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ESCRAVIDÃO, CIDADANIA, RECRUTAMENTO MILITAR E LIBERDADE: BRASILEIROS NO ESTADO ORIENTAL DO URUGUAI (1838-1864)* * O artigo não foi publicado em plataforma de preprint. Estão referidos no artigo todos os autores e fontes e estas tem indicação do acervo documental ao qual pertencem.

SLAVERY, CITIZENSHIP, MILITARY RECRUITMENT AND FREEDOM: BRAZILIANS IN THE EASTERN STATE OF URUGUAY (1838-1864)

Resumo

Durante as décadas de 1840 a 1860 a relação do Império do Brasil com o Estado Oriental do Uruguai foi permeada pela presença de criadores de gado brasileiros no norte deste país e, mais precisamente, pela reprodução de um determinado modelo produtivo implantado por estes estancieiros. Durante a Guerra Grande, conflito civil que opôs colorados e blancos, houve duas declarações de abolição da escravidão: a dos colorados, em 1842, que atingiu mormente aqueles que estavam em Montevidéu; e a dos blancos, em 1846, que atingiu em cheio todos os que possuíam cativos na campanha, entre eles os brasileiros ao norte. O objetivo é demonstrar que, muito mais do que títulos, perceber-se como cidadão oriental ou como súdito do Império era encontrar abrigo às próprias aspirações à liberdade ou à posse escrava.

Palavras-chave
Império do Brasil; Uruguai; escravidão; Rio da Prata; cidadania

Abstract

During the 1840s and 1860s the relationship between the Empire of Brazil and the Oriental Republic of Uruguay was permeated by the presence of Brazilian cattle ranchers in the north of this country, more precisely, by the reproduction of a certain productive model implanted by these mans. During the Great War, civil conflict that opposed Colorados and Blancos and there were two declarations of abolition of the slavery: 1842, the one of the colorados, that affected to those who were in Montevideo; in 1846, that of the blancos, reaching in full all those who had captives in the campaign, and among them the Brazilians to the north. The objective is to demonstrate that much more than titles, to perceive oneself as an Eastern citizen or as a subject of the Empire, was to find shelter to their aspirations for freedom or slave ownership.

Keywords
Empire of Brazil; Uruguay; slavery; rio de La Plata; citizenship

Em 1851, o Império do Brasil interviu militarmente no Estado Oriental do Uruguai. O país vivia em conflito civil desde 1838,1 1 Alguns autores têm apontado que é possível remontar o início do conflito a 1836, com os primeiros levantes contra Oribe. Da mesma forma, o fim da Guerra Grande seria posterior a 1852, com os desdobramentos da derrota de Rosas em Caseros. Cf. Caetano (2013), Duffau (2017a), Etchechury Barrera (2014b). a chamada Guerra Grande, quando duas facções políticas (blancos, liderados por Manuel Oribe, e colorados, liderados inicialmente por Fructuoso Rivera), dividiram o país, estabelecendo duas estruturas de governo paralelas. A princípio, a posição brasileira foi de neutralidade, mas o fim da década de 1840 levaria a diplomacia e o governo imperial à direção diametralmente oposta.

Em dezembro de 1846 o exército blanco havia tomado a Vila de Salto, na margem oriental do rio Uruguai. Essa era a povoação mais próxima da região ao sul do rio Arapey e da fronteira brasileira do Quaraí. A região era densamente povoada por estancieiros brasileiros que pretendiam anexar a região ao território do Império desde a derrota da Cisplatina.

Segundo o Relatório da Repartição de Negócios do Estrangeiro (RRNE) de 1850,2 2 Esta lista, produzida pelos Comandantes de Fronteira e anexa ao Relatório da Repartição dos Negócios do Estrangeiro do Império do Brasil, arrola 1.353 criadores de gado brasileiros estabelecidos no Estado Oriental do Uruguai. O documento tem sido fundamental para observar a presença desses brasileiros no país vizinho. 124 proprietários brasileiros tinham terras em Salto e, se considerarmos as zonas adjacentes, podemos acrescentar 239 estâncias de criação pertencentes a súditos do Império, o que corresponde a mais de um quarto (26,6%) do total das propriedades listadas. Considerando que Salto era um ponto estratégico para a comunicação entre o território brasileiro e as regiões de Paysandú e Tacuarembó, onde estava localizada grande parte das maiores propriedades de brasileiros, a tomada da Vila pelos blancos impactava significativamente os negócios dos brasileiros na campanha do Estado Oriental.

