Acessibilidade / Reportar erro

MOTTA, RODRIGO PATTO SÁ; REIS, DANIEL AARÃO; RIDENTI, MARCELO (ORG.). A DITADURA QUE MUDOU O BRASIL – 50 ANOS DO GOLPE DE 1964. RIO DE JANEIRO: ZAHAR, 2014.

MOTTA, RODRIGO PATTO SÁ; REIS, DANIEL AARÃO; RIDENTI, MARCELO. A DITADURA QUE MUDOU O BRASIL – 50 ANOS DO GOLPE DE 1964. RIO DE JANEIRO: ZAHAR, 2014

A obra A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do Golpe de 1964 foi lançada em 2014, diante da efeméride dos cinquenta anos do golpe civil-militar. Este, como os outros livros publicados nesse ano, busca refletir sobre o regime autoritário na história recente do país. Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta organizaram uma coletânea de artigos e cumpriram a difícil missão de selecionar um grupo de pesquisadores de programas de pós-graduação para apresentar as tendências de interpretação do fenômeno autoritário recente. A coletânea de artigos, juntamente com outras duas publicações (Ditadura e democracia no Brasil e As universidades e o regime militar), compõe a coleção 1964: 50 anos depois, publicada pela editora Zahar.

Diante das polêmicas do cinquentenário do Golpe de 1964, os organizadores do livro procuraram manter uma prudente distância das disputas políticas na representação do evento e da ditadura, tendo o cuidado de "preservar a pluralidade de opiniões e evitar quaisquer dogmatismo" (p. 9). Ademais, a obra serve como instrumento de educação e divulgação científica, uma vez que muitos cidadãos não conhecem o passado recente do Brasil.

Para refletir sobre o que mudou no país, vários autores fazem uma apreciação sobre o que foi a modernização conservadora no período ditatorial. Essa noção foi discutida em vários artigos da coletânea, sendo uma apropriação que a historiografia brasileira fez de um conceito da sociologia histórica. Inicialmente usado por Barrington Moore Jr., em Origens da ditadura e democracia (1983), o conceito tinha em vista a análise do longo processo de mudança social, observando o papel das estruturas agrárias na conformação de um novo pacto político na modernização, na passagem das sociedades pré-industriais para industriais. Sendo uma análise em perspectiva comparada, Moore Jr. analisou as diferenças da formação do capitalismo na Inglaterra, França, Estados Unidos, Alemanha e Japão. Os dois últimos países, diferentes dos três primeiros, teriam como característica a modernização autoritária: a constituição de um pacto entre uma fração das classes médias e industriais com as elites agrárias na articulação de uma transformação social caracterizada pela negação dos direitos civis e ascensão de regimes ditatoriais.

A marca da modernização conservadora é a construção de uma sociedade capitalista em que os valores democráticos eram colocados em segundo plano. Como salientou Renato Ortiz, "a ideia de modernização conservadora se aplicaria no Brasil à emergência da modernidade como um todo, abarcando diversos períodos de nossa formação histórica, da Primeira República ao Estado Novo" (p. 114). Ainda que Ortiz e outros autores da coletânea indiquem a apropriação do conceito para explicar contextos históricos diferentes da ditadura militar, os artigos não realizaram uma interpretação da forma como a noção de modernização conservadora foi apropriada pela historiografia do Brasil República. Essa talvez seja a limitação de uma obra de coletânea, em que cada autor, num espaço delimitado, tenta apresentar uma parte de sua pesquisa sem poder se aprofundar em questões de fundo teóricas e revisões bibliográficas mais extensas.1 1 Seria interessante analisar como ocorreram os vários usos do termo da sociologia histórica de Moore Jr. na historiografia brasileira. Importante também seria notar as diferenças entre a forma como nos anos 1980 houve uma apropriação da sociologia histórica para compreender o Golpe de 1964, com autores como Guilherme O’Donnell em Desenvolvimento político ou mudança política? (1980), e como hoje lemos e nos apropriamos desses autores das ciências sociais.

No livro, o principal intento do uso do conceito modernização conservadora é analisar as mudanças nas estruturas políticas, econômicas, educacionais, culturais, apontando para o complexo rol de transformações operadas no Brasil após o Golpe de 1964. Além disso, a noção de modernização conservadora ganha particular destaque numa crítica sobre a forma como os regimes ditatoriais são vistos na atualidade. As histórias da ditadura contadas pelas sociedades democráticas tendem a minimizar a forma como os cidadãos pactuaram com o regime político e a maneira como eles foram perenes – no caso brasileiro, 21 anos. As narrativas sobre o passado recente muitas vezes reproduzem de forma esquemática um jogo dualista entre Estado autoritário e resistência(s), sem considerar a legitimação do regime. Segundo Rollenberg e Quadrat:

As explicações que partem das oposições vítima e algoz, opressor e oprimido, buscando respostas na repressão, na manipulação, no desconhecimento (nós não sabíamos) (...) levaram a distorções consideráveis. Apegadas às necessidades do presente, essas construções acabam por encobrir, o passado, o presente, os valores e as referências das sociedades que sobrevivem às rupturas, pontos de continuidade, a sinalizar possibilidades de futuro (Rollenberg & Quadrat, 2010, p. 11, grifo nosso).

Analisando a ditadura como produto social, Marcelo Ridenti, no artigo "As oposições à ditadura: resistência e integração", observa que a "dominação alcança alguma estabilidade apenas se não se restringir ao uso da força", logo "qualquer regime só pode durar ao longo do tempo se construir alguma base de legitimação" (p. 30). Assim, é importante notar que a ditadura brasileira nunca se declarou como tal e se autodenominava uma "democracia relativa". Manteve o funcionamento do Congresso Nacional com as restrições de liberdade e a imposição do bipartidarismo, realizava o julgamento legal de prisioneiros políticos ainda que sob o crivo da Justiça Militar com perseguição e tortura, e governava com base numa carta constitucional promulgada durante o regime militar em 1967, que foi reformada por uma Emenda Constitucional em 1969, restringindo liberdades individuais e políticas.

Destarte, enfocar as bases de legitimação do regime é uma necessidade nas análises do fenômeno autoritário recente. Para enfatizar as bases de legitimação do regime, vários analistas têm insistido no uso do termo "ditadura civil-militar" e não "ditadura militar". O Golpe de 1964 foi constituído por forças heterogêneas, reunindo correntes políticas conservadora, liberal, nacionalista num consenso "anticomunista" (p. 48-53). Na contenda da Guerra Fria entre as forças capitalistas e "democráticas" sob hegemonia norte-americana e o "comunismo" sob a influência da União Soviética, a ditadura civil-militar se alinhou com o primeiro.2 2 No livro, esse alinhamento do Brasil com os Estados Unidos e as relações internacionais do período foram analisadas por Miriam Gomes Saraiva e Tull Vigevani no artigo "Política externa do Brasil: continuidade em meio à descontinuidade, de 1961 a 2011". Do ponto de vista das classes sociais, Ridenti salienta que o golpe de Estado contou com o apoio do empresariado nacional e multinacional, das oligarquias rurais e de setores das classes médias, da grande imprensa e até dos trabalhadores. Após o golpe, os partidos de esquerda e o sindicalismo foram sistematicamente "expurgados" de suas lideranças mais representativas, através da violência sistemática do Estado. Todavia, a maioria dos partidos manteve um compromisso tácito com o golpe, sobrevivendo até o Ato Institucional nº 2 (AI-2) na conformação do bipartidarismo.

Como frisou Ridenti, "o uso da força não significava necessariamente ignorar a oposição, antes procurando resolver suas reivindicações de modo palatável para a consolidação de uma nova ordem, modernizada autoritariamente" (p. 45). Nesse sentido, pode-se compreender os dois tipos de oposição que se constituíram no país. A "oposição clandestina" formou-se majoritariamente de dissidências do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que buscavam a estratégia de luta armada. Essa oposição foi sistematicamente reprimida com violência pelo aparato de repressão. A "oposição institucional" reuniu-se em torno do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e se confrontava com a Aliança Nacional Renovadora (Arena) após a imposição do bipartidarismo. Na dinâmica de uso da violência e integração do grupo de "oposição institucional", o governo militar negociou e impôs medidas de modernização mais ou menos pactuada na ordem produtiva, no Poder Judiciário, no sistema partidário, na indústria cultural, na educação etc. Dentro desse processo fica evidente que

o regime implantado em 1964 foi o coroamento de um longo processo de revolução burguesa no Brasil, sob bases autoritárias, como propôs Florestar Fernandes. Indo além: a complexidade da modernização, com o tempo, tornou anacrônicos os moldes ditatoriais. Lentamente, em oposição – mas também em interação com as políticas governamentais –, foi se consolidando, de maneira contraditória, uma esfera pública com regras para arbitrar condutas e os embates entre os agentes sociais a fim de estabelecer direitos e deveres legalmente reconhecidos, inclusive de competição eleitoral. Isso ocorria em paralelo à tradicional troca de favores, prática herdada de uma sociabilidade de características pré-capitalistas, sem contar a violência institucionalizada em órgãos como as Polícias Militares (p. 46-47).

