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O “CORISCO PRETO”: CANGAÇO, RAÇA E BANDITISMO NO NORDESTE BRASILEIRO

THE “BLACK CORISCO”: CANGAÇO, RACE AND BANDITRY IN THE BRAZILIAN NORTHEASTERN REGION

Resumo

A finalidade deste artigo é reconstituir os fatos que levaram à prisão de Manoel Luiz de Jesus - um bandido negro que se identificava como Corisco Preto, do bando de Lampião -, no sertão nordestino, em 1931, para daí discutir os relatórios e pareceres produzidos sobre ele pelo sistema penitenciário de Sergipe, especialmente pelo Gabinete de Biologia Criminal, responsável por periciar o grau de degenerescência do delinquente. Para além de desvelar aspectos da trajetória de Manoel Luiz, a proposta é surpreender, a partir desse personagem, as conexões sinuosas entre cangaço, raça e banditismo à luz da medicina legal.

Palavras-chave:
Raça; cangaço; medicina legal

Abstract

The aim of this article is to list the factors that took Manoel Luiz de Jesus to prison in 1931, in the backwoods of the Northeast region of Brazil. He was a black criminal, identified as Black Corisco, from Lampião’s gang. The article also discusses the reports and opinions written about him by professionals of the prison system in Sergipe, mainly from those in the Criminal Biology Bureau, which was responsible for examining the criminal’s degree of degeneracy. Despite revealing the aspects of Manoel Luiz’s trajectory, this article also aims at surprising because of his character and of the sinuous connections among cangaço, race and banditry in light of forensic medicine.

Keywords:
Race; cangaço; forensic medicine

“Virgulino Ferreira [Lampião], um mulato, almocreve, analfabeto. [Já Corisco era esta] figura sinistra. Um branco degenerado.” Graciliano Ramos (1975RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas. São Paulo: Martins, 1975., p. 132, 148).

No dia 16 de agosto de 1909 a Gazeta de Notícias, um dos principais jornais da capital da República, publicou em sua primeira página uma matéria remetida pelo seu correspondente de Aracaju. Intitulada “Uma cidade invadida por cangaceiros”, a matéria informava que Propriá, “uma importante cidade” de Sergipe, “foi ontem invadida repentinamente por um numeroso grupo de audazes cangaceiros que infestam a zona norte deste estado, que escolheram para campo de suas rapinagens e depredações”. Segundo o correspondente, “foi imenso o pânico da população da laboriosa cidade”. Logo que foi dado o alarme a autoridade policial tomou as providências para resistir à invasão, “reunindo todos os recursos de que dispunha, e se propôs a capturar os cangaceiros que resistiram, travando-se renhido combate, de que resultaram vários feridos e uma morte”. Foi ferido gravemente um soldado de polícia, tendo sido morto um cangaceiro. Para finalizar a reportagem, o correspondente procurava tranquilizar a opinião pública: “A ordem [em Propriá] foi felizmente restabelecida, achando-se a população satisfeita com as medidas de repressão da autoridade policial. Ao que consta, o governo do estado está preparando uma nova força para ir em perseguição dos cangaceiros”.1 1 Uma cidade invadida por cangaceiros. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 16/08/1909, p. 1.

Entre 1900 e 1940, aproximadamente, deu-se o auge do cangaço na região Nordeste do Brasil, um fenômeno associado aos bandoleiros que, armados, atuavam nos limites do sertão e do agreste, cruzando fronteiras de vários estados e cidades, agindo, no início, com o “argumento de vingança, de preferência interfamiliar (ou ingressando nos bandos como ‘refúgio’, para proteger-se da perseguição da polícia ou de outros inimigos), para em seguida utilizar essa modalidade de banditismo rural como forma de sobrevivência, ou seja, para obter ganhos materiais por meio de roubos, saques e extorsões”.2 2 PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 17. Esses ataques, como o de Propriá, geravam pesadelos e calafrios na população. Bastava a notícia de que os cangaceiros estavam próximos da cidade para que a vida normal se alterasse. Em alguns casos, suspendia-se o trabalho, acabavam-se as festas e até os enterros eram abandonados. Por sua vez, as autoridades policiais reforçavam o sistema de segurança.

O aparecimento do cangaço está relacionado ao sistema político, jurídico, econômico e social do Nordeste brasileiro; à decadência e reveses da cadeia produtiva ligada à agricultura e pecuária, à vida de penúria da população sertaneja, às penosas secas, à ausência do poder público, às injustiças advindas dos “coronéis” e seus jagunços, às rivalidades e brigas fratricidas entre clãs familiares, aos abusos e truculência da polícia, aos códigos de honra, vingança e violência do sertão, à fragilidade das instituições responsáveis pela lei, ordem e justiça, à falta de perspectivas e esperanças de dias melhores. No entanto, essa explicação adquire sentidos e significados mais complexos quando cruzada com a própria história dos bandoleiros, chamados de cangaceiros. Sem essas trajetórias individuais, pondera Billy Jaynes Chandler, a narrativa histórica nada mais é do que uma estrutura, desprovida do drama, dos dilemas e das ambiguidades das “vidas desses homens ou da sociedade em que essas vidas se desenrolaram”.3 3 CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 31. Entre os cangaceiros, destacaram-se figuras como Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Ângelo Roque e Jararaca, porém, nenhuma delas ganhou tanta notoriedade como Virgulino Ferreira, o vulgo Lampião.4 4 A respeito do cangaço, ver também QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. História do cangaço. São Paulo: Global, 1986; NASCIMENTO, José Anderson. Cangaceiros, coiteiros e volantes. São Paulo: Ícone, 1998; MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa, 2004; GRUNSPAN-JASMIN, Élise. Cangaceiros. São Paulo: Terceiro Nome, 2006.

Em 1916, Lampião fez sua estreia no banditismo rural, percorrendo com seu bando de salteadores, a pé ou a cavalo, diversos estados nordestinos. Como um fora da lei, vivia da violência, intimidando, roubando fazendas, povoados e vilas; praticando “justiçamento”, estuprando mulheres e fazendo prisioneiros, pelos quais extorquia dinheiro em troca do resgate. Aqueles que despertavam sua inimizade eram saqueados, espancados, esfaqueados, mutilados e até mortos cruelmente. Tal faceta de Lampião e seus “cabras” não passou despercebida por Graciliano Ramos. Em livro póstumo que reunia uma série de crônicas publicadas entre as décadas de 1920 e 1950, o escritor alagoano, que morou no sertão, relata que, em “condições desagradáveis”, conheceu um “discípulo” de Lampião, um sujeito “imensamente forte, alourado, vermelhaço, de olho mau”. Esse sujeito teria dito que “todas as vezes que praticava um homicídio abria a carótida da vítima e bebia um pouco de sangue”. Ao ouvir essa declaração, Ramos ficou impressionado: “Anda por aí espalhada a longa série das barbaridades cometidas pelo terrível salteador, mas essa confissão voluntária dum companheiro dele surpreendeu-me”. Já em outra crônica, o escritor alagoano voltava a expressar seus sentimentos diante de tanta atrocidade praticada por aqueles sujeitos: “O cangaceiro tipo Lampião aniquila o inimigo: devasta-lhe os bens e, se não o mata, faz coisa pior - castra-o. Às vezes castra-o literalmente, o que é horrível”. Na opinião de Ramos, ele se valia desses requintes de crueldade porque precisava “conservar sempre vivo o sentimento de terror que inspira” e que era a “mais eficaz das suas armas”.5 5 RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas. São Paulo: Martins, 1975, p. 136, 142 e 153. Sobre o tema do cangaço na literatura brasileira, consultar REGO, José Lins do. Cangaceiros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980; DANTAS, Francisco. Os desvalidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996; RAMOS, Graciliano. Cangaços. Rio de Janeiro: Record, 2014.

Lampião era uma espécie de “bandido-guerrilheiro”6 6 O termo “bandido-guerrilheiro” é utilizado por Luiz Bernardo Pericás em oposição ao “bandido social”, categoria analítica formulada pelo historiador inglês Eric Hobsbawm (1975[1969]) na década de 1960 para se referir a determinados tipos de criminosos do meio rural: “A tipologia básica do ‘bandido social’ é bastante inexata, pelo menos no caso específico do cangaço, já que não consegue enquadrar um número significativo de tipos homogêneos de marginais dentro de um sistema amplo coerente. […] Assim talvez o termo ‘bandido-guerrilheiro’ fosse possivelmente o mais apropriado para o caso do cangaço, ainda que não designasse em toda amplitude as particularidades dessa modalidade”. Cf. PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 189. Para outras críticas e controvérsias girando em torno da “teoria” do “bandido social”, ver SLATTA, Richard W. (org.). Bandidos: the varieties of Latin American Banditry. New York: Greenwood Press, 1987 e JOSEPH, Gilbert M. On the trail of Latin American Bandits: a reexamination of peasant resistance. Latin American Research Review, Pittsburgh, vol. 25, n. 3, 1990, p. 7-53. Já no que concerne às análises historiográficas da produção acadêmica e não acadêmica sobre o fenômeno do banditismo nordestino e de algumas obras que dialogam com o assunto em âmbito internacional, conferir WIESEBRON, Marianne L. Historiografia do cangaço e estado atual da pesquisa sobre banditismo a nível nacional e internacional. Revista Ciência & Trópico, Recife, vol. 24, n. 2, 1996, p. 417-444 e FERRERAS, Norberto Osvaldo. Bandoleiros, cangaceiros e matreiros: revisão da historiografia sobre o Banditismo Social na América Latina. História, [online], vol. 22, n. 2, 2003, p. 211-226. da caatinga, que ludibriou e venceu forças policiais tantas vezes e de forma tão engenhosa, que o povo do sertão chegou a acreditar que fosse dotado de poderes miraculosos. Lampião se tornou objeto de temor e de respeito de uma vasta região. Inserido numa complexa rede de fornecedores, protetores e informantes, negociava com fazendeiros, autoridades públicas e chefes políticos locais. Amigo de Eronides Ferreira de Carvalho - que seria eleito governador de Sergipe em 1934 e ocuparia o cargo de interventor federal após o golpe de Getúlio Vargas, em 1937 - e de famílias poderosas - como os Brito, de Propriá -, recebeu por parte do Padre Cícero a patente de Capitão dos Batalhões Patrióticos. Levou uma vida pública fora do comum. Uma vez, em tom jocoso, declarou que seria governador de um novo estado sertanejo. Frequentemente entrevistado e fotografado, foi inclusive filmado. Não por acaso se converteu no bandido mais conhecido do Brasil. Sua fama e “glória”, comparadas a do gangster Al Capone, circularam para além da fronteira nacional, tendo sido manchete em jornais dos Estados Unidos.7 7 O pesquisador Frederico Pernambucano de Mello faz uma avaliação mais exagerada do quão notável foi Lampião: “Na história universal do banditismo dos tempos modernos não há quem possa oferecer contraste ao reinado de Lampião, quer pelo valor combativo, quer pela abrangência de espaço e de tempo dentro da qual esse reinado se arrastou. É figura ímpar nesse domínio, diz-se à unanimidade. Mitificado pela gesta sertaneja desde a madrugada de sua longa carreira, tal como acontecera anos antes com seu precursor Antônio Silvino, Lampião contaminaria com os passos das suas alpercatas de sete léguas toda uma época que escorre lenta do início dos anos 1920 ao início dos 1940, quando mortos, presos ou enxotados os remanescentes derradeiros da sua corte decaída”. Cf. MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa, 2004, p. 302-303. Sobre a trajetória de Lampião, ver ainda ARAÚJO, Antônio Amaury Corrêa de. Assim morreu Lampião. Rio de Janeiro: Brasília/Rio, 1976 e GRUNSPAN-JASMIN, Élise. Lampião, senhor do sertão. São Paulo: Edusp, 2001. Muito antes de sua morte, já tinha virado lenda.

É importante frisar que indivíduos de perfis díspares e heterogêneos cerraram fileiras no cangaço: alguns ex-escravos - como José, integrante do bando de Jesuíno Brilhante, e Vicente de Marina, membro do bando de Sinhô Pereira -, agricultores, criadores de miúças (cabras, ovelhas, porcos e galinhas), vaqueiros, artesãos, comerciantes, foragidos da Justiça, desertores da Força Pública e do Exército, pistoleiros, jagunços, desocupados, negros, brancos, mulatos, cafuzos e caboclos. Muitos indivíduos ingressavam no cangaço motivados por injustiças. Vendo-se naquela terra de ninguém entre a polícia e os cangaceiros, parte da população sertaneja se alistava na polícia, enquanto outra parte, com medo da polícia, ou tendo sofrido em suas mãos, tornava-se bandoleiro. Havia ainda aqueles indivíduos que escolhiam a vida no cangaço como meio de poder se vingar de algum crime cometido contra sua família por um inimigo pessoal ou por uma família rival. Entretanto, os motivos de uma boa parte dos cangaceiros nada tinham a ver com vingança ou injustiça das autoridades. A maioria, sem dúvida, arriscava-se a seguir Lampião ou Corisco porque não tinha nada melhor a fazer. O sertão pouco oferecia aos jovens senão o modesto trabalho no campo, com uma enxada e um facão, tal como acontecera com seus pais.

Portanto, a falta de alternativas interessantes talvez tenha sido um elemento importante para a opção de viver nos brigands. De acordo com o historiador Luiz Bernardo Pericás, o cangaço se converteu num “negócio”, num “emprego”, enfim, num “meio de vida”, chegando a ser visto como uma profissão. Os “novos” cangaceiros, em grande medida, à parte de motivos pessoais e entreveros com as volantes ou com membros de outras famílias, “entraram nas fileiras do cangaço vendo nelas a possibilidade de liberdade, prestígio e fortuna”.8 8 PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 56. Sobre o cangaço como negócio e meio de vida, consultar MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa, 2004, p. 117, 140, 381. Se o estilo de vida pacato e tradicional do interior suscitava perspectivas pouco animadoras para o jovem sertanejo, não resta dúvida de que o cangaço exercia um poder de atração. Celebrada em verso e prosa no imaginário social, a vida aventureira e “glamorosa” de cangaceiro era vista por alguns rapazes como promissora, emocionante e rentável, apesar dos perigos - e talvez por causa deles.

