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A HISTORIOGRAFIA DO IMPÉRIO ROMANO TARDIO: DO ESTADO MÁXIMO AO ESTADO MÍNIMO, E DE VOLTA OUTRA VEZ

THE HISTORIOGRAPHY OF THE LATER ROMAN EMPIRE: FROM MAXIMAL STATE TO MINIMAL STATE, AND BACK AGAIN

Resumo

Este artigo analisa os modelos conceituais de Estado utilizados pela historiografia sobre o Império romano tardio ao longo do século XX. A argumentação busca demonstrar que é possível observar uma alternância entre concepções opostas de Estado, ora maximalistas, ora minimalistas e que tais concepções quase sempre se apresentam como estruturas explicativas da história do Império romano tardio, considerando a extensão do Estado como causa da desarticulação ou da manutenção do sistema romano no Mediterrâneo. O texto analisa a historicidade dessas concepções, e demonstra sua conexão com o debate entre modernismo e primitivismo na economia antiga; critica igualmente os pressupostos e a quase ubiquidade das categorizações e ideologias liberais na historiografia (mesmo entre autores marxistas). Na conclusão demonstramos como a oposição historiográfica entre concepções minimalistas e maximalistas obscurecem o entendimento das relações de classe desenvolvidas no interior do sistema de governo imperial romano tardio.

Palavras-chave:
Império romano tardio; governo romano; economia antiga; historiografia; concepções de Estado

Abstract

The paper analyses the conceptual models of state used by the scholarship of the later Roman Empire. The argument here developed is that it is possible to identify an oscillation between opposing conceptions of state, sometimes maximalist, sometimes minimalist, and that such conceptions have almost always served as an explanatory structure of the later Roman Empire historical developments, with the greater or smaller size of that State seen alternately as the cause for either the disarticulation or maintenance of the Roman system in the Mediterranean. The paper presents an historical review of those conceptions, elaborates on their connections with the debate between modernism and primitivism in the ancient economy and deals with their structuring ideological assumptions and the almost ubiquitous presence of liberal ideological categories and assumptions (even among Marxist authors). The paper concludes by reflecting on how this historiographical opposition between minimalist and maximalist conceptions obscures our understanding of the class relations of the later Roman imperial system of government.

Keywords:
Later Roman Empire; Roman government; ancient economy; historiography; concepts of State

Para se ter uma verdadeira imagem do Império romano tardio em termos modernos, é preciso imaginar uma sociedade em que o Estado possua, ou controle e regule, as indústrias do ferro, do carvão e de mineração, todas as fundições, toda a produção de bebidas, de açúcar, de tabaco, de fósforos e de todos os itens de consumo de massa produzidos hoje por cartéis. Adicionalmente, o Estado teria propriedades enormes, teria oficinas de produção de provisões militares, assim como artigos para burocratas, possuiria todos os navios e ferrovias, e fecharia contratos estatais para regular a importação de lã. Deve-se imaginar todo o complexo administrado de acordo com as regras da organização burocrática e, junto com ela, um sistema de guildas e uma infinidade de documentos, acadêmicos ou não. Se imaginarmos tudo isso, sob um regime militar e dinástico, então teremos invocado o estado das coisas sob o Império romano tardio, a única diferença seria que a base tecnológica de então não era avançada até o ponto atual.

WEBER, Max. Estruturas agrárias da Antiguidade.

1. Introdução

Este artigo relaciona e analisa os modelos conceituais de Estado presentes na historiografia sobre o Império romano tardio. Estes modelos podem ser pensados a partir de uma oposição entre concepções maximalistas e minimalistas do sistema político romano. Isto é, concepções que, num caso, delineiam o Estado imperial como um sistema político hiperdesenvolvido, ou, no outro, o configuram como sendo um sistema político superficialmente desenvolvido, profundamente marcado por poderes privados e sem organicidade. As concepções maximalista ou minimalista do Estado romano tardio, por sua vez, repetidamente assumiram a condição de estrutura explicativa da história social do período, assinalando o tamanho grande ou pequeno desse sistema político como causa da desarticulação ou da manutenção do sistema imperial romano no Mediterrâneo. Estes modelos de Estado não foram apenas resultado de opiniões divergentes sobre os vestígios empíricos da Antiguidade, foram também resultado das inúmeras (mas talvez não muito diferentes) configurações ideológicas em meio às quais os historiadores do século XX investigaram o Império tardio. Por causa disso, reflito aqui também sobre os pressupostos ideológicos estruturadores dessas visões do Estado romano tardio e como, mesmo entre autores marxistas, parece haver um pressuposto ideológico liberal organizando suas visões do Estado romano tardio. Assim, ao final, termino com uma reflexão sobre como essa oposição historiográfica entre um Estado mínimo e um Estado máximo, nem sempre claramente elaborada em termos conceituais, se relaciona com o debate entre modernismo e primitivismo na economia antiga e com a dimensão de classe do sistema de governo imperial romano.1 1 Para sínteses bibliográficas sobre modelos de Estado na Antiguidade (assim como teorias da sua formação e manutenção), cf. CLAESSEN, H. J. M. The early State: theories and hypotheses. In: CLAESSEN, H. J. M. & SKALNÍK, Peter. The early State. The Hague: Mouton, 1978, p. 3-29; COHEN, Ronald. State origins: a reappraisal. In: CLAESSEN, H. J. M. & SKALNÍK, Peter. The early State. The Hague: Mouton, 1978, p. 31-75; GOLDSTONE, Jack A. & HALDON, John. Ancient states, empires and exploitation. Problems and perspectives. In: MORRIS, Ian & SCHEIDEL, Walter. The dynamics of ancient empires: State power from Assyria to Byzantium. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 3-29. Sobre os usos de conceitos políticos e sociais modernos para a Antiguidade, cf. MORLEY, Neville. Theories, models, and concepts in ancient history. Londres: Routledge, 2004, p. 66-81; e especificamente para a noção de Estado, FINLEY, Moses. Politics in the Ancient World. Cambridge: Cambridge University Press, 1983, p. 1-23.

2. A imagem do Estado absolutista

Na primeira metade do século XX, predominou uma visão que eu chamaria de maximalista do Estado imperial tardio. Em linhas gerais, o Império teria passado por uma enorme crise política e social ao longo do século III e, ao seu final, pela obra de um conjunto de imperadores preocupados em reforçar a ordem social, dos quais o maior representante teria sido Diocleciano, transformando-se em uma monarquia autocrática, com o afastamento definitivo do senado das decisões políticas imperiais. Muitos historiadores denominaram (anacronicamente) esse novo sistema de governo de Dominato, em oposição ao período também (anacronicamente) denominado Principado, no qual estruturas da República teriam convivido com a instituição imperial e no qual o senado e a aristocracia romana teriam maior acesso às estruturas de governo.2 2 A bibliografia é imensa e por isso eu remeto aos estudos de Santo Mazzarino: MAZZARINO, Santo. O fim do Mundo Antigo. São Paulo: Martins Fontes, 1991, para uma visão de conjunto do panorama anterior ao século XX. Peter Heather apresenta uma boa síntese da problemática e da forma do governo romano tardio em HEATHER, Peter. The fall of the Roman Empire. A new history of Rome and the barbarians. Oxford: Oxford University Press, 2006; e Carlos Machado demonstra como o debate sobre a forma do Estado é crucial para a discussão sobre a queda do Império romano no Ocidente em MACHADO, Carlos Augusto Ribeiro. A Antiguidade tardia, a queda do Império romano e o debate sobre o “fim do Mundo Antigo”. Revista de História, vol. 173, São Paulo, 2015, p. 81-114.

Algumas das mais influentes interpretações do Império romano no século XX, como as de Ferdinand Lot,3 3 LOT, Ferdinand. O fim do Mundo Antigo e o princípio da Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1982. Max Weber4 4 MAX, Weber. As causas sociais da decadência da cultura antiga. In: COHN, Gabriel (org.). Weber. São Paulo: Ática, 1983; Idem. Ensayos sobre sociologia de la religión, vol. I. Madri: Taurus, 1992; Idem. The agrarian sociology of ancient civilizations. Londres: Verso Books, 2013. e Mikhail Rostovtzeff,5 5 ROSTOVTZEFF, Mikhail. The social & economic history of the Roman Empire. Nova York: Biblo & Tannen Publishers, 1926. viam o Estado imperial tardio como um Estado hipertrofiado ou gigantesco que abarcava a totalidade das relações sociais. As interpretações a respeito desse Estado hipertrofiado não tendiam a modernizá-lo, mas sim elaborá-lo em termos de um poder centralizado que sufocava a sociedade do Baixo Império. O governo imperial desse período seria caracterizado pela concentração de poderes em torno do imperador e sua Corte, o crescimento progressivo da burocracia e do exército como complementos do poder do imperador e, consequentemente, a exclusão ou cerceamento das elites locais e regionais do governo do Império propriamente dito. Um aspecto complementar dessa representação como um Estado absolutista era a visão de uma sociedade romana progressivamente mais estamental do que a de épocas anteriores. Nas versões mais radicais6 6 LOT, Ferdinand, op. cit.; REMONDON, Roger. La crisis del Imperio romano – de Marco Aurelio a Anastasio. Barcelona: Nueva Clio, 1984. desse aprofundamento da hierarquia e das divisões da sociedade imperial em ordens, o governo romano teria instituído um sistema de castas no período tardio.7 7 A posição de A. M. H. Jones é crítica à ideia de que as “castas” sejam uma criação do Império tardio, pois a hereditariedade de posições já existiria desde o Principado (a única exceção tendo sido a vinculação do campesinato por meio do colonato). Em verdade, para Jones, nesse período elas estavam passando por um processo de desagregação e flexibilização. Cf. JONES, A. H. M. The caste system in the later Roman Empire. In: BRUNT, Peter (org.). The Roman economy: studies in ancient economic and administrative history. Oxford: Blackwell, 1974, p. 396-418. Por fim, outro aspecto fundamental que caracterizaria o Estado hipertrofiado nessa historiografia seria o sufocamento da produção e do comércio por meio da cobrança abusiva de impostos. Esse processo, junto com a crise da escravidão antiga, teria sido o outro fator que causaria um retorno à economia natural e à autarquia dos latifúndios do Baixo Império. Assim, por diferentes razões, o Estado imperial teria crescido desmesuradamente e se tornado excessivamente centralizado ao longo dos séculos III a V, até que começou a se fragmentar no (assim chamado) Império do Ocidente, muito embora essa estrutura tenha se conservado no (também assim chamado) Império do Oriente.

