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NEITZEL, SÖNKE & WELTZER, HARALD. SOLDADOS – SOBRE LUTAR, MATAR E MORRER. SÃO PAULO: COMPANHIA DAS LETRAS, 2014.

NEITZEL, SÖNKE; WELTZER, HARALD. SOLDADOS – SOBRE LUTAR, MATAR E MORRER. SÃO PAULO: COMPANHIA DAS LETRAS, 2014

Com seu livro Soldados – sobre lutar, matar e morrer, o historiador alemão Sönke Neitzel e seu conterrâneo Harald Weltzer, sociólogo e livre-docente em psicologia social, embrenharam-se no espinhoso terreno da revisão do papel da Wehrmacht – como era chamado o conjunto das Forças Armadas da Alemanha durante o Terceiro Reich – tanto no front quanto no terrível empreendimento genocida dos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Espinhoso, porque há muito se construiu um consenso, na historiografia contemporânea, segundo o qual os militares alemães no Terceiro Reich não podem ser confundidos com os militantes nazistas nem se lhes pode atribuir participação direta nos hediondos crimes do regime hitlerista, em especial no Leste da Europa. De acordo com essa narrativa, cuidadosamente engendrada e preservada pelos oficiais remanescentes daquela luta e pelas próprias instituições militares alemãs, os soldados do país teriam apenas participado de batalhas regulares, contra inimigos tão armados quanto eles, sofrendo as terríveis privações da frente russa, enquanto coube aos fanáticos nazistas a sádica tarefa de exterminar incontáveis civis inocentes e indefesos, inclusive mulheres e crianças. O trabalho de Neitzel e Weltzer questiona essa imagem e também os próprios historiadores da Segunda Guerra, propensos, segundo eles, a tirar conclusões sobre a Wehrmacht a partir da presunção de que é possível ser civilizado quando se veste uma farda, se empunha uma arma e se tem ordem (e licença) para matar em larga escala.

A originalidade da pesquisa se evidencia já na escolha das fontes. Trata-se de uma série de transcrições de conversas entre soldados alemães presos pelos ingleses durante a guerra. Confinados em celas nas quais foram instalados microfones, para captar os diálogos que poderiam revelar aos Aliados segredos militares da Alemanha, eles contam detalhes de suas ações na frente de batalha e expõem seus medos, desejos e perversões em meio à brutalidade dos combates e dos crimes de guerra. São milhares de registros desse tipo, que só se tornaram de conhecimento público em 1996 e sobre os quais nenhum pesquisador havia se debruçado desde então. Em 2001, Neitzel encontrou milhares dessas preciosas páginas no National Archives de Londres, a partir de pistas dadas pelo livro Operation Drumbeat: the dramatic true story on Germany’s first U-boat attacks along the American coast in World War Two (Naval Institute Press, 1990), do veterano historiador militar americano Michael Gannon, que mencionou a existência dos protocolos de gravação das conversas. De fato, os primeiros documentos que Neitzel analisou eram diálogos entre tripulantes de submarinos – os U-boats aos quais Gannon se referiu. Mais tarde, ele conta ter encontrado depoimentos de militares alemães não só da Marinha (Kriegsmarine), mas também da Força Aérea (Luftwaffe) e do Exército (Heer), e não apenas nos arquivos britânicos. No National Archives de Washington, ele relata ter se deparado com um acervo duas vezes maior que o inglês. Ciente de que não teria condições de lidar sozinho com essa enorme massa de documentos, Neitzel pediu ajuda ao colega Weltzer, interessado no estudo da percepção da violência no ambiente da guerra. Para Weltzer, conforme escreveu no livro, aquele material abria uma "perspectiva absolutamente singular e nova para a história das mentalidades da Wehrmacht" (p. 13). Não é um exagero.

Os documentos registram as reações de soldados que falavam sem saber que estavam sendo ouvidos por terceiros. Os militares demonstram uma espontaneidade que raras vezes se verifica nos depoimentos a respeito da Segunda Guerra comumente encontrados. De fato, uma parte considerável das fontes primárias produzidas pelos alemães que se engajaram nos conflitos é composta de memórias que se organizam num discurso destinado a se perpetuar de alguma maneira, isto é, não têm caráter informal e visam influenciar a narrativa futura. É o caso, por exemplo, do material recolhido por Leon Goldensohn na prisão de Nuremberg, que abrigou os altos oficiais nazistas antes do julgamento a que foram submetidos após a guerra. Militar que serviu no Exército americano e atuou na frente ocidental, Goldensohn era também psiquiatra e acabou trabalhando em Nuremberg, sendo o responsável pela saúde mental dos réus – que, afinal, tinham de saber exatamente do que estavam sendo acusados, conforme rezam os manuais do direito em países civilizados. O médico entrevistou diversos desses criminosos, gerando um material precioso, porém problemático: os carrascos nazistas ali encarcerados sabiam que poderiam ser condenados à morte e aproveitaram a brecha aberta por Goldensohn para testar estratégias de defesa e também para inventar toda sorte de argumentos. O resultado é uma série de depoimentos com muitas mentiras evidentes – como quando Hermann Göring, o número dois do regime nazista, diz ao psiquiatra que "não sabia de nada" a respeito do genocídio1 1 GOLDENSOHN, Leon. As entrevistas de Nuremberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 155. – e algumas verdades chocantes – quando o mesmo Göring diz que não se incomodaria muito com a matança dos judeus se ela significasse a vitória na guerra.2 2 Idem, p. 175. Coisas assim entreabrem o universo nazista como poucas outras fontes fazem. Mas, definitivamente, não têm a mesma força dos protocolos obtidos por Weltzer e Neitzel.

Na introdução do livro, Weltzer sugere que o leitor interessado apenas nas declarações dos soldados "podem pular diretamente para a página 83" (p. 19). A sugestão deve ser totalmente ignorada. É fato que os relatos são impactantes – e a edição do livro tratou de valorizar em sua capa, com um quê de sensacionalismo, o fato de que a obra expõe "as práticas bárbaras dos soldados do Terceiro Reich reveladas em gravações secretas" –, mas o estudo que os autores fazem dos marcos referenciais dos soldados, na primeira parte do trabalho, é essencial para compreender as principais questões suscitadas pela investigação.

Para ler os diálogos e entender o mundo dos soldados, dizem os autores, é necessário "livrar-se dos impulsos morais" (p. 16), isto é, evitar julgar aqueles atos atrozes a partir de critérios e referenciais que não dizem respeito exclusivamente à guerra. Trata-se da grande provocação do trabalho: convidar o leitor a despir-se de seus referenciais de civilização e da moral ocidental e procurar compreender como funciona a mentalidade de um soldado quando exposto às extraordinárias pressões do campo de batalha. Os diálogos revelam que a brutalidade é algo trivial para aqueles homens – e uma mesma conversa pode misturar a beleza de uma cidade com o relato do estupro de uma jovem russa, tudo como se fosse anedota de viagem.

Os autores argumentam que as ações dos soldados são determinadas pelo conjunto de referências que atuam sobre o indivíduo sem que este as escolha. Essas referências são confortáveis, pois oferecem respostas padronizadas para quase todos os acontecimentos do mundo, poupando os soldados da penosa tarefa de pensar – circunstância fundamental não apenas para a guerra, em que se mata sem remorso ou reflexão, mas para o sucesso do regime totalitário que os nazistas estavam tentando implementar. Afinal, o indivíduo que pensa é, como enfatizou Hannah Arendt, testemunha de seus próprios atos e deve conviver consigo mesmo e, portanto, com a culpa.3 3 ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 44. "Se me recuso a lembrar, estou realmente pronta a fazer qualquer coisa", argumenta Arendt.4 4 Idem, p. 159.

Os autores explicam que o marco referencial de primeira ordem é aquele que se aceita de modo inquestionável – no nível do inconsciente. Já o de segunda ordem é o referencial histórico, geográfico, social e político, determinado e limitado no tempo. O de terceira ordem diz respeito a acontecimentos específicos, como a guerra. O de quarta ordem é o referencial da personalidade do indivíduo, que só se pode conhecer se esse indivíduo for próximo – o que não é o caso das fontes disponíveis. Os diálogos, portanto, revelam marcos de segunda e terceira ordem, isto é, o "mundo do Terceiro Reich".

Marcos referenciais são essenciais para compreender situações e reações que, vistas em retrospectiva, são apenas cruéis. Quando a maioria dos alemães comuns não reagiu ao ver seus concidadãos judeus serem tratados como "inimigos do Reich" e submetidos a todo tipo de violência, isso os torna cúmplices do crime – mas os autores do livro sugerem que julgá-los a partir das referências atuais implica colocar-se em uma posição de superioridade moral difícil de sustentar. É preciso compreender, eles argumentam, que deixar de socorrer alguém não significa necessariamente que se trata de falta de compaixão, mas de falta de referência: se ninguém socorre, o "certo" é não socorrer, apenas observar. São comuns os documentos que atestam esse tipo de reação – a população alemã poderia até ficar "agastada" com a violência nazista, conforme observou o então cônsul dos Estados Unidos em Leipzig, David Buffum,5 5 NOAKES, Jeremy e PRIDHAM, Geoffrey. Nazism, a documentary reader, vol. 2: State, economy and society – 1933-1939. Exeter: University of Exeter Press, 1998, p. 361. ao relatar o pogrom que ficou conhecido como Kristallnacht (Noite dos Cristais), em novembro de 1938, mas o fato é que poucos se arriscaram a defender as vítimas. E não se pode dizer que agiram assim apenas porque estivessem intimidadas. É óbvio que estavam – afinal, a violência era extrema e explícita –, mas o marco referencial do Terceiro Reich, conforme o correto raciocínio de Weltzer e Neitzel, transformou a brutalidade em fato da vida, quase uma obrigação ante os desafios impostos pelo impiedoso "inimigo do Reich".

O marco referencial é tão forte que muitas vezes resulta em obrigações que se sobrepõem à própria necessidade de sobrevivência. Exemplos não faltam: o soldado que se mata para não se deixar capturar; o judeu que se nega a fingir que não é judeu para escapar de seu algoz; o terrorista suicida. No mundo moderno, em que o déficit de orientação é a norma, marcos referenciais dão segurança ao indivíduo, até mesmo para decidir sobre a vida e a morte – a de si mesmo e a de terceiros.

A partir dessa premissa, os autores questionam se os soldados sabiam que estavam participando de uma guerra de extermínio e se podiam ter agido de outra forma. Eis a primeira e talvez a mais importante problematização formulada pelo livro.

Há dezenas de discursos de Hitler acerca da necessidade de não ter compaixão pelos inimigos, em especial depois da invasão da União Soviética. "Não se pode lutar uma guerra usando métodos do Exército da Salvação", ironizou o ditador, após ouvir muxoxos sobre atrocidades no front.6 6 KERSHAW, Ian. Hitler – 1936-1945 Nemesis. Nova York: Norton, 2000, p. 248. Muitos desses discursos foram dirigidos a soldados. No entanto, nada disso autoriza concluir que os soldados participaram conscientemente da guerra de extermínio deflagrada no leste da Europa, pois isso permitiria supor que eles tinham escolha e, como se sabe no Exército, não há escolha. Sendo assim, Weltzer e Neitzel argumentam que não é possível falar em questões morais, pois na guerra isso não existe. Em qualquer Exército, lembram os autores, apenas cumprem-se ordens.

Uma guerra – sobretudo um conflito devastador como a Segunda Guerra Mundial – é um acontecimento de enorme complexidade, que não oferece referências seguras a seus principais atores, os soldados, de modo que eles precisam recorrer aos marcos oferecidos pela vida na caserna. Nela, a única forma de sociabilidade é o espírito de camaradagem de trincheira, razão pela qual é a esse elo – e somente a ele – que recorrem os soldados quando todo o resto de seus referenciais lhes é suprimido. A lógica, portanto, indica que os soldados que participaram da guerra de extermínio nem sequer estavam pensando na aniquilação total do inimigo, pois este era um objetivo que não lhes dizia respeito, e sim somente às altas autoridades do Reich. Tampouco estavam pensando nas questões transcendentais levantadas pela ideologia nazista. Em qualquer guerra, matar é apenas uma tarefa ordinária, da qual os soldados se desincumbem como se fossem meros trabalhadores numa linha de montagem. Em todo o processo do genocídio dos judeus, prevaleceu esse espírito burocrático – o sociólogo polonês Zygmunt Bauman lembra que o departamento da SS encarregado da realização do extermínio era a "Seção de Economia e Administração".7 7 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 33. O mais perturbador, a partir dessa constatação, é que o empreendimento genocida foi realizado não por indivíduos mentalmente doentes ou pervertidos e, sim, em sua maioria, por cidadãos cumpridores de seus deveres, por bons pais de família, por jovens sonhadores, por pessoas de boa formação moral.