Desde 1929, Lampião e seu bando incursionavam por Sergipe, assaltando, pilhando, extorquindo, fazendo tropelias, torturando inimigos, quando não causando pânico em diversas cidades desse estado nordestino. Em Carira, os cangaceiros promoveram uma confusão. Ali permaneceram por algumas horas: passearam, fizeram compras, beberam cerveja e cachaça e pediram “contribuições” em dinheiro aos comerciantes. Alguns cidadãos se ausentaram da cidade, assombrados, e para onde os cangaceiros iam, muitas pessoas os acompanhavam. Lampião, em especial, era alvo da curiosidade e admiração. Sua cartucheira - comentavam - era de chamar a atenção: tinha dois palmos de largura e continha quatro fileiras de cartuchos, e duas mais de botões de ouro e prata. À uma hora da madrugada o bando montou nas mulas e partiu. Tempos depois, atacaram a cidade de Canindé, às margens do rio São Francisco, e, em Poço Redondo, saquearam uma fazenda e o comércio local, levando dinheiro e joias. Em 25 de novembro de 1929, Lampião e seus sequazes fizeram uma das mais célebres aparições públicas da carreira de cangaceiros. Foi em Capela, município situado a cerca de 67 quilômetros da capital do estado. Por volta de 7 horas da noite, o prefeito recebeu o recado que Lampião e seu bando estavam por perto. Uma hora depois, os onze cangaceiros entraram na cidade. “Conhecido diretor de importante repartição federal, que se encontrava na estação férrea”, relata o jornalista Zozimo Lima, “ao saber que Lampião tinha entrado na cidade, foi para a casa com as calças pesadas, infeccionando as ruas, fazendo os transeuntes, raros, levarem o lenço ao nariz”.9 9 Lampião em Capela”. Correio de Aracaju, Aracaju, 29/11/1929. In: LIMA, Zozimo. Variações em fá sustenido: crônicas sergipanas. 2. ed. Aracaju: Triunfo, 2003. p. 26-31. Como na cidade de Dores, Lampião exigiu uma “contribuição” dos cidadãos de Capela; nesse caso, a quantia de 20.000$000. O prefeito argumentou que os moradores da localidade eram pobres e, tendo enfrentado três anos de secas consecutivas, teriam dificuldades em arrecadar tal soma. O “rei do cangaço” então decidiu reduzir o valor da extorsão para 6.000$000, porque, disse ele, compreendia bem a situação de carência do povo nordestino, principalmente em épocas de estiagens prolongadas. Acordado o “desconto”, o chefe de polícia efetuou a coleta entre os cidadãos de maior poder aquisitivo - os negociantes e usineiros. Não houve dificuldade para arrecadar o dinheiro, pois, conforme disse uma das pessoas presentes, todos sabiam que Lampião “não era de brincadeira”. Os cangaceiros deixaram a cidade em direção a Aquidabã por volta das 3 horas da madrugada.10 10 Um passeio de Lampeão pelo município de Capela. A Batalha, Rio de Janeiro, 05/01/1930, p. 6. Aos poucos, Lampião aprendera a conhecer a região e podia sumir da vista do público, por diversas semanas. Tinha se familiarizado com Sergipe, onde encontrava pouca resistência por parte da polícia. Nos anos seguintes, os cangaceiros continuaram a operar clandestinamente, enfrentando escaramuças e promovendo ataques a diversos povoados e vilas.11 11 Um grupo de bandidos, chefiado por José Baiano, na fazenda Serra Preta, município de S. Paulo. Correio de Aracaju, 18/01/1935, p. 4.

Nesse contexto ocorreu um crime que, ao que parece, chocou o agreste e sertão sergipano. Na alta noite de domingo, 4 de janeiro de 1931, Manoel Luiz de Jesus - que se identificava como Corisco Preto, do bando de Lampião -, acompanhado de Andrelino Bispo de Jesus, chegaram a um lugar denominado Rio do Cágado, na cidade de São Paulo (atual Frei Paulo). Dirigiram-se à casa do lavrador José Antônio Conrado, vulgo José Conrado, e o chamaram para abrir a porta, pois ali estavam dois amigos seus. Como o “velho” relutou em atendê-los, os bandidos utilizaram outro disfarce, dizendo que eram da força do governo, que iam ali prender um criminoso. Por um instante o “velho” acreditou e abriu a porta, tendo sido logo agarrado e imobilizado por Andrelino, enquanto Manoel entrou na casa e começou a saqueá-la, avançando numa mulher e a obrigando a fugir desesperada para a mata. Momento de grande tensão. Manoel ficou agressivo, fez depredações e tentou violentar uma neta do “velho”. Em seguida, exigiu dinheiro e este lhe deu o que tinha em casa, uma quantia superior a 500$000. Insatisfeitos, os bandidos exigiram mais dinheiro - que teria sido prometido a Lampião por ocasião de sua passagem pela cidade. Então saíram com o “velho” para a parte externa da casa e deram-lhe uma cacetada, pressionando para que ele entregasse os cerca de 2.000$000 que supostamente havia escondido. Como o “velho” declarou que não tinha “dinheiro nenhum mais e nunca tinha visto Lampião”, foi murrado e espancado impiedosamente, até perder os sentidos, quando um dos bandidos disse: “vamos sangrá-lo”, e o outro retrucou: “não, vamos castrá-lo, que ele já está quase morto”. Enquanto um segurou o “velho”, o outro o castrou.12 12 Arquivo Geral do Judiciário do Estado de Sergipe (AGJES). Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Sumário de Culpa, Cx. 07/2643. Denúncia do Adjunto do Promotor Público, Deolindo Telles de Andrade, ao Ilmo. Sr. Dr. Juiz Municipal. São Paulo, 21/01/1931. Manoel Luiz de Jesus tornou-se, naquela época, o terror das populações sertanejas de Sergipe, já tão sacrificadas pelo banditismo campeante tendo à frente a figura de Lampião. Fez-se chefe de bando, assaltou, espancou, violentou, depredou, destruiu, na “fúria indomável do cangaceirismo cruel e amoral”.13 13 AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. Livramento Condicional. Requerente: Manoel Luiz de Jesus. Parecer do relator Osman Hora Fontes, Aracaju, 05/02/1948. Ora, mas quem foi esse sujeito? Ele era de fato um cangaceiro? De que maneira e por quais razões se iniciou na vida bandida? Por que adotou o cognome Corisco Preto e chegou a se apresentar como embaixador de Lampião? E, quando preso, como ele foi visto, qualificado e tratado pelo poder judiciário, especialmente pelo sistema penitenciário, do qual fazia parte o Gabinete de Biologia Criminal? Em linhas gerais, são essas as questões que nortearão o artigo. Para além de desvelar aspectos da trajetória de Manoel Luiz de Jesus, a proposta aqui é surpreender, a partir dessa personagem, as conexões entre cangaço, raça e banditismo à luz da medicina legal.

Da vida pregressa

Manoel Luiz de Jesus nasceu no dia 3 de janeiro de 1897 em Frei Paulo, município localizado numa região limiar entre o agreste e o sertão de Sergipe, caracterizada por longas estações sem chuva, com secas frequentes, vegetação grotesca e solo geralmente árduo. Seus pais - Luiz Manoel Tavares e Clara Maria de Jesus, casados civil e religiosamente - tiveram oito filhos. Eram de origem negra,14 14 Não é de estranhar que Manuel Luiz descendesse de uma família negra. Conforme argumenta Luiz Bernardo Pericás, “é óbvio que também havia o elemento negro no sertão, que se encontrava em número mais significativo do que muitos tentam fazer crer, ainda que, em termos gerais, os africanos ou seus descendentes fossem representados numa proporção bem menor do que os ‘brancos’, caboclos e mamelucos. De qualquer forma, vários cantadores, repentistas, beatos e cangaceiros negros são bastante conhecidos e formam parte importante e representativa do cenário social e cultural sertanejo”. Cf. PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 115. pobres, analfabetos, pequenos lavradores e Manoel Luiz, o mais velho dos irmãos, começou a ajudá-los desde cedo no serviço do roçado. Educado nos ensinamentos da religião católica, frequentava missas e comungava de quinze em quinze dias. Não quiseram os pais, porém, que ele aprendesse as primeiras letras. Contava apenas 13 anos quando o seu pai, “homem trabalhador e de bons costumes”, foi assassinado perversamente. O assassino ficou impune. Compreendendo então a necessidade de redobrar os esforços para sustentar a família, o primogênito passou a labutar e plantar em maior escala algodão e mandioca. Gozando de boa saúde, não temia o trabalho. Havia completado dezenove anos quando teria dado início à sua vida sexual. Não adquirira o vício do fumo nem do álcool. “Festas, sambas e danças não o seduziam”. Pouco antes de atingir a maioridade casou-se perante as leis civis e eclesiásticas. Duas filhas teve o casal. A primeira morreu aos sete anos de nascida; e a segunda veio a falecer já mocinha e depois de ter sido infelicitada por um homem casado.15 15 AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. Relatório apresentado pela Diretoria da Penitenciária do Estado sobre o pedido de livramento condicional do sentenciado Manoel Luiz de Jesus. Diretor José da Silva Ribeiro Filho. Aracaju, 20/09/1947; Arquivo Público do Estado de Sergipe (APES). Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 169. Relatório apresentado pela Diretoria da Penitenciária do Estado sobre o pedido de livramento condicional do sentenciado Manoel Luiz de Jesus. Diretor José da Silva Ribeiro Filho. Aracaju, 20/09/1947; APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 261. Penitenciária do Estado de Sergipe. Prontuário no. 128. Sentenciado: Manoel Luiz de Jesus. Aracaju, 16/06/1936.

Manoel Luiz, que vivia em estado de penúria, ficou revoltado com o que aconteceu com a filha: um atentado à honra familiar. Sua ira só aumentou quando descobriu que - como negro e pobre sertanejo - não podia contar com as instâncias responsáveis pela lei, ordem e Justiça, instituição que em geral era falha, lenta e tendenciosa.16 16 De acordo com a antropóloga Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, o homem sertanejo constitui-se a partir de um “imaginário” cujos valores como o “cumprimento das leis, a proteção à honra da família – representada pela coragem e o bom comportamento dos homens, associados à pureza sexual das donzelas e recato de viúvas e mulheres casadas –, a obediência à Igreja Católica, o respeito aos mais velhos e padrinhos; a caridade; a sobriedade e modéstia no vestir e no falar, o ‘respeito ao alheio’, articulam-se no código de ‘honra sertaneja’”. Cf. BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Antropologia da honra: uma análise das guerras sertanejas. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, vol. 29, n. 1-2, 1998, p. 160-168. Para uma abordagem mais adensada a respeito dos códigos de honra sertaneja no período do cangaço, ver pesquisa da mesma autora: A derradeira gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no sertão. Rio de Janeiro: Mauad, 2000. O sofrimento oriundo do desajuste familiar, os ecos da cultura de violência, a impunidade, o mandonismo local, a desorganização social e a escassez material (numa época em que os mercados do algodão foram devastados pelo impacto da crise de 1929 no Brasil) deixavam-no sem horizontes de perspectivas. Para agravar a situação, havia um “camarada” que, ao se indispor com ele, passou a persegui-lo. Em virtude disso Manoel Luiz retirou-se de Frei Paulo, indo verificar praça na Polícia Militar. Não por muito tempo. Após ter dado baixa, regressou à cidade natal. Contudo, voltou a sofrer perseguição. Sua paciência foi se esgotando e, como pouco se poderia esperar dos canais legais, resolveu fazer justiça com as próprias mãos. Encaminhou-se à casa de seu desafeto e o agrediu fisicamente, dando-lhe “pancadas”.17 17 Sobre a cultura da violência no Nordeste brasileiro, a partir de seus sentidos e significados próprios, conferir respectivamente SOUZA, Amaury de. O cangaço e a política da violência no Nordeste brasileiro. DADOS: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, n. 10, 1973, p. 97-125 e VILLELA, Jorge Mattar. O povo em armas: violência e política no sertão de Pernambuco. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. Coincidentemente, nessa oportunidade Corisco tinha passado na casa do dito cujo, assaltando-o. Manoel Luiz ignorava a passagem de Corisco.18 18 AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. História criminal de Manoel Luiz de Jesus. Dr. João Batista Perez Garcia Moreno (psiquiatra) e Dr. Canuto Garcia Moreno (biotipologista). Gabinete de Biologia Criminal, Penitenciária de Aracaju, Estado de Sergipe, 16 dez. 1947. Apesar disso, recebeu a fama dos “feitos” dele. E quem era esse tal de Corisco?

Christino Gomes da Silva Cleto, que ficou conhecido pelos epítetos Corisco ou Diabo Louro, era um famoso cangaceiro. Entre todos os sequazes de Lampião, Corisco se destacou por sua coragem e crueldade. Vários episódios são emblemáticos disso. Por volta de 1930, os cangaceiros prenderam Domiciano - o tabelião da então vila de Curaça, no estado da Bahia - e estipularam seu resgate em cinco contos de réis. Mesmo a família do refém pagando a importância estipulada, Corisco e seus cabras mataram Domiciano. Sangraram o infeliz e o esquartejaram. Pedaços do corpo foram deixados ao léu.19 19 SOARES, Paulo Gil. Vida, paixão e mortes de Corisco, o Diabo Louro. Porto Alegre: L&PM, 1984. Quando em 22 de setembro de 1931 encontrou-se com o delegado Herculano Borges na plaga baiana de Bonfim, o Diabo Louro mostrou mais uma vez do que era capaz. Capturou o seu antigo desafeto, que lhe teria destratado há alguns anos, e no dia seguinte pendurou-o pelos pés numa vara, entre duas árvores - como se faz com os animais quando vão ser mortos - e lhe tirou a pele, enquanto estava vivo. Depois, cortou-lhe “fora as mãos, os pés e as orelhas, e o esquartejou. Enfiou as várias partes do corpo em estacas, numa demonstração pública da força de sua vingança, e ameaçou matar quem as enterrasse”.20 20 CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 159. Ver ainda “Corisco ataca uma fazenda, matando seis pessoas, e em seguida enviou as cabeças ao prefeito de Piranhas”. A Batalha, Rio de Janeiro, 04/08/1938, p. 6; “A façanha de ‘Corisco’, na Fazenda Patos, implantou o terror novamente em todos os lares nordestinos”. Diário da Noite, Rio de Janeiro, 04/08/1938, p. 1.

Graciliano Ramos definiu Corisco como um “pequeno monstro”, “violento e bruto”. Seria um “desclassificado”, um indivíduo que principiando na “ordem, na família, na religião”, viu de repente isso tudo ruir. De nada teria lhe servido os “olhos azuis, a pele branca, as barbas do avô, longas e respeitáveis, e as do pai, menores, mas ainda assim dignas de respeito”. Para o escritor alagoano, Corisco não possuía barbas nem virtude: “Fora da sociedade, metido no mato como um bicho, […] desprezou noções rijas e antigas. Submeteu-se à lei da necessidade. Passou anos embrenhado na caatinga, com um rifle a tiracolo, defendendo-se e atacando, perfeitamente bicho. […] Figura sinistra. Um branco degenerado”.21 21 RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas. São Paulo: Martins, 1975, p. 148. Paradoxalmente, era esse “branco degenerado” que, na opinião de Antônio Amaury de Araújo, fazia “tremer os inimigos”, causava “pavor entre os catingueiros desamparados”, trazia “em desassossego ricos fazendeiros”. Todo o Nordeste o conhecia na década de 1930. Seu nome, aliás, ganhava manchetes nos jornais de todo o Brasil.22 22 ARAÚJO, Antônio Amaury Corrêa de. Gente de Lampião: Dadá e Corisco. São Paulo: Traço, 1982, p. 27. Homem de confiança e braço direito de Lampião, tornou-se um dos subchefes do bando quando o “rei do cangaço” dividiu seus sequazes em subgrupos.

Corisco empreendeu várias investidas sobre Sergipe, desencadeando um clima de insegurança por parte de setores da sociedade civil e do poder público. É tanto que, em mensagem apresentada à Assembleia Legislativa no dia 7 de setembro de 1929, o presidente do estado afirmava: “A luta [pela garantia da ordem pública] tem sido tenaz. Mas os grupos sinistros de Lampião e Corisco continuam organizados em alcateia, a intranquilizar as populações dos sertões”.23 23 Mensagem apresentada à Assembleia Legislativa, em 7 de setembro de 1929, ao instalar-se a 1ª. Sessão Ordinária da 17ª Legislatura, pelo presidente do Estado, Manoel Corrêa Dantas. Aracaju: Imprensa Oficial, 1929, p. 9. Em agosto de 1930, o Diabo Louro e seu grupo tomaram a usina de cana de açúcar de Calumby, perto de Capela. Mandaram o proprietário, Luís Matos, ir à cidade buscar 10.000$000, enquanto sua família ficou como refém. Tempos depois, saquearam uma fazenda em Mata Grande, matando o proprietário.24 24 CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 145, 214.