A complexidade da modernização e o "coroamento" do capitalismo no Brasil só podem ser avaliados num amplo quadro analítico que perpassa os campos da economia, cultura e política. Como demonstra os artigos de Francisco Vidal Luna e Herbert S. Klein, durante o período militar, as mudanças demográficas (o aumento da população urbana e do nível de instrução, a redução das taxas de fecundidade e mortalidade), o crescimento econômico e o investimento estatal na construção civil, indústria de bens de consumo duráveis e de base, sustentado com o financiamento de recursos externos e do "arrocho salarial", mudou o perfil da população e do capitalismo brasileiro (p. 66-112). Essas mudanças ocorreram com o aumento da desigualdade social e a preservação de algumas estruturas sociais tradicionais, como o latifúndio na estrutura agrária. Todavia, a modernização não se manteve sob controle do Estado: havia aspectos contraditórios nesse processo que colaboraram para colocar em xeque o regime.

O campo da produção cultural ganha destaque na análise de Renato Ortiz. No texto "Revisitando o tempo dos militares", fez uma releitura de sua produção intelectual, analisando a forma como ocorreu a modernização conservadora no conjunto dos produtos culturais do período. Entre 1965 e 1979, a ditadura criou uma política cultural de largo escopo, através de várias instituições: Embratel, Conselho Federal de Cultura, Embratur, Ministério das Telecomunicações, Embrafilme, Telebrás, Funarte, Fundação Pró-Memória e Radiobrás. Conforme o autor salienta, "controle e expansão, essas duas tendências não são necessariamente antagônicas, mas convivem numa tensão constante" durante o período ditatorial. O convívio tenso dessas duas dinâmicas permite a compreensão do que foi uma censura seletiva no mercado de bens culturais: o repressor atingiu algumas obras, mas não a generalidade da produção que se expandiu.

Nesse cenário, tornou-se possível a formação de um mercado de bens simbólicos em nível nacional. De acordo com Ortiz, "o advento da indústria cultural coincide com o período da ditadura, esse é o momento em que a televisão transforma-se num veículo de massa, o cinema consolida-se como atividade financiada pelo Estado, desenvolve-se de maneira ampla a indústria fonográfica, editorial e publicitária" (p. 119). A indústria cultural estruturou-se pela instituição de uma lógica empresarial, voltada ao mercado, e por uma ideologia centrada no indivíduo, consumo e na liberalização dos costumes. Como observa Ortiz, a lógica modernizadora da indústria cultural abalava os pressupostos centrais da ideologia conservadora e tradicional dos militares, alicerçada na família, religião e nos valores culturais elitistas (p. 120-121). Assim, não foi pela imaginação da revolução social, constituída por uma arte engajada, que o regime militar foi posto em xeque, mas pelo próprio desenvolvimento dos valores individualistas e de mercado difundidos pela indústria cultural.

A produção cultural engajada ganha destaque nessa interpretação do processo de modernização. Nos anos 1960, a bossa nova, ascensão da música popular brasileira (MPB), o cinema novo, Centro Popular de Cultura (CPC) e Teatro de Arena deram a cara de uma forte transformação do campo do cinema, teatro e da música. Refletir sobre o destino da arte engajada no período que sucede à publicação do Ato Institucional nº 5 (1968) é um desafio para a historiografia. Ortiz avalia que, a partir dos anos 1970, "os critérios mercadológicos se sobrepõem ao engajamento político", com o progressivo apagamento dos projetos identitários nacionais, que se estruturavam na releitura do "nacional-popular" (p. 125). Miriam Hermeto, no artigo "O engajamento, entre a intenção e o gesto", faz uma análise da obra Gota d’água (1975) de Paulo Fontes e Chico Buarque. Tomando Gota d’água como produto teatral, musical e editorial, a autora traz um matiz crítico à visão de Ortiz. Ela não nega a preponderância do vetor mercadológico, mas mostra como o produto cultural foi concebido "como um projeto híbrido, mescla de engajamento político e estratégias comerciais". Assim,

entre 1975 e 1980, [as montagens de Gota d’água] foram marcadas pelo hibridismo entre o teatro comercial e o político, mas parecem ter tido traços mais acentuadamente políticos no início e mais comerciais no fim do período. Na primeira temporada, as tonalidades políticas do espetáculo eram muito fortes, não apenas do ponto de vista da postura dos autores e da equipe profissional a seu redor, mas também no que se referia às opções cênicas. Dali até 1980, a montagem foi se tornando cada vez mais comercial, mais autônoma em relação aos princípios de construção de um tipo de teatro engajado (...) (p. 212).

Partindo de um espetáculo e centrando sua análise no campo teatral, Hermeto ponderou como a classificação de "teatro alternativo" e "empresarial" não consegue explicar a experiência de montagem de uma peça. A produção teatral envolve estratégias de engajamento político e de mercado, sem necessariamente uma excluir a outra. O espetáculo analisado pela autora, antes de ser uma exceção, pode ser considerado um caso excepcional normal, se analisarmos obras artísticas coetâneas à Gota d’água. As ambiguidades e a hibridização da lógica de ação no processo de modernização da sociedade atravessam a lógica de ação no campo da cultura como um todo.

Quando se analisa a expansão da educação universitária no regime militar, a ambivalência nas lógicas que estruturaram a experiência social e ação política ganha ainda mais evidência. No texto "A modernização autoritária-conservadora nas universidades e a influência da cultura política", Rodrigo Patto Sá Motta enfoca a reforma universitária. Tendo em vista a mobilização do movimento estudantil de 1968 contestando a ditadura e o "acordo Mec-Usaid", o governo Médici (1969-1974) desencadeou forte repressão às esquerdas em geral; por outro lado, o ministro da Educação, Jarbas Passarinho, incorporou algumas demandas dos estudantes e do projeto universitário das esquerdas pré-Golpe de 1964 na reforma universitária. Essa incorporação neutralizava a conotação esquerdista das demandas/propostas e reforçava seu caráter técnico e modernizante para o "desenvolvimento" da sociedade brasileira. Assim, a reforma universitária implicou na racionalização de recursos, expansão de vagas na graduação, mudança nos exames vestibulares, aumento da participação da iniciativa privada no ensino superior, reorganização da carreira docente federal, criação de departamentos em substituição ao sistema de cátedras, criação de cursos de pós-graduação e criação de novas universidades federais e estaduais, com um projeto milionário de construção de novos campi (p. 57).

Nesse período, a universidade tornar-se-ia espaço privilegiado para o embate de forças políticas no regime militar. Aqui, como no campo da indústria cultural, observa-se que o "resultado das políticas modernizadoras colocava em xeque as utopias conservadoras, pois solapava as bases da sociedade tradicional ao promover a mobilidade social e urbana em ritmo acelerado" (p. 51). Ademais, na universidade, pode-se observar in loco o "jogo de acomodações" que a modernização implicava. A análise de Motta é original por enfatizar a heterogeneidade das forças políticas que perpetraram o golpe de Estado e a forma como projetos dispares e conflitivos são negociados no espaço público e nas estruturas de Estado. No caso das universidades, um grupo conservador fez uso instrumental do aparato de segurança para impor medidas conservadoras, confrontando grupos progressistas que não se identificavam com as pretensões tradicionalistas do governo militar. Todavia, esse confronto, assim como na reforma universitária, ocorria em meio a um "jogo de acomodação": em meio às arbitrariedades e "expurgos" realizados nas universidades, havia uma negociação para que não se perdessem quadros técnicos e intelectuais da esquerda que foram importantes no projeto de modernização das universidades.

A originalidade da interpretação de Motta aponta para o "jogo de acomodação" como um traço da cultura política brasileira. Segundo o autor, se olharmos a história do país no Império e na República, veremos a perpetuação de uma tradição política caracterizada pela negociação e acomodação de forças antagônicas3 3 Para melhor compreensão da formulação de cultura política brasileira é necessário ler o texto de Motta (2009). . Assim,

Para compreender a natureza paradoxal do regime autoritário é fundamental perceber a influência de certos traços da cultura política brasileira. A própria tendência a acomodar no "barco" do poder grupos diferentes, com projetos díspares e às vezes contraditórios, é parte da tradição política do país. A conciliação-negociação como estratégia política é recorrente na história do Brasil, e o episódio de 1964, em linhas gerais, se encaixa no modelo. Nesse sentido, a própria modernização conservadora também não é novidade, já que se manifestou em momentos anteriores, sobretudo, na ditadura varguista. Assim, a disposição para a montagem de projetos políticos ambíguos, à base da acomodação, está inscrita na cultura do país (p. 54).

Sob inspiração do conceito de cultura política, mas sob outro prisma, observando os regimes de historicidade produzidos sobre a ditadura,4 4 Para compreensão da relação entre cultura política e cultura histórica ver o texto de Gomes (2005). Daniel Aarão Reis Filho propõe a instigante interpretação dos marcos de interpretação do fenômeno autoritário recente. No artigo "A ditadura faz cinquenta anos: história e cultura política nacional-estatista", Reis Filho argumenta sobre como a memória construída sobre o regime apaga a colaboração civil à ditadura, quando delimita seus marcos iniciais e finais entre 1964 e 1985. Seria a eleição indireta de Tancredo Neves e José Sarney o fim da ditadura? Como observa, "para a grande maioria, a ditadura acabou em 1985, por mais que isso seja incongruente, como o fato de o novo presidente, José Sarney, ter sido um ‘homem da ditadura’. Mas a memória é assim: substitui evidências pela vontade e pelo interesse, que, no caso, se articulam para responsabilizar unicamente os militares pelo ‘fato ditatorial’" (p. 13). Demarcar o fim da ditadura em 1985 institui uma narrativa que isenta a sociedade civil de responsabilidade sobre os "anos de chumbo", como se tudo não passasse de um "pesadelo" superado com a instituição da "Nova República".

Nesse sentido, cabe notar que a ditadura civil-militar, portanto produto social constituído na (e pela) sociedade civil brasileira, teve 1979 como um dos marcos mais importante para o seu fim – o ano da anistia, revogação dos atos institucionais e emergência de atores políticos que constituiriam a democracia nos anos seguintes na transição que se estenderia até a promulgação da Constituição de 1988. E aqui, novamente, a coletânea traz dois artigos que são fundamentais para a compreensão dos novos atores e desdobramentos que sucederam a democratização do país. Marco Aurélio Santana e Ricardo Antunes, no artigo "Para onde foi o ‘novo sindicalismo’?", explicam a trajetória de um projeto político-sindical que ganhou voz com Luiz Inácio Lula da Silva, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), e o Partido dos Trabalhadores (PT) e como o "novo sindicalismo" se transformou em vista dos dilemas de uma "década neoliberal" – os anos 1990. Carla Simone Rodeghero, no artigo "A anistia de 1979 e seus significados, ontem e hoje", analisa as transformações que o conceito de "anistia" passou durante a história republicana. Ela observa como a Lei de Anistia de 1979 englobou, além das vítimas da ditadura, militares e agentes do aparato repressivo – caráter inédito em outras anistias da história da República. A originalidade da Anistia de 1979 tinha como objetivo bloquear as reivindicações pautadas nos direitos humanos que demandavam a responsabilização dos agentes do Estado pelos crimes praticados durante o regime militar. A anistia tinha a pretensão de perpetuar o esquecimento sobre o terror de estado que vigorou durante a ditadura.

Ao analisar a ditadura civil-militar, Reis Filho aponta a importância de se estudar a construção da reciprocidade entre sociedade e regime político em período anterior ao Golpe de 1964. O autor avança na discussão sobre o que denomina "nacional-estatismo", a cultura política que explica a permanência e mutações do projeto de desenvolvimento urbano-industrial nos governos Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart e que teria sido sepultada no governo do Castelo Branco. Contudo, o autor mostra uma renovação dessa tradição política com os governos de Costa e Silva (1967-1969) e Médici (1969-1974), no período do "milagre econômico". A reconfiguração da cultura nacional-estatista explica, em parte, a legitimidade do governo Médici, que foi capaz de produzir um sentimento de "euforia e exaltação" da nação (p. 2526). Nessa mesma seara, observando a "popularidade" de um governo que foi taxado como o mais terrível dos "anos de chumbo", Janaína Cordeiro analisa a memória do presidente Médici em Bagé. No texto "Por que lembrar? A memória coletiva sobre o governo Médici e a ditadura em Bagé", ela avança na compreensão das representações sobre o governo Médici na contemporaneidade.

Nos diferentes textos reunidos no livro, é preponderante a análise que enfatiza a relação entre história política e cultural, havendo poucos que privilegiam a perspectiva da história social thompsoniana. A pesquisa de Anderson Almeida, em "A grande rebelião: os marinheiros de 1964 por outros faróis", é uma exceção na coletânea. Entretanto, o trabalho enfatiza o período anterior ao Golpe de 1964, ao enfocar a maneira como se constituiu o conflito de classe dos cabos e oficiais de baixa patente na Marinha. Seria importante recuperar a forma como os diferentes segmentos sociais, no processo de modernização conservadora da ditadura, constituíram sua experiência social, moldando sentimentos, visões de mundo e práticas políticas. Como os segmentos de maior e menor status social experimentaram a complexa modernização do período?

Cabe ainda salientar que a história da formação das classes sociais no processo de modernização conservadora poderia dar maiores pistas sobre o fenômeno da violência na ditadura. O crescimento do aparato repressivo atuando em várias esferas sociais mostra a relevância de se compreender as relações complexas entre autoritarismo e sociedade.5 5 No artigo "O aparato repressivo: da arquitetura ao desmembramento" presente no livro, Mariana Joffily analisou a formação do sistema de informação e repressão da ditadura militar. Ao contrário da memória sobre os "porões" da ditadura – algo obscuro e escondido dos olhos do cidadão –, a violência foi algo evidente nas rotinas sociais dos brasileiros. Como os limites entre o lícito e ilícito, a percepção do justo e injusto e as fronteiras do discurso da ordem e desordem dos órgãos de repressão eram refeitos na experiência dos vários segmentos sociais? Só avançando nesses caminhos, podemos creditar o devido peso da violência no processo de modernização conservadora e não contarmos uma história em que o período ditatorial seja uma epifania do desenvolvimento da nação.

Por cumprir o propósito de apresentar as novas tendências de interpretação sobre o período da ditadura e sugerir promissores campos de análise, o livro A ditadura que mudou o Brasil merece ser lido, sendo obra fundamental para professores e pesquisadores da história recente.

Referências bibliográficas

  • GOMES, A. M. C. História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões. In: SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história, v. 1. 1ª ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 21-44.
  • MOORE JR., Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
  • MOTTA, R. P. S. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia. In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). Culturas políticas na história: novos estudos Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009, p. 13-37.
  • ROLLEMBERG, Denise & QUADRAT, Samantha Viz. Memória, história e autoritarismo. In: ROLLEMBERG, Denise & QUADRAT, Samantha Viz (org.). A construção social dos regimes autoritários. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p.11-33.
  • 1
    Seria interessante analisar como ocorreram os vários usos do termo da sociologia histórica de Moore Jr. na historiografia brasileira. Importante também seria notar as diferenças entre a forma como nos anos 1980 houve uma apropriação da sociologia histórica para compreender o Golpe de 1964, com autores como Guilherme O’Donnell em Desenvolvimento político ou mudança política? (1980), e como hoje lemos e nos apropriamos desses autores das ciências sociais.
  • 2
    No livro, esse alinhamento do Brasil com os Estados Unidos e as relações internacionais do período foram analisadas por Miriam Gomes Saraiva e Tull Vigevani no artigo "Política externa do Brasil: continuidade em meio à descontinuidade, de 1961 a 2011".
  • 3
    Para melhor compreensão da formulação de cultura política brasileira é necessário ler o texto de Motta (2009).
  • 4
    Para compreensão da relação entre cultura política e cultura histórica ver o texto de Gomes (2005).
  • 5
    No artigo "O aparato repressivo: da arquitetura ao desmembramento" presente no livro, Mariana Joffily analisou a formação do sistema de informação e repressão da ditadura militar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    03 Abr 2014
  • Aceito
    02 Jul 2014
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História Av. Prof. Lineu Prestes, 338, 01305-000 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (55 11) 3091-3701 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistahistoria@usp.br