Para esses autores, o Império tardio tendia a apresentar características semelhantes à imagem de um Estado absolutista do tipo do Antigo Regime. A assimilação do governo imperial romano a essa imagem se deve provavelmente à presença de representações do Estado absolutista no imaginário político desses estudiosos, principalmente se for levada em consideração a persistência na Europa das forças políticas defensoras de estruturas sociais do Antigo Regime até o final da Primeira Guerra Mundial.8 8 MAYER, Arno J. A força da tradição: a persistência do Antigo Regime, 1848-1918. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

Para esses estudiosos, em maior ou menor grau, esse Estado não era um sistema político com as mesmas características que as do Estado moderno. Contudo, a comparação estava sempre presente, mesmo que implícita. Assim, em termos de exercício consciente e explícito de comparação, as definições propostas por Max Weber são muito reveladoras dos parâmetros ideológicos organizadores do conhecimento histórico.

Em seu livro Agrarverhältnisse in Altertum, (ou Relações sociais agrárias na Antiguidade), Weber definiu o Estado romano tardio como um Estado litúrgico,9 9 WEBER, Max. The agrarian sociology of ancient civilizations, op. cit., p. 75. isto é, um sistema político organizado em torno (a) da prestação de serviços para a Corte ou para o Estado, (b) de monopólios baseados nas prestações de serviços ou em diferentes leis coercitivas e (c) da cobrança de impostos, em dinheiro ou em produtos com valor pecuniário, acompanhada das devidas punições contra sonegação.10 10 Cf. a lista de tipos ideais de Estados antigos proposta por Weber. Ibidem, op. cit., p. 69-79. Para Weber, o Império romano, durante o período imperial inicial, como um Estado litúrgico ainda em formação, após ter posto fim nas guerras entre polis, teria estruturado a paz no seu território. Isso foi o impulso necessário para que o capitalismo potencial das cidades-estados antigas se desenvolvesse criando burguesias citadinas11 11 Bürgertum, termo do próprio Weber em WEBER, Max. Agrarverhältnisse im Altertum. In: Idem. Gesammelte Aufsätze zur Sozial-und Wirtschaftsgeschichte. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1924, p. 271. A página correspondente na tradução para o inglês, The agrarian sociology of ancient civilizations, op. cit., é p. 357. e uma rede comercial que abarcava todo o Mediterrâneo e a Europa central. Contudo, foi exatamente o fim da competição e da acumulação militar dessas cidades-estados (que trazia consigo a escravidão, um elemento fundamental para o capitalismo antigo em Weber) um dos fatores que no longo prazo levaria à estagnação daquela sociedade. O outro fator seria a própria natureza desse Estado litúrgico que, ao desarmar as elites e ao criar uma burocracia e um exército profissional, desarticulou a relação entre cidadania e participação no exército - o que, num primeiro momento teria aproximado, mas depois distanciado as elites da vida pública. O resultado, com a natureza de prestação de serviços e pagamentos de impostos, foi o abandono das cidades pelas aristocracias locais, conforme aquelas perdiam sua relação com o comércio e a acumulação comercial declinava.12 12 Idem. The agrarian sociology of ancient civilizations, op. cit., p. 358-366. O Estado romano tardio de Weber é uma versão superdesenvolvida do Estado absolutista que, ao mesmo tempo, olha para o passado, vendo os limites técnicos e sociais do Estado antigo, e para o futuro, vendo a persistência do Estado imperial prussiano impondo limites ao desenvolvimento da sociedade moderna (e da economia capitalista) na Alemanha do início do XX. Nas palavras de Max Weber, “a burocracia do Estado litúrgico destruiu as iniciativas econômica e política”.13 13 Idem, ibidem, p. 364.

Tomando-os em conjunto, em maior ou menor grau, os autores representaram esse Estado como dotado de lacunas em seu domínio sobre o território, de uma burocracia imperfeita e de um baixo grau de impessoalidade. O critério weberiano de “monopólio da violência legitima” era, na melhor das hipóteses, parcialmente cumprido, tanto no que diz respeito às lacunas no território imperial como um todo quanto no que diz respeito à participação direta de cidadãos nas instituições responsáveis pela ordem. Outro critério weberiano - a constituição de uma “esfera administrativa autônoma” - era dividida entre os campos civil e militar e vista como muito mais desenvolvida do que no Principado. Mas esta também era pensada como não moderna, nada impessoal e permeada por relações privadas, centralizada, por sua vez, no arbítrio do imperador. Tal situação teria contribuído para o funcionamento predatório do governo sobre a sociedade e a produção social, acentuado conflitos e desestabilizado o sistema no longo prazo.

As versões atenuadas dessa leitura sufocadora da sociedade seriam os modelos de Estado romano apresentados por Mikhail Rostovtzeff14 14 ROSTOVTZEFF, Mikhail. The social & economic history of the Roman Empire, op. cit. e por Henri Pirenne.15 15 PIRENNE, Henri. Maomé e Carlos Magno. Lisboa: Dom Quixote, 1970. Para ambos, o Estado romano era uma espécie de complemento autoritário a sua burguesia comercial e urbana e teria, de certa forma, cumprido um papel no desenvolvimento comercial das cidades do Mediterrâneo. No entanto, as consequências desse Estado eram bem diferentes para cada um dos dois autores. Para Pirenne, o Estado superdesenvolvido teria sido forte o suficiente para inicialmente se reproduzir em miniatura nos reinos sucessores, mantendo um sistema comercial romano estruturado sobre o Mediterrâneo, que seria desarticulado somente por meio da expansão árabe no século VII. Já para Rostovtzeff, o Estado teria se transformado radicalmente entre o século III e V, deixando de ser dominado pelas elites. Conforme o governo era sistematicamente tomado pelo corpo militar que, para Rostovtzeff, era composto por representantes da enorme classe de camponeses explorados pelo Império durante toda a sua existência, o Estado passaria a sufocar a outra parte da sociedade: as elites fundiárias e comerciais (burguesas também para Rostovtzeff). Essa visão do Estado imperial tardio não pode ser desvinculada da experiência direta que Rostovtzeff teve com a revolução comunista na Rússia. A caracterização feita pelo historiador russo das transformações sofridas pelo sistema político imperial entre os séculos III e V parecem ser quase intencionalmente enquadradas pela sua visão do ascendente Estado soviético do qual fugiu.16 16 BOWERSOCK, Glen W. The social and economic history of the Roman Empire by Michael Ivanovitch Rostovtzeff. Daedalus 103, no 1, 1974, p. 15-23.

3. O Estado romano e a exploração das classes subalternas

A representação do Estado romano tardio configurado em termos do Estado soviético na obra de Rostovtzeff adiciona uma camada extra à identificação das representações daquele com o Estado absolutista. Esta nova camada é o despotismo oriental que foi elaborado pelos intelectuais do Ocidente como uma categoria explicativa e descritiva das sociedades orientais. Para autores como Wittfogel,17 17 WITTFOGEL, Karl. Oriental despotism: a comparative study of total power. New Haven: Yale University Press, 1957. este seria um sistema político ainda mais nocivo à ação livre dos agentes econômicos, um espelho distorcido ou até mesmo um aprofundamento do Estado absolutista. Tornou-se, assim, uma alteridade geopoliticamente localizada em oposição à qual foi formulada a ideia de Estado liberal, da mesma forma que o Estado absolutista cumprira a função de uma alteridade historicamente localizada.18 18 Para visões críticas à ideia de despotismo oriental, cf. SAID, Edward. Orientalismo. São Paulo: Cia das Letras, 2007; SOFRI, Gianni. O modo de produção asiático. São Paulo: Paz e Terra, 1977; MORENO GARCÍA, J. C. From Dracula to Rostovtzeff or: The misadventures of economic history in early Egyptology. IBAES, vol. 10, 2009, p. 175–198. Ora, ao longo de boa parte do século XX, o Estado soviético foi representado pelos intelectuais liberais ora como continuidade do Estado absolutista dos czares ora como reencarnação do Estado despótico oriental,19 19 FOGEL, Joshua E. The debates over the asiatic mode of production in Soviet Russia, China, and Japan. The American Historical Review, 93, n. 1, 1988, p. 56-79. de forma que não é surpreendente a aceitação da interpretação de Rostovtzeff do Estado tardio até meados do século XX.

Embora eu tenha associado a visão do Estado romano tardio como hipertrofiado ao pensamento liberal, ela está presente até mesmo em historiadores marxistas. Edward Arthur Thompson foi um dos primeiros historiadores marxistas especialistas no período e sua obra ilustra isso claramente. Pois, muito embora Thompson não tenha realizado nenhum estudo sistemático da natureza do sistema político imperial tardio, a imagem de fundo que pode ser vislumbrada em suas inúmeras investigações da relação do Império com os povos bárbaros é também a de um Estado gigantesco que dominava militarmente a totalidade do Mediterrâneo e para o qual o controle da tributação era um fator chave.20 20 THOMPSON, E. A. The historical work of Ammianus Marcellinus. Cambridge: Cambridge University Press, 1947; Idem. A Roman reformer and inventor, being a new text of the treatise De Rebus Bellicis. Oxford: Clarendon Press, 1952; Idem. Romans and barbarians – The decline of the Western Empire. Madison: University of Wisconsin, 1982. Para Thompson, a exploração por esse sistema político das classes produtoras (camponeses e escravos) em favor das classes proprietárias, sua principal fraqueza interna, junto com a complexa interação do Império com os povos bárbaros, teria criado as condições da desarticulação do Império nas regiões ocidentais do Mediterrâneo e sua substituição pelos reinos bárbaros.