Quatro documentos3 3 Arquivo Histórico do Itamaraty (ARQUIVO HISTÓRICO DO ITAMARATY) 309/4/23, 221/3/6; Archivo General de la Nación/Uruguay (AGNUy) Fondo de Relaciones Exteriores (FRE) 1732. relatam as violências sofridas, alegadamente, por proprietários brasileiros. Em um desses documentos, há uma representação com a assinatura de vários súditos do Império pedindo providências em relação a um bando4 4 Nesse caso, bando se refere a uma proclamação pública por escrito, distribuída e afixada em espaços de circulação comum. publicado pelo comandante blanco Don Gregório Berdim. Segundo o relato, o documento revogaria a imunidade de estrangeiro dos brasileiros e os incitaria a tomar em armas se quisessem defender suas propriedades e suas vidas, forçando-os a servir no exército de Oribe ou obrigando-os a se retirar da Vila de Salto em 24 horas e procurar passaporte para retornar ao Brasil em Montevidéu, ou seja, junto aos colorados.

Neste artigo proponho debater o processo de abolição da escravidão no Uruguai durante a Guerra Grande a partir da documentação produzida nas relações entre os brasileiros estabelecidos no país e as diferentes autoridades orientais. As fontes analisadas aqui são aquelas encontradas no Arquivo Histórico do Itamaraty, referentes à Legação e ao Consulado de Montevidéu e suas correspondentes no Fondo de Relaciones Exteriores do Archivo General de La Nación. A intenção é tentar recompor o caminho percorrido pelos brasileiros ao interpelar as autoridades em busca daquilo que consideravam seus direitos como súditos do Império do Brasil. Embora num marco maior a intenção seja recompor trajetórias para reconhecer quais foram os dispositivos acionados por esses indivíduos na tentativa de garantir suas demandas, esse método permite também observar o teor dos anseios desses sujeitos e os marcos políticos dessas relações. Aqui, particularmente, me detive sobre a questão da propriedade escrava e as diferentes formas como os brasileiros buscaram sua permanência no território uruguaio. Ao longo do artigo, pretendo demonstrar como o manejo de diferentes percepções de cidadania - e sua relação direta com o recrutamento militar - e liberdade estavam implicadas nessas relações.

As reclamações em torno da propriedade escrava começam a surgir com maior intensidade na documentação a partir do início do chamado Sítio Grande (1843-1851), quando Montevidéu foi cercada pelas tropas de Oribe. Num primeiro momento, as reclamações se concentram sobre situações ocorridas naquela cidade. A partir de 1847 se observa o deslocamento dos conflitos para o norte, ocupado por produtores de gado oriundos do Rio Grande do Sul. Esses conflitos continuarão dominando a documentação até o início da Guerra do Paraguai, atravessando uma década e meia. Procurei observar essa temporalidade das fontes no recorte do período que apresento, assim como na organização desse texto.

Cidadania em armas: um mundo platino

O entrelaçamento entre cidadania política e cidadania armada no Estado Oriental seguia uma longa tradição colonial. O recrutamento militar era parte das atribuições das mais atuantes autoridades locais e determinava o sentido de cidadania. Ser um bom vecino passava pelo serviço militar tanto quanto pela possibilidade de escolher seus governantes. Esse fenômeno não foi exclusivo do Uruguai no século XIX. A instabilidade política do segundo quarto do século, somada à indefinição sobre a conformação da estrutura nacional deixavam lacunas imensas no antigo Vice-Reinado do Rio da Prata. Nessas brechas, os governadores das diferentes províncias executavam o papel de legisladores, garantindo aos seus comandados todo o alcance que julgassem necessário na esfera local, criando uma estrutura que retornava até o nível provincial (MACÍAS, 2010MACÍAS, Flavia. Ciudadanos armados y fuerzas militares en la construcción republicana decimonónica. Real Instituto Elcano, Madrid, 2010. Disponível em: <https://bit.ly/2Pi0lkt>. Acesso em: 28 ago. 2019.
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).