Manoel Luiz talvez tenha gostado de ter recebido a fama dos “feitos” do Diabo Louro ou pelo menos nele se inspirou quando decidiu ingressar na criminalidade. Prova disso é que, em algumas ocasiões, passou a se autointitular Corisco Preto, uma alcunha cujo vocábulo se distinguia pela alusão à sua raça/cor. Queria associar a sua imagem à de um cangaceiro “celebrado”, visto pela opinião pública como facínora, porém indômito, envolto numa mística de obstinação, valentia e intrepidez. Possivelmente Manoel Luiz não sabia o que o seu “ídolo” pensava das relações raciais. Segundo alguns relatos, Corisco tinha ojeriza aos negros. Isso porque, ao caminhar numa estrada quando jovem, teria sido ofendido por dois soldados “pretos e fortes”. Pertencentes a uma volante, estes soldados “autoritários e insolentes” abordaramno, chamando-o de “coiteiro desgraçado”, “amarelo” e “cabra sem-vergonha”. Corisco teria se sentido humilhado e, desde então, alimentado “profunda aversão a pretos”.25 25 ARAÚJO, Antônio Amaury Corrêa de. Gente de Lampião: Dadá e Corisco. São Paulo: Traço, 1982, p. 24-25. Isso, contudo, não impediu que em seu subgrupo fosse possível encontrar negros e mestiços, como Carrasco, Corrupio, Moita Brava, Jandaia, Limoeiro, Quinta-Feira, Avião e outros.26 26 No tocante às relações raciais, a postura de Lampião não era diferente. Descrito por Graciliano Ramos como um “mulato” e “besta-fera”, também mantinha negros em seu bando (como Azulão, Bom de Veras, Casca-Grossa, Meia-Noite, Coqueiro, Zé Sereno, Roxinho, Colchete, José Baiano, Mariano, entre outros). Mas, ainda assim, nutria certo desprezo pela “população de cor” em geral. Segundo o cangaceiro Volta Seca, ele teria dito, ao se referir a um soldado negro, morto na cidade de Queimadas em novembro de 1929: “Negro nunca foi gente! Negro é a imagem do diabo!”. São muitos os casos de manifestações de preconceito partindo de Lampião. Após pernoitarem na fazenda do “coronel” Antônio Caixeiro no município sergipano de Canhoba, ele e seus cabras partiram pela manhã. Antes, porém, passaram pelo oratório da casa e deixaram notas de 20 mil-réis entre as mãos das estatuetas dos santos católicos, com exceção da de São Benedito, cuja oferta se restringiu a uma cédula suja e amassada de apenas 5 mil-réis. Alguns meses mais tarde, quando Lampião regressou ao local, a esposa do anfitrião “perguntou o motivo daquele gesto de tanto desdém com o mártir cristão. E Lampião disse, simplesmente, um tanto quanto surpreendido, que nunca ouvira falar que um negro pudesse ser santo!”. Cf. RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas. São Paulo: Martins, 1975, p. 132, 136; PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 124. Certa vez ele enviou um bilhete a um sargento em Pinhão, no estado de Sergipe, zombando de sua cor: “Não gosto de negro, e, além de negro, macaco”. CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 239.

Seja como for, Manoel Luiz lançou-se ao mundo da criminalidade. Sob a chefia dele, Andrelino Bispo de Jesus, seu irmão Júlio Luiz dos Santos e o ex-soldado João Baptista dos Santos constituíram uma quadrilha de ladrões e saqueadores em Frei Paulo e região, praticando furtos, roubos, depredações e danos em algumas casas, acompanhados de espancamentos e ofensas físicas às pessoas a quem rapinavam, como em resumo passamos a relatar, de acordo com o inquérito policial. Na noite do dia primeiro de agosto de 1930, Manoel Luiz e Andrelino Bispo dirigiram-se à residência de José Félix Caetano e, dizendo-se cabras de Corisco e Lampião, derrubaram a porta, fizeram os da casa fugirem espavoridos e saquearam-na, levando quatro pares de argolas de ouro, duas alianças, um anel com pedra, muitas peças de roupas e 180$000 em dinheiro, além de grande depredação que cometeram, quebrando e destruindo todos os móveis do recinto que encontraram. Atiraram em uma vaca, tendo antes, porém, atirado nas pessoas da casa quando fugiram.27 27 AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Sumário de Culpa, Cx. 07/2643. Denúncia do Adjunto do Promotor Público, Deolindo Telles de Andrade, ao Ilmo. Sr. Dr. Juiz Municipal. São Paulo, 21/01/1931.

Cabe uma breve contextualização histórica aqui. Segundo Frederico Pernambucano de Mello, Lampião começou a dividir o seu bando em subgrupos no último quartel da década de 1920. Chegou a possuir de seis a dez pelotões de criminosos, dos quais se destacaram os chefiados por Corisco, Zé Baiano, Moita Braba, Labareda e Mariano. Estes subgrupos mantinham relativa autonomia, operando em lugares distintos e às vezes ao mesmo tempo, porém, quando requisitados, uniam-se ao núcleo principal ou simplesmente se encontravam a fim de que Lampião pudesse fazer “recomendações, troca de ideias e confraternizações, dispersando-os com poucos dias”. O comandante-geral partia de Sergipe, onde se instalou, para “razias em todos os estados em que agiam os seus irrequietos procônsules, mantendo assim os sertões em permanente insegurança e impedindo que as atenções se concentrassem perigosamente sobre o grupo central, fixado em torno de vinte homens”.28 28 MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa, 2004, p. 295-296. Nos anos 1930, quando estava cansado, designava subgrupos para agir nas plagas nordestinas, enquanto dava as ordens do coito em que repousava no momento. Portava-se como um autêntico comandante-geral, “enviando seus emissários para cumprir tarefas ‘oficiais’. Seus asseclas, assim, agiam como seus embaixadores, seus representantes”.29 29 PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 180.

Será que Manoel Luiz era um dos embaixadores de Lampião na cidade de Frei Paulo e região?30 30 Juarez Conrado informa que Lampião esteve em Alagadiço, povoado do município de Frei Paulo, pelo menos em quatro ocasiões: em 1930 – quando se dirigiu à fazenda do Sr. Melquíades, roubando todos os pertences, notadamente as peças de ouro de D. Iaiazinha, esposa do fazendeiro –, em 1932, 1933 e 1934, vez em que tentou acertar contas com o ex-presidiário Cazuza Paulo. Cf. CONRADO, Juarez. Lampião: assaltos e morte em Sergipe. Aracaju: J. Andrade, 2010, p. 153-160. A respeito da presença de Lampião e seu bando na região de Frei Paulo, ver também MATOS NETO, Antônio Porfírio de. Lampião e Zé Baiano no povoado Alagadiço. Aracaju: Info Graphics, 2006. Antes de responder a essa questão, é de bom alvitre terminar o relato daquela jornada criminosa por ele protagonizada, em conformidade com o inquérito policial. Em setembro de 1930 - por volta de um mês depois da primeira ação delituosa -, o Corisco Preto voltou a chefiar a quadrilha de salteadores. Desta feita, no município de Muribeca. De forma avassaladora, Manoel Luiz, seu irmão Julio Luiz dos Santos e Andrelino Bispo derrubaram a porta da casa de Francisca Maria de Jesus, roubaram os objetos que encontraram lá e puseram fogo nas roupas e na residência.

O clima de medo e insegurança tomou conta da região. Foi assim que, na noite de 22 de outubro, Manoel Luiz, acompanhado de um assecla, foi à casa de Belarmino Pereira da Silva e o chamou. Tendo este aberto a porta, recebeu o recado de que Lampião mandara buscar 500$000. Belarmino percebeu que se tratava de um golpe e tentou fechar a porta, mas Manoel Luiz a interpôs com a coice de seu fuzil, derrubou a porta, entrou na casa e exigiu dinheiro. A vítima entregou uma mochila de níquel com cerca de 70$000. Não satisfeito, o bandido exigiu-lhe mais dinheiro e, dizendo-se “empresário de Corisco”, extorquiu violentamente de Belarmino e de sua mulher a quantia de 120$000.

As ações delinquentes dessa natureza se sucederam. No dia 5 de novembro, Manoel Luiz e Andrelino dirigiram-se à casa de Manoel Vitor, dizendo-se “embaixadores de Lampião”. Depois de esgravatar baús e móveis, extorquiram-lhe a quantia de 203$000. Não saciado, Andrelino exigiu do dono da casa mais dinheiro, cerca de 500$000. A sanha dos criminosos ganhava cada vez mais afluência. Naquele mesmo mês, na noite de um sábado, Manoel Luiz e João Baptista foram à casa de Casimiro Correia de Brito e lá, depois de arrombarem a porta, disseram estar ligados a Lampião. Agrediram a mulher de Casimiro e saquearam a casa, carregando uma pistola e vários objetos de menor valor.31 31 AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Sumário de Culpa, Cx. 07/2643. Denúncia do Adjunto do Promotor Público, Deolindo Telles de Andrade, ao Ilmo. Sr. Dr. Juiz Municipal. São Paulo, 21/01/1931.

Não consta, todavia, que Manoel Luiz tenha aderido ao bando de Lampião, nem que tivesse se tornado um cangaceiro. Conforme assinala Billy Chandler, muitos sertanejos tentaram capitalizar em cima do espectro de Lampião. Alguns ficavam encarregados de servirem como intermediários nos casos de extorsão. Mas, tão logo recebiam o dinheiro, fugiam para algum lugar distante. Já outros, para auferir benefícios pecuniários, exploravam o medo que muitas pessoas sentiam de Lampião, impondo-lhes chantagens, pilhagens e extorsões que raramente chegavam ao conhecimento do “rei do cangaço” e seus cabras. Era uma jogada arriscada, que às vezes dava certo, outras não. Em 1937, um fazendeiro que vivia perto da cidade de Pinhão, em Sergipe, recebeu um pedido de dinheiro de Lampião, pouco tempo depois de lhe ter pago uma boa quantia. Como sabia que o cangaceiro era um homem cioso nesses negócios, desconfiou que se tratava de algum golpe. Procurou Lampião para saber porque estava sendo taxado duplamente. Este negou conhecimento do segundo pedido, apurou os fatos e mandou um de seus homens punir implacavelmente o impostor. Então, o cangaceiro Zé Sereno matou na base da punhalada o impostor e seus três filhos menores. Em seguida, procurou o irmão e matou-o também. Tais “justiçamentos” intimidavam aqueles ladrões e impostores que ousavam tirar vantagens usando o nome de Lampião, embora o problema ocorresse com certa frequência. Numa ocasião, o cangaceiro se queixou de que estavam aparecendo “lampiõezinhos” demais nas redondezas.32 32 CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 198.

Dessa perspectiva, Manoel Luiz era um “lampiãozinho”, um sertanejo que procurou se aproveitar da fama e “glória” de Lampião e de Corisco para se locupletar, cometendo várias ações delituosas na cidade de Frei Paulo e região. Pode ser que soubesse como alguns cangaceiros conseguiram amealhar um patrimônio no decorrer de anos na atividade. Lampião, apesar da vida errante pelo interior do Nordeste, chegou a possuir uma fazenda de gado na Bahia, sem falar que era proprietário de cerca de cem cabeças de gado na fazenda Canabrava, em Sergipe. José Baiano - um famigerado cangaceiro negro do primeiro escalão do bando de Lampião33 33 Em livro sobre a presença de Lampião e seus sequazes em Sergipe, Juarez Conrado ressalta a natureza “facínora” de Zé Baiano: este “não deixava de demonstrar, em qualquer circunstância, sua terrível índole criminosa. Cometia atrocidades. Estuprava mulheres, matava, ferrava jovens ou senhores com o seu ‘JB’ no rosto e nas partes íntimas, além de obrigar antigos coiteiros, como sempre acontecia com Antônio de Chiquinho, a fornecer-lhe informações estratégicas sobre o deslocamento das volantes”. Por delegação de Lampião, atuava nas “terras compreendidas pelos municípios de Frei Paulo, Ribeirópolis, Pinhão e Carira, em Sergipe, além de Paripiranga, no vizinho estado da Bahia. Em pouco tempo, fazendo da ‘Toca da Onça’, na Serra da Caipora, seu esconderijo, Zé Baiano tornou-se famoso e temido por todos”. Cf. CONRADO, Juarez. Lampião: assaltos e morte em Sergipe. Aracaju: J. Andrade, 2010, p. 160-162. - acumulou 700 contos de réis, em notas e joias. Para aumentar seus lucros, fazia empréstimos a juros. O espólio encontrado com Corisco incluía dois quilos de ouro e trezentos contos de réis.34 34 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. História do cangaço. São Paulo: Global, 1986; NASCIMENTO, José Anderson. Cangaceiros, coiteiros e volantes. São Paulo: Ícone, 1998. Se é verdade que Manoel Luiz se inspirou nos ícones de Lampião e Corisco para montar sua empresa transgressora, também é verdade que ele nunca aderiu ao cangaço. Tratava-se antes de um bandido comum, que fez do crime um meio de ganhar a vida. Conquanto ele não foi um caso isolado. No período de apogeu do cangaço, apareceram diversos indivíduos envolvidos na marginalidade e muitos dos quais não se vincularam a Lampião, malgrado sua atuação criminosa ter sido influenciada pelo “rei do cangaço”. Agiam totalmente independentes.

Da vida carcerária

A fama de Manoel Luiz espraiou-se pelo agreste e sertão sergipano. Depois de a polícia abrir inquérito e ficar meses no encalço dele, a autoridade judiciária competente - o então juiz municipal de Frei Paulo - decretou a prisão preventiva do vulgo “Corisco Preto” em 21 de janeiro de 1931. Sem demora, a autoridade policial o colocou atrás das grades e ordenou uma busca e apreensão em sua na casa, onde encontrou parte dos objetos roubados. Tudo indicava que a jornada criminosa de Manoel Luiz acabara ali. O adjunto do promotor público o denunciou como chefe de uma quadrilha de malfeitores: “fruto do meio inculto e carente, de população vulnerável, assolada pelas secas e pelo descaso das autoridades estatais”, consistiria no principal responsável por “numerosos crimes”, tais como “furtos, roubos, depredações e danos em algumas casas, acompanhados de espancamentos e ofensas físicas”.35 35 Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Sumário de Culpa, Cx. 07/2643. Denúncia do Adjunto do Promotor Público, Deolindo Telles de Andrade, ao Ilmo. Sr. Dr. Juiz Municipal. São Paulo, 21/01/1931.

Embora a entrada de Manoel Luiz na criminalidade possa ser atribuída às condições sociais desfavoráveis em que viveu (trabalho precário e rudimentar, desigualdade na distribuição da propriedade da terra, crises sazonais derivadas da seca e recessão e estado de vulnerabilidade social), e a análise de seus atos possa em parte justificar essa escolha, há ainda perguntas sem respostas. É difícil entender por que alguns indivíduos se tornam bandidos, enquanto outros, vivendo dentro das mesmas condições sociais e sujeitas às mesmas adversidades, não se tornam.36 36 No que concerne ao cangaço, Luiz Bernardo Pericás é taxativo: “a maioria da população sertaneja, apesar da miséria, exploração e falta de emprego, não ingressou no cangaço. Em alguns casos, quando havia época de secas intensas, de fome e de miséria, muitos retirantes pobres chegaram ao ponto de vender as próprias roupas do corpo e fazer o percurso do Sertão cearense à capital completamente nus, só para que pudessem ter dinheiro suficiente para comprar alimentos. Outros flagelados optavam pelo suicídio. Ou seja, preferiam se colocar numa posição de constrangimento, apesar do desespero e da fome, ou até mesmo tirar a própria vida, do que cogitar se tornar bandoleiros. E também havia aqueles que chegavam a comer ratos, gatos, insetos, couro de gado e até mesmo a matar e comer crianças”. O fato é que a “índole e o senso ético da maioria dos sertanejos não permitiam que se decidissem a entrar na marginalidade, mesmo em situações extremas”. PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 189-190. A chave explicativa da diferença parece residir na interação entre as trajetórias individuais e os contextos nos quais estas se realizam como uma via de mão dupla. Somente uma abordagem que não incorra no individualismo exacerbado nem na determinação estrutural estrita é capaz de apreender as ações humanas a partir de suas escolhas, incertezas e possibilidades no seio de uma configuração social dada. Conforme salienta Jacques Revel, os sujeitos da história são levados a efetuar escolhas entre uma margem limitada de possibilidades, em função da “posição que ocupam no mundo social e também a partir da representação do mundo social que lhe é acessível lá onde se encontram”. Nesse sentido, eles não são “livres” para fazer o que querem, mas decerto se veem permanentemente confrontados com alternativas ao status quo.37 37 REVEL, Jacques. Micro-história, macro-história: o que as variações de escala ajudam a pensar em um mundo globalizado. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, vol. 15, n. 45, 2010, p. 440.

Quando Manoel Luiz percebeu que sua família foi tratada injustamente e levada à desgraça - com o assassinato de seu pai ficando impune, a morte precoce de uma das filhas e a defloração covarde de outra -, parece que bateu o sentimento de revolta. Tal ímpeto ficou ainda mais difícil de controlar quando ele sentiu na pele que, para um negro e pobre sertanejo, havia pouca esperança de ser ajudado e atendido através dos canais da Justiça legalmente constituídos ou socialmente aprovados. Ao que se presume, foi a conjugação de todos esses fatores de cunho subjetivo - revolta, frustração e desespero - e contextual - dificuldade de subsistência, exploração e meio inculto - que o levaram a preferir abandonar a legalidade e seguir o caminho do banditismo, um estilo de vida quiçá mais de acordo com suas noções de justiça e liberdade. Em suma, tudo leva a crer que foi um misto de circunstância e personalidade que transformou o pacato sertanejo Manoel Luiz no terrível Corisco Preto.

O processo judicial contra ele obedeceu às formalidades legais, tendo sido realizadas audiências públicas nas quais se colheram os depoimentos do réu, das vítimas e das testemunhas. Finalmente o Tribunal do Júri - em sessão concorrida e envolta em grandes expectativas - condenou o réu a doze anos de prisão celular. A sentença foi confirmada, em grau de recurso, pelo então Tribunal de Apelação, com acréscimo da multa de 20% sobre o valor dos objetos roubados. Manoel Luiz foi recolhido à Penitenciária do Estado, em Aracaju, no dia 16 de março de 1931, para cumprir a pena. Fez o primeiro estágio passando cinco dias isolado. Nenhuma “anormalidade” apresentou. Em maio do mesmo ano começou a frequentar a seção de marcenaria, como aprendiz, “revelando grande aptidão para o trabalho”. No entanto, cerca de dois anos mais tarde fugiu da penitenciária, entregando-se a novas atividades criminosas no sertão nordestino.38 38 APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 261. Penitenciária do Estado de Sergipe. Prontuário no. 128. Sentenciado: Manoel Luiz de Jesus. Aracaju, 16/06/1936; APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 169. Relatório apresentado pela Diretoria da Penitenciária do Estado sobre o pedido de livramento condicional do sentenciado Manoel Luiz de Jesus. Diretor José da Silva Ribeiro Filho. Aracaju, 20/09/1947.

Figura 1
Corisco Preto no momento em que deu entrada no presídio

Na noite de 24 de dezembro de 1933, Manoel Luiz assaltou, com outros indivíduos, a casa de José Sotero dos Santos, num povoado denominado Caraíbas, do termo de Anápolis, hoje cidade sergipana de Simão Dias. Arrombaram a porta da casa e roubaram a importância de 2.000$000 e uma arma de fogo, tipo parabélum, no valor de 180$000. Foram presos e denunciados em 26 de fevereiro de 1934 pelo adjunto do promotor público da cidade de Simão Dias. “Esse bando de malfeitores” - assim a autoridade judiciária concluiu a denúncia - “era chefiado pelo célebre Manoel Luiz de Jesus, vulgo ‘Corisco Preto’, evadido da Penitenciária do Estado, onde respondia por crimes horríveis praticados no termo de Frei Paulo, onde chefiava um grupo de bandidos”.39 39 AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. Denúncia do Adjunto de Promotor Público, Jerônimo Lauto Barbosa, ao Exmo. Sr. Dr. Juiz Municipal de Anápolis, 26/02/1934.

Sem pejo, Manoel Luiz cometera um crime nas mesmas condições dos previamente realizados. O então juiz municipal de Simão Dias considerou procedente a denúncia, sendo o réu submetido a julgamento em sessão do Tribunal do Júri de 28 de março de 1935 e condenado, já que a Justiça o via como um criminoso “perigosíssimo”, autor de atrocidades que, em parceria com outros delinquentes, instituiu uma verdadeira “associação criminosa”. Pena de oito anos de prisão celular com multa de 20% sobre o valor do roubo. Somada aos doze anos de prisão da condenação anterior, sua pena acumulada saltou para vinte anos. Voltando à penitenciária na capital, o sentenciado reincidente retomou as atividades nas oficinas, como oficial de marceneiro, dedicando-se a partir de então à confecção de mesas, cadeiras, cavaquinhos, cabides, tamboretes etc.40 40 APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 261. Penitenciária do Estado de Sergipe. Prontuário no. 128. Sentenciado: Manoel Luiz de Jesus. Aracaju, 16/06/1936; APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 169. Relatório apresentado pela Diretoria da Penitenciária do Estado sobre o pedido de livramento condicional do sentenciado Manoel Luiz de Jesus. Diretor José da Silva Ribeiro Filho. Aracaju, 20/09/1947.

“O tempo é aliado pra quem sabe o que está do outro lado”, diz o cancioneiro popular. No ano de 1948, quando já havia cumprido mais de três quartos da pena que lhe fora imposta, Manoel Luiz requereu ao Conselho Penitenciário o seu livramento condicional. Em Sergipe, o Conselho Penitenciário, instituído em 1930, tinha como atribuição precípua avaliar os pedidos de liberdade condicional de condenados no decorrer do cumprimento de pena. Em se tratando de livramento condicional, eram exigências para a concessão do benefício: cumprimento de mais de metade da pena, se réu primário, e de mais de três quartos, se reincidente; ausência ou cessação de periculosidade; bom comportamento durante a vida carcerária; aptidão para prover à própria subsistência mediante trabalho honesto e “satisfação das obrigações civis resultantes do crime, salvo quando provada a insolvência”.41 41 FRANCO, Ary Azevedo (comentários). “Do livramento condicional”. Art. 710, incisos I, II, III, IV e V do Código de Processo Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1954, p. 415-416. vol. 2. Portanto, a Justiça concedia o livramento condicional ao detento que se regenerasse. Para subsidiar sua decisão, baseava-se tanto no relatório produzido pelo diretor do estabelecimento penal quanto no parecer emitido pelo Gabinete de Biologia Criminal, que periciava o grau de periculosidade do requerente.

No que tange ao diretor da penitenciária, este elaborou um relatório minucioso sobre o comportamento de Manoel Luiz durante o período de mais de uma década que ali cumpria pena. Constava no documento que ele assistia às missas e já havia comungado três vezes. Assistia às aulas de “moral”, embora nunca tenha se matriculado na escola do estabelecimento prisional. Dizia “não ter mais paciência para o estudo”. Em janeiro de 1945, foi designado para substituir o mestre de cozinha, tendo prestado muitos outros serviços - como o de fazer móveis para o presídio - por determinação da diretoria. Mostrava-se sempre “trabalhador, zeloso, obediente e assíduo ao trabalho”. Do seu prontuário constavam duas faltas: em 17 de outubro de 1942, Manoel Luiz brigou com um companheiro de cárcere. Sofreu pena disciplinar de 10 dias de cubículo; no dia 30 de março de 1946, incorreu em desacato a funcionário. Sofreu pena disciplinar de 30 dias de cubículo. “Como se vê”, assinalava o relatório, “Manoel Luiz praticou apenas duas faltas de pequena gravidade durante dezesseis anos de reclusão. E antigos funcionários do estabelecimento apontam-no como sentenciado de conduta exemplar”.42 42 APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 261. Penitenciária do Estado de Sergipe. Prontuário no. 128. Sentenciado: Manoel Luiz de Jesus. Aracaju, 16/06/1936; APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 169. Relatório apresentado pela Diretoria da Penitenciária do Estado sobre o pedido de livramento condicional do sentenciado Manoel Luiz de Jesus. Diretor José da Silva Ribeiro Filho. Aracaju, 20/09/1947.

Sua vida afetivo-amorosa no cárcere também foi abordada. Tendo enviuvado em 1935, ele contraiu novas núpcias em 1944, com uma mulher que o visitava frequentemente na prisão. Entretanto, dois anos mais tarde ficou viúvo pela segunda vez. E a partir de então se afeiçoou a uma outra mulher, que “inestimáveis” serviços lhe prestava, encarregando-se de vender objetos confeccionados nas oficinas do presídio, e com quem pretendia unir-se pelo matrimônio, se lhe fosse concedido o livramento condicional. Por fim, o relatório aludia à vida financeira de Manoel Luiz durante os anos de cumprimento de pena: sua situação financeira não era “má, pois vinha ganhando, como sentenciado, mais do que o necessário para as suas pequenas despesas”. Conseguiu amealhar um pecúlio, “suficiente para sua manutenção e da família que vier a constituir, como pretende”. Era pequeno proprietário no município de Campo do Brito e possuía, na capital, uma casa avaliada em 25 mil cruzeiros. “Criminoso reincidente”, finalizava o relatório, Manoel Luiz “já cumpriu mais de três quartos da pena que lhe foi imposta, assistindolhe destarte o direito de pleitear o livramento condicional”. Em face de todas essas informações, “saberão os digníssimos membros do Conselho Penitenciário decidirem com justiça, depois de ouvido o Gabinete de Biotipologia sobre o grau de periculosidade do requerente”.43 43 APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 261. Penitenciária do Estado de Sergipe. Prontuário no. 128. Sentenciado: Manoel Luiz de Jesus. Aracaju, 16/06/1936; APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 169. Relatório apresentado pela Diretoria da Penitenciária do Estado sobre o pedido de livramento condicional do sentenciado Manoel Luiz de Jesus. Diretor José da Silva Ribeiro Filho. Aracaju, 20/09/1947.

Do Gabinete de Biologia Criminal

Como se observa, o relatório do diretor da penitenciária inclinava-se favoravelmente ao pleito de Manoel Luiz, sugerindo que, por intermédio do binômio “trabalho e boa conduta”, operou-se a regeneração do delinquente. Com efeito, para a confirmação disso, havia a necessidade do laudo do Gabinete de Biologia Criminal de Sergipe. Órgão anexo ao Conselho Penitenciário, o gabinete tinha por finalidade apurar os delitos e analisar a personalidade de criminosos por meio dos métodos científicos mais avançados na época. Tratava-se de um conjunto de testes que constituía a chamada análise antropopsiquiátrica. As palavras lançadas aparentemente ao acaso, que demandavam resposta, correspondiam ao teste de Jung-Bleuler; já os borrões eram a peça central do psicodiagnóstico de Rorschach. Esses testes - de estímulos e respostas que permitiam aos especialistas examinar as associações livres assim produzidas - fundamentavam-se nos princípios da Escola Positiva, no campo da criminologia.44 44 FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 87.

De acordo com o historiador Luis Antonio Coelho Ferla, a Escola Positiva - “assim denominada por advogar a existência de leis universais de causalidade mecânica para o mundo dos homens, comparáveis às atribuídas aos demais ‘reinos naturais’ e apreensíveis por meio dos mesmos métodos científicos” - caracterizava-se por um discurso médico-científico que patologizava o ato antissocial, vendo o criminoso como um doente e o crime como um sintoma; a pena ideal, pela prática de um delito, deveria ser um tratamento e não um castigo. Combatia o que se costumava denominar teoria clássica, centrada nos pressupostos do livre-arbítrio e da responsabilidade moral do delinquente, em contraste com o determinismo biopsicológico.45 45 FERLA, Luis. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo, São Paulo (19201945). São Paulo: Alameda, 2009, p. 23-24.

A Escola Positiva surgiu e se difundiu a partir dos trabalhos do italiano Cesare Lombroso, um professor de medicina legal da Universidade de Turim, que viveu de 1835 a 1909. No seu aclamado livro L’Uomo delinquente (1876), Lombroso desenvolveu a teoria da origem atávica do comportamento antissocial e qualificou a personagem que traria popularidade e muita controvérsia a suas ideias: o criminoso nato, que carregaria anomalias e estigmas atávicos, padecendo de uma predisposição pessoal ao delito.46 46 O mais polêmico livro de Lombroso somente foi traduzido e publicado no Brasil no segundo lustro do terceiro milênio. LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. Tradução de Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone, 2007. Para Lombroso e seus discípulos da escola de ciências forenses e criminais italianas, como Enrico Ferri, era possível descobrir o caráter de uma pessoa pelo exame das medições antropométricas - traços faciais e compleições físicas - e das descrições morfológicas. Avaliavam que a superfície do corpo, sua aparência e suas medidas poderiam significar a chave de acesso à alma, na qual se refletiam virtudes e vícios.47 47 DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991; MIRANDA, Carlos Alberto Cunha. A fatalidade biológica: a medição dos corpos, de Lombroso aos biotipologistas. In: MAIA, Clarissa Nunes et al. (org.). História das prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. p. 277-317. vol. 2.

Os positivistas elaboraram mensurações antropométricas detalhadas, por meio das quais procuravam constatar os sinais (estigmas) corporais do criminoso nato. Tais estigmas podiam ser: anatômicos (assimetria cranial e facial, região occipital predominante sobre a frontal, arcadas superciliares protuberantes, nariz adunco, orelhas de abano, tubérculo de Darwin, maçãs do rosto afastadas e salientes, barba rala, dentes caninos bem desenvolvidos, prognatismo, enfim, características faciais que aproximavam o perfil do criminoso ao dos símios); fisiológicos (insensibilidade à dor, tato embotado, olfato e paladar obtusos, invulnerabilidade, mancinismo e ambidestria); e ainda psicológicos, revelados pela instabilidade afetiva, pelo gosto de tatuagens, pelo uso de gíria, pelo olhar fixo e frio etc.48 48 HARRIS, Ruth. Assassinato e loucura: medicina, leis e sociedade no fin de siècle. Rio de Janeiro: Rocco, 1993; BLANCKAERT, Claude. Lógicas da antropotecnia: mensuração do homem e bio-sociologia (1860-1920). Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 21, n. 41, 2001, p. 145-156; CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: UERJ; São Paulo: Edusp, 1998, p. 105.

Os postulados lombrosianos vicejaram no contexto ideológico ligado ao imperialismo fin de siècle, estimulados pelas teorias do chamado racismo científico, sobretudo pelas diversas modalidades de evolucionismos (quer poligenista ou monogenista) e darwinismos biológicos e sociais. Em comum essas teorias preconizavam a superioridade do homem branco europeu, concebido como o produto mais avançado da evolução biológica, intelectual, moral e cultural. Já as outras raças - representadas pelo negro africano, pelo índio americano ou pelo mongol asiático -, jazeriam nos estágios primitivos da evolução.49 49 GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Não é de estranhar, assim, que a diferenciação racial tenha sido um dos ingredientes das ideias de Lombroso e da Escola Positiva em geral. O professor italiano argumentava que indivíduos com características semelhantes às do macaco tinham, por atavismo, propensão à prática do crime e à loucura, e para conferir fundamentação científica à teoria buscou demonstrar o inato comportamento criminoso dos animais num dos capítulos de L’Uomo delinquente. Entre os estigmas ancestrais do homem semelhantes aos do macaco figuravam “a pele escura, o tamanho do crânio, a simplicidade das suturas cranianas, a ausência de calvície e outros”.50 50 FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 104.

No Brasil, a apropriação das teses da Escola Positiva se deu tanto por parte dos juristas quanto dos médicos,51 51 Sobre a apropriação no Brasil das teorias raciais, no geral, e da Escola Positiva, no particular, consultar Thomas Skidmore (1976), Renato Ortiz (1985), Lilia Schwarcz (1993), Roberto Ventura (2000) e Nancy Stepan (2005). destacando-se aí a figura de Nina Rodrigues (1862-1906). Embora tenha nascido no Maranhão, foi em Salvador que este professor da Faculdade de Medicina exerceu a maior parte de sua atividade profissional. As pesquisas de Nina Rodrigues ganharam grande reputação. Utilizando modelos social-darwinistas, acreditava na inferioridade biológica e cultural dos negros.52 52 RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 4. ed. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília, DF: INL, 1976 [1933], p. 4. Apontava a mestiçagem como um dos principais males do Brasil, na medida em que implicava na hibridação das raças e sua consequente degeneração. Tido como o fundador da medicina legal brasileira, entendia o crime a partir da análise do indivíduo, de seu tipo físico e da raça a que pertencia. Seria a raça ou, antes, o cruzamento racial que explicava a criminalidade, a loucura e a degeneração. Escreveu vários ensaios sobre medicina legal. Convencido de que os estudos anteriormente feitos nessa área eram pouco científicos, envidou esforços pelo reconhecimento da figura do perito médico-legal, um profissional especializado na análise do delito e explicação da delinquência.53 53 BORGES, Dain. Puffy, ugly, slothful, and inert: degeneration in Brazilian social thought, 18801940. Journal of Latin American Studies, Cambridge, vol. 25, n. 2, 1993, pp. 235-256; ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Medicina, leis e moral: pensamento médico e comportamento no Brasil (1870-1930). São Paulo: Unesp, 1999; ALVAREZ, Marcos César. A criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os desiguais. DADOS: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 45, n. 4, 2002, p. 677-704; CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013. p. 61, 69. Realizou várias perícias, aplicando os estudos de frenologia ou craniologia como método de análise, no qual se atribuía ao peso, ao tamanho e à forma do crânio das pessoas das “raças não brancas” os critérios definidores de sua incapacidade intelectual, conduta antissocial e, no limite, predisposição ao crime e à loucura.54 54 Foi Nina Rodrigues quem periciou em Salvador a cabeça de Antônio Conselheiro, decepada após sua morte no ocaso do movimento de Canudos, em 1897. Usando os procedimentos das pesquisas craniométricas, o médico-legista maranhense suspeitava, a princípio, que o líder de Canudos fosse um criminoso nato, possuindo os estigmas lombrosianos do “ser degenerado, na qualidade de mestiço”, em que se associavam caracteres antropológicos de “raças diferentes”. No entanto, ao final dos exames do crânio, não encontrou nenhuma anomalia que nele denunciasse traços de degenerescência (Rodrigues, 1939). O laudo pericial de Nina Rodrigues foi publicado em forma de artigo, originalmente, na Revista Brasileira, em 1897. Apareceu um ano depois em francês, nos Annales Médico-Psychologiques, de Paris. Em 1939, Arthur Ramos o reeditou, em meio a outros cinco textos esparsos de Nina Rodrigues, no livro As collectividades anormais. Cf. RODRIGUES, Nina. A loucura epidêmica de Canudos: Antônio Conselheiro e os jagunços. In: RODRIGUES, Nina. As collectividades anormais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1939. p. 50-77.

Ao longo do tempo, Nina Rodrigues formou ou influenciou vários discípulos, como Arthur Ramos, em Salvador; Afrânio Peixoto, no Rio de Janeiro; Oscar Freire, em São Paulo; e Garcia Moreno, em Sergipe. Seguindo ou reelaborando os preceitos do paradigma lombrosiano, tais médicos-peritos procuravam se debruçar em torno dos estigmas típicos dos criminosos, focalizando mais o perfil do sujeito do que o crime. Não escondiam que viam o criminoso como um doente que se diferenciava dos demais devido ao seu tipo específico de moléstia, para a qual a pena, a privação da liberdade, constituía a terapêutica. Nas décadas de 1920 e 1930, a Escola Positiva angariava muitos simpatizantes e admiradores em todo o Brasil. Os positivistas eram influentes nas faculdades de Direito e Medicina, em setores da elite policial e, sobretudo, nas instituições dedicadas à medicina legal e criminologia, como delegacias, prisões, manicômios e institutos disciplinares.55 55 CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: UERJ; São Paulo: Edusp, 1998; CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Intenção e gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002; ALVAREZ, Marcos César. O homem delinquente e o social naturalizado: apontamentos para uma história da criminologia no Brasil. Teoria & Pesquisa, São Carlos, n. 47, 2005, p. 71-92.

Quando em março de 1932 a polícia baiana prendeu o cangaceiro Volta Seca, do bando de Lampião, este foi transferido para a cadeia na capital. Descrito como um jovem “mulato”, de menos de vinte anos, nascido em Sergipe, Volta Seca foi estudado como um espécimen por Estácio de Lima - professor da cadeira de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Bahia e então diretor do Instituto Nina Rodrigues - e pelo seu assistente, o médico-legista Arthur Ramos. Tiraram-lhe as medidas da cabeça e o submeteram a uma série de testes relacionados à tipologia física dos criminosos. O resultado final, entretanto, foi uma decepção, “pois, segundo dizem, sua constituição física era normal. Não possuía nenhuma das anomalias lombrosianas”.56 56 CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 186. Cerca de um ano depois de sua captura e da polêmica relacionada à sua idade exata, Volta Seca, cujo nome verdadeiro era Antônio dos Santos, foi julgado e condenado a 145 anos de prisão. No entanto, uma revisão do processo reduziu a pena para 30 anos e, depois de cumprido 20, ele foi indultado, em 1954, pelo presidente Getúlio Vargas. Mais tarde, Volta Seca tornou-se objeto de uma reportagem do jornal O Globo e relatou como foi alvo de curiosidades por ocasião de sua captura no interior da Bahia: “Recebido como raro animal de circo em todas as localidades a que chegava, acabei em Salvador, depois de uma longa viagem de mãos amarradas. E não me fizeram, durante todo o percurso, nenhuma maldade. Na capital da Bahia, a minha chegada constituiu um verdadeiro carnaval, principalmente por parte dos repórteres, que não me deixavam em paz. Procuravam-me todos os dias para entrevistar-me, mas, como eu nada dizia, eles imaginavam tudo. Redigiam sozinhos as ‘minhas’ entrevistas. Eu era, de fato, um bicho raro, e até fui examinado por médicos que se detinham cuidadosamente no meu crânio, medindo-o e tentando descobrir o que havia lá dentro… Eu era um monstro que precisavam ser bem estudado. E como o fui…”. Como se forja um cangaceiro. O Globo, Rio de Janeiro, 26/11/1958. Posteriormente, Estácio de Lima, que coordenou o estudo de Volta Seca no Instituto Nina Rodrigues, publicou um livro esquadrinhando as características “biossociológicas” deste e de outros cangaceiros do bando de Lampião. LIMA, Estácio de. O mundo estranho dos cangaceiros: ensaio bio-sociológico. Salvador: Itapoã, 1965. Quando em 1938 Lampião foi morto com uma parte de seu bando em Angicos, uma modesta fazenda do município sergipano de Poço Redondo, seu corpo foi decapitado, sua cabeça exibida nas escadarias de edifício público na cidade de Piranhas e posteriormente enviada para Maceió, onde “foi estudada por médicos-legistas, que tentaram, segundo os esquemas lambrosianos, desvendar nela os estigmas de uma possível degenerescência”, que justificasse a vida criminosa do “rei do cangaço”.57 57 GRUNSPAN-JASMIN, Élise. Cangaceiros. São Paulo: Terceiro Nome, 2006, p. 32. Ver também Lampeão era corcunda, caôlho e coxo!. Diário da Noite, Rio de Janeiro, 01/08/1938, p. 8. Lampeão era realmente dolicocéfalo. A Batalha, Rio de Janeiro, 04/08/1938, p. 6; Um caboclo nordestino diferente dos outros. O Globo, Rio de Janeiro, 04/08/1938; O exame da cabeça de Lampeão. Diário da Noite, Rio de Janeiro, 04/08/1938; As cabeças de Lampeão e Maria Bonita foram doadas ao Instituto Nina Rodrigues. Diário da Noite, Rio de Janeiro, 13/08/1938, p. 8.

Figura 2
Volta Seca sendo submetido a exame antropométrico, por Arthur Ramos, médico-legista ligado ao Instituto Nina Rodrigues

Em Sergipe, as instituições consagradas à medicina legal e criminologia ganharam novo impulso a partir da criação do Gabinete de Biologia Criminal, anexo à Penitenciária de Aracaju. À luz dos métodos positivistas, tal instituição realizava exames nos indivíduos considerados de tendências anômalas e perigosas, a fim de produzir laudos científicos para subsidiar decisões sobre suas vidas por parte do aparelho administrativo-repressor do Estado. No decurso do tempo, o laboratório do Gabinete de Biologia Criminal desenvolveu uma crescente atividade, voltada particularmente para o exame do grau de periculosidade de infratores, quando, por exemplo, requeriam a obtenção de comutação, induto e liberdade condicional durante o cumprimento de pena.

Os testes aos quais Manoel Luiz foi submetido buscavam desvendar suas condições biopsíquica e social, em vista de apurar seu estado de regeneração. Os responsáveis por examiná-lo foram Canuto Garcia Moreno (1916-1969), um médico biotipologista paulista, formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, porém radicado nas paragens sergipanas, e João Batista Perez Garcia Moreno (1910-1976), um respeitado médico proveniente da cidade sergipana de Laranjeiras, também graduado pela Faculdade de Medicina da Bahia, com especialização em psiquiatria e cursos realizados inclusive na França. Garcia Moreno atuou como principal nome do Gabinete de Biologia Criminal e efetuou diversas interferências em decisões judiciais no livramento condicional a detentos da Penitenciária de Aracaju. No início da carreira, esse homem de sciencia depositava total confiança nos princípios do determinismo biológico e nos resultados positivos da perícia antropopsiquiátrica, mas, com o tempo, pendeu também aos ditames da biotipologia.

Não é de estranhar que isso tenha acontecido. Na década de 1930, as teorias do racismo científico e do determinismo biológico, de um modo geral, foram colocadas em xeque com a emergência das teses do relativismo cultural, bastante influenciada pelas obras de Gilberto Freyre. Desde o seu livro Casa Grande & Senzala (1933), o sociólogo pernambucano buscou substituir a noção de raça - uma vez que refutava a existência dessa categoria classificatória - pela de cultura. No entanto, o paradigma intelectual racista e biodeterminista teve uma sobrevida até as novas reconfigurações possibilitadas pelo desfecho da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando foi suplantado pelos postulados do culturalismo.58 58 BORGES, Dain. Puffy, ugly, slothful, and inert: degeneration in Brazilian social thought, 1880-1940. Journal of Latin American Studies, Cambridge, vol. 25, n. 2, 1993, p. 235-256; SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; SANTOS, Ricardo Ventura. Da morfologia às moléculas, de raça à população: trajetórias conceituais em antropologia física no século XX. In: MAIO, Marcos C. & SANTOS, Ricardo V. (org.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz: Centro Cultural Banco do Brasil, 1996, p. 125-140. À medida que buscavam sepultar o conceito biológico de raça, os especialistas negavam a possibilidade de qualquer associação determinista entre características físicas, comportamentos sociais e atributos morais.

No campo da medicina legal e da criminologia, as concepções mais ortodoxas da época de Lombroso foram sendo paulatinamente substituídas pelas teorias do chamado constitucionalismo biotipológico. Em vez do reducionismo lombrosiano - que a partir de poucos estigmas físicos e morfológicos se tirava conclusões sobre a vida psíquica do indivíduo, até mesmo sua tendência criminosa -, a biotipologia ou ciência da personalidade primava pela visão holística sobre o indivíduo e seu corpo, daí a preocupação de estudar os diversos fatores - fisiológicos, morfológicos e psicológicos - de cunho hereditário ou adquirido, que conduziam ao crime.59 59 GOMES, Ana Carolina Vimieiro. A emergência da biotipologia no Brasil: medir e classificar a morfologia, a fisiologia e o temperamento do brasileiro na década de 1930. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi: Ciências Humanas, Belém, vol. 7, n. 3, 2012, p. 705-719. Conforme pondera Mariza Corrêa, o foco do médico-perito se deslocou do “exterior para o interior do corpo humano, dos estigmas visíveis, para os sinais invisíveis de sua adequação ou inadequação às normas sociais”. Isto é, “as pessoas já não eram definidas apenas pelo ângulo facial ou pela cor da pele, embora essas definições continuassem a ser utilizadas, mas a partir de testes cada vez mais refinados que as classificavam conforme a sua hereditariedade, o seu caráter ou a sua constituição biotipológica - uma combinação de fatores físicos e psíquicos”.60 60 CORRÊA, Mariza. Antropologia e medicina legal: variações em torno de um mito. In: VOGT, Carlos et al. Caminhos cruzados: linguagem, antropologia e ciências naturais. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 55. De fato, as características raciais, como critério de explicação da personalidade (ou índole) do criminoso, perderam terreno ante os novos ventos que passaram a soprar no pensamento social brasileiro, mas aquele modelo explicativo não desapareceu totalmente. Em 1934, os médicos Leonídio Ribeiro, Isaac Brown e Waldemar Berardinelli apresentaram um “estudo biotipológico de negros e mulatos brasileiros” no 1º Congresso Afro-Brasileiro, realizado em Recife. Apoiando-se em muitos dados e cálculos extraídos de medições anatômicas (abdômen, tórax, tronco, membros, peso, altura etc.) do corpo de 108 “melanodemos” (negros) e 197 “phaiodermos” (mulatos), os pesquisadores constataram que tais indivíduos possuíam características físicas com “desvios” frente aos “normotipos brasileiros brancos”. Ao centrarem a investigação em 33 “pretos e mulatos” que cometeram crimes de “homicídio, roubo, atos sexuais”, os pesquisadores verificaram que a maior parte deles era “misto”, ou seja, miscigenado. Por isso, e pelo número pequeno de investigados, não seria possível, na visão dos autores, “tirar conclusões sobre as relações entre os biótipos [conjunto de caracteres morfo-físicos-psicológicos do indivíduo, que se relacionam e se completam] e a espécie de delito”, muito embora tenham notado certos estigmas criminosos nos 33 investigados: possuíam “uma acentuada predominância das formas longitípicas, assim como dos membros superiores”. Quanto ao crânio deles, predominava “ligeiramente a sub-braquicefalia”. BERARDINELLI, Waldemar et al. Estudo biotypológico de negros e mulatos brasileiros normaes e delinquentes. In: CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO, 1, Recife. Anais... Recife: Fundação Joaquim Nabuco: Massangana, 1988 [1934]. p. 151-165. vol. 2. Edição Fac-similar. Os biotipologistas continuaram operando com as mensurações antropométricas e classificações dos traços físicos e craniométricos das pessoas. Portanto, se, por um lado, invocavam a influência das características adquiridas (mesológicas e culturais) na constituição das diferenças de personalidade, por outro, sustentavam que as características hereditárias (biológicas e raciais) poderiam fornecer respostas para as condutas individuais, inclusive a criminosa. Cf. CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Sua alma em sua palma: identificando a “raça” e inventando a nação. In: PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV, 1999. p. 257-288. Educação deficiente, desestrutura familiar, vulnerabilidade social, instabilidade emocional, comportamento desviante, vadiagem, “taras” e vícios, como alcoolismo e tabagismo, precedentes criminais, morfologia anômala, hereditariedade mórbida - enfim, todos os fatores biológicos, sociais e psicossomáticos deveriam ser considerados, combinadamente, na análise do indivíduo.61 61 MIRANDA, Carlos Alberto Cunha. A fatalidade biológica: a medição dos corpos, de Lombroso aos biotipologistas. In: MAIA, Clarissa Nunes et al. (org.). História das prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. p. 277-317. vol. 2.