Historiadores da Antiguidade ou medievalistas marxistas como Thompson eram raridade nas universidades europeias. Foram, contudo, a regra na União Soviética. Dentre os historiadores da Antiguidade romana, talvez Elena Staerman21 21 O nome dessa historiadora é grafado de várias maneiras diferentes nas traduções de suas obras para línguas ocidentais. Embora eu prefira a grafia “Staerman”, mantenho o “Schtajerman” e o “Shtaerman nas referências bibliográficas a obras traduzidas respectivamente para o alemão e italiano. seja a que tenha o trabalho mais difundido por meio de traduções entre acadêmicos ocidentais. Mas, uma vez que ela representa uma geração pós-estalinista de historiadores soviéticos, para entender suas posições é necessário contextualizá-la em relação à geração de historiadores soviéticos com quem dialogou. Para estes, o Estado do Império romano era a superestrutura jurídica do modo de produção escravista que dominava o mundo antigo. Nesse sentido, a compreensão desse sistema político deveria ser elaborada sempre a partir da sua condição de aparato de dominação de classe e da problemática da escravidão antiga como estrutura de exploração fadada a ser superada pelo desenvolvimento das forças produtivas. Mesmo esse Estado também sendo hiperdesenvolvido, era, porém, visto como um epifenômeno da luta de classes entre senhores e escravos - já que entre historiadores soviéticos o papel dos trabalhadores rurais e urbanos livres era bem reduzido. Nessa produção historiográfica, escrita ainda sob o regime de Stalin e seguindo as linhas teóricas gerais propostas pelo secretário geral do Partido Comunista, a desarticulação desse Estado teria se dado por causa de uma revolução dos escravos de longuíssima duração.22 22 YAVETZ, Zvi. Slaves and slavery in ancient Rome. New Brunswick: Transaction Publishers, 1988.

A obra de Elena Staerman se destaca nesse grupo de historiadores, entre outras razões porque ela elabora com um pouco mais de sofisticação a hipótese de que o Estado romano imperial era o aparato reprodutor em grande escala da forma antiga de propriedade, princípio constituinte da cidade antiga. Assim, para Staerman, os impostos que sustentavam a vida pública e o sistema político tinham a importante função de manter o controle dos escravos, garantindo a reprodução do sistema social. O Estado realizava esse controle inclusive para os pequenos e médios proprietários que não teriam como manter o domínio dos escravos apenas com recursos e ações privadas. Nesse contexto, Staerman apontou uma importante contradição do papel do Estado no modo de produção escravista: conforme o Estado romano criava mecanismos de controle e dominação dos escravos, favorecendo o pequeno e médio proprietário, também teria criado, para salvaguardar a reprodução do sistema, mecanismos de proteção dos escravos contra abusos dos proprietários. Ao mesmo passo, para Staerman, o Estado romano ao aprofundar a sua política de dominação de classe sobre os escravos, aprofundou também as contradições entre livres e escravos, principalmente no que diz respeito à zona cinza entre livres pobres e escravos ricos. Essa contradição, combinada com o crescimento do latifúndio, com o empobrecimento dos médios e pequenos livres, o aumento do uso de arrendatários, teria resultado na obsolescência do uso do trabalho escravo. O modo de produção escravista se desarticulava, conforme o camponês livre deixava de ser livre e passava a ser explorado como o antigo escravo, assumindo a condição protofeudal de colono.23 23 SCHTAJERMAN, E. M. Die Krise der Sklavenhalterordnung im Westen des Roemischen Reiches Berlim: Akademie-Verlag, 1964; SHTAERMAN, Elena Mikhailovna & TROFIMOVA, Mariana Kazimirovna. La schiavitù nell’Italia imperiale: I-III secolo. Roma: Editori Riuniti, 1975. E, para Staerman, é esse aumento do poder dos grandes proprietários e das relações de patronato que teria alimentado as forças centrífugas do Estado, preparando o terreno para a queda do Império no Ocidente com as rebeliões camponesas do final da Antiguidade e com as invasões bárbaras.24 24 STAERMAN, Elena M. La caída del regimen esclavista. In: ESTEPA, Carlos (org.). La transición del esclavismo al feudalismo. Madri: Akal, 1980, p. 59-107.

A imagem do Estado romano tardio que aparece na tradição marxista soviética, mesmo com toda a diferença de abordagem e pressupostos, também corresponde àquela do Estado absolutista, muito embora neste caso seja a imagem da monarquia czarista derrotada pelo avanço das forças produtivas em um contexto revolucionário (para Staerman).25 25 Eric Hobsbawm nos lembra que as imagens criadas pelas duas grandes revoluções do mundo contemporâneo que colocaram abaixo monarquias europeias geralmente se sobrepõem, e uma acaba sendo explicada pela outra. HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções – 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2009. Assim, pode-se dizer que para os historiadores marxistas desse período, soviéticos ou ocidentais, ao mesmo tempo em que o Estado romano é pensado em termos de uma grande máquina militar, o seu desenvolvimento tem um limite e este limite é dado pela sua natureza de classe, contraditória. Ainda assim, esse Estado é representado por meio de ecos da imagem do gigante Estado absolutista, como na historiografia liberal.

4. O Império romano tardio revisto

Após os anos 1940, houve uma progressiva mudança na representação do Império tardio. O fim do domínio do Império no Mediterrâneo ocidental deixou de ser visto como resultado de uma decadência interna (política, cultural, social, econômica), mas como resultado direto das invasões dos bárbaros germanos. É nesse contexto que se lançam as bases para a mudança na historiografia que vai estabelecer o recorte da Antiguidade tardia. A obra de E. A. Thompson teve um papel importante nisso, como se pode ver pela evolução dos seus estudos e na visão do Estado romano que aparece em um dos seus últimos trabalhos.26 26 THOMPSON, Romans and barbarians, op. cit., 1982. Mas é o estudo meticuloso de Arnold Hugh Martin Jones, The later Roman Empire,27 27 JONES, A. H. M. The later Roman Empire, 284-602. Baltimore: Johns Hopkins, 1992. que alterou a perspectiva dos historiadores sobre o Estado romano tardio. Nessa obra, Jones estabeleceu as bases para o debate a respeito das características do sistema político romano entre os séculos III e VII d. C. A. H. M. Jones realizou uma investigação sistemática das estruturas de governo e das relações sociais do Império romano tardio, baseando-se em toda a documentação escrita disponível. Ele conseguiu, assim, estabelecer um denominador comum mínimo para qualquer discussão,28 28 Cf. CAMERON, Averil. The Mediterranean world in late Antiquity: AD 395-700. Londres: Routledge, 1993, p. 5-6, para uma breve descrição do impacto da obra de A. H. M. Jones. principalmente no que diz respeito às questões institucionais, às relações entre imperador e províncias, às cidades do Império, à tributação, ao exército e às expressões regionais do poder e da economia.

Um dos resultados desse denominador comum mínimo foi ter ganho paulatinamente mais peso a visão de que o Estado romano tardio era dotado de uma maior racionalidade burocrática do que se pensava antes (Weber foi talvez o único dos autores da visão anterior do Estado romano tardio que analisou o papel dessa racionalidade burocrática). A descrição feita por Jones das instituições romanas de governo de maneira alguma apresentava a presença de aparatos correspondentes ao de um Estado moderno (muito pelo contrário), mas sua investigação expunha a racionalidade por trás da concentração de poder na Corte imperial, da reorganização das províncias e do exército e, principalmente, do papel da maior eficiência da tributação. Ainda assim, o Estado romano tardio de Jones também é um sistema político hiperdesenvolvido, um experimento falho cuja eficiência da tributação é o que oprime a sociedade e que não consegue resistir à presença bárbara nas regiões ocidentais. Para ele, o experimento de organização da economia e da sociedade por esse Estado resulta em inúmeros fatores que tenderiam a desagregar o sistema imperial sob pressão militar externa: a alienação da aristocracia local das instâncias de poder, agora concentrado na Corte; a inflação dos preços das mercadorias nas cidades por meio da manipulação dos metais nas moedas; a opressão formal dos camponeses por meio da legislação do colonato, o que piora a condição de vida deles e diminui progressivamente os candidatos ao alistamento militar.29 29 Cf. o artigo sobre o colonato romano de Jones: JONES, A. H. M. The Roman colonate. Past & Present, n. 13, 1958, p. 1-13, que apresenta mais detalhadamente essa perspectiva.

A visão do Estado romano de Jones foi (e é) profundamente influente, tendo sido reelaborada em diferentes direções na obra de outros estudiosos do mundo anglo-saxão. Os trechos de Perry Anderson sobre o final do Império romano em Passagens da Antiguidade ao Feudalismo configuram-se em uma leitura marxista com elementos weberianos desse quadro geral proposto por A. H. M. Jones. Mesmo não sendo um historiador da Antiguidade propriamente dito, Anderson fez um longo ensaio dividido em dois livros sobre a natureza da relação entre economia e política, tendo a problemática do Estado nas sociedades pré-capitalistas como o eixo condutor.30 30 ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1999; Idem. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. No primeiro destes livros, ele desenha o quadro da queda do Império romano no (assim chamado) Ocidente, por um lado pensando as causas fundamentais a partir de problemáticas colocadas pela historiografia soviética, com um Estado opressor dos camponeses e uma economia determinada pela crise do modo de produção escravista, por outro reelaborando as descrições das instituições romanas feitas por Jones em termos de uma burocracia que primeiro estimula e depois interrompe a acumulação de riquezas das elites comerciais.

O quadro fica mais complexo quando se considera o impacto da obra de Jones no trabalho de historiadores da Antiguidade como Moses Finley, Keith Hopkins e Geoffrey de Ste. Croix. Todos esses historiadores refletiram sobre o papel do Estado romano tardio e da política a partir dos parâmetros colocados por Jones, principalmente a respeito do seu impacto na organização da produção e do comércio, em que a tributação acabava por ter um papel importantíssimo como expressão dessa organização ou como limite do desenvolvimento de uma economia do tipo capitalista. Entre os estudiosos citados acima também aparece como fator importante o caráter de classe de dominação realizada por esse Estado, que atua como instrumento de opressão dos camponeses. Essa estrutura de dominação ocorre até mesmo para Finley, ainda que este prefira pensar a diferenciação social romana antes em termos estamentais (formais ou informais) do que em termos de classe.

Contudo, outra ênfase foi dada ao Estado romano por Moses Finley e alguns estudiosos a ele associados. Em seu ensaio A economia antiga, Finley defendeu que a racionalidade fundamental da circulação e da produção devia antes ser procurada na esfera política do que na esfera econômica.31 31 FINLEY, Moses I. Ancient economy. Berkeley: University of California, 1999. Nesse sentido, para ele não seria possível afirmar que houve durante a existência do Império romano uma verdadeira integração econômica (o que ele iguala a uma integração por meio da organização de uma economia de mercado). A única forma de integração da produção e dos mercados locais que Finley aceitava como concebível era aquela que era resultado de uma integração política e, portanto, a ela subordinada, na qual a tributação tinha um papel central. A assim chamada visão primitivista de Finley32 32 Cf. a interessante argumentação feita por Ian Morris de que Finley não era um primitivista: MORRIS, Ian. Foreword. In: FINLEY, Moses I. Ancient economy. Berkeley: University of California, 1999, p. ix-xxxvi. dialogava, de um lado, com alguns defensores de que o Império romano e sua economia teriam apresentado características de um mercado integrado, mas imperfeito, e de outro, com os estudiosos marxistas que buscavam recolocar a questão das relações de classe no centro dessa economia governada pelo Estado. No que diz respeito ao Estado tardio, a visão de Finley reelaborava o sistema político hipertrofiado da visão de Weber, colocando agora ênfase no processo de enriquecimento das elites por meio da tributação e do controle dos trabalhadores rurais. Finley, contudo, desconstruiu a teoria da crise do escravismo e, nisso, sua visão do Estado romano tardio (e das causas da sua queda) se distancia do modelo de Weber. Para Finley, o enriquecimento dos grandes proprietários teria enfraquecido as próprias bases cívicas e políticas do Império: o aumento da cobrança de impostos, necessários para a manutenção do exército, teria oprimido as ordens curiais das cidades-estados, favorecendo a sua fuga da vida pública, enquanto os grandes proprietários aos poucos optaram por se ruralizar.33 33 Um elemento paradoxal do modelo de Finley era que a sua crítica à teoria da crise do escravismo no Mundo Antigo tornava obsoleta outra antiga teoria integrante do paradigma de um Estado romano tardio hipertrofiado: as leis do colonato, entendidas como a necessidade de aumentar o controle direto sobre a mão de obra rural camponesa. Cf. as observações críticas de Jean-Michel Carrié sobre esse paradoxo das teorias de Finley: CARRIÉ, Jean-Michel. Esclavage antique et ideólogie moderne dans ancient slavery and modern ideology. Opus, 1982, p. 161-170, assim como a sua posterior desconstrução das teorias do colonato romano: Idem. Le “colonat du Bas-Empire”: un mythe historiographique? Opus, 1982, p. 351-371; Idem. Un roman des origines: les généalogies du “colonat du Bas-Empire”. Opus, 1983, p. 205-251; Idem. “Colonato del Basso Impero” la resistenza del mito. In: LO CASCIO, Elio. Terre, proprietari e contadidni dello’impero romano. Roma: La nuova Italia Scientifica, 1997, p. 75-150.

5. O Império tardio mínimo

As posições de Finley e de Jones tiveram vida longa na academia e é possível acompanhar duas linhas contraditórias de desenvolvimento que partiram delas. Na primeira, o Estado tardio começou a ser investigado em suas conexões: os sujeitos que o compõem e a amplitude do espaço de ação reservado às elites locais e imperiais. Assim, parte dos estudiosos mais influenciados por Finley passaram a demonstrar os limites da burocracia descrita por Jones. C. R. Whittaker34 34 WHITTAKER, C. R. Frontiers of the Roman Empire: a social and economic study. Baltimore: John Hopkins University Press, 1997. e Brent D. Shaw, ao investigarem os limites do sistema político imperial, apresentavam (em graus diferentes) uma caracterização mínima desse sistema.35 35 Pode-se dizer que Peter Garnsey e Richard Saller compartilhariam essa visão, embora seus trabalhos raramente tenham tido como foco principal o Império tardio. É, contudo, emblemático o título do capítulo sobre o sistema de governo do Principado: “um governo sem burocracia”, cf. GARNSEY, Peter. & SALLER, Richard P. The Roman Empire: economy, society, and culture. Berkeley: University of California Press, 1987, p. 20-41, quando comparado com a ideia de que o governo do Império tardio seria uma burocracia patrimonial com elementos de racionalidade apresentada posteriormente por Garnsey e Caroline Humfress: GARNSEY, Peter & HUMFRESS, Caroline. The evolution of the late Antique World. Cambridge: Orchard Academic, 2001, p. 25-51. Nas versões mais radicais, como a de Whittaker, o sistema político se reduz a uma fina e superficial camada de poder - impostos e controle da violência nas cidades - sobre sociedades rurais patriarcais imutáveis. Ao longo da obra de Whittaker, essa posição se desenvolve até mesmo atenuando-se em seus últimos trabalhos, mas a imagem do sistema político cheio de vazios e fundamentalmente baseado nos poderes locais permaneceu recorrente.36 36 Cf. as mudanças que ocorreram entre as posições mais radicais apresentadas nos seus artigos dos anos 1970 e 1980 em WHITTAKER, C. R. Land, city and trade in the Roman Empire. Aldershot: Variorum, 1993, e aquelas do seu estudo sobre as fronteiras em Idem. Frontiers of the Roman Empire, op. cit., 1997. Por sua vez, Brent D. Shaw esboça uma imagem do Estado romano (inicial e tardio) determinada pelas contradições internas de um Estado pré-industrial. Ao mesmo tempo em que esse sistema político tinha como função a manutenção da ordem e o controle da violência, criando e garantindo uma ordem social apta para a acumulação de riquezas e comércio, sendo mais bem-sucedido nas áreas urbanas do que nas rurais, esse controle nunca teve um caráter centralizado, tendo sido sempre profundamente dependente das elites locais.37 37 O artigo chave para essa visão é o seu estudo sobre bandidos no Império romano: SHAW, Brent D. Bandits in the Roman Empire. Past and Present, n. 105, 1984, p. 3-52, mas o seu argumento sobre as causas e a lógica do conflito entre bispos cristãos do norte da África se baseia nessa mesma visão do Estado imperial tardio: Idem. Sacred violence. African Christians and sectarian hatred in the age of Augustine. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. A visão de Shaw é profundamente influenciada pela metodologia de Weber, principalmente pelo conceito de monopólio da violência legítima, mas a imagem que ele constrói do Estado tardio caminha na direção oposta.38 38 Peter F. Bang foi quem desenvolveu ao extremo essa perspectiva minimalista, propondo um modelo no qual o Estado romano era caracterizado primordialmente pelas estruturas de policiamento do Mediterrâneo e das regiões rurais e garantia legal da propriedade privada da terra e das transações comerciais. Contudo, ele elaborou o seu modelo tendo em mente a expansão republicana e o Principado, e não extrapola o seu modelo para o período tardio. BANG, Peter F. Trade and empire – in search for organizing concepts for the Roman economy. Past & Present, n. 195, 2007, p. 3-54; Idem. The Roman bazaar: a comparative study of trade and markets in a tributary empire. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. Esse conjunto de autores caracterizou o Estado romano tardio como cada vez menos burocrático e cada vez mais permeado por pequenos poderes baseados na posição pessoal, isto é, cada vez mais uma sociedade política articulada pelo jogo de cargos e posições, na qual muito espaço de ação era reservado às elites locais ou imperiais e no estudo da qual muita ênfase podia ser dada aos conflitos internos dessas elites.39 39 A exposição de uma perspectiva semelhante na historiografia brasileira sobre a Antiguidade tardia pode ser encontrada na obra de Renan Frighetto que, contudo, parte de um arcabouço teórico bem diferente e não utiliza a noção de “Estado” para se referir ao sistema político romano, preferindo usar termos de época como conceitos representativos das instituições romanas, como res publica ou imperium, cf. FRIGHETTO, Renan. Algumas considerações sobre o poder político na Antiguidade clássica e na Antiguidade tardia. Stylos (Buenos Aires), no 13, 2004, p. 37-47; Idem. Imperium et orbis: conceitos e definições com base nas fontes tardo-antigas ocidentais (IV-VIII). In: DORÉ, Andréa; LIMA, Luís Filipe Silvério; SILVA, Luiz Geraldo (org.). Facetas do império na história: conceitos e métodos. São Paulo: Alderaldo & Rothschild, 2008, p. 147-62.

Essa caracterização, que podemos denominar de minimalista, dialogava intensamente com uma corrente importante de estudos sobre as províncias imperiais que surgiu nas últimas décadas do século XX. Essa corrente desenvolveu uma aguda crítica à noção da romanização como “difusão da civilização” e propunha outra forma de observar a dinâmica entre Império e províncias. As iniciativas locais deveriam ser enfatizadas e entendidas em termos de resistência (política, militar, cultural ou econômica) dos habitantes das regiões conquistadas contra a dominação do centro romano.40 40 Para alguns bons representantes dessa ênfase nas províncias, cf. MATTINGLY, David & ALCOCK, Susan. Dialogues in Roman imperialism: power, discourse, and discrepant experience in the Roman Empire. Portsmouth: JRA, 1997; ALCOCK, Susan. Graecia Capta: the landscapes of Roman Greece. Cambridge: Cambridge University Press, 1996; e WOOLF, Greg. Becoming Roman : the origins of provincial civilization in Gaul. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. Ver também as considerações críticas de Greg Woolf sobre o uso dos conceitos de sistema-mundo e império-mundo para a compreensão do Império romano: WOOLF, Greg. World systems analysis and the Roman Empire. Journal of Roman Archaeology, n. 3, 1990, p. 44-58, também disponível em português: Idem. Análises do sistema-mundo e o Império romano. Mare Nostrum. Estudos sobre o Mediterrâneo Antigo, n. 5, São Paulo, 2014, p. 166-96. Apesar do diálogo, no entanto, a interpretação minimalista do sistema de governo romano terminava por supervalorizar a ação das elites locais e seus conflitos com o centro imperial e tendia a diminuir os conflitos entre elites e classes subalternas locais. Além disso, ao valorizar a ação militar das elites locais contra o centro imperial, a noção de monopólio da violência legítima perde muito da sua utilidade conceitual, com o império aparentando estar permanentemente na iminência de guerras civis.

6. O Império tardio intervencionista

A outra linha de desenvolvimento, mais influenciada por Jones, levou ao desenvolvimento de um modelo conceitual do Estado romano tardio que via o seu grande tamanho como uma dimensão necessária da sociedade imperial romana. John Matthews explorou as mesmas conexões pessoais do modelo de Estado minimalista, mas enfatizando o lugar desses atores dentro do desenvolvimento racional de uma ampla e eficiente estrutura de poder que abarcava as posições e os poderes apresentados pelas elites locais e imperiais. O Estado que ele apresentou se configurava, principalmente no período tardio, como um sistema de controle centralizado e canalizado pela Corte imperial que administrava e integrava as hiperelites da classe senatorial, as elites intermediárias que ocupavam a maior parte dos cargos imperiais e do exército, e as elites locais e das classes subalternas, garantindo a estas últimas uma intensa mobilidade social das ordens curiais.41 41 Alexander Skinner propôs uma importante revisão da ideia de mobilidade social: SKINNER, Alexander. Political mobility in the later Roman Empire. Past & Present, vol. 218, 2013, p. 17-53. Em outro front, na integração entre economia e política, em diálogo crítico com a obra de Finley,42 42 GREENE, Kevin. The archaeology of the Roman economy. Berkeley: University of California Press, 1990, p. 4-8. Keith Hopkins propôs um modelo de compreensão do crescimento econômico no Império romano, batizado informalmente de “taxes and trade”. Para Hopkins, esse modelo poderia ser claramente visto durante a expansão romana e a consolidação do sistema imperial entre os anos 200 a. C. e 200 d. C. Para ele, o Estado nesse período também teria agido como uma estrutura consumidora da produção agrária e artesanal. Porém, flexibilizando o modelo de economia antiga proposto por Finley, essa condição de grande consumidor garantia demanda e terminava por induzir relações comerciais em qualquer lugar em que o Estado se fizesse presente. Essa demanda era garantida pela cobrança de impostos. Para Hopkins, diferentemente das perspectivas do Estado hipertrofiado, os impostos não significavam apenas a extração de recursos da sociedade ou dos agentes produtivos, mas significavam a possibilidade de criação daquela demanda. Além disso, a obrigação de pagá-los, imposta aos camponeses e grandes proprietários, induzia-os a se envolver em atividades comerciais e contribuía para a monetarização de relações sociais.43 43 HOPKINS, Keith. Taxes and trade in the Roman empire (200 B. C.- A. D. 200). Journal of Roman Studies, vol. 70, 1980, p. 101-25; Idem. Rome, taxes, rent and trade. In: SCHEIDEL, Walter & VON REDEN, Sitta (org.). The ancient economy. Nova York: Routledge, 2002, p. 190-230; Idem. The political economy of the Roman Empire. In: MORRIS, Ian & SCHEIDEL, Walter. The dynamics of ancient empires: State power from Assyria to Byzantium. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 178-204. O Estado imperial romano de Keith Hopkins, com tal característica de indutor da economia, em lugar do Estado absolutista, parece remeter à imagem do Estado keynesiano.

O modernismo econômico, expulso pela porta, voltava pela janela e os estudos feitos a partir do modelo de Hopkins aliados aos estudos do Estado imperial de Matthews passaram a oferecer uma imagem da sociedade, da economia e do Estado romanos tardios bem opostos aos da outra corrente finleyiana. O Estado aqui voltava a apresentar características da concepção moderna de Estado, como a autonomia e a racionalidade burocrática, graus de impessoalidade e o monopólio da violência. Esta última era definida a partir da caracterização da participação das elites nesse monopólio em termos de um Estado ampliado, no qual a fronteira da violência se construía (com diferentes ênfases em diferentes autores) contra as classes subalternas urbanas e rurais, o banditismo e os povos bárbaros.

Próximo, mas com importantes diferenças, é o modelo da escola de arqueólogos italianos que reconstruíram a noção de modo de produção escravista na Itália romana. Elaborando uma crítica radical da visão de Finley (e também do marxismo soviético) de que o sistema escravista não seria eficiente no plano da produção, esse grupo de arqueólogos construiu um modelo do funcionamento da sociedade imperial romana no qual a produção agrária escravista - em villae - não só era eficiente, mas a mais rentável do ponto de vista da extração do excedente.44 44 CARANDINI, Andrea. Introduzione. In: CARANDINI, Andrea & SETTIS, S. (org.). Schiavi e padroni nell’Etruria romana. La villa di Settefinestre dallo scavo ala mostra. Bari: De Donato, 1979, p. 13-30. É parte necessária da visão deles a ideia de uma crise do modo de produção escravista e a sua substituição pelo feudal, outro ponto de conflito com Finley. As representações criadas por esse grupo do governo imperial se aproximam bastante do modelo de Elena Staerman, dando, contudo, mais ênfase nas estruturas de dominação e na “morfologia social” (a maneira pela qual o modo de produção escravista se apresenta historicamente) do que no desenvolvimento dos conflitos de classe.45 45 GIARDINA, Andrea. Marxism and historiography: perspectives on Roman history. In: WICKHAM, Chris (org.). Marxist history-writing for the twenty-first century. Oxford: Oxford University, 2007. Esse sistema de governo é caracterizado pelas funções militares e de defesa da propriedade (e a criação de um espaço de legalidade das transações econômicas), para as quais a cobrança de impostos é fundamental. Mas aqui a função mais importante também é a manutenção da reprodução social, fundamentalmente garantindo o domínio sobre as classes produtoras. Assim, o Estado imperial inicial tem uma função eminente de controle dos escravos e as transformações pelas quais passa o Estado tardio seriam expressão da necessidade de extensão desse controle sobre os camponeses outrora livres, agora sob regime de colonato.46 46 Idem. The transition to late Antiquity. In: SCHEIDEL, Walter; MORRIS, Ian; SALLER, Richard. (org.). The Cambridge Economic History of the Greco-Roman World. Cambridge: Cambridge University, 2007, p. 741-68; SCHIAVONE, Aldo. Uma história rompida. Roma antiga e o Ocidente moderno. São Paulo: Edusp, 2005.

Por sua vez, dois historiadores marxistas ingleses influenciados por A. H. M. Jones - Chris Wickham e Jonh Haldon - estabeleceram um debate a respeito da diferença entre renda e tributação e em que medida isso implicaria na existência de um modo de produção tributário, no qual a tributação pelo Estado seria central para a exploração dos trabalhadores rurais. Para Wickham,47 47 WICKHAM, Chris. The uniqueness of the East. Journal of Peasant Studies, 12, no 2-3, 1985, p. 166-196; Idem. The other transition: from the Ancient World to Feudalism. Past and Present, 103, n. 1, 1984, p. 3-36. esse modo de produção seria proposto em complemento aos modos de produção baseados na extração direta da renda pelas classes proprietárias, como nos modos de produção escravista ou feudal. Para Haldon,48 48 HALDON, John. The State and the tributary mode of production. Londres: Verso, 1993. o modo de produção tributário seria a forma geral do modo de produção feudal, uma vez que a diferença modal entre renda e tributo deveria ser abandonada em favor de uma visão que entenderia ambas como formas de extração do excedente camponês. Geoffrey de Ste. Croix, em seu grande estudo sobre a luta de classes no mundo grego antigo,49 49 STE. CROIX, G. E. M. The class struggle in the ancient Greek world. Ithaca: Cornell University, 1998. não participou diretamente desse debate, já que não parecia achar que o conceito de modo de produção como uma totalidade social seria importante para a compreensão do conflito de classes no passado.50 50 Ibidem, p. 29; p. 50-53. Assim, Ste. Croix preferiu colocar a ênfase da sua análise no núcleo de extração do excedente. Contudo, suas definições de exploração e classes sociais remetem a uma problemática bem semelhante e a uma representação final do Estado romano tardio bem próxima daquela esboçada por Haldon e Wickham. O Estado romano apresentado por Chris Wickham em Framing the early middle ages, publicado quase duas décadas depois, é resultado de mudanças teóricas significativas.51 51 WICKHAM, Chris. Framing the early middle ages. Europe and the Mediterranean 400-800. Oxford: Oxford University, 2005. Aqui, Wickham retoma o termo “feudal” para se referir ao modo de produção baseado nas rendas, e empreende um estudo comparativo das formas estatais no Mediterrâneo e na Europa entre os séculos V e IX, acentuando o caráter indutor do Estado52 52 Em Framing, Wickham apresenta um Estado muito mais caracterizado pela capacidade de indução das relações comerciais do que anteriormente, quando enfatizava a sua dimensão consumidora e improdutiva: WICKHAM, Chris. The other transition, op. cit., 1984. e diminuindo o papel de qualquer autonomia de mercado que aparece em outras interpretações do modelo de Hopkins.53 53 Idem. Framing the early middle ages. Europe and the Mediterranean 400-800, op. cit., p. 56-150. Wickham usa uma versão modificada das definições de Estados antigos proposta por Claessen: CLAESSEN, H. J. M. “The early State”: a structural approach. In: CLAESSEN, H. J. M. & SKALNÍK, Peter. The early State. The Hague: Mouton, 1978, p. 533–596.

O modelo de Hopkins, em articulação com as perspectivas mais recentes de Chris Wickham, pode ser visto atuando mesmo nas interpretações de historiadores não marxistas como Bryan Ward-Perkins54 54 WARD-PERKINS, Bryan. The fall of Rome and the end of civilization. Oxford: Oxford University, 2005. e Peter Heather.55 55 HEATHER, Peter. The fall of the Roman Empire. Oxford: Oxford University Press, 2006. Ambos se notabilizaram por recuperar a questão da crise social e política no século V e operam com um modelo do Estado romano tardio baseado nas ideias de Hopkins e Wickham. Talvez o exemplo mais claro do desenvolvimento posterior do modelo de Hopkins para a compreensão do funcionamento da economia no Império tardio é aquele apresentado por Denis Kehoe, que o incorpora à teoria econômica neoinstitucionalista.56 56 KEHOE, Denis. Law and the rural economy in the Roman Empire. University of Michigan Press, 2007, p. 131-199.

7. Hipermodernismos

Há vários historiadores cujas visões do Estado e da sociedade romanos tardios dialogam com o modelo de Hopkins, embora apresentem diferenças importantes, delineando um sistema político com tantos elementos da concepção de Estado moderno que deixariam Weber preocupado. Um deles é Jean Michel Carriè, de quem destaco o artigo em que demonstrou que as reformas fiscais e tributárias de Diocleciano, em termos de racionalidade, meios e fins, cumpriam o que se propunham, isto é, garantir os recursos para a reorganização da estrutura burocrática do Império. Essa reforma mudou o antigo equilíbrio de interesses entre o imperador e as classes curiais, ao criar mecanismos de controle dos abusos dessas últimas na cobrança de impostos e, com o sistema de origo, estabelecer um controle mais rígido do que deviam os grandes proprietários e seus colonos. A reforma teve como contraparte o estabelecimento em novos termos do espaço de integração comercial e política.57 57 CARRIÉ, Jean-Michel. Dioclétien et la fiscalité. Antiquité Tardive, vol. 2, 1994, p. 33-64. O Império romano tardio para Carriè poderia ser definido como sistema inter-regional de integração econômica e política que passou a apresentar um grau ainda mais elaborado de integração cultural do que no Principado.58 58 CARRIÉ Jean-Michel & ROUSSELLE, Aline. L’Empire romain mutation: des Sévères à Constantin, 192-337. Paris: Éd. du Seuil, 1999.

Talvez a visão mais modernista do Estado romano tardio seja a de Clifford Ando. A partir de elementos propostos anteriormente pelo estudo de Fergus Millar sobre o imperador romano, como a ideia de que há uma rede de comunicação que habilita as decisões (muitas vezes ad hoc) do governante, ele propõe que o Império romano deva ser entendido como se fosse uma estrutura ideológica construtora de consensos habermasianos entre as elites. Ele assim propõe que a dominação do Império sobre as províncias se desse por meio de um espaço de articulação ideológica, de aparatos institucionais e práticas públicas que estabelecessem a obediência e a legitimação dessa dominação, seja por meios escritos, seja por meios simbólicos, como o culto imperial.59 59 ANDO, Clifford. Imperial ideology and provincial loyalty in the Roman Empire. Berkeley: University of California, 2000; Idem. Decline, fall, and transformation. Journal of Late Antiquity 1, no 1, 2008, p. 31-60. O sistema político imperial que aparece no estudo de Ando é muito mais sofisticado do que qualquer outro modelo e também parece ver mais continuidades nesse sistema do que rupturas entre o período inicial e o período tardio.60 60 Numa linha semelhante, mas vendo mais rupturas e defendendo o Império tardio como um “Estado de direito”, cf. HONORÉ, Tony. Roman law AD 200–400: From Cosmopolis to Rechtstaat?. In: SWAIN, Simon. & EDWARDS, Mark (org.). Approaching late Antiquity: the transformation from early to late Empire. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 109-132.

Uma espécie de síntese das características minimalistas e maximalistas do Estado tardio pode ser encontrada no estudo de Christopher Kelly, Rulling the later Roman Empire. Articulando o estudo descritivo de Jones com a compreensão antropológica dos atores dentro do sistema político, Kelly apresenta o desenvolvimento da burocracia no Império tardio a partir da análise de três eixos: o aumento da burocracia, o sistema pecuniário de acesso ao governo e a centralização. O aumento do número de oficias ligados a algum nível da administração é um fator importante, pois o Império tardio contaria com um contingente três vezes maior do que aquele existente até o início do século III. O estabelecimento de regras para o pagamento de serviços, descrito por fontes antigas como a origem da corrupção e por historiadores modernos como uma das causas da queda do Império, é visto por Kelly como uma nova abordagem de administração de recursos, democratizando em alguma medida o acesso aos canais de governo e seu efeito colateral foi o enfraquecimento dos anteriormente predominantes canais de acesso ao poder via patronato. Por fim, o processo de centralização dos poderes e da administração é entendido como uma contradição no coração do sistema de governo, gerando um conflito permanente por causa da expansão da burocracia, necessária para tal centralização.61 61 KELLY, Christopher. Rulling the later Roman Empire. Cambridge: Harvard University Press, 2006. A representação do Estado romano tardio feita por Kelly resgata a imagem do Estado absolutista, mas busca apresentar como interesses de grupos particulares e poderes pessoais interagem com as instituições que compõem o Império tardio.

8. O poder? Onde está o poder?

Assim, como se pode ver acima, do século XIX ao XX se estabeleceu e consolidou na historiografia sobre o Império romano uma visão que caracterizava o seu sistema político em termos de um crescimento progressivo de fins da República até o Império tardio. Para aquela historiografia, tal crescimento progressivo tinha como núcleo dinâmico as estruturas monárquicas de poder no coração do Império. Da república senatorial, passando pela monarquia disfarçada do Principado, à monarquia autocrática do Dominato, tal visão esboçava este processo em termos da consolidação do domínio monárquico sobre estruturas cívicas mais ou menos oligárquicas, mais ou menos democráticas, no entanto locais. O ponto final desse processo de crescimento seria o Império se tornando um Estado hipertrofiado, a partir das reformas de Diocleciano. E este Estado superdesenvolvido se tornaria uma das causas primordiais da decadência e queda da civilização romana em muitas das interpretações mais duradouras deste processo. Contudo, ao final do século XX, o pêndulo interpretativo começou a se mover na historiografia e, junto ao desenvolvimento do campo da Antiguidade tardia e da antropologia política, não surpreendentemente começaram a aparecer e se tornar populares interpretações minimalistas desse mesmo Estado imperial tardio. Na historiografia cultural e política sobre o Império romano, o Estado romano tardio, agora frágil e apenas superficialmente integrado às comunidades locais, também seria visto como uma das causas da desintegração política do Império no Ocidente e do aparecimento dos reinos sucessores, tendo sido incapaz de resistir aos bárbaros e aos interesses privados das próprias elites romanas. No entanto, durante as mesmas décadas, a historiografia econômica formulou e consolidou um modelo no qual o Estado romano era o indutor do crescimento econômico, tanto no Alto Império, quanto no Império tardio. Esse modelo não apresenta um Estado máximo diferente daquele do consenso historiográfico anterior, tendo se desenvolvido, contraditoriamente, a partir do modelo do Estado romano mínimo.

Até aqui busquei apresentar de que maneira os pressupostos liberais permeiam toda a historiografia sobre o Estado romano, principalmente o Estado tardio, delimitando ao longo de todo o século XX o conceito desse sistema político a partir de problemáticas concernentes a esse campo ideológico. Inicialmente, o Estado romano tardio é visto através do filtro da crítica ao Estado do Antigo Regime e, mesmo quando se estabelecem os parâmetros empíricos para superar tal visão, é o Estado ineficiente e burocrático devorador de impostos e opressor das classes produtoras que se encontra na obra de Jones, Finley e mesmo de marxistas como Anderson e Ste Croix. As duas concepções que se desenvolveram a partir dos anos 1970 e 1980 também partem dessa problemática. Uma delas tende a projetar o primitivismo para as relações políticas, quase invalidando a noção de Estado (algo que Finley não fazia), enquanto a outra, num campo quase oposto da teoria econômica, busca demonstrar o papel indutor e investidor desse Estado romano e acaba por elaborar um Estado romano desenvolvimentista de tipo keynesiano. Contudo, o debate sobre o caráter desse sistema político tem sido pouco explícito, de forma que as diferenças entre um modelo com um sistema político mais centralizado e outro com um sistema político mais aberto e mais pessoal apenas aparecem em discussões pontuais e descritivas, com muitos estudos empíricos, não havendo uma síntese clara que opusesse um modelo ao outro para o período do Império tardio. E, nesse sentido, o pêndulo da concepção liberal de Estado e suas problemáticas nunca explicitadas tendem a obscurecer ou embotar as relações de classe que se desenvolvem nesse sistema, isto é, a investigação do papel desempenhado por esses poderes no controle das classes trabalhadoras e da extração de sua renda pelas classes proprietárias.

Uma característica interessante desse debate entre os estudiosos da Antiguidade sobre o Estado romano tardio é a sua relação com o debate entre modernismo e primitivismo na economia antiga. Muito embora essa dicotomia tenha se desenvolvido com relação ao debate econômico, ela se desdobra de forma invertida para o debate sobre o sistema político imperial. Se transpuséssemos o termo “modernismo” para caracterizar a imagem do Estado imperial romano como sendo próximo do Estado moderno (autonomização da sociedade, monopólio da violência legítima, burocratização etc.), ele tenderia a corresponder a autores com uma interpretação mais “primitivista” da economia antiga, ou seja, paradoxalmente, à imagem do Estado absolutista e sua economia dirigida. O modernismo na visão da economia62 62 Muito forte atualmente. Cf. a mais recente edição da SCHEIDEL, Walter; MORRIS, Ian & SALLER, Richard. (org.). História econômica do mundo greco-romano. The Cambridge Economic History of the Greco-Roman World. Cambridge: Cambridge University, 2007, publicada por Cambridge, a universidade de Finley. (um movimento da historiografia que curiosamente deve muito ao modelo de Hopkins) parece reforçar uma visão de Estado mínimo na política. Inversamente, quanto mais os historiadores pensam a economia antiga em termos primitivistas, mais forte e moderna parece ser a imagem do Estado romano correspondente. Não se pode falar de consensos, mas se há algo que se aproxima de uma predominância hoje, é o do Estado minimalista com o retorno do modernismo econômico, isto é, a conjugação do Estado minimalista mais sofisticado de Kelly com a economia romana pensada em termos de um mercado desenvolvido.