A questão das armas estava intimamente relacionada à ampla concepção de cidadania que marcou as repúblicas formadas depois do processo de independência das colônias espanholas - uma concepção conflitante com a restrita cidadania possível aos súditos do Império (MUGGE; COMISSOLI, 2011MUGGE, Miqueias H.; COMISSOLI, Adriano (Org.). Homens e armas: recrutamento militar no Brasil: século XIX. São Leopoldo: Oikos, 2011., p. 97). A própria eclosão da Guerra Grande estava implicada numa das mais fortes assertivas dessa cidadania ampla: ser cidadão estava estreitamente associado ao direito e ao dever de portar armas em defesa da pátria, a própria materialização do “povo em armas” (CANSANELLO, 2001CANSANELLO, Oreste Carlos. Itinerarios de la ciudadanía en Buenos Aires: la ley de elecciones de 1821. Prohistoria, Rosario, v. 5, n. 5, 2001, p. 143-169., p. 143-169). Essa legitimidade passava aos comandantes, que estavam a serviço do povo e, portanto, carregavam os interesses da nação. O problema de definir o que era a nação era apenas parte dessa defesa legítima e, neste caso, implicava combater dentro do território nacional aqueles que atraiçoavam a nacionalidade oriental; ao mesmo tempo, tal definição era condizente com uma percepção de que “a defesa da república tanto dos inimigos externos quanto dos internos era obrigação dos próprios cidadãos” (SABATO, 2009SABATO, Hilda. Soberania popular, cidadania e nação na América Hispânica: a experiência republicana do século XIX. Almanack Braziliense, São Paulo, n. 9, maio 2009, p. 5-22. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1808-8139.v0i9p5-22.
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, p. 12). No Estado Oriental essa percepção assumiu a forma prática de arregimentação de todo e qualquer indivíduo que estivesse em condições de empunhar uma arma. Assim, diferente do voto (outro signo dessa cidadania ampla), o serviço militar tomou caráter obrigatório e, na maior parte das vezes, compulsório.

A trajetória da antiga Banda Oriental teve peculiaridades em relação ao restante da Bacia do Prata que não podem ser ignoradas. Ainda assim, a partir das novas perspectivas sobre o fenômeno do caudilhismo (GOLDMAN; SALVATORE, 1998GOLDMAN, Noemí & SALVATORE, Ricardo (org.) Caudillismos rioplatenses: nuevas miradas a un viejo problema. Buenos Aires: Eudeba, 1998.), pode-se repensar o Estado Oriental pós-independência e a própria Guerra Grande, avaliando melhor a conformação do poder entre blancos e colorados. Me parece que a fórmula proposta por Gerardo Caetano mostra a complexidade da questão: não apenas as agrupações políticas eram mais complexas, menos homogêneas, mas o próprio entendimento da legitimidade dessas agrupações estava em disputa. De fato, a grande discussão da Guerra Grande se dava em torno do reconhecimento da dialética “governo-oposição”,5 5 Há toda uma renovação da historiografia uruguaia sobre o tema, inclusive ponderando a questão do fusionismo após a Guerra Grande, demonstrando que em ambos os partidos existiam grupos de doctores, intelectuais urbanos que observavam a necessidade de superar o espectro do caudilhismo ao mesmo tempo em que refutavam a ideia do faccionismo ou partidarismo, associando essas duas dimensões da política no Estado Oriental do período (CAETANO, 2013, p. 209). especialmente quando é possível se favorecer de uma renovada concepção sobre a relação entre urbano e rural e destes com o acesso ao poder pelos caudilhos (CHIARAMONTE, 1997CHIARAMONTE, José Carlos. Ciudades, provincias, Estados: orígenes de la Nación Argentina (1800-1846). Buenos Aires: Ariel, 1997.). Tradicionalmente se afirma que blancos dominaram o interior, enquanto colorados dominaram a capital. O problema se encontra no fato de que essa tem sido uma afirmação estática, quase anacrônica, da historiografia, sem observar sua dinâmica dentro da passagem do tempo. Nem colorados eram unanimidade no meio urbano, nem blancos dominaram o interior de forma a excluir toda a resistência a sua política.

Analisando a própria região de Salto podemos conectar algumas pistas. A maioria das propriedades de brasileiros na região ao sul do Arapey foram adquiridas no decorrer da década de 1830. Tradicionalmente tem se relatado que a ocupação dessas terras, especialmente aquelas contíguas à fronteira do rio Quaraí, se seguiu à expansão da fronteira agrária e à necessidade de mais pastos para o gado. O que a historiografia tem ignorado é que esse movimento não foi de todo espontâneo nem marcado apenas pela simples apropriação ligada às concessões da segunda década do século XIX. A partir de 1831 o governo de Rivera iniciou uma campanha de “pacificação” da região ao norte do Rio Negro, que incluiu a concessão de terras devolutas, incentivando a presença dos estancieiros brasileiros no território oriental.

Esse processo fortaleceu o poder pessoal de Rivera nos territórios ao norte do Rio Negro, ao mesmo tempo em que o ligou diretamente àqueles que tinham recebido terras por sua concessão. A força do líder colorado naquela região pode ser medida não apenas pelas diferentes manifestações de reconhecimento de sua autoridade, tanto em documentos brasileiros quanto orientais, mas também pela força do contingente que Oribe designa para controlar a área logo após a conquista em 1846. Os relatos dos brasileiros que pedem auxílio após a publicação do bando de Don Gregório Berdin dão conta de que a Vila de Salto está completamente ocupada, exigindo a requisição de casas e prédios para a acomodação das tropas.

Ao conceder terras ao norte do Rio Negro e próximo à margem oriental do rio Uruguai, Don Fructuoso apostava em defender a fronteira com as Províncias Unidas, ao mesmo tempo em que desarticulava a ocupação indígena do território, improdutiva aos olhos do projeto nacional que os colorados passam a defender nos anos 1830. Ainda, ao conectar pessoalmente a si a outorga das terras, Rivera conforma um grupo de apoio a seu projeto, transformando o que era um problema em recursos que poderiam ser acionados em momentos-chave. Isso tudo dentro de um escopo de aumento da presença estatal no interior do país. Até a ocupação do exército blanco, Salto e sua região era território dominado pelos colorados, não pela presença de seu exército, possivelmente insuficiente, mas pela simpatia dos indivíduos mais importantes da localidade pelo partido.

A queda de Salto pode ter resultado da impossibilidade de mobilizar indivíduos armados suficientes para defender a Vila, seja porque os brasileiros mantiveram sua alegada neutralidade, seja porque faltavam figuras que fossem capazes de arregimentar combatentes. Rivera estava exilado e faltavam aos colorados de Montevidéu o seu apelo. De toda forma, ao contrário do que se suporia pelas repetidas afirmações, até fins de 1846 uma grande parte da campanha oriental não era dominada pelos blancos (SALA DE TOURON, ALONSO ELOY, 1986SALA DE TOURON, Lucía & ALONSO ELOY, Rosa. El Uruguay comercial, pastoril y caudillesco. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1986.). Ao longo dos primeiros anos após a Guerra Grande, a situação se mostrará muito mais complexa, revelando o alinhamento de líderes locais com os partidos políticos e o uso dessas ligações em disputas locais6 6 Como bem mostra em excepcional trabalho Duffau (2017b). que certamente envolviam os brasileiros fixados na região.

Provavelmente, ao publicar o bando que instava os brasileiros a assumir posição no exército oribista, Don Gregório Berdin, chefe político de Salto, tinha como intenção, de forma enérgica, forçar os estancieiros brasileiros a assumir uma cidadania oriental, defendendo a terra onde geravam sua riqueza. Este conceito de cidadania esteve bastante presente ao longo do Oitocentos, mas os proprietários pareciam estar pouco dispostos a adotá-lo. Muito provavelmente, Berdin também partia do reconhecimento de que esses estancieiros eram vecinos, ou seja, os localizava socialmente na velha categoria espanhola de “notáveis”, habitantes que eram chefes de família considerados úteis à comunidade (CAETANO, 2013CAETANO, Gerardo. Historia conceptual: voces y conceptos de la política oriental (1750-1870). Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2013., p. 226). Tais habitantes, portanto, pretensamente teriam algumas obrigações com sua comunidade, como a defesa militar. Nacionalidade, identidade, pertencimento e cidadania vinham enredados em novos e velhos conceitos políticos, forçando práticas distintas.

Outras questões, relacionadas ao recrutamento militar, atingiam aqueles que estavam em Salto em inícios de 1847, e embora não implicassem necessariamente a assunção desses estancieiros à cidadania oriental, certamente se combinaram para reforçar a identificação desses estancieiros como súditos de Sua Majestade Imperial Dom Pedro II.

Observando o discurso oficial contido nas reclamações e defendido também pelos agentes diplomáticos, os brasileiros exigiam como parte do reconhecimento de sua nacionalidade a condição de neutralidade na disputa entre as duas facções orientais. O princípio reivindicado era simples: sendo estrangeiros, não tinham direito a participação política, logo não poderiam ser obrigados ao serviço de armas. O argumento era condizente com aquela percepção ampla de cidadania, mas não podia ser empregado em relação aos bens desses brasileiros. O patrimônio estava em solo uruguaio e, em consequência, era passível de requisição. E a composição de uma estância não se fazia apenas de terras, mas especialmente do gado e da mão de obra nela existente. Neste ponto, o recrutamento toca numa importante característica da reivindicação de cidadania brasileira feita por estes proprietários: o direito à propriedade escrava. Esse aspecto da manutenção da escravidão em solo uruguaio, mesmo após as abolições, tem participação direta dos súditos do Império, através da permanência de escravos de forma ilegal nas estâncias.

É preciso, portanto, analisar com cuidado como se dava a relação do recrutamento militar nesse contexto da Guerra Grande com a abolição no Estado Oriental e, mais largamente, como a tradição de corpos militares de negros e pardos contribuiu para a libertação da população afrodescendente na Bacia do Rio da Prata.7 7 Esse é um tema com imensa bibliografia. Apenas para explicitar o marco da discussão que assumo neste artigo, cito os trabalhos de Chust e Frasquet (2009), que apontaram com vigor a presença e importância dos populares (escravos ou libertos) nos processos de independência na América espanhola; e, mais recentemente, a compilação apresentada por Mallo e Telesca (2010), que trata da questão exclusivamente na Bacia do Prata, mostrando o quão importante foram os pelotões de pardos e negros no ciclo revolucionário e sua invisibilização no discurso nacional.

Quanto à abolição da escravidão, o caso uruguaio certamente foi o mais abrupto da região. No Brasil a escravidão perdurou até praticamente o fim do século XIX, e seus defensores tiveram voz predominante até o fim da Guerra do Paraguai. Na Argentina, o fim do tráfico e as guerras de independência acabaram levando a uma extinção gradual não apenas da escravidão, mas da maioria da população de origem africana e afrodescendente, num processo com um posicionamento bem menos claro dos dirigentes do Estado. A abolição no Estado Oriental obedeceu a uma circunstância singular, que poderia acabar com a própria sobrevivência da nação: a guerra civil, que ameaçava a existência do território como país soberano. Trata-se de dois caminhos da escravidão no Prata, como bem apontou Gabriel Aladrén (2012)ALADRÉN, Gabriel. Sem respeitar fé nem tratados: escravidão e guerra na formação histórica da fronteira sul do Brasil (Rio Grande de São Pedro, c. 1777-1835). Tese de doutorado em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012..

A guerra se confrontava com outra realidade. Para os pecuaristas era um momento de expansão, e aumentar os negócios significava maior necessidade de mão de obra. Os estancieiros brasileiros não apenas aumentaram a área de produção de gado ao ocupar as terras do norte do Estado Oriental, como carregaram o formato da produção totalmente baseada na escravidão. De fato, os ideais de independência das repúblicas platinas, tão fundamentais para concretizar a abolição de um lado a outro do Rio da Prata, acabaram por ir de encontro com a inserção num mercado internacional em expansão, que cada vez mais exigia disponibilidade de braços para a lida no campo e a manufatura da carne salgada.

O recrutamento de negros e pardos, escravos e libertos

Apesar da presença de corpos de negros e pardos como uma tradição colonial, o recrutamento em batalhões se restringia àqueles que gozavam do estatuto da liberdade8 8 O fundamental trabalho de Alex Borucki (2015), From shipmates to soldiers, especialmente o Capítulo III, que trata das milícias negras durante o período colonial, precisa ser mencionado. Segundo o autor, “em 1810, provavelmente a maioria dos negros e pardos livres de Montevidéu já havia se engajado ao menos uma vez na vida no serviço de armas. Todavia, a maioria da população negra da cidade permanecia escrava. Provavelmente não mais que 700 homens e mulheres negros e pardos viviam em Montevidéu. A importância das milícias de negros e pardos é elucidada pelