a um dia de viagem da feira de Kasanje), era negociante de borracha no vale do rio Chicapa.53 53 CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. III, op. cit., p. 891. Outros chefes imbangalas com quem Henrique de Carvalho esteve foram os ambanzas Ambumba, Quibuco, Quinzaje, Quinguri, Quingonga, Quitari, Xa Madamba, Quinguri 2º e Xa Muteba. Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. III, op. cit., p. 912.

Já no retorno da expedição a Luanda, em 1887, na passagem do rio Cuengo, próximo da povoação de Muene Culáu, o encontro com um chefe imbangala que com outras caravanas de imbangalas, calundulas e quimbares, comerciavam"sal e muito gado", deu ao chefe da expedição ao Muatiânvua a dimensão do intenso fluxo de caravanas nesta parte da África centro-ocidental:

Disse-me Dembo, chefe d'uma d'aquellas comitivas, que veiu cumprimentar-me, que os Bangalas estavam marchando como eu fiz, em secções, e por isso não devia estranhar de vêr tantos Bangalas pelo caminho. Formavam um cordão do Cuango até ao Luchico, onde todos se reuniam. Os primeiros é que tiveram o trabalho de fazer os fundos, mas os outros ia passando d'uns para os outros, e sempre traziam de comer para os primeiros, e todos faziam mais ou menos negocio pelo caminho. É no Luchico que se separam para os differentes mercados e que por ali tencionam retirar na mesma ordem.

Sobre estes frequentes encontros e, consequentemente, as trocas de informações, Beatriz Heintze fez uma análise interessante do papel das caravanas do século XIX: o de terem sido um meio de "intercâmbio bastante alargado", já que circulavam, além dos artigos de comércio, outros "artefatos, práticas e conhecimentos".55 55 HEINTZE, Beatrix. As caravanas de carregadores: a "internet" do século XIX. In: Pioneiros africanos..., op. cit., p. 381.

Como visto, foi esta constante interação entre a expedição portuguesa ao Muatiânvua e as inúmeras caravanas do comércio regional que proporcionou o registro de informações por parte de Henrique de Carvalho sobre: a história e a cultura dos povos, as diferentes línguas, as práticas sociais de atribuição de poder aos chefes políticos, no campo religioso, a circulação de artefatos como os zâmbi (crucifixos) e, especialmente, todo um conhecimento sobre os artigos e itinerários do comércio de longa distância. Com a ação dos agentes caravaneiros, "notícias e informações sobre o até então desconhecido [para os europeus] passaram a ser mais rápidas e mais abundantes, ultrapassando cada vez mais as fronteiras transculturais".56 56 Cf.: HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos..., op. cit., p. 386.

Em suma, retomando da proposta analítica de Isabel de Castro Henriques57 57 Cf.: HENRIQUES, Isabel Castro. A materialidade do simbólico..., op. cit., p. 11. a problemática da "descoincidencia africana e europeia quanto à visão de terra, território e identidade", fica, dessa maneira, assinalada, no discurso civilizacional de Henrique de Carvalho, que este, mesmo tendo mantido intensas relações com as caravanas do comércio de longa distância nos caminhos da expedição ao Muatiânvua, não deixou de julgar estes mesmos caminhos como impróprios para o desenvolvimento comercial da região. Nesse sentido, seus escritos demonstram uma visível tensão entre os fatos que relatou e o seu discurso civilizacional.58 58 Esta contradição, segundo Alexsander Lemos de Almeida Gebara, é uma característica presente, especialmente, nos relatos de viagem do século XIX, a que o pesquisador deve estar atento na análise deste tipo de fonte. GEBARA, Alexsander Lemos de Almeida. Argumento apresentado pelo historiador na comunicação Daomé e o final do tráfico escravo - o testemunho de Frederick Forbes, tenente do esquadrão inglês de combate ao tráfico. In: XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - História e ética. Anais. Fortaleza, Ceará, 2009. Discurso civilizacional e, porquanto, colonial que demonstra a intenção de colocar Portugal no governo deste comércio de longa distância. Projeto que passava, especialmente, pelo controle dos serviços de transportes realizados pelos carregadores.

Neste sentido, a preocupação dos portugueses com a abertura, construção e manutenção de estradas e ferrovias e a navegação dos rios é constante na documentação finissecular e refere-se, especialmente, às tentativas de suplantar a dependência do trabalho dos carregadores das diferentes caravanas que movimentavam o comércio africano centro-ocidental de longa distância.59 59 A imprescindibilidade do serviço dos carregadores devia-se pela travessia dos caminhos difíceis e pelo conhecimento especializado destes agentes no transporte das diferentes mercadorias, como tentamos demonstrar, mas também pela incidência da mosca tsé-tsé que impedia a utilização de animais de carga para o transporte.

A historicidade destas intenções portuguesas no controle da mão-de-obra africana foi argutamente destacada por Alfredo Margarido em um estudo sobre os grupos de carregadores centro-africanos. Nele, o estudioso português tratou em detalhes da política de arregimentação destes trabalhadores, bem como do espaço que este tema ocupou na documentação administrativa portuguesa ao longo do tempo.60 60 MARGARIDO, Alfredo. Les porteurs: forme de domination et agents de changement en Angola (XVII-XIXe. siècles). Revue Française d´Histoire d´Outre-mer, tomo LXV, 1978, 240, p. 377-400.

Nas regiões de maior presença lusa, desde os primeiros tratados de vassalagem realizados com os sobas, no século XVI, a questão da arregimentação aparece entre as cláusulas que previam a obrigação dos dirigentes políticos africanos em fornecer mão-de-obra para suprir os serviços de carregamento de produtos comercializados de um ponto a outro do território.61 61 Importantes reflexões sobre os tratados de vassalagem em momentos e espaços diferenciados da relação das sociedades africanas com os portugueses encontram-se em HEINTZE, Beatrix. O contrato de vassalagem afro-português em Angola no século XVII. Angola nos séculos XVI e XVII. Estudo sobre fontes, métodos e história. Luanda: Kilombelombe, 2007, p. 387-436 e em SANTOS, Gabriela Aparecida. Reino de Gaza: o desafio português na ocupação do sul de Moçambique (1821-1897). São Paulo: Alameda, 2010. Em ambos os trabalhos aparecem, nos tratados analisados, as cláusulas da arregimentação de trabalhadores.

Desde o século XVII, o mesmo assunto se encontra nos regimentos governamentais: nas instruções dadas aos governadores de Luanda, por exemplo, previa-se a interdição do serviço de transporte gratuito prestado pelos carregadores aos comerciantes em geral. Tratava-se, na visão de Margarido, de proposições em nada filantrópicas, mas intervenções feitas no sentido de coibir as atuações fraudulentas dos capitães-mores e manter o fornecimento de homens sob o controle da administração portuguesa, uma vez que estes trabalhadores eram indispensáveis, na época do tráfico, ao transporte de bens necessários para obtenção de escravizados.

Devido à inquietude que provocava face às consequências negativas deste recrutamento contínuo e violento dos carregadores que implicavam desde a deserção ao trabalho forçado até o despovoamento de regiões inteiras, os problemas advindos desta situação também são verificados na documentação do governo "ilustrado" em Angola, na época do marquês de Pombal.62 62 Cf.: MARGARIDO, Alfredo. Les porteurs..., op. cit., p. 378. Por exemplo, em um ofício de 30 de julho de 1767, o governador-geral Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho alegava a importância "de se colocar um ponto final no abuso infame e injusto de fazer trabalhar os negros sem pagamento, o que destroe províncias inteiras". 63 63 Apud MARGARIDO, Alfredo. Les porteurs..., op. cit., p. 379.

Há ainda notícias de recrutamentos violentos na primeira metade do XIX. Em 1810, d. João de Almeida de Melo e Castro, sobre as dificuldades do comércio no interior da África centro-ocidental, anotou que "os negros espancados pelos certanejos, fugiam e desapareciam ao ponto que se achava quase impedido o tráfico por falta de carregadores". 64 64 Cf.: CASTRO, João de Almeida de Melo e. Manuscrito. Minuta sobre as dificuldades do tráfico no interior da África, devido à falta de carregadores, 22 de junho de 1810. Col. IHGB DL82, 05.14.

No ofício de 1839 enviado a Sá da Bandeira pelo coronel Fortunato de Melo, podemos verificar que os carregadores eram "frequentemente libambados para não fugirem" - ou seja, presos do mesmo modo que os escravizados - e eram "dados pelos capitães-mores aos feirantes e aos aviadados ou pombeiros".65 65 Apud MARGARIDO, Alfredo. Les porteurs..., op. cit., p. 384. Em decorrência destas denúncias, motivo das fugas em massa, o ministro português decretou em seguida a abolição do transporte obrigatório de mercadorias, medida que, apesar de mal recebida pelos mercadores de Luanda, assim mesmo foi determinada pelas autoridades locais.

Porém, esta situação tendeu a se agravar, porque junto ao vagaroso findar do tráfico atlântico de escravizados, o desenvolvimento de áreas de produção do tipo plantation nas regiões angolanas, voltadas para a exportação em larga escala de artigos locais, fez com que aumentasse o recrutamento forçado de trabalhadores centro-africanos.66 66 Sobre as plantações de café da região do Cazengo, que demandavam mão-de-obra, ver: DIAS, Jill. O Kabuku Kambilu (c. 1850-1900): uma identidade política ambígua. In: SEMINÁRIO ENCONTRO DE POVOS E CULTURAS EM ANGOLA. Actas. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 24-25 e 28.

À luz destes registros, podemos entender que, assim como o decreto português imposto ao término do trato atlântico de escravizados (1836) não significou o final da escravidão em Angola, as medidas que exigiram o fim do recrutamento forçado de carregadores (1839 e 1856) também não se revelaram eficazes, uma vez que escravizados que vinham do interior e aqueles que eram recrutados nas adjacências costeiras foram paulatinamente levados a força para regiões de produção para o mercado internacional, onde deveriam tocar a produção, de forma compulsória, como também transportar os diferentes gêneros aos portos da costa para serem embarcados para o hemisfério norte.67 67 Sendo esta, aliás, a intenção de alguns estadistas portugueses: o decreto de 1836 propiciar, a partir da manutenção da mão-de-obra africana no continente, a colonização dos territórios africanos e o controle do comércio regional. Para tanto ver o primeiro capítulo de RIBEIRO, Elaine. Barganhando sobrevivências ..., op. cit., p. 37-69.

Em suma, durante grande parte do século XIX, a escravização e o recrutamento forçado de carregadores, como processos violentos que caminharam pari passu, obrigaram as autoridades portuguesas, devido às pressões da era abolicionista, a repensarem o estatuto do trabalho em África no que concerne à busca de novas formas de submetê-lo. Não obstante todas as medidas restritivas decretadas por alguns homens políticos portugueses, a coação do serviço de carregador às sociedades africanas não só persistiu, mas marcou, em geral, "uma das intenções ou desejos do colonialismo português", no dizer de Alfredo Margarido.68 68 Por isso, segundo Alfredo Margarido, "estabelecer o inventário dos carregadores significa desenhar (ou indicar) o verdadeiro retrato do modo de pilhagem português em Angola". Cf.: MARGARIDO, Alfredo. Les porteurs..., op. cit., p. 397.

Porém, na segunda metade do XIX, à questão do controle da força de trabalho adicionam-se outros aspectos. Como vimos, embora a arregimentação de carregadores continuasse a ser um negócio acordado entre autoridades portuguesas, grandes comerciantes e chefes políticos africanos, a expansão mercantil de produtos ditos "legítimos" e a política portuguesa relacionada a este comércio - como, por exemplo, a abolição de monopólios no caso do marfim (1834) - provocaram um afluxo populacional em torno dos diferentes empreendimentos de iniciativa europeia na África centro-ocidental. As redes africanas do interior, das quais vimos em parte a ação dos imbangalas, por sua vez, ao se adaptarem ao novo quadro comercial, permitiam o engajamento espontâneo e cada vez maior de grupos de homens e mulheres às diferentes caravanas que passavam por suas regiões.69 69 No final do século XIX, a partir do cálculo de alguns produtos de exportação, Alfredo Margarido chegou ao número de 200.000 carregadores envolvidos anualmente com as atividades comerciais. MARGARIDO, Alfredo. Les porteurs..., op. cit., p. 397. Para este novo contexto mercantil das últimas décadas do século XIX, caracterizado por uma relativa independência das pessoas comuns com relação às autoridades políticas africanas em estabelecer negócios por conta própria, Isabel de Castro Henriques argumentou ter sido este um quadro de inovação das estruturas africanas capazes de reduzir a importância dos muitos sistemas de controle que passavam pelas regras do parentesco e, para tanto, citou a seguinte observação de Henrique de Carvalho: "Outr'ora o commercio entre estrangeiros e a tribu era só feito pelos potentados, porque estes se consideravam senhores dos bens e vidas dos seus povos. Hoje pode dizer-se que isto acabou. Depois do potentado ter feito o seu negocio com qualquer comitiva de commercio, podem com ella negociar os individuos de mais consideração na terra, e pouco depois os que queiram, porém o potentado só garante os compromissos feitos com sua auctorisação, do que tira uma percentagem". Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Ethnographia e história...., op. cit., p. 692, apud HENRIQUES, Isabel C. Percursos da modernidade em Angola..., op. cit., p. 563.

Nesta perspectiva, também as expedições europeias de fim de século foram empresas que, no contexto da interiorização espacial do continente por parte dos europeus, atraíram e mobilizaram uma imensa energia africana, já que tudo no terreno da viagem passava pelo trabalho e conhecimento africanos.

Assim, para os itinerários, os europeus precisavam das informações dos grupos locais; para as marchas em terra e as travessias dos rios, necessitavam de carregadores e canoeiros, tanto para si mesmos como para as suas imensas cargas; para sua alimentação, precisavam de cozinheiros para preparar os alimentos produzidos nas regiões pelas quais passavam e caçadores para obter carne:

Quando à tarde montávamos o acampamento na mata, os carregadores chegavam a fazer grandes excursões pelas imediações para encontrar uma aldeia habitada ou uma colônia abandonada com alguma plantação de mandioca. Por vezes, quando conseguia encontrar alguns tubérculos de mandioca numa remota aldeia abandonada, a minha gente dava provas do seu caráter generoso ao cuidar, com uma dedicação comovente, do seu patrão em primeiro lugar, aguardando calma e pacientemente a sua vez de matar a fome.

Para a cura de suas febres, quando não havia mais o quinino, demandavam os "remédios" preparados pelos ngangas:

A prática das rezas ao fim da tarde, inicialmente dirigidas contra o feitiço mau, virava-se agora contra mim. Logo que escurecia e todos jaziam agrupados em redor da fogueira, ouviam-se discursos rebeldes no mato silencioso até cerca de meia-noite, que, a ajuizar pelo tom arrebatado, não eram nada maus e os oradores eram recompensados com grandes aplausos. No meio deste inferno estava eu próprio, solitário e abandonado, sacudido pela febre e cheio de desespero. Agora sinto vontade de rir, quando penso nesses tempos em que muitas vezes cheguei a amaldiçoar a África inteira e toda a exploração de África e em que considerei perdida toda a expedição. Naquela altura eu ainda não sabia que o clamor e os gritos dos meus 120 negros eram muito menos perigosos do que pareciam e, na confusão do momento, não me apercebi de que no fundo tinham razão.

Para a sua segurança, de homens que se dispusessem a defendê-los; para o entendimento com as autoridades africanas, intérpretes que traduzissem os seus propósitos...

Por outro lado, a situação de dependência dos europeus em relação aos africanos também se traduziu em um cotidiano de tensões e resistências, conforme podemos ver abaixo, na descrição do diálogo entre o expedicionário Henrique de Carvalho e os porta-vozes dos quarenta carregadores da Muxaela. É um testemunho exemplar neste sentido, porque pode fornecer não só uma ideia de como se davam as contratações de trabalhadores ao longo dos caminhos do interior - quanto à negociação de bens materiais arrolados como remuneração ou das rotas a serem trilhadas - mas também informar sobre os receios e as expectativas de ambas as partes.

...dizíamos-lhes que o pagamento só eles podiam vê-lo quando levantassem com as cargas para seguirem viagem e marcassem bem as pousadas que se deviam fazer. A resposta, porém, era sempre a mesma: - Ainda não vimos nada! Se lhes perguntávamos o que queriam? Respondiam: - rações e três peças. - Mas que peças? - Fazendas, pólvoras e armas. - Sabem quanto vale uma arma? - Quatro peças. - E quanto um barril de pólvora? - Duas peças. - Então se sabem isto, lhe retorquíamos, como podemos dar nas três peças uma arma? Um riso aparvalhado era a resposta! Era preciso muita resignação e por isso continuávamos a interrogá-los. - Onde vamos? - A Muári Calumbo, no Cuengo. - Quantas jornadas são d'aqui até lá? - Nove. - Então querem uma peça por três jornadas e ainda por cima rações? - Muene Puto é muito grande, tem muitas cousas, pode pagar muito bem.

Enfrentando um problema muito comum às diversas expedições que percorriam a África centro-ocidental - a desistência de alguns grupos de carregadores de prosseguirem viagem - o chefe da expedição ao Muatiânvua se viu obrigado a parar no caminho e enviar o seu ajudante a outras regiões para tentar substituí-los.73 73 A problemática da desistência dos grupos de carregadores pode ser relacionada com a organização das caravanas "para lá das zonas de influência portuguesa", no dizer de Beatrix Heintze, que argumenta ainda que "a maioria dos carregadores só aceitava percorrer etapas relativamente curtas". Cf.: HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos..., op. cit., p. 265-266.

Após dias de espera, em uma manhã chegaram ao acampamento "quarenta e não vinte rapazes que diziam pertencer à povoação de Muxaela, a mais longínqua a que fora o ajudante". Sendo, nesta época, frequente as pessoas se engajarem por conta própria nas expedições - já que apareceram mais trabalhadores do que era previsto pelo chefe - vinham elas com a intenção de transportar as cargas até Camaxilo, isto é, até certo ponto da viagem e não por toda a viagem até a mussumba do Kalani, "porque não lhes era possível afastarem-se nesta epocha, por muitos dias, das suas casas"; bem como o desejo de comerciar os seus produtos com os membros da expedição, já que os muxaelas "andaram até perto das três horas da tarde pelo acampamento a vender as provisões que traziam, e só depois vieram dizer [a Henrique de Carvalho] que o senhor capitão os mandara para transportarem cargas".74 74 CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 197.

Nestas negociações havia de ambas as partes o receio do contrato acordado não ser cumprido. Do mesmo modo que não era difícil grupos de carregadores se negarem a continuar a jornada, sem antes conseguir melhor remuneração ou condições de trabalho, igualmente possível era estes homens não serem devidamente pagos pelos chefes das expedições ou das caravanas.

Por outro lado, o diálogo entre os muxaelas e Henrique de Carvalho se deu entre pessoas que demonstraram ter uma prévia noção umas das outras. Na visão de Carvalho, sendo os africanos "aparvalhados", nada escandaloso que não soubessem contar, por isso a confusão com a remuneração exigida e a necessidade de se ter muita "resignação" no trato com eles. Já para os muxaelas, sendo o chefe da expedição um "filho" de Muene Puto (rei de Portugal ou autoridade portuguesa), provável era que pudesse pagar bem, por isso a barganha para receber mais.

Ao fim de tudo, as negociações não foram bem sucedidas, os quarenta rapazes de Muxaela não aceitaram a remuneração oferecida e nem a rota estabelecida para a viagem e voltaram para suas casas deixando Henrique de Carvalho aturdido no acampamento, que só teve como saída "rogar com ameaças" a ajuda do cacuata Tâmbu, para quem enviou, a fim de conseguir carregadores, um intérprete e dois rapazes lundas. Estes levaram o seguinte recado, caso a autoridade lunda recusasse ajuda: "se Tâmbu não pudesse vir largaríamos fogo ás cargas, e retirávamos para dizer a Muene Puto que não mandasse mais filhos seus visitar o Muatiânvua e tampouco consentisse que de suas terras saísse mais negócio para as d'elle".75 75 CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 200. A expedição permaneceu por dois meses no vale do Camau aguardando a chegada de carregadores, por fim, como isso não aconteceu, Henrique de Carvalho decidiu avançar as cargas aos poucos até a região do rio Cuilo, onde estabeleceu a estação Cidade do Porto. Cf.: Descripção..., vol. II, op. cit., p. 247 e 253.

As exigências impostas pelos muxaelas são exemplares por demonstrar o poder de barganha que os grupos de carregadores detinham, dada a dependência dos estrangeiros em relação ao seu trabalho. Embora não tenham conseguido que fossem aceitas suas prerrogativas, porque dessa vez o chefe da expedição teve com quem se salvar, o cacuata Tâmbu,76 76 Cacuata era o título lunda dos líderes comunitários e emissários do muatiânvua que desempenhavam várias funções administrativas, militares e comerciais. Tâmbu foi o cacuata que se comprometeu com Henrique de Carvalho, ainda em Malanje, de "aplanar alguma difficuldade com carregadores, e mesmo ser-nos util no transito" até a mussumba. Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. I, op. cit., p. 317. para os muxaelas a não permanência significava que, da mesma forma que Henrique de Carvalho, também tinham outras opções, visto que "não lhes era possível afastarem-se nesta epocha, por muitos dias, das suas casas".77 77 Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 197.

Em muitos casos os carregadores eram pequenos produtores que acorriam às caravanas comerciais e às expedições europeias em busca de pequenas transações e trabalho temporário para compor o ganho de sua sobrevivência. Como bem atentou a historiadora Jill Dias, carregador, dificilmente identificado nas fontes coloniais, era uma denominação genérica que abarcava toda a população negra da África centro-ocidental, que "não passava de uma reserva de mão-de-obra", entre a qual não se distinguia nenhuma categoria social, reconhecendo-se somente os patrões, isto é, "os chefes linhageiros das aldeias, responsáveis pelo fornecimento aos agentes coloniais, a seu pedido, daqueles carregadores".78 78 Cf.: DIAS, Jill. Angola ..., op. cit., p. 357.

Por isso, entender o poder de barganhar destes carregadores é compreender desde suas formações sociais, modos de vida e seus interesses próprios. Esta é uma premissa que pode nos proporcionar uma visão para além da sobrevivência material.79 79 Subjacente às ideias de "negociação", "noção de direitos" e "fluidez da concepção de resistência" existe logicamente a referência ao trabalho do historiador E. P. Thompson, em especial, aos artigos publicados em THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

***

Neste trabalho objetivamos investigar a história social do comércio de longa distância da África centro-ocidental a partir das descrições dos caminhos e dos agentes africanos contidas na obra Expedição portuguesa ao Muatiânvua do major Henrique de Carvalho e do diálogo com a documentação portuguesa e a bibliografia especializada.

Como percurso investigativo, dos interstícios presentes no discurso civilizacional do expedicionário português e para além das generalizações imprecisas e dualistas que, com relação aos africanos, procuram indicar diferenças entre civilização e barbárie ou desenvolvimento capitalista e atraso econômico, tentamos demonstrar a importância dos diferentes grupos de carregadores contatados nos caminhos até a mussumba lunda para os empreendimentos mercantis que ligaram esta grande região ao mercado internacional no século XIX.