Temos de aceitar – é o que nos dizem Weltzer e Neitzel, como já havia feito Hannah Arendt em diversos textos – que os alemães que colaboraram com o extermínio dos judeus eram normais e que o modo como agiram foi ditado não necessariamente pelas crenças pessoais, mas principalmente pelas normas militares e pelas relações sociais características da vida no Exército, as únicas possíveis em tempos de guerra – num ambiente em que aniquilar o "diferente" era considerado não um crime, mas uma virtude. Assim, afirmam os autores, não sem uma nota de provocação, não era necessário ser nazista convicto – e nem mesmo ser antissemita – para matar judeus. Weltzer e Neitzel argumentam que os soldados participaram de assassinatos de judeus não porque os odiassem, mas porque estavam envolvidos em um "processo coletivo dinâmico, nos quais as pessoas se convertiam em autores de verdadeiros massacres sem motivação particular" (p. 291). Esta hipótese, a mais importante do livro, contraria a polêmica teoria, capitaneada pelo historiador americano Daniel Jonah Goldhagen em meados dos anos 1990, segundo a qual os alemães que participaram do empreendimento genocida estavam embebidos do que ele chamou de "antissemitismo eliminacionista", algo que seria peculiar ao mundo germânico. A proposta de Goldhagen teve grande repercussão, por sua óbvia controvérsia, mas encontrou escasso apoio entre os mais destacados historiadores do nazismo – ainda que estes sempre enfatizem que a militarização da vida alemã era um fato incontestável desde o século 19 e que isso teve peso decisivo no rebaixamento dos ideais humanistas, isto é, do código moral burguês, o que pavimentou o caminho do genocídio.

Quando Hitler chegou ao poder, em janeiro de 1933, a Alemanha já estava pronta para ele – isto é, seus jovens soldados, assim como os pais destes e a cúpula militar aceitavam a ideia de entrega total a seu Führer, na expectativa de ver triunfar a fantasia sobre a Grande Alemanha. Como dizem Weltzer e Neitzel, era preciso ser fanático, um termo, aliás, muito comum nos comunicados oficiais do governo nazista. O termo "fanático" toma o lugar de "heroico" e "virtuoso" – e o soldado alemão, convencido disso, "acaba acreditando que um fanático é mesmo um herói virtuoso, e que sem fanatismo não é possível ser herói",8 8 KLEMPERER, Viktor. LTI: a linguagem do Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009, p. 56. como escreveu Victor Klemperer, linguista judeu que permaneceu na Alemanha durante a guerra e testemunhou a degradação da sociedade alemã graças ao nazismo.

O fanatismo naturaliza a violência. Nas conversas obtidas por Weltzer e Neitzel, os soldados demonstram estar habituados à crueldade extrema e acabam até mesmo se divertindo com essa brutalidade – embora, de maneira genérica, muitos soldados lamentem a violência cometida contra os judeus. A violência havia se tornado um fim em si mesmo. O que os autores chamam a atenção, reiteradas vezes, é que, nesse aspecto, os soldados alemães não se diferenciam de nenhum outro, em circunstâncias semelhantes. Não há vítimas na guerra; apenas alvos, mesmo que incluam mulheres e crianças. Os soldados relatam em detalhes como atiraram em inocentes, na expectativa de maravilhar seus ouvintes, soldados como eles. O narrador desse tipo de "façanha" – matar bebês, por exemplo – espera provar a seu interlocutor que é um soldado exemplar. Superar o mal-estar estava entre as qualidades exigidas dos soldados. Todos agiam assim, ainda que soubessem perfeitamente que, em condições normais, matar é crime – e matar crianças é um crime hediondo. É o que os autores classificam de "estado coletivo de exceção" (p. 125), no qual os soldados se esforçam para encontrar justificativas para o que estão fazendo e aplacar sua consciência – o que implica uma óbvia questão moral, a despeito do que sustentam Weltzer e Neitzel.

Do ponto de vista alemão, o problema, portanto, não era o extermínio em si e, sim, o risco de que se tomasse consciência dos crimes. Por esse motivo, os alemães, ao final da guerra, tudo fizeram para esquecer o morticínio de que tomaram parte. Como salientou Arendt, o esquecimento é o grande cúmplice do mal e o mal sem memória é um mal sem raízes e sem limites – e, portanto, "pode chegar a extremos impensáveis e dominar o mundo".9 9 ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 160.

Essa ausência quase absoluta de referências reais permeia os diálogos entre os soldados. Também não há menção aos pilares do discurso nazista, especialmente à Volksgemeinschaft, isto é, à comunidade nacional cuja necessidade incondicional de defesa sustentava as políticas raciais que resultaram no extermínio. Para Weltzer e Neitzel, esse aspecto é crucial e deveria ser levado em conta pelos pesquisadores do nazismo, pois seria importante indício de que a ideologia nazista teve peso menor, para os soldados, do que supõe a maioria dos estudos sobre o Terceiro Reich. "É preciso parar de exagerar o papel da ideologia", eles escrevem (p. 384). A ideologia dá os motivos para a guerra, mas não explica os crimes.

Ademais, os soldados tampouco falam de política, pois a política havia se reduzido a uma mera questão de crença em Hitler (e não no nazismo, pois havia muitos antinazistas entre os militares). Mesmo sabendo, em determinada altura, que a guerra estava perdida, poucos soldados alemães eram capazes de admitir que houvessem acreditado num falso líder, num impostor aventureiro. A fé no Führer funcionou, ela em si, como um "processo de socialização" – se todos acreditam, então, ele só pode estar certo, afinal. Continuar a confiar em Hitler reduzia a dissonância cognitiva entre o discurso triunfante e a realidade da derrota na guerra.

Portanto, Weltzer e Neitzel localizam o papel da Wermacht no extermínio dos judeus não no contexto da construção ideológica do nazismo, mas no contexto da guerra propriamente dita, e se questionam o que foi especificamente alemão e o que, por outro lado, foi um traço comum aos campos de batalha. Na guerra, dizem eles, a seleção do inimigo respeita critérios técnicos, baseados em treinamento e no cumprimento irrestrito do dever. Os autores afirmam que essa atitude dos soldados pouco tem a ver com preconceito racial – embora, é claro, os anos de doutrinação nazista devam ter ser-vido para dar conforto moral aos assassinos. Mesmo o genocídio é justificado como um ato "defensivo", pois, afinal, os judeus eram os "inimigos do Reich".

Em vista disso, Weltzer e Neitzel concluem seu importante trabalho com a sugestão de que a História e a Sociologia abandonem o aspecto moral da guerra e da morte no campo de batalha, isto é, que deixem de tratar o ato de matar em larga escala, inclusive inocentes, como se fosse uma situação excepcional, como se fosse possível (ou mesmo desejável) agir de outra forma nessas circunstâncias. É preciso, dizem, ter "distanciamento" para analisar a ação dos soldados – isto é, quando os pesquisadores pararem de definir a violência como um desvio, seremos capazes de conhecer melhor a sociedade do que se continuarmos a "compartilhar as ilusões que a sociedade criou sobre si mesma" (p. 411).

Referências bibliográficas

  • ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
  • BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
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  • KLEMPERER, Viktor. LTI: a linguagem do Terceiro Reich Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.
  • NOAKES, Jeremy & PRIDHAM, Geoffrey. Nazism, a documentary reader, vol. 2: State, economy and society – 1933-1939. Exeter: University of Exeter Press, 1998.
  • 1
    GOLDENSOHN, Leon. As entrevistas de Nuremberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 155.
  • 2
    Idem, p. 175.
  • 3
    ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 44.
  • 4
    Idem, p. 159.
  • 5
    NOAKES, Jeremy e PRIDHAM, Geoffrey. Nazism, a documentary reader, vol. 2: State, economy and society – 1933-1939. Exeter: University of Exeter Press, 1998, p. 361.
  • 6
    KERSHAW, Ian. Hitler – 1936-1945 Nemesis. Nova York: Norton, 2000, p. 248.
  • 7
    BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 33.
  • 8
    KLEMPERER, Viktor. LTI: a linguagem do Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009, p. 56.
  • 9
    ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 160.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2014
  • Aceito
    13 Nov 2014
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