Uma última questão, por fim, diz respeito ao quanto a oposição conceitual entre o Estado máximo ou mínimo se articula com a compreensão das relações de classe constitutivas desse Estado imperial e o papel desse Estado na dinâmica de reprodução social. Muito embora Hopkins tenha efetivamente criado uma espécie de “terceira via”, em que acredito que a historiografia marxista se encontra, ela não é predominante. Parece-me, porém, ser de fato o modelo mais interessante, por ser aquele que mais atenção presta à participação do Estado na reprodução social como um todo, uma vez que uma das chaves para a compreensão da sobrevivência do sistema político romano tardio está na sua importância para a reprodução social da formação social romana. Daí a necessidade de compreender as suas estruturas políticas em íntima conexão com as relações de classe e com as formas de reprodução das classes proprietárias e trabalhadoras, dominantes e subalternas, dentro e fora do Estado. E nesse sentido, as variações associadas ao modelo de Estado romano indutor são as que melhor permitem investigar de que maneira a legalidade jurídica e a distribuição de posições de poder para as elites inter-regionais e locais expressam uma prática social (uma práxis) de controle social e um sistema de propriedade da terra que são reproduzidos e repostos por essa prática em escala inter-regional, cuja desintegração, como diria Chris Wickham, é o enquadramento de referência da transição da Antiguidade para a Idade Média.