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  • *
    Este artigo se baseia na minha dissertação de mestrado Barganhando sobrevivências: os trabalhadores centro-africanos da expedição de Henrique de Carvalho a Lunda (1884-1888), orientada pela profa. dra. Maria Cristina Wissenbach, Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo, 2010, que contou com bolsa Fapesp.
  • 1
    Ver, no final do artigo, a referência completa dos volumes supracitados.
  • 2
    Cf. CARVALHO, Henrique Augusto Dias de. Descripção da viagem à Mussumba do Muatiânvua. Expedição portuguesa ao Muatiânvua 1884-1888, vol. I, De Luanda ao Cuango. Lisboa: Imprensa Nacional, 1890, s.p. Doravante Descripção.
  • 3
    Neste sentido, a importância de pelo menos dois relatos que influenciaram Henrique de Carvalho, pela incorporação de informações sobre a mussumba lunda e o caminho para chegar até ela: LEITÃO, Manuel Correia, Viagem que eu, sargento mor dos moradores do distrito do Dande, fiz às remotas partes de Cassange e Olos, no ano de 1755 até o seguinte de 1756. In: DIAS, Gastão de Sousa (ed.). Uma viagem a Cassange nos meados do século XVIII. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa. Lisboa: Imprensa Nacional, 56ª série, nº 1-2, 1938 e GRAÇA, Joaquim Rodrigues. Descripção da viagem feita de Loanda com destino ás cabeceiras do rio Sena, ou aonde for mais conveniente pelo interior do continente, de que as tribus são senhores, principiada em 24 de abril de 1843. In: Annaes do Conselho Ultramarino. Parte não-oficial, 1ª série, 1854-58. Lisboa: Imprensa Nacional, 1867. Relato também publicado em: GRAÇA, Joaquim Rodrigues. Expedição ao Muatiânvua - diário. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa. Lisboa: Imprensa Nacional, 9ª série, nº 8-9, 1890, p. 399-402.
  • 4
    Esta disputa tornou-se conhecida em Portugal como "a questão da Lunda" e produziu uma documentação que foi inventariada por Eduardo dos Santos em: SANTOS, Eduardo. A questão da Lunda. 1885-1894. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1966.
  • 5
    Aqui concordamos com o argumento de HENRIQUES, Isabel de Castro. Presenças angolanas nos documentos escritos portugueses. In: II SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE A HISTÓRIA DE ANGOLA. Construindo o passado angolano: as fontes e a sua interpretação. Actas. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 56.
  • 6
    Se estas denominações, tal como aparecem nos escritos de Henrique de Carvalho, estão em desacordo com as diferentes grafias utilizadas para designar as mesmas sociedades centro-africanas na atualidade, importante a menção, neste caso, da sua preocupação em indicar cada povo que estava na área de influência do Muatiânvua por nomes específicos, como os citados anteriormente, deixando-nos conhecer a sua existência naquele tempo.
  • 7
    Para uma explicação mais extensa de nosso entendimento sobre a problemática do uso dos relatos de viagem como fonte historiográfica e, especificamente, sobre o que chamamos de interstícios imperiais na obra de Henrique de Carvalho, ver RIBEIRO, Elaine. Barganhando sobrevivências: os trabalhadores centro-africanos da expedição de Henrique de Carvalho à Lunda (1884-1888). Dissertação de mestrado, História Social, Programa em História Social da Universidade de São Paulo, 2010, especialmente as p. 28-32 e 70-102. Também cabe citar o trabalho de Beatrix Heintze que também analisou a obra de Henrique de Carvalho e destacou a importância desta fonte para além do entendimento dela ser "um mero conjunto de informações isoladas, de entre as quais podemos escolher as que mais nos convêm". Para tanto, ver: HEINTZE, Beatrix. A rare insight into African aspects of Angolan history: Henrique Dias de Carvalho's records of his Lunda expedition, 1884-1888. Portuguese Studies Review, 19 (1-2), 2011, p. 93-113. Agradeço a Beatrix Heintze pela generosidade em me enviar o seu artigo.
  • 8
    Cf.: TAVARES, Ana Paula. Na mussumba do Muatiânvua quando a Lunda não era leste. Estudo sobre a "Descripção da viagem à mussumba do Muatiânvua" de Henrique de Carvalho. Dissertação de mestrado, Literatura Brasileira e Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1995, p. 24.
  • 9
    CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 203-216.
  • 10
    Os ambaquistas eram africanos e luso-africanos que se destacaram nas relações comerciais e nos serviços de secretariado junto aos titulares políticos africanos. Este termo identitário, derivado do presídio português de Ambaca, mais do que se remeter a atributos físicos, já que a maioria dos ambaquistas eram homens negros que se autodenominavam brancos, ligava-se mais a características culturais. De acordo com Beatrix Heintze, na segunda metade do século XIX, fase de aprofundamento europeu nos territórios africanos, foram estes homens os pioneiros por excelência na África centro-ocidental, divulgadores "da língua portuguesa oral e escrita, além da sua língua materna, o kimbundu, de novas plantas de cultura e de novas técnicas culturais". Estes foram os conhecimentos que lhes possibilitaram o exercício dos ofícios de sapateiro, alfaiate, carpinteiro e das funções de intérprete e escriba junto aos dirigentes africanos. Sobre a figura dos ambaquistas, ver: HEINTZE, Beatrix. "Brancos" negros: os ambaquistas. Pioneiros africanos. Caravanas de carregadores na África centro-ocidental (entre 1850 e 1890). Lisboa: Editorial Caminho, 2004, p. 229-259 e ainda p. 17, 59-61, 84-89; DIAS, Jill. Estereótipos e realidades sociais: quem eram os "ambaquistas"? In: II SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE A HISTÓRIA DE ANGOLA. Construindo o passado angolano: as fontes e a sua interpretação. Actas. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 597-623. Sobre a contradição da colonização portuguesa, no século XX, com relação a estes agentes sociais, de assimilados a ameaçadores, ver: VERA CRUZ, Elizabeth Ceita. O estatuto do indigenato. Angola: A legalização da discriminação na colonização portuguesa. Lisboa: Novo Imbondeiro, 2005, p. 132-141.
  • 11
    Parte desta correspondência foi analisada por Beatrix Heintze em: HEINTZE, Beatrix. A lusofonia no interior da África Central na era pré-colonial. Um contributo para a sua história e compreensão na actualidade. Cadernos de Estudos Africanos, n. 7-8, jul. de 2004 a jul. de 2005, p.179-207. Disponível em: http://cea.iscte.pt/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=73. Acesso em: 20/10/2010.
  • 12
    A expressão nacionalismo português exacerbado e doloroso é de MATOS, Sérgio Campos. Historiografia e memória nacional no Portugal do século XIX (1846-1898). Lisboa: Edições Colibri, 1998, p. 495.
  • 13
    PINTO, Alexandre Alberto da Rocha de Serpa. Como eu atravessei África do Atlântico ao mar Indico. Viagem de Benguella à contra-costa (1877-1879). 2 volumes. Londres: Sampson Low, Marston, 1881; CAPELLO, Hermenegildo e IVENS, Roberto. De Angola à contra-costa. 2 volumes. Lisboa: Imprensa Nacional, 1886.
  • 14
    Pombeiros eram africanos que atuavam entre as sociedades do interior como agentes representantes dos comerciantes estabelecidos nas regiões mais próximas da costa atlântica. Para o diário da viagem de Pedro João Baptista e Anastácio Francisco, ver: BAPTISTA, Pedro João. Viagem de Angola para Rios de Sena; Explorações dos portugueses no interior d'África meridional (...) Documentos relativos à. Annaes Maritimos e Coloniaes, v. III, 5-11, 1843, p. 162-190; 223-230; 278-297; 423-440; 493-506; 538-552.
  • 15
    Cf.: LEITÃO, Manuel Correia, Viagem que eu ..., op. cit., p. 27.
  • 16
    Cf.: VANSINA, Jan; SEBESTYÉN, Evá. Angola's eastern hinterland in the 1750s: A text edition and translation of Manoel Correia Leitão's "Voyage" (1755-1756). History in Africa, vol. 26, 1999, p. 355 para a definição do termo malagi, p. 364 para o mapa que define a sua localização e p. 325 para o texto supracitado de Manuel Correia Leitão, que pode ser comparado com o da edição de Gastão de Sousa Dias anteriormente referenciado. Agradeço ao historiador Roquinaldo Ferreira pela indicação desta tradução para o inglês do relato de Correia Leitão realizada por Vansina e Sebestyén.
  • 17
    Podem ser identificados como "lunda do Mwant Yaav" os ndembu (ou lunda-ndembu do atual noroeste da Zâmbia, estudados por Victor Turner), os yaka, os luvale (ou lunda-baluvale), os imbangalas do reino de Kasanje, e as sociedades do Luapula sob o domínio de Kazembe, entre outros, que ainda hoje reivindicam esta identificação. Cf.: PALMERIM, Manuela. Identidade e heróis civilizadores: "l'empire lunda" e os aruwund do Congo. In: JORNADAS DE ANTROPOLOGIA, 1, 1998. Anais. Braga, Portugal. Disponível em: http://repositorium.sdum.uminho.pt. Acesso em: 26/08/2012.
  • 18
    Para Isabel de Castro Henriques, a transformação desta situação de inacessibilidade dos europeus a rota Mussumba-Kazembe, exclusivamente africana, e que integrava o comércio das duas costas do continente em direção à mussumba, iniciou-se na década de 1840 com a ação cada vez mais intensa das quibucas (caravanas) ovimbundas. Cf.: HENRIQUES, Isabel de Castro. Percursos de modernidade em Angola: Dinâmicas comerciais e transformações sociais no século XIX. Lisboa: IICT, 1997, p. 391.
  • 19
    Morupue era a forma como os portugueses chamavam o Mulopwe, título da autoridade máxima luba adotado pelo Muatiânvua. Agradeço ao parecerista deste artigo por esta informação.
  • 20
    LACERDA e ALMEIDA, F. J. Manuscrito. Ofício do governador dos Rios de Sena, para d. Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro da Marinha e Ultramar, datado de 21 e 22 de março de 1798. Coleção IHGB, DL39, 10.01.01, doc. 676, fl.6.
  • 21
    Cf.: THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico. 1400-1800. Tradução de Marisa Rocha Mota. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 89 e 94. Para uma visão contrária a de Thornton ver o texto de ALPERN, Stanley B. What Africans got for their slaves: A master list of European trade goods. History in Africa, vol. 22, 1995, p. 5-43.
  • 22
    Apud HENRIQUES, Isabel de Castro. Percursos de modernidade em Angola ..., op, cit., p. 266 e 768, respectivamente.
  • 23
    CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. I, op. cit., p. 325-326.
  • 24
    CARVALHO, Henrique A. D. Expedição portuguesa ao Muatiânvua. Ethnographia e história tradicional dos povos da Lunda. Lisboa: Imprensa Nacional, 1890, p. 707. Doravante Ethnographia e história.
  • 25
    Sobre a elaboração das instruções da expedição, ver: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. I, op. cit., p. 7-14 e 35-42.
  • 26
    Verso do poeta açoriano Emmanuel J. Botelho citado por HENRIQUES, Isabel Castro. Território e identidade. O desmantelamento da terra africana e a construção da Angola colonial (c. 1872-1926). Lisboa, 2003. Disponível em: http://www.ics.ul.pt/agenda/seminarioshistoria/pdf/isabelcastrohenriques. Acesso em: 20/10/2010.
  • 27
    HENRIQUES, Isabel de Castro. A materialidade do simbólico: marcadores territoriais, marcadores identitários angolanos (1880-1950). Textos de História, vol. 12. Brasília: UnB, nº 1/2, 2004, p. 9-10.
  • 28
    Cf.: HENRIQUES, Isabel Castro. A materialidade do simbólico..., op. cit., p.11.
  • 29
    Cf.: HENRIQUES, Isabel Castro. A materialidade do simbólico..., op. cit., p. 11-12.
  • 30
    Cf.: HENRIQUES, Isabel Castro. Território e identidade..., op. cit., p. 20.
  • 31
    Segundo o cronista anônimo, a água do rio Bengo era: "...transportada em pipas que os pretos conduzem n'umas barcas bastante mal construídas, a que dão o nome de dongos, e que fazem navegar á força de remos, quando a brisa, que é o vento que reina de dia de oeste a leste, não é suficientemente forte para poderem usar d'umas velas d'esteira fabricadas por eles..." Cf.: ANÔNIMO. Quarenta e cinco dias em Angola. Apontamentos de viagem. Porto: Typographia de Sebastião José Pereira, 1862, p. 20-21.
  • 32
    Para o importante estudo de Rosa Cruz e Silva sobre a urbanidade antiga das regiões ao longo do rio Kwanza, ver: SILVA, Rosa Cruz e. O corredor do Kwanza: a reurbanização dos espaços - Makunde, Kalumbo, Massangano, Muxima, Dondo e Kambambe. Século XIX. In: SANTOS, Maria Emilia Madeira (dir.). III REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DE ÁFRICA. A África e a instalação do sistema colonial (c. 1885 - c. 1930). Actas. Lisboa: IICT, 2000, p. 157-173.