A perícia no requerente começou com o registro de vários de seus dados pessoais. Nome: “Manoel Luiz de Jesus”; cor: “melanodermo [indivíduo de pele de coloração escura] 3”; filiação: “Luiz Manoel Tavares e Clara Maria de Jesus”; sexo: “masculino”; estado civil: “casado civilmente e na Igreja”; lugar de nascimento: “Frei Paulo”; naturalidade: “sergipano”; religião: “católica”; educação: “rústica”; profissão: “lavrador”; partido político: “não tem”; crime: “roubo”; pena: “20 anos de reclusão”; data da prisão: “16/12/1931”; término da pena: “17/12/1951”. A partir daí interrogatórios, medidas e testes se sucederam, com transcrições que ocuparam laudas do processo. Manoel Luiz teve os seus índices biotipológicos e antropométricos (índice cefálico, facial, nasal, ângulo facial etc.) mensurados.62 62 AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. Dados biotipológicos e antropométricos de Manoel Luiz de Jesus. Dr. João Batista Perez Garcia Moreno (psiquiatra) e Dr. Canuto Garcia Moreno (biotipologista). Gabinete de Biologia Criminal, Penitenciária de Aracaju, Estado de Sergipe, 16/12/1947. Embora esse exame não tenha uma conotação diretamente racista - a referência ao “melanodermo” não chega a tanto -, convém frisar que a diferenciação racial foi um dos aspectos da teoria de Lombroso e da Escola Positiva em geral.

Após Manoel Luiz ter os seus índices biotipológicos e antropométricos mensurados, foi inquirido acerca de sua história de vida no plano fisiológico e patológico, desde a infância. A premissa era de que, ao reconstituir a história de vida do delinquente, encontrar-se-ia sinais que o identificavam retrospectivamente como tal desde o começo de sua existência. Consideravase que o crime já estaria incubado no criminoso antes mesmo de acontecer. Cabia ao olhar treinado do especialista identificá-lo.63 63 FERLA, Luis. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo, São Paulo (19201945). São Paulo: Alameda, 2009. p. 164-165. Os médicos-peritos anotaram os aspectos que julgaram mais relevantes das respostas de Manoel Luiz: “Púbere aos 16 anos”, iniciou-se no “comércio sexual aos 19”. Teve “herpes zoster na infância” e “nega qualquer doença” na fase adulta. No que se refere aos antecedentes familiares, seu pai foi “assassinado” quando tinha 13 anos. Era “preto, talvez normolíneo [tipo com simetria entre troncos, membros e abdômen], sério e amigueiro”. O assassino permanecia “ignorado” e o crime ficou “impune”. Sua mãe, já falecida, era “faioderma, alegre e também amigueira”. O paciente “nega psicopatia na família”.64 64 AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. Antecedentes individual e familiares de Manoel Luiz de Jesus. Dr. João Batista Perez Garcia Moreno (psiquiatra) e Dr. Canuto Garcia Moreno (biotipologista). Gabinete de Biologia Criminal, Penitenciária de Aracaju, Estado de Sergipe, 16/12/1947.

Como última etapa do exame médico-legal, foram realizados testes psicológicos, cujo escopo não era outro senão desvendar a mente do delinquente. Sua “utilização ampla em criminologia se dava pela sua suposta capacidade em ter acesso a segredos da vida e do pensamento do indivíduo examinado que não seriam acessíveis de outra forma”.65 65 FERLA, Luis. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo, São Paulo (19201945). São Paulo: Alameda, 2009, p. 177. O peticionário foi submetido, assim, ao teste de Rorschach, baseado em estímulos e reações, que procuravam analisar as livres associações produzidas. É uma pena que as súmulas preenchidas não se encontrem no processo, mas apenas os resultados sintetizados. Os médicos-peritos diagnosticaram que Manoel Luiz é “pouco inteligente”. A partir desse pressuposto, o laudo chegou a várias conclusões sobre sua psique. Estado afetivo: “extratensivo”, “impulsividade já dominada”, “sintônico”. No tocante ao exame P. M. K. (ou psicodiagnóstico miocinético), constatou-se que ele tinha “escala diatésica de grau baixo”, porém “sem agressividade”. “Detalhista”, “pragmático”, era dotado de “extraversão”. Quanto à sua personalidade, sofria de “ciclotímico [transtorno do humor] responsivo”. Para finalizar, os médicos-peritos traçaram um diagnóstico criminológico do requerente:

Manoel Luiz, bancando o “Corisco” apenas deu a cor do tempo e do ambiente a sua personalidade extratensiva, impulsiva, servida por inteligência rude e inculta. O segundo crime fê-lo na embalagem desta mesma situação bio-psicológica. Hoje, o estudo polidimensional de sua personalidade, principalmente à luz dos testes de Rorschach e do P. M. K., mostra a diminuição da impulsividade. Diminuição decorrente da idade, apoucadora da força vital, e da super estrutura que a vida carcerária cria em muitos detentos, reforçando-lhes a censura, e lhes melhorando a consciência e o caráter. Processou-se nele a regeneração que a lei espera para a maioria dos criminosos.66 66 AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. Prognóstico criminológico de Manoel Luiz de Jesus. Dr. João Batista Perez Garcia Moreno (psiquiatra) e Dr. Canuto Garcia Moreno (biotipologista). Gabinete de Biologia Criminal, Penitenciária de Aracaju, Estado de Sergipe, 16/12/1947.

Percebe-se como os médicos-peritos empregaram os procedimentos da biotipologia para examinar Manoel Luiz. Pode-se dizer que tais procedimentos ressignificaram as teses da criminologia lombrosiana, a partir de uma ampliação das mensurações antropométricas e das classificações biopsíquicas. Acreditava-se que o estudo dos diversos fatores - biológicos (especialmente anatômicos-fisiológicos) e psíquicos - que conduziam ao crime permitia um mapeamento exato da personalidade do criminoso e levava à individualização da pena e do prognóstico correcional.67 67 GOMES, Ana Carolina Vimieiro. A emergência da biotipologia no Brasil: medir e classificar a morfologia, a fisiologia e o temperamento do brasileiro na década de 1930. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi: Ciências Humanas, Belém, vol. 7, n. 3, 2012, p. 705-719. A raça aí não devia ser negligenciada, porém já não cumpriria um papel de determinação. Se o relatório do diretor da penitenciária apontava o bom comportamento e a faina laboriosa de Manoel Luiz, o laudo do Gabinete de Biologia Criminal assinalava a ausência ou cessação de sua periculosidade. A pena de reclusão e as consequentes implicações da vida carcerária teriam desempenhado sua função corretiva, e o requerente, na concepção dos especialistas, havia se regenerado.

Figura 3
Manoel Luiz na época do julgamento do seu pedido de livramento condicional

O Conselho Penitenciário se reuniu em sessão extraordinária e, antes de tomar uma deliberação acerca do pedido de livramento condicional do Corisco Preto, ainda ouviu o parecer de Osman Hora Fontes (1916-1992), um dos conselheiros. Advogado criminalista e futuro professor da Faculdade de Direito de Sergipe, Fontes exerceu vários cargos de destaque ao longo da vida pública: chegou a ser chefe de polícia, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (seção Sergipe) e procurador-geral do estado. Seu longo arrazoado baseou-se nos princípios da sociologia criminal. “A primeira impressão que nos dá Manoel Luiz de Jesus, em face dos crimes que cometeu, é de repulsa, de recusa instintiva ao seu pedido de livramento condicional”, afirmava o conselheiro. “Mas, se estudarmos detidamente a sua figura frente aos processos científicos da criminologia moderna, vamos situá-lo entre aqueles criminosos mais produto do meio ambiente em que viveram, do que mesmo uma figura típica individual de delinquente”. Sem fazer da questão racial o eixo central de seu argumento, Fontes anunciava os fatores psicológicos, mesológicos e culturais que levaram Manoel Luiz ao mundo da marginalidade: “Vê, aos treze anos, morrer seu pai assassinado, sem punição alguma para o autor do delito”. Se não bastasse passar por esse drama familiar quando pimpolho, ele “criou-se, cresceu e fez-se homem em meio físico e social propenso ao crime. A criminalidade rural latente, extravasada violentamente no cangaceirismo, tem como causa profunda e primordial o tipo de organização social das nossas populações sertanejas”. Para reforçar seus argumentos, o conselheiro citava um renomado jurista: “fatores antropológicos e físicos, diz Roberto Lira, cultivando os germes do crime, agravados pelas iniquidades, pelas misérias, pelas opressões, pelo medievalismo integral da constituição da sociedade, produzem uma psicologia mórbida no indivíduo e uma sugestão permanente ao crime no meio”. A partir desse substancioso arrazoado, Fontes emitiu o seu parecer:

Os 16 anos que o liberando já cumpriu na penitenciária nos fornecem elementos suficientes para julgá-lo capacitado a reingressar na sociedade, devidamente regenerado, segundo asseveraram os técnicos do Gabinete de Biologia Criminal. Por outro lado, preenche o liberando os requisitos legais para o benefício do livramento condicional e melhor será que ele permaneça em liberdade, esses quatros anos que lhe faltam para o cumprimento integral das penas que lhe foram impostas, onde todos seus passos e atitudes sociais sejam fiscalizados, em período experiencial de readaptação social, do que voltar à sociedade, passados ditos quatro anos, inteiramente livre de qualquer ação controladora, salvo a repressiva policial-judiciária. Por todos estes motivos, somos de parecer favorável ao livramento condicional do sentenciado Manoel Luiz de Jesus.68 68 AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. Livramento Condicional. Requerente: Manoel Luiz de Jesus. Parecer do relator Osman Hora Fontes, Aracaju, 05/02/1948.

O Conselho Penitenciário finalmente tomou uma decisão. Reunido em sessão extraordinária no dia 5 de fevereiro de 1948, “decidiu por unanimidade de votos conceder o livramento condicional do sentenciado, depois de prestados esclarecimentos pelo dr. João Garcia Moreno sobre as conclusões do laudo do gabinete de Biologia Criminal”.69 69 AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. Ata da sessão extraordinária do Conselho Penitenciário do Estado de Sergipe, no dia 5 de fevereiro de 1948. Manoel Luiz deixaria o cárcere, após anos de pena privativa de liberdade. Provavelmente tenha recebido tal notícia com muita alegria, afinal, estava livre, embora ainda precisasse cumprir certos requisitos legais.70 70 O Juiz de Direito da 1ª. Vara Criminal de Aracaju, Benedito da Silva Cardoso, deferiu o pedido do Conselho Penitenciário, concedendo o benefício do “livramento condicional” a Manoel Luiz, entretanto, lhe impôs as seguintes disposições: “1) adotar meio de vida honesto, dentro de 30 dias, contados da data em que for posto em liberdade; 2) não mudar de residência sem prévia autorização deste Juízo; 3) não trazer consigo armas ofensivas ou instrumentos capazes de ofender; 4) não frequentar casas de bebidas ou de tavolagem; 5) abster-se da companhia de pessoas de má reputação; 6) comunicar mensalmente a este Juízo e ao diretor da Penitenciária Modelo do Estado a sua ocupação, os salários ou proventos de que vive, as economias que consegue realizar e as dificuldades com que luta para manter-se”. APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 208. Carta de Guia para execução de livramento condicional, expedida pelo Dr. Benedito de Silva Cardoso, Juiz de Direito da 1ª. Vara das Execuções Criminais da Comarca de Aracaju (SE), em 26 de fevereiro de 1948. Não sabemos do seu paradeiro. Será que voltou a morar no interior? Ou resolveu radicar-se na capital do estado? Será que realizou o seu desejo de se casar novamente e reconstruir uma família? Conseguiu alocar-se no mercado de trabalho, de modo a ter condições de ganhar o “pão de cada dia” com dignidade? Será que ele passou a levar uma vida regrada - no caminho da honestidade, idoneidade e retidão - e não enfrentou mais problemas com a Justiça?

Na ausência de respostas seguras para tais questões, resta-nos especular. Talvez Manoel Luiz tenha passado por experiências semelhantes aos dos cangaceiros que foram presos e cumpriram pena. Por ocasião do assassinato de Corisco em 1940 - fato que decretou “oficialmente” o fim do cangaço -, muitos cangaceiros estavam sob a custódia das autoridades em Alagoas e Bahia. Alguns deles esperavam a anistia, principalmente aqueles que tinham se entregado voluntariamente, conquanto outros sabiam que seus crimes não seriam perdoados. Em geral, as autoridades e a maior parte da opinião pública “sentiam pena deles, ponto de vista este que se originava da ideia de que o cangaço era o reflexo da ignorância, pobreza e injustiça da sociedade sertaneja: os cangaceiros eram, portanto, criminosos comuns, porém vítimas das circunstâncias”.71 71 CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 263. O comportamento deles na penitenciária impressionou as autoridades. Portavam-se como pessoas normais, que, apesar de presas, trabalhavam de forma morigerada e obedeciam às autoridades. Após o cumprimento da pena, que ia de alguns meses até 3 ou 4 anos, e atestado o bom comportamento, eram soltos e reintegrados à sociedade. Algo semelhante ocorreu com Manoel Luiz. A Justiça entendeu que ele se reabilitou e apresentava condições de reinserir-se socialmente, por isso o colocou novamente no convívio dos chamados cidadãos de bem.

Acabava assim o drama de um negro que - embora acoimado pelo aparato policial, condenado pelo poder judiciário e apreendido como objeto de laboratório pelos ditames da antropologia criminal -, viveu como poucos as venturas, desventuras e encruzilhadas relacionadas ao cangaço, à raça e ao banditismo rural. Em 1948, os tempos estavam mudando e o país já não era mais o mesmo. O cangaço chegara ao fim, depois de um grande esforço do governo Vargas para acabar com aquela modalidade de banditismo, que “maculava” a imagem do Brasil como um país moderno. Também parecia ter chegado ao fim os discursos baseados nas teorias do biodeterminismo racial em detrimento daqueles calcados no papel do meio cultural, social e econômico. Falamos parecia porque “é necessário relativizar a interpretação de que ocorreu um completo abandono de noções raciais/biológicas no tocante às interpretações da dinâmica social brasileira”.72 72 SANTOS, Ricardo Ventura. Mestiçagem, degeneração e viabilidade de uma nação: debates em antropologia física no Brasil (1870-1930). In: MAIO, Marcos C. & SANTOS, Ricardo V. (org.). Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010, p. 102. Pelo menos no campo da medicina legal e da criminologia, não se esvaiu totalmente a crença de que era possível identificar, criminalizar e punir certos indivíduos tendo em vista os seus traços fenotípicos. O tamanho de lábios e narizes, os índices cefálicos, a espessura de cabelos, a cor da pele, entre outras marcas corporais, decodificariam valores morais, comportamentais e estéticos. Classificações como pardos, mestiços, mulatos e pretos continuaram a aparecer nos registros policiais, prontuários médicos, autos criminais, laudos periciais, gráficos estatísticos e manuais de Medicina e de Direito. Talvez resida aí a chave para entendermos um suposto “enigma” do imaginário social brasileiro no que concerne à “superposição de seus vários discursos sobre raça”.73 73 CUNHA, Olívia Maria Gomes da. 1933: um ano em que fizemos contatos. Revista USP, São Paulo, n. 28, 1995-1996, p. 160.

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  • SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
  • SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
  • SLATTA, Richard W. (org.). Bandidos: the varieties of Latin American Banditry. New York: Greenwood Press, 1987.
  • SOARES, Paulo Gil. Vida, paixão e mortes de Corisco, o Diabo Louro. Porto Alegre: L&PM, 1984.
  • SOUZA, Amaury de. O cangaço e a política da violência no Nordeste brasileiro. DADOS: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, n. 10, 1973, p. 97-125.
  • STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.
  • VENTURA, Roberto. Um Brasil mestiço: raça e cultura na passagem da monarquia à república. In: MOTA, Carlos Guilherme. Viagem incompleta: a experiência brasileira (1500-2000). Formação: histórias. 2. ed. São Paulo: Senac, 2000, p. 329-359.
  • VILLELA, Jorge Mattar. O povo em armas: violência e política no sertão de Pernambuco. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.
  • WIESEBRON, Marianne L. Historiografia do cangaço e estado atual da pesquisa sobre banditismo a nível nacional e internacional. Revista Ciência & Trópico, Recife, vol. 24, n. 2, p. 417-444, 1996.
  • *
    Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Professor Associado do Departamento de História do Centro de Educação e Ciências Humanas CECH da Universidade Federal de Sergipe e Bolsista Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq.
  • 1
    Uma cidade invadida por cangaceiros. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 16/08/1909, p. 1.
  • 2
    PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 17.
  • 3
    CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 31.
  • 4
    A respeito do cangaço, ver também QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. História do cangaço. São Paulo: Global, 1986; NASCIMENTO, José Anderson. Cangaceiros, coiteiros e volantes. São Paulo: Ícone, 1998; MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa, 2004; GRUNSPAN-JASMIN, Élise. Cangaceiros. São Paulo: Terceiro Nome, 2006.
  • 5
    RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas. São Paulo: Martins, 1975, p. 136, 142 e 153. Sobre o tema do cangaço na literatura brasileira, consultar REGO, José Lins do. Cangaceiros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980; DANTAS, Francisco. Os desvalidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996; RAMOS, Graciliano. Cangaços. Rio de Janeiro: Record, 2014.
  • 6
    O termo “bandido-guerrilheiro” é utilizado por Luiz Bernardo Pericás em oposição ao “bandido social”, categoria analítica formulada pelo historiador inglês Eric Hobsbawm (1975[1969]) na década de 1960 para se referir a determinados tipos de criminosos do meio rural: “A tipologia básica do ‘bandido social’ é bastante inexata, pelo menos no caso específico do cangaço, já que não consegue enquadrar um número significativo de tipos homogêneos de marginais dentro de um sistema amplo coerente. […] Assim talvez o termo ‘bandido-guerrilheiro’ fosse possivelmente o mais apropriado para o caso do cangaço, ainda que não designasse em toda amplitude as particularidades dessa modalidade”. Cf. PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 189. Para outras críticas e controvérsias girando em torno da “teoria” do “bandido social”, ver SLATTA, Richard W. (org.). Bandidos: the varieties of Latin American Banditry. New York: Greenwood Press, 1987 e JOSEPH, Gilbert M. On the trail of Latin American Bandits: a reexamination of peasant resistance. Latin American Research Review, Pittsburgh, vol. 25, n. 3, 1990, p. 7-53. Já no que concerne às análises historiográficas da produção acadêmica e não acadêmica sobre o fenômeno do banditismo nordestino e de algumas obras que dialogam com o assunto em âmbito internacional, conferir WIESEBRON, Marianne L. Historiografia do cangaço e estado atual da pesquisa sobre banditismo a nível nacional e internacional. Revista Ciência & Trópico, Recife, vol. 24, n. 2, 1996, p. 417-444 e FERRERAS, Norberto Osvaldo. Bandoleiros, cangaceiros e matreiros: revisão da historiografia sobre o Banditismo Social na América Latina. História, [online], vol. 22, n. 2, 2003, p. 211-226.
  • 7
    O pesquisador Frederico Pernambucano de Mello faz uma avaliação mais exagerada do quão notável foi Lampião: “Na história universal do banditismo dos tempos modernos não há quem possa oferecer contraste ao reinado de Lampião, quer pelo valor combativo, quer pela abrangência de espaço e de tempo dentro da qual esse reinado se arrastou. É figura ímpar nesse domínio, diz-se à unanimidade. Mitificado pela gesta sertaneja desde a madrugada de sua longa carreira, tal como acontecera anos antes com seu precursor Antônio Silvino, Lampião contaminaria com os passos das suas alpercatas de sete léguas toda uma época que escorre lenta do início dos anos 1920 ao início dos 1940, quando mortos, presos ou enxotados os remanescentes derradeiros da sua corte decaída”. Cf. MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa, 2004, p. 302-303. Sobre a trajetória de Lampião, ver ainda ARAÚJO, Antônio Amaury Corrêa de. Assim morreu Lampião. Rio de Janeiro: Brasília/Rio, 1976 e GRUNSPAN-JASMIN, Élise. Lampião, senhor do sertão. São Paulo: Edusp, 2001.
  • 8
    PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 56. Sobre o cangaço como negócio e meio de vida, consultar MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa, 2004, p. 117, 140, 381.
  • 9
    Lampião em Capela”. Correio de Aracaju, Aracaju, 29/11/1929. In: LIMA, Zozimo. Variações em fá sustenido: crônicas sergipanas. 2. ed. Aracaju: Triunfo, 2003. p. 26-31.
  • 10
    Um passeio de Lampeão pelo município de Capela. A Batalha, Rio de Janeiro, 05/01/1930, p. 6.
  • 11
    Um grupo de bandidos, chefiado por José Baiano, na fazenda Serra Preta, município de S. Paulo. Correio de Aracaju, 18/01/1935, p. 4.
  • 12
    Arquivo Geral do Judiciário do Estado de Sergipe (AGJES). Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Sumário de Culpa, Cx. 07/2643. Denúncia do Adjunto do Promotor Público, Deolindo Telles de Andrade, ao Ilmo. Sr. Dr. Juiz Municipal. São Paulo, 21/01/1931.
  • 13
    AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. Livramento Condicional. Requerente: Manoel Luiz de Jesus. Parecer do relator Osman Hora Fontes, Aracaju, 05/02/1948.
  • 14
    Não é de estranhar que Manuel Luiz descendesse de uma família negra. Conforme argumenta Luiz Bernardo Pericás, “é óbvio que também havia o elemento negro no sertão, que se encontrava em número mais significativo do que muitos tentam fazer crer, ainda que, em termos gerais, os africanos ou seus descendentes fossem representados numa proporção bem menor do que os ‘brancos’, caboclos e mamelucos. De qualquer forma, vários cantadores, repentistas, beatos e cangaceiros negros são bastante conhecidos e formam parte importante e representativa do cenário social e cultural sertanejo”. Cf. PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 115.
  • 15
    AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. Relatório apresentado pela Diretoria da Penitenciária do Estado sobre o pedido de livramento condicional do sentenciado Manoel Luiz de Jesus. Diretor José da Silva Ribeiro Filho. Aracaju, 20/09/1947; Arquivo Público do Estado de Sergipe (APES). Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 169. Relatório apresentado pela Diretoria da Penitenciária do Estado sobre o pedido de livramento condicional do sentenciado Manoel Luiz de Jesus. Diretor José da Silva Ribeiro Filho. Aracaju, 20/09/1947; APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 261. Penitenciária do Estado de Sergipe. Prontuário no. 128. Sentenciado: Manoel Luiz de Jesus. Aracaju, 16/06/1936.
  • 16
    De acordo com a antropóloga Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, o homem sertanejo constitui-se a partir de um “imaginário” cujos valores como o “cumprimento das leis, a proteção à honra da família – representada pela coragem e o bom comportamento dos homens, associados à pureza sexual das donzelas e recato de viúvas e mulheres casadas –, a obediência à Igreja Católica, o respeito aos mais velhos e padrinhos; a caridade; a sobriedade e modéstia no vestir e no falar, o ‘respeito ao alheio’, articulam-se no código de ‘honra sertaneja’”. Cf. BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Antropologia da honra: uma análise das guerras sertanejas. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, vol. 29, n. 1-2, 1998, p. 160-168. Para uma abordagem mais adensada a respeito dos códigos de honra sertaneja no período do cangaço, ver pesquisa da mesma autora: A derradeira gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no sertão. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.
  • 17
    Sobre a cultura da violência no Nordeste brasileiro, a partir de seus sentidos e significados próprios, conferir respectivamente SOUZA, Amaury de. O cangaço e a política da violência no Nordeste brasileiro. DADOS: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, n. 10, 1973, p. 97-125 e VILLELA, Jorge Mattar. O povo em armas: violência e política no sertão de Pernambuco. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.
  • 18
    AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. História criminal de Manoel Luiz de Jesus. Dr. João Batista Perez Garcia Moreno (psiquiatra) e Dr. Canuto Garcia Moreno (biotipologista). Gabinete de Biologia Criminal, Penitenciária de Aracaju, Estado de Sergipe, 16 dez. 1947.
  • 19
    SOARES, Paulo Gil. Vida, paixão e mortes de Corisco, o Diabo Louro. Porto Alegre: L&PM, 1984.
  • 20
    CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 159. Ver ainda “Corisco ataca uma fazenda, matando seis pessoas, e em seguida enviou as cabeças ao prefeito de Piranhas”. A Batalha, Rio de Janeiro, 04/08/1938, p. 6; “A façanha de ‘Corisco’, na Fazenda Patos, implantou o terror novamente em todos os lares nordestinos”. Diário da Noite, Rio de Janeiro, 04/08/1938, p. 1.
  • 21
    RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas. São Paulo: Martins, 1975, p. 148.
  • 22
    ARAÚJO, Antônio Amaury Corrêa de. Gente de Lampião: Dadá e Corisco. São Paulo: Traço, 1982, p. 27.
  • 23
    Mensagem apresentada à Assembleia Legislativa, em 7 de setembro de 1929, ao instalar-se a 1ª. Sessão Ordinária da 17ª Legislatura, pelo presidente do Estado, Manoel Corrêa Dantas. Aracaju: Imprensa Oficial, 1929, p. 9.
  • 24
    CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 145, 214.
  • 25
    ARAÚJO, Antônio Amaury Corrêa de. Gente de Lampião: Dadá e Corisco. São Paulo: Traço, 1982, p. 24-25.
  • 26
    No tocante às relações raciais, a postura de Lampião não era diferente. Descrito por Graciliano Ramos como um “mulato” e “besta-fera”, também mantinha negros em seu bando (como Azulão, Bom de Veras, Casca-Grossa, Meia-Noite, Coqueiro, Zé Sereno, Roxinho, Colchete, José Baiano, Mariano, entre outros). Mas, ainda assim, nutria certo desprezo pela “população de cor” em geral. Segundo o cangaceiro Volta Seca, ele teria dito, ao se referir a um soldado negro, morto na cidade de Queimadas em novembro de 1929: “Negro nunca foi gente! Negro é a imagem do diabo!”. São muitos os casos de manifestações de preconceito partindo de Lampião. Após pernoitarem na fazenda do “coronel” Antônio Caixeiro no município sergipano de Canhoba, ele e seus cabras partiram pela manhã. Antes, porém, passaram pelo oratório da casa e deixaram notas de 20 mil-réis entre as mãos das estatuetas dos santos católicos, com exceção da de São Benedito, cuja oferta se restringiu a uma cédula suja e amassada de apenas 5 mil-réis. Alguns meses mais tarde, quando Lampião regressou ao local, a esposa do anfitrião “perguntou o motivo daquele gesto de tanto desdém com o mártir cristão. E Lampião disse, simplesmente, um tanto quanto surpreendido, que nunca ouvira falar que um negro pudesse ser santo!”. Cf. RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas. São Paulo: Martins, 1975, p. 132, 136; PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 124. Certa vez ele enviou um bilhete a um sargento em Pinhão, no estado de Sergipe, zombando de sua cor: “Não gosto de negro, e, além de negro, macaco”. CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 239.
  • 27
    AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Sumário de Culpa, Cx. 07/2643. Denúncia do Adjunto do Promotor Público, Deolindo Telles de Andrade, ao Ilmo. Sr. Dr. Juiz Municipal. São Paulo, 21/01/1931.
  • 28
    MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa, 2004, p. 295-296.
  • 29
    PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 180.
  • 30
    Juarez Conrado informa que Lampião esteve em Alagadiço, povoado do município de Frei Paulo, pelo menos em quatro ocasiões: em 1930 – quando se dirigiu à fazenda do Sr. Melquíades, roubando todos os pertences, notadamente as peças de ouro de D. Iaiazinha, esposa do fazendeiro –, em 1932, 1933 e 1934, vez em que tentou acertar contas com o ex-presidiário Cazuza Paulo. Cf. CONRADO, Juarez. Lampião: assaltos e morte em Sergipe. Aracaju: J. Andrade, 2010, p. 153-160. A respeito da presença de Lampião e seu bando na região de Frei Paulo, ver também MATOS NETO, Antônio Porfírio de. Lampião e Zé Baiano no povoado Alagadiço. Aracaju: Info Graphics, 2006.
  • 31
    AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Sumário de Culpa, Cx. 07/2643. Denúncia do Adjunto do Promotor Público, Deolindo Telles de Andrade, ao Ilmo. Sr. Dr. Juiz Municipal. São Paulo, 21/01/1931.
  • 32
    CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 198.
  • 33
    Em livro sobre a presença de Lampião e seus sequazes em Sergipe, Juarez Conrado ressalta a natureza “facínora” de Zé Baiano: este “não deixava de demonstrar, em qualquer circunstância, sua terrível índole criminosa. Cometia atrocidades. Estuprava mulheres, matava, ferrava jovens ou senhores com o seu ‘JB’ no rosto e nas partes íntimas, além de obrigar antigos coiteiros, como sempre acontecia com Antônio de Chiquinho, a fornecer-lhe informações estratégicas sobre o deslocamento das volantes”. Por delegação de Lampião, atuava nas “terras compreendidas pelos municípios de Frei Paulo, Ribeirópolis, Pinhão e Carira, em Sergipe, além de Paripiranga, no vizinho estado da Bahia. Em pouco tempo, fazendo da ‘Toca da Onça’, na Serra da Caipora, seu esconderijo, Zé Baiano tornou-se famoso e temido por todos”. Cf. CONRADO, Juarez. Lampião: assaltos e morte em Sergipe. Aracaju: J. Andrade, 2010, p. 160-162.
  • 34
    QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. História do cangaço. São Paulo: Global, 1986; NASCIMENTO, José Anderson. Cangaceiros, coiteiros e volantes. São Paulo: Ícone, 1998.
  • 35
    Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Sumário de Culpa, Cx. 07/2643. Denúncia do Adjunto do Promotor Público, Deolindo Telles de Andrade, ao Ilmo. Sr. Dr. Juiz Municipal. São Paulo, 21/01/1931.
  • 36
    No que concerne ao cangaço, Luiz Bernardo Pericás é taxativo: “a maioria da população sertaneja, apesar da miséria, exploração e falta de emprego, não ingressou no cangaço. Em alguns casos, quando havia época de secas intensas, de fome e de miséria, muitos retirantes pobres chegaram ao ponto de vender as próprias roupas do corpo e fazer o percurso do Sertão cearense à capital completamente nus, só para que pudessem ter dinheiro suficiente para comprar alimentos. Outros flagelados optavam pelo suicídio. Ou seja, preferiam se colocar numa posição de constrangimento, apesar do desespero e da fome, ou até mesmo tirar a própria vida, do que cogitar se tornar bandoleiros. E também havia aqueles que chegavam a comer ratos, gatos, insetos, couro de gado e até mesmo a matar e comer crianças”. O fato é que a “índole e o senso ético da maioria dos sertanejos não permitiam que se decidissem a entrar na marginalidade, mesmo em situações extremas”. PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 189-190.
  • 37
    REVEL, Jacques. Micro-história, macro-história: o que as variações de escala ajudam a pensar em um mundo globalizado. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, vol. 15, n. 45, 2010, p. 440.
  • 38
    APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 261. Penitenciária do Estado de Sergipe. Prontuário no. 128. Sentenciado: Manoel Luiz de Jesus. Aracaju, 16/06/1936; APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 169. Relatório apresentado pela Diretoria da Penitenciária do Estado sobre o pedido de livramento condicional do sentenciado Manoel Luiz de Jesus. Diretor José da Silva Ribeiro Filho. Aracaju, 20/09/1947.
  • 39
    AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. Denúncia do Adjunto de Promotor Público, Jerônimo Lauto Barbosa, ao Exmo. Sr. Dr. Juiz Municipal de Anápolis, 26/02/1934.
  • 40
    APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 261. Penitenciária do Estado de Sergipe. Prontuário no. 128. Sentenciado: Manoel Luiz de Jesus. Aracaju, 16/06/1936; APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 169. Relatório apresentado pela Diretoria da Penitenciária do Estado sobre o pedido de livramento condicional do sentenciado Manoel Luiz de Jesus. Diretor José da Silva Ribeiro Filho. Aracaju, 20/09/1947.
  • 41
    FRANCO, Ary Azevedo (comentários). “Do livramento condicional”. Art. 710, incisos I, II, III, IV e V do Código de Processo Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1954, p. 415-416. vol. 2.
  • 42
    APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 261. Penitenciária do Estado de Sergipe. Prontuário no. 128. Sentenciado: Manoel Luiz de Jesus. Aracaju, 16/06/1936; APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 169. Relatório apresentado pela Diretoria da Penitenciária do Estado sobre o pedido de livramento condicional do sentenciado Manoel Luiz de Jesus. Diretor José da Silva Ribeiro Filho. Aracaju, 20/09/1947.
  • 43
    APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 261. Penitenciária do Estado de Sergipe. Prontuário no. 128. Sentenciado: Manoel Luiz de Jesus. Aracaju, 16/06/1936; APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 169. Relatório apresentado pela Diretoria da Penitenciária do Estado sobre o pedido de livramento condicional do sentenciado Manoel Luiz de Jesus. Diretor José da Silva Ribeiro Filho. Aracaju, 20/09/1947.
  • 44
    FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 87.
  • 45
    FERLA, Luis. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo, São Paulo (19201945). São Paulo: Alameda, 2009, p. 23-24.
  • 46
    O mais polêmico livro de Lombroso somente foi traduzido e publicado no Brasil no segundo lustro do terceiro milênio. LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. Tradução de Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone, 2007.
  • 47
    DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991; MIRANDA, Carlos Alberto Cunha. A fatalidade biológica: a medição dos corpos, de Lombroso aos biotipologistas. In: MAIA, Clarissa Nunes et al. (org.). História das prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. p. 277-317. vol. 2.
  • 48
    HARRIS, Ruth. Assassinato e loucura: medicina, leis e sociedade no fin de siècle. Rio de Janeiro: Rocco, 1993; BLANCKAERT, Claude. Lógicas da antropotecnia: mensuração do homem e bio-sociologia (1860-1920). Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 21, n. 41, 2001, p. 145-156; CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: UERJ; São Paulo: Edusp, 1998, p. 105.
  • 49
    GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • 50
    FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 104.
  • 51
    Sobre a apropriação no Brasil das teorias raciais, no geral, e da Escola Positiva, no particular, consultar Thomas Skidmore (1976), Renato Ortiz (1985), Lilia Schwarcz (1993), Roberto Ventura (2000) e Nancy Stepan (2005).
  • 52
    RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 4. ed. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília, DF: INL, 1976 [1933], p. 4.
  • 53
    BORGES, Dain. Puffy, ugly, slothful, and inert: degeneration in Brazilian social thought, 18801940. Journal of Latin American Studies, Cambridge, vol. 25, n. 2, 1993, pp. 235-256; ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Medicina, leis e moral: pensamento médico e comportamento no Brasil (1870-1930). São Paulo: Unesp, 1999; ALVAREZ, Marcos César. A criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os desiguais. DADOS: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 45, n. 4, 2002, p. 677-704; CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013. p. 61, 69.
  • 54
    Foi Nina Rodrigues quem periciou em Salvador a cabeça de Antônio Conselheiro, decepada após sua morte no ocaso do movimento de Canudos, em 1897. Usando os procedimentos das pesquisas craniométricas, o médico-legista maranhense suspeitava, a princípio, que o líder de Canudos fosse um criminoso nato, possuindo os estigmas lombrosianos do “ser degenerado, na qualidade de mestiço”, em que se associavam caracteres antropológicos de “raças diferentes”. No entanto, ao final dos exames do crânio, não encontrou nenhuma anomalia que nele denunciasse traços de degenerescência (Rodrigues, 1939). O laudo pericial de Nina Rodrigues foi publicado em forma de artigo, originalmente, na Revista Brasileira, em 1897. Apareceu um ano depois em francês, nos Annales Médico-Psychologiques, de Paris. Em 1939, Arthur Ramos o reeditou, em meio a outros cinco textos esparsos de Nina Rodrigues, no livro As collectividades anormais. Cf. RODRIGUES, Nina. A loucura epidêmica de Canudos: Antônio Conselheiro e os jagunços. In: RODRIGUES, Nina. As collectividades anormais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1939. p. 50-77.
  • 55
    CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: UERJ; São Paulo: Edusp, 1998; CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Intenção e gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002; ALVAREZ, Marcos César. O homem delinquente e o social naturalizado: apontamentos para uma história da criminologia no Brasil. Teoria & Pesquisa, São Carlos, n. 47, 2005, p. 71-92.
  • 56
    CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 186. Cerca de um ano depois de sua captura e da polêmica relacionada à sua idade exata, Volta Seca, cujo nome verdadeiro era Antônio dos Santos, foi julgado e condenado a 145 anos de prisão. No entanto, uma revisão do processo reduziu a pena para 30 anos e, depois de cumprido 20, ele foi indultado, em 1954, pelo presidente Getúlio Vargas. Mais tarde, Volta Seca tornou-se objeto de uma reportagem do jornal O Globo e relatou como foi alvo de curiosidades por ocasião de sua captura no interior da Bahia: “Recebido como raro animal de circo em todas as localidades a que chegava, acabei em Salvador, depois de uma longa viagem de mãos amarradas. E não me fizeram, durante todo o percurso, nenhuma maldade. Na capital da Bahia, a minha chegada constituiu um verdadeiro carnaval, principalmente por parte dos repórteres, que não me deixavam em paz. Procuravam-me todos os dias para entrevistar-me, mas, como eu nada dizia, eles imaginavam tudo. Redigiam sozinhos as ‘minhas’ entrevistas. Eu era, de fato, um bicho raro, e até fui examinado por médicos que se detinham cuidadosamente no meu crânio, medindo-o e tentando descobrir o que havia lá dentro… Eu era um monstro que precisavam ser bem estudado. E como o fui…”. Como se forja um cangaceiro. O Globo, Rio de Janeiro, 26/11/1958. Posteriormente, Estácio de Lima, que coordenou o estudo de Volta Seca no Instituto Nina Rodrigues, publicou um livro esquadrinhando as características “biossociológicas” deste e de outros cangaceiros do bando de Lampião. LIMA, Estácio de. O mundo estranho dos cangaceiros: ensaio bio-sociológico. Salvador: Itapoã, 1965.
  • 57
    GRUNSPAN-JASMIN, Élise. Cangaceiros. São Paulo: Terceiro Nome, 2006, p. 32. Ver também Lampeão era corcunda, caôlho e coxo!. Diário da Noite, Rio de Janeiro, 01/08/1938, p. 8. Lampeão era realmente dolicocéfalo. A Batalha, Rio de Janeiro, 04/08/1938, p. 6; Um caboclo nordestino diferente dos outros. O Globo, Rio de Janeiro, 04/08/1938; O exame da cabeça de Lampeão. Diário da Noite, Rio de Janeiro, 04/08/1938; As cabeças de Lampeão e Maria Bonita foram doadas ao Instituto Nina Rodrigues. Diário da Noite, Rio de Janeiro, 13/08/1938, p. 8.
  • 58
    BORGES, Dain. Puffy, ugly, slothful, and inert: degeneration in Brazilian social thought, 1880-1940. Journal of Latin American Studies, Cambridge, vol. 25, n. 2, 1993, p. 235-256; SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; SANTOS, Ricardo Ventura. Da morfologia às moléculas, de raça à população: trajetórias conceituais em antropologia física no século XX. In: MAIO, Marcos C. & SANTOS, Ricardo V. (org.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz: Centro Cultural Banco do Brasil, 1996, p. 125-140.
  • 59
    GOMES, Ana Carolina Vimieiro. A emergência da biotipologia no Brasil: medir e classificar a morfologia, a fisiologia e o temperamento do brasileiro na década de 1930. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi: Ciências Humanas, Belém, vol. 7, n. 3, 2012, p. 705-719.
  • 60
    CORRÊA, Mariza. Antropologia e medicina legal: variações em torno de um mito. In: VOGT, Carlos et al. Caminhos cruzados: linguagem, antropologia e ciências naturais. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 55. De fato, as características raciais, como critério de explicação da personalidade (ou índole) do criminoso, perderam terreno ante os novos ventos que passaram a soprar no pensamento social brasileiro, mas aquele modelo explicativo não desapareceu totalmente. Em 1934, os médicos Leonídio Ribeiro, Isaac Brown e Waldemar Berardinelli apresentaram um “estudo biotipológico de negros e mulatos brasileiros” no 1º Congresso Afro-Brasileiro, realizado em Recife. Apoiando-se em muitos dados e cálculos extraídos de medições anatômicas (abdômen, tórax, tronco, membros, peso, altura etc.) do corpo de 108 “melanodemos” (negros) e 197 “phaiodermos” (mulatos), os pesquisadores constataram que tais indivíduos possuíam características físicas com “desvios” frente aos “normotipos brasileiros brancos”. Ao centrarem a investigação em 33 “pretos e mulatos” que cometeram crimes de “homicídio, roubo, atos sexuais”, os pesquisadores verificaram que a maior parte deles era “misto”, ou seja, miscigenado. Por isso, e pelo número pequeno de investigados, não seria possível, na visão dos autores, “tirar conclusões sobre as relações entre os biótipos [conjunto de caracteres morfo-físicos-psicológicos do indivíduo, que se relacionam e se completam] e a espécie de delito”, muito embora tenham notado certos estigmas criminosos nos 33 investigados: possuíam “uma acentuada predominância das formas longitípicas, assim como dos membros superiores”. Quanto ao crânio deles, predominava “ligeiramente a sub-braquicefalia”. BERARDINELLI, Waldemar et al. Estudo biotypológico de negros e mulatos brasileiros normaes e delinquentes. In: CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO, 1, Recife. Anais... Recife: Fundação Joaquim Nabuco: Massangana, 1988 [1934]. p. 151-165. vol. 2. Edição Fac-similar. Os biotipologistas continuaram operando com as mensurações antropométricas e classificações dos traços físicos e craniométricos das pessoas. Portanto, se, por um lado, invocavam a influência das características adquiridas (mesológicas e culturais) na constituição das diferenças de personalidade, por outro, sustentavam que as características hereditárias (biológicas e raciais) poderiam fornecer respostas para as condutas individuais, inclusive a criminosa. Cf. CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Sua alma em sua palma: identificando a “raça” e inventando a nação. In: PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV, 1999. p. 257-288.
  • 61
    MIRANDA, Carlos Alberto Cunha. A fatalidade biológica: a medição dos corpos, de Lombroso aos biotipologistas. In: MAIA, Clarissa Nunes et al. (org.). História das prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. p. 277-317. vol. 2.
  • 62
    AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. Dados biotipológicos e antropométricos de Manoel Luiz de Jesus. Dr. João Batista Perez Garcia Moreno (psiquiatra) e Dr. Canuto Garcia Moreno (biotipologista). Gabinete de Biologia Criminal, Penitenciária de Aracaju, Estado de Sergipe, 16/12/1947.
  • 63
    FERLA, Luis. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo, São Paulo (19201945). São Paulo: Alameda, 2009. p. 164-165.
  • 64
    AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. Antecedentes individual e familiares de Manoel Luiz de Jesus. Dr. João Batista Perez Garcia Moreno (psiquiatra) e Dr. Canuto Garcia Moreno (biotipologista). Gabinete de Biologia Criminal, Penitenciária de Aracaju, Estado de Sergipe, 16/12/1947.
  • 65
    FERLA, Luis. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo, São Paulo (19201945). São Paulo: Alameda, 2009, p. 177.
  • 66
    AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. Prognóstico criminológico de Manoel Luiz de Jesus. Dr. João Batista Perez Garcia Moreno (psiquiatra) e Dr. Canuto Garcia Moreno (biotipologista). Gabinete de Biologia Criminal, Penitenciária de Aracaju, Estado de Sergipe, 16/12/1947.
  • 67
    GOMES, Ana Carolina Vimieiro. A emergência da biotipologia no Brasil: medir e classificar a morfologia, a fisiologia e o temperamento do brasileiro na década de 1930. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi: Ciências Humanas, Belém, vol. 7, n. 3, 2012, p. 705-719.
  • 68
    AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. Livramento Condicional. Requerente: Manoel Luiz de Jesus. Parecer do relator Osman Hora Fontes, Aracaju, 05/02/1948.
  • 69
    AGJES. Aracaju, 1ª. Vara Criminal – Processo Crime Roubo, Cx. 14/2624. Ata da sessão extraordinária do Conselho Penitenciário do Estado de Sergipe, no dia 5 de fevereiro de 1948.
  • 70
    O Juiz de Direito da 1ª. Vara Criminal de Aracaju, Benedito da Silva Cardoso, deferiu o pedido do Conselho Penitenciário, concedendo o benefício do “livramento condicional” a Manoel Luiz, entretanto, lhe impôs as seguintes disposições: “1) adotar meio de vida honesto, dentro de 30 dias, contados da data em que for posto em liberdade; 2) não mudar de residência sem prévia autorização deste Juízo; 3) não trazer consigo armas ofensivas ou instrumentos capazes de ofender; 4) não frequentar casas de bebidas ou de tavolagem; 5) abster-se da companhia de pessoas de má reputação; 6) comunicar mensalmente a este Juízo e ao diretor da Penitenciária Modelo do Estado a sua ocupação, os salários ou proventos de que vive, as economias que consegue realizar e as dificuldades com que luta para manter-se”. APES. Fundo Segurança Pública. Pacotilha SP5 208. Carta de Guia para execução de livramento condicional, expedida pelo Dr. Benedito de Silva Cardoso, Juiz de Direito da 1ª. Vara das Execuções Criminais da Comarca de Aracaju (SE), em 26 de fevereiro de 1948.
  • 71
    CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 263.
  • 72
    SANTOS, Ricardo Ventura. Mestiçagem, degeneração e viabilidade de uma nação: debates em antropologia física no Brasil (1870-1930). In: MAIO, Marcos C. & SANTOS, Ricardo V. (org.). Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010, p. 102.
  • 73
    CUNHA, Olívia Maria Gomes da. 1933: um ano em que fizemos contatos. Revista USP, São Paulo, n. 28, 1995-1996, p. 160.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2016
  • Aceito
    08 Mar 2017
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