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  • YAVETZ, Zvi. Slaves and slavery in ancient Rome. New Brunswick: Transaction Publishers, 1988.
  • 1
    Para sínteses bibliográficas sobre modelos de Estado na Antiguidade (assim como teorias da sua formação e manutenção), cf. CLAESSEN, H. J. M. The early State: theories and hypotheses. In: CLAESSEN, H. J. M. & SKALNÍK, Peter. The early State. The Hague: Mouton, 1978, p. 3-29; COHEN, Ronald. State origins: a reappraisal. In: CLAESSEN, H. J. M. & SKALNÍK, Peter. The early State. The Hague: Mouton, 1978, p. 31-75; GOLDSTONE, Jack A. & HALDON, John. Ancient states, empires and exploitation. Problems and perspectives. In: MORRIS, Ian & SCHEIDEL, Walter. The dynamics of ancient empires: State power from Assyria to Byzantium. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 3-29. Sobre os usos de conceitos políticos e sociais modernos para a Antiguidade, cf. MORLEY, Neville. Theories, models, and concepts in ancient history. Londres: Routledge, 2004, p. 66-81; e especificamente para a noção de Estado, FINLEY, Moses. Politics in the Ancient World. Cambridge: Cambridge University Press, 1983, p. 1-23.
  • 2
    A bibliografia é imensa e por isso eu remeto aos estudos de Santo Mazzarino: MAZZARINO, Santo. O fim do Mundo Antigo. São Paulo: Martins Fontes, 1991, para uma visão de conjunto do panorama anterior ao século XX. Peter Heather apresenta uma boa síntese da problemática e da forma do governo romano tardio em HEATHER, Peter. The fall of the Roman Empire. A new history of Rome and the barbarians. Oxford: Oxford University Press, 2006; e Carlos Machado demonstra como o debate sobre a forma do Estado é crucial para a discussão sobre a queda do Império romano no Ocidente em MACHADO, Carlos Augusto Ribeiro. A Antiguidade tardia, a queda do Império romano e o debate sobre o “fim do Mundo Antigo”. Revista de História, vol. 173, São Paulo, 2015, p. 81-114.
  • 3
    LOT, Ferdinand. O fim do Mundo Antigo e o princípio da Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1982.
  • 4
    MAX, Weber. As causas sociais da decadência da cultura antiga. In: COHN, Gabriel (org.). Weber. São Paulo: Ática, 1983; Idem. Ensayos sobre sociologia de la religión, vol. I. Madri: Taurus, 1992; Idem. The agrarian sociology of ancient civilizations. Londres: Verso Books, 2013.
  • 5
    ROSTOVTZEFF, Mikhail. The social & economic history of the Roman Empire. Nova York: Biblo & Tannen Publishers, 1926.
  • 6
    LOT, Ferdinand, op. cit.; REMONDON, Roger. La crisis del Imperio romano – de Marco Aurelio a Anastasio. Barcelona: Nueva Clio, 1984.
  • 7
    A posição de A. M. H. Jones é crítica à ideia de que as “castas” sejam uma criação do Império tardio, pois a hereditariedade de posições já existiria desde o Principado (a única exceção tendo sido a vinculação do campesinato por meio do colonato). Em verdade, para Jones, nesse período elas estavam passando por um processo de desagregação e flexibilização. Cf. JONES, A. H. M. The caste system in the later Roman Empire. In: BRUNT, Peter (org.). The Roman economy: studies in ancient economic and administrative history. Oxford: Blackwell, 1974, p. 396-418.
  • 8
    MAYER, Arno J. A força da tradição: a persistência do Antigo Regime, 1848-1918. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
  • 9
    WEBER, Max. The agrarian sociology of ancient civilizations, op. cit., p. 75.
  • 10
    Cf. a lista de tipos ideais de Estados antigos proposta por Weber. Ibidem, op. cit., p. 69-79.
  • 11
    Bürgertum, termo do próprio Weber em WEBER, Max. Agrarverhältnisse im Altertum. In: Idem. Gesammelte Aufsätze zur Sozial-und Wirtschaftsgeschichte. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1924, p. 271. A página correspondente na tradução para o inglês, The agrarian sociology of ancient civilizations, op. cit., é p. 357.
  • 12
    Idem. The agrarian sociology of ancient civilizations, op. cit., p. 358-366.
  • 13
    Idem, ibidem, p. 364.
  • 14
    ROSTOVTZEFF, Mikhail. The social & economic history of the Roman Empire, op. cit.
  • 15
    PIRENNE, Henri. Maomé e Carlos Magno. Lisboa: Dom Quixote, 1970.
  • 16
    BOWERSOCK, Glen W. The social and economic history of the Roman Empire by Michael Ivanovitch Rostovtzeff. Daedalus 103, no 1, 1974, p. 15-23.
  • 17
    WITTFOGEL, Karl. Oriental despotism: a comparative study of total power. New Haven: Yale University Press, 1957.
  • 18
    Para visões críticas à ideia de despotismo oriental, cf. SAID, Edward. Orientalismo. São Paulo: Cia das Letras, 2007; SOFRI, Gianni. O modo de produção asiático. São Paulo: Paz e Terra, 1977; MORENO GARCÍA, J. C. From Dracula to Rostovtzeff or: The misadventures of economic history in early Egyptology. IBAES, vol. 10, 2009, p. 175–198.
  • 19
    FOGEL, Joshua E. The debates over the asiatic mode of production in Soviet Russia, China, and Japan. The American Historical Review, 93, n. 1, 1988, p. 56-79.
  • 20
    THOMPSON, E. A. The historical work of Ammianus Marcellinus. Cambridge: Cambridge University Press, 1947; Idem. A Roman reformer and inventor, being a new text of the treatise De Rebus Bellicis. Oxford: Clarendon Press, 1952; Idem. Romans and barbarians – The decline of the Western Empire. Madison: University of Wisconsin, 1982.
  • 21
    O nome dessa historiadora é grafado de várias maneiras diferentes nas traduções de suas obras para línguas ocidentais. Embora eu prefira a grafia “Staerman”, mantenho o “Schtajerman” e o “Shtaerman nas referências bibliográficas a obras traduzidas respectivamente para o alemão e italiano.
  • 22
    YAVETZ, Zvi. Slaves and slavery in ancient Rome. New Brunswick: Transaction Publishers, 1988.
  • 23
    SCHTAJERMAN, E. M. Die Krise der Sklavenhalterordnung im Westen des Roemischen Reiches Berlim: Akademie-Verlag, 1964; SHTAERMAN, Elena Mikhailovna & TROFIMOVA, Mariana Kazimirovna. La schiavitù nell’Italia imperiale: I-III secolo. Roma: Editori Riuniti, 1975.
  • 24
    STAERMAN, Elena M. La caída del regimen esclavista. In: ESTEPA, Carlos (org.). La transición del esclavismo al feudalismo. Madri: Akal, 1980, p. 59-107.
  • 25
    Eric Hobsbawm nos lembra que as imagens criadas pelas duas grandes revoluções do mundo contemporâneo que colocaram abaixo monarquias europeias geralmente se sobrepõem, e uma acaba sendo explicada pela outra. HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções – 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2009.
  • 26
    THOMPSON, Romans and barbarians, op. cit., 1982.
  • 27
    JONES, A. H. M. The later Roman Empire, 284-602. Baltimore: Johns Hopkins, 1992.
  • 28
    Cf. CAMERON, Averil. The Mediterranean world in late Antiquity: AD 395-700. Londres: Routledge, 1993, p. 5-6, para uma breve descrição do impacto da obra de A. H. M. Jones.
  • 29
    Cf. o artigo sobre o colonato romano de Jones: JONES, A. H. M. The Roman colonate. Past & Present, n. 13, 1958, p. 1-13, que apresenta mais detalhadamente essa perspectiva.
  • 30
    ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1999; Idem. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000.
  • 31
    FINLEY, Moses I. Ancient economy. Berkeley: University of California, 1999.
  • 32
    Cf. a interessante argumentação feita por Ian Morris de que Finley não era um primitivista: MORRIS, Ian. Foreword. In: FINLEY, Moses I. Ancient economy. Berkeley: University of California, 1999, p. ix-xxxvi.
  • 33
    Um elemento paradoxal do modelo de Finley era que a sua crítica à teoria da crise do escravismo no Mundo Antigo tornava obsoleta outra antiga teoria integrante do paradigma de um Estado romano tardio hipertrofiado: as leis do colonato, entendidas como a necessidade de aumentar o controle direto sobre a mão de obra rural camponesa. Cf. as observações críticas de Jean-Michel Carrié sobre esse paradoxo das teorias de Finley: CARRIÉ, Jean-Michel. Esclavage antique et ideólogie moderne dans ancient slavery and modern ideology. Opus, 1982, p. 161-170, assim como a sua posterior desconstrução das teorias do colonato romano: Idem. Le “colonat du Bas-Empire”: un mythe historiographique? Opus, 1982, p. 351-371; Idem. Un roman des origines: les généalogies du “colonat du Bas-Empire”. Opus, 1983, p. 205-251; Idem. “Colonato del Basso Impero” la resistenza del mito. In: LO CASCIO, Elio. Terre, proprietari e contadidni dello’impero romano. Roma: La nuova Italia Scientifica, 1997, p. 75-150.
  • 34
    WHITTAKER, C. R. Frontiers of the Roman Empire: a social and economic study. Baltimore: John Hopkins University Press, 1997.
  • 35
    Pode-se dizer que Peter Garnsey e Richard Saller compartilhariam essa visão, embora seus trabalhos raramente tenham tido como foco principal o Império tardio. É, contudo, emblemático o título do capítulo sobre o sistema de governo do Principado: “um governo sem burocracia”, cf. GARNSEY, Peter. & SALLER, Richard P. The Roman Empire: economy, society, and culture. Berkeley: University of California Press, 1987, p. 20-41, quando comparado com a ideia de que o governo do Império tardio seria uma burocracia patrimonial com elementos de racionalidade apresentada posteriormente por Garnsey e Caroline Humfress: GARNSEY, Peter & HUMFRESS, Caroline. The evolution of the late Antique World. Cambridge: Orchard Academic, 2001, p. 25-51.
  • 36
    Cf. as mudanças que ocorreram entre as posições mais radicais apresentadas nos seus artigos dos anos 1970 e 1980 em WHITTAKER, C. R. Land, city and trade in the Roman Empire. Aldershot: Variorum, 1993, e aquelas do seu estudo sobre as fronteiras em Idem. Frontiers of the Roman Empire, op. cit., 1997.
  • 37
    O artigo chave para essa visão é o seu estudo sobre bandidos no Império romano: SHAW, Brent D. Bandits in the Roman Empire. Past and Present, n. 105, 1984, p. 3-52, mas o seu argumento sobre as causas e a lógica do conflito entre bispos cristãos do norte da África se baseia nessa mesma visão do Estado imperial tardio: Idem. Sacred violence. African Christians and sectarian hatred in the age of Augustine. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.
  • 38
    Peter F. Bang foi quem desenvolveu ao extremo essa perspectiva minimalista, propondo um modelo no qual o Estado romano era caracterizado primordialmente pelas estruturas de policiamento do Mediterrâneo e das regiões rurais e garantia legal da propriedade privada da terra e das transações comerciais. Contudo, ele elaborou o seu modelo tendo em mente a expansão republicana e o Principado, e não extrapola o seu modelo para o período tardio. BANG, Peter F. Trade and empire – in search for organizing concepts for the Roman economy. Past & Present, n. 195, 2007, p. 3-54; Idem. The Roman bazaar: a comparative study of trade and markets in a tributary empire. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
  • 39
    A exposição de uma perspectiva semelhante na historiografia brasileira sobre a Antiguidade tardia pode ser encontrada na obra de Renan Frighetto que, contudo, parte de um arcabouço teórico bem diferente e não utiliza a noção de “Estado” para se referir ao sistema político romano, preferindo usar termos de época como conceitos representativos das instituições romanas, como res publica ou imperium, cf. FRIGHETTO, Renan. Algumas considerações sobre o poder político na Antiguidade clássica e na Antiguidade tardia. Stylos (Buenos Aires), no 13, 2004, p. 37-47; Idem. Imperium et orbis: conceitos e definições com base nas fontes tardo-antigas ocidentais (IV-VIII). In: DORÉ, Andréa; LIMA, Luís Filipe Silvério; SILVA, Luiz Geraldo (org.). Facetas do império na história: conceitos e métodos. São Paulo: Alderaldo & Rothschild, 2008, p. 147-62.
  • 40
    Para alguns bons representantes dessa ênfase nas províncias, cf. MATTINGLY, David & ALCOCK, Susan. Dialogues in Roman imperialism: power, discourse, and discrepant experience in the Roman Empire. Portsmouth: JRA, 1997; ALCOCK, Susan. Graecia Capta: the landscapes of Roman Greece. Cambridge: Cambridge University Press, 1996; e WOOLF, Greg. Becoming Roman : the origins of provincial civilization in Gaul. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. Ver também as considerações críticas de Greg Woolf sobre o uso dos conceitos de sistema-mundo e império-mundo para a compreensão do Império romano: WOOLF, Greg. World systems analysis and the Roman Empire. Journal of Roman Archaeology, n. 3, 1990, p. 44-58, também disponível em português: Idem. Análises do sistema-mundo e o Império romano. Mare Nostrum. Estudos sobre o Mediterrâneo Antigo, n. 5, São Paulo, 2014, p. 166-96.
  • 41
    Alexander Skinner propôs uma importante revisão da ideia de mobilidade social: SKINNER, Alexander. Political mobility in the later Roman Empire. Past & Present, vol. 218, 2013, p. 17-53.
  • 42
    GREENE, Kevin. The archaeology of the Roman economy. Berkeley: University of California Press, 1990, p. 4-8.
  • 43
    HOPKINS, Keith. Taxes and trade in the Roman empire (200 B. C.- A. D. 200). Journal of Roman Studies, vol. 70, 1980, p. 101-25; Idem. Rome, taxes, rent and trade. In: SCHEIDEL, Walter & VON REDEN, Sitta (org.). The ancient economy. Nova York: Routledge, 2002, p. 190-230; Idem. The political economy of the Roman Empire. In: MORRIS, Ian & SCHEIDEL, Walter. The dynamics of ancient empires: State power from Assyria to Byzantium. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 178-204.
  • 44
    CARANDINI, Andrea. Introduzione. In: CARANDINI, Andrea & SETTIS, S. (org.). Schiavi e padroni nell’Etruria romana. La villa di Settefinestre dallo scavo ala mostra. Bari: De Donato, 1979, p. 13-30.
  • 45
    GIARDINA, Andrea. Marxism and historiography: perspectives on Roman history. In: WICKHAM, Chris (org.). Marxist history-writing for the twenty-first century. Oxford: Oxford University, 2007.
  • 46
    Idem. The transition to late Antiquity. In: SCHEIDEL, Walter; MORRIS, Ian; SALLER, Richard. (org.). The Cambridge Economic History of the Greco-Roman World. Cambridge: Cambridge University, 2007, p. 741-68; SCHIAVONE, Aldo. Uma história rompida. Roma antiga e o Ocidente moderno. São Paulo: Edusp, 2005.
  • 47
    WICKHAM, Chris. The uniqueness of the East. Journal of Peasant Studies, 12, no 2-3, 1985, p. 166-196; Idem. The other transition: from the Ancient World to Feudalism. Past and Present, 103, n. 1, 1984, p. 3-36.
  • 48
    HALDON, John. The State and the tributary mode of production. Londres: Verso, 1993.
  • 49
    STE. CROIX, G. E. M. The class struggle in the ancient Greek world. Ithaca: Cornell University, 1998.
  • 50
    Ibidem, p. 29; p. 50-53.
  • 51
    WICKHAM, Chris. Framing the early middle ages. Europe and the Mediterranean 400-800. Oxford: Oxford University, 2005.
  • 52
    Em Framing, Wickham apresenta um Estado muito mais caracterizado pela capacidade de indução das relações comerciais do que anteriormente, quando enfatizava a sua dimensão consumidora e improdutiva: WICKHAM, Chris. The other transition, op. cit., 1984.
  • 53
    Idem. Framing the early middle ages. Europe and the Mediterranean 400-800, op. cit., p. 56-150. Wickham usa uma versão modificada das definições de Estados antigos proposta por Claessen: CLAESSEN, H. J. M. “The early State”: a structural approach. In: CLAESSEN, H. J. M. & SKALNÍK, Peter. The early State. The Hague: Mouton, 1978, p. 533–596.
  • 54
    WARD-PERKINS, Bryan. The fall of Rome and the end of civilization. Oxford: Oxford University, 2005.
  • 55
    HEATHER, Peter. The fall of the Roman Empire. Oxford: Oxford University Press, 2006.
  • 56
    KEHOE, Denis. Law and the rural economy in the Roman Empire. University of Michigan Press, 2007, p. 131-199.
  • 57
    CARRIÉ, Jean-Michel. Dioclétien et la fiscalité. Antiquité Tardive, vol. 2, 1994, p. 33-64.
  • 58
    CARRIÉ Jean-Michel & ROUSSELLE, Aline. L’Empire romain mutation: des Sévères à Constantin, 192-337. Paris: Éd. du Seuil, 1999.
  • 59
    ANDO, Clifford. Imperial ideology and provincial loyalty in the Roman Empire. Berkeley: University of California, 2000; Idem. Decline, fall, and transformation. Journal of Late Antiquity 1, no 1, 2008, p. 31-60.
  • 60
    Numa linha semelhante, mas vendo mais rupturas e defendendo o Império tardio como um “Estado de direito”, cf. HONORÉ, Tony. Roman law AD 200–400: From Cosmopolis to Rechtstaat?. In: SWAIN, Simon. & EDWARDS, Mark (org.). Approaching late Antiquity: the transformation from early to late Empire. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 109-132.
  • 61
    KELLY, Christopher. Rulling the later Roman Empire. Cambridge: Harvard University Press, 2006.
  • 62
    Muito forte atualmente. Cf. a mais recente edição da SCHEIDEL, Walter; MORRIS, Ian & SALLER, Richard. (org.). História econômica do mundo greco-romano. The Cambridge Economic History of the Greco-Roman World. Cambridge: Cambridge University, 2007, publicada por Cambridge, a universidade de Finley.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    09 Fev 2017
  • Aceito
    19 Jun 2017
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