  • 33
    Conformados em presídios e distritos, eram eles: os presídios da Muxima, Massangano, Pungo Andongo, Ambaca, Duque de Bragança, Cambambe, Novo Redondo, São José de Encoje, Benguela e Caconda e os distritos da Barra do Bengo, Barra do Dande, Barra de Calumbo, Dande, Icolo e Bengo, Zenza e Quilengues, Dembos e Golungo e Dombe Grande, Bailundo, Bié, Huambo e Quilengues de Benguela. Cf.: DIAS, Jill. Angola. In: ALEXANDRE, Valentim e DIAS, Jill (eds.). Nova história da expansão portuguesa. O império africano 1825-1890. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 357.
  • 34
    Para uma análise da importância da região da Muxima e, especialmente, da padroeira da igreja do presídio, Nossa Senhora da Muxima, para as populações locais, inclusive para os Kisamas, ver o quarto capítulo de RIBEIRO, Elaine. Barganhando sobrevivências..., op. cit., p. 146-197.
  • 35
    SILVA, Rosa Cruz e. O corredor do Kwanza ..., op. cit., p. 162-163, especialmente.
  • 36
    BIRMINGHAM, David. Trade and conflitc. The Mbundu and their neighbours under the influence of the Portuguese, 1483-1790. Oxford: Clarendon Press, 1966, p. 44.
  • 37
    Sobre a criação da feira de Kasanje na região de comércio abundante com as sociedades a leste do rio Kwango e que se tornou um empreendimento controlado por agentes portugueses e pelos imbangalas de Kasanje, ver o estudo de VELLUT, Jean-Luc. Notes sur le Lunda et la frontière luso-africaine (1700-1900). Études d'histoire africaine, t. III. 1972, p. 94-110.
  • 38
    Sobre as estações civilizadoras, ver: WESSELING, Henk. Dividir para dominar: a partilha da África (1880-1914). 2ª edição. Tradução de Celina Brandt. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ; Revan, 2008, p. 92-101.
  • 39
    Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. A Lunda ou os estados do Muatiânvua. Domínios da soberania de Portugal. Lisboa: Adolpho, Modesto & Cia., 1890, p. 32. A razão para a instalação desta estação na região do comércio promovido pelos shinjes foi a mesma utilizada para o itinerário da viagem, uma vez que independentes do controle de Kasanje, os shinjes não impuseram obstáculos a passagem da expedição, como era o costume dos imbangalas de Kasanje dificultarem a passagem por suas terras. Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. I, op. cit., p. 438-439.
  • 40
    CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 159.
  • 41
    CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 427.
  • 42
    Nesta região, Henrique de Carvalho reconheceu o caminho como "largo e direito", de "bom piso e limpo de capim". O major português mencionou ainda a "vozearia da gente acampada" e o caso do ambaquista que foi até ele oferecer seus serviços e que a tudo que lhe era perguntado respondia: "pois não! é verdade!". Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. I, op. cit., p. 110-111.
  • 43
    CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 249.
  • 44
    CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. I, op. cit., p. 271-272.
  • 45
    CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 180.
  • 46
    CARVALHO, Henrique A. D. Ethnographia e história...., op. cit., p. 463.
  • 47
    Interessante verificar a aproximação feita por este informante do costume imbangala ao português (das terras de muene puto) de construir altares para os zâmbi (crucifixos). Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Ethnographia e história..., op. cit., p. 517-518.
  • 48
    Xá e ambanza são títulos ou expressões de grandeza e de superioridade que correspondem ao "dom" em português. Xa era mais utilizado entre os lundas, enquanto que ambanza, entre os imbangalas e os songos, e também se referia às localidades. Cf. HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos ..., op. cit., p. 441 e 449.
  • 49
    CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 510-513; 520 e passim
  • 50
    CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. III, op. cit., p. 47 e 49.
  • 51
    CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. III, op. cit., p. 51.
  • 52
    CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. III, op. cit., p. 120. Segundo Isabel Castro Henriques, as armas lazarinas eram "espingardas de carregar pela boca, utilizando pederneira, muito procuradas pelos Quiocos, originalmente fabricadas em Braga e, mais tarde, principalmente em Liège". Cf.: HENRIQUES, Isabel C. Percursos da modernidade em Angola..., op. cit., p. 761. Mais sobre a importância destas espingardas para os quiocos ver, no mesmo estudo de Henriques, as páginas 617 a 619.
  • 53
    CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. III, op. cit., p. 891. Outros chefes imbangalas com quem Henrique de Carvalho esteve foram os ambanzas Ambumba, Quibuco, Quinzaje, Quinguri, Quingonga, Quitari, Xa Madamba, Quinguri 2º e Xa Muteba. Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. III, op. cit., p. 912.
  • 54
    CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. IV, op. cit., p. 562-563. Mais sobre a intensiva presença dos imbangalas no comércio do interior e o controle que detinham sobre a circulação, os carregadores e as técnicas do comércio por etapas, ver: HENRIQUES, Isabel C. Percursos da modernidade em Angola..., op. cit., p. 563-585 e HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos..., op. cit., p. 163-183.
  • 55
    HEINTZE, Beatrix. As caravanas de carregadores: a "internet" do século XIX. In: Pioneiros africanos..., op. cit., p. 381.
  • 56
    Cf.: HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos..., op. cit., p. 386.
  • 57
    Cf.: HENRIQUES, Isabel Castro. A materialidade do simbólico..., op. cit., p. 11.
  • 58
    Esta contradição, segundo Alexsander Lemos de Almeida Gebara, é uma característica presente, especialmente, nos relatos de viagem do século XIX, a que o pesquisador deve estar atento na análise deste tipo de fonte. GEBARA, Alexsander Lemos de Almeida. Argumento apresentado pelo historiador na comunicação Daomé e o final do tráfico escravo - o testemunho de Frederick Forbes, tenente do esquadrão inglês de combate ao tráfico. In: XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - História e ética. Anais. Fortaleza, Ceará, 2009.
  • 59
    A imprescindibilidade do serviço dos carregadores devia-se pela travessia dos caminhos difíceis e pelo conhecimento especializado destes agentes no transporte das diferentes mercadorias, como tentamos demonstrar, mas também pela incidência da mosca tsé-tsé que impedia a utilização de animais de carga para o transporte.
  • 60
    MARGARIDO, Alfredo. Les porteurs: forme de domination et agents de changement en Angola (XVII-XIXe. siècles). Revue Française d´Histoire d´Outre-mer, tomo LXV, 1978, 240, p. 377-400.
  • 61
    Importantes reflexões sobre os tratados de vassalagem em momentos e espaços diferenciados da relação das sociedades africanas com os portugueses encontram-se em HEINTZE, Beatrix. O contrato de vassalagem afro-português em Angola no século XVII. Angola nos séculos XVI e XVII. Estudo sobre fontes, métodos e história. Luanda: Kilombelombe, 2007, p. 387-436 e em SANTOS, Gabriela Aparecida. Reino de Gaza: o desafio português na ocupação do sul de Moçambique (1821-1897). São Paulo: Alameda, 2010. Em ambos os trabalhos aparecem, nos tratados analisados, as cláusulas da arregimentação de trabalhadores.
  • 62
    Cf.: MARGARIDO, Alfredo. Les porteurs..., op. cit., p. 378.
  • 63
    Apud MARGARIDO, Alfredo. Les porteurs..., op. cit., p. 379.
  • 64
    Cf.: CASTRO, João de Almeida de Melo e. Manuscrito. Minuta sobre as dificuldades do tráfico no interior da África, devido à falta de carregadores, 22 de junho de 1810. Col. IHGB DL82, 05.14.
  • 65
    Apud MARGARIDO, Alfredo. Les porteurs..., op. cit., p. 384.
  • 66
    Sobre as plantações de café da região do Cazengo, que demandavam mão-de-obra, ver: DIAS, Jill. O Kabuku Kambilu (c. 1850-1900): uma identidade política ambígua. In: SEMINÁRIO ENCONTRO DE POVOS E CULTURAS EM ANGOLA. Actas. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 24-25 e 28.
  • 67
    Sendo esta, aliás, a intenção de alguns estadistas portugueses: o decreto de 1836 propiciar, a partir da manutenção da mão-de-obra africana no continente, a colonização dos territórios africanos e o controle do comércio regional. Para tanto ver o primeiro capítulo de RIBEIRO, Elaine. Barganhando sobrevivências ..., op. cit., p. 37-69.
  • 68
    Por isso, segundo Alfredo Margarido, "estabelecer o inventário dos carregadores significa desenhar (ou indicar) o verdadeiro retrato do modo de pilhagem português em Angola". Cf.: MARGARIDO, Alfredo. Les porteurs..., op. cit., p. 397.
  • 69
    No final do século XIX, a partir do cálculo de alguns produtos de exportação, Alfredo Margarido chegou ao número de 200.000 carregadores envolvidos anualmente com as atividades comerciais. MARGARIDO, Alfredo. Les porteurs..., op. cit., p. 397. Para este novo contexto mercantil das últimas décadas do século XIX, caracterizado por uma relativa independência das pessoas comuns com relação às autoridades políticas africanas em estabelecer negócios por conta própria, Isabel de Castro Henriques argumentou ter sido este um quadro de inovação das estruturas africanas capazes de reduzir a importância dos muitos sistemas de controle que passavam pelas regras do parentesco e, para tanto, citou a seguinte observação de Henrique de Carvalho: "Outr'ora o commercio entre estrangeiros e a tribu era só feito pelos potentados, porque estes se consideravam senhores dos bens e vidas dos seus povos. Hoje pode dizer-se que isto acabou. Depois do potentado ter feito o seu negocio com qualquer comitiva de commercio, podem com ella negociar os individuos de mais consideração na terra, e pouco depois os que queiram, porém o potentado só garante os compromissos feitos com sua auctorisação, do que tira uma percentagem". Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Ethnographia e história...., op. cit., p. 692, apud HENRIQUES, Isabel C. Percursos da modernidade em Angola..., op. cit., p. 563.
  • 70
    Paul Pogge, 1880, apud HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos..., op. cit., p. 40.
  • 71
    Max Buchners, 1878-1882, apud HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos..., op. cit., p. 43. Conhecedores das ervas locais, os ngangas eram "especialistas dos saberes ligados à religião e à medicina". Cf.: HENRIQUES, Isabel C. Percursos da modernidade em Angola..., op. cit., p. 765.
  • 72
    Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 198-199.
  • 73
    A problemática da desistência dos grupos de carregadores pode ser relacionada com a organização das caravanas "para lá das zonas de influência portuguesa", no dizer de Beatrix Heintze, que argumenta ainda que "a maioria dos carregadores só aceitava percorrer etapas relativamente curtas". Cf.: HEINTZE, Beatrix. Pioneiros africanos..., op. cit., p. 265-266.
  • 74
    CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 197.
  • 75
    CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 200. A expedição permaneceu por dois meses no vale do Camau aguardando a chegada de carregadores, por fim, como isso não aconteceu, Henrique de Carvalho decidiu avançar as cargas aos poucos até a região do rio Cuilo, onde estabeleceu a estação Cidade do Porto. Cf.: Descripção..., vol. II, op. cit., p. 247 e 253.
  • 76
    Cacuata era o título lunda dos líderes comunitários e emissários do muatiânvua que desempenhavam várias funções administrativas, militares e comerciais. Tâmbu foi o cacuata que se comprometeu com Henrique de Carvalho, ainda em Malanje, de "aplanar alguma difficuldade com carregadores, e mesmo ser-nos util no transito" até a mussumba. Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. I, op. cit., p. 317.
  • 77
    Cf.: CARVALHO, Henrique A. D. Descripção..., vol. II, op. cit., p. 197.
  • 78
    Cf.: DIAS, Jill. Angola ..., op. cit., p. 357.
  • 79
    Subjacente às ideias de "negociação", "noção de direitos" e "fluidez da concepção de resistência" existe logicamente a referência ao trabalho do historiador E. P. Thompson, em especial, aos artigos publicados em THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2013

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2012
  • Aceito
    23 Abr 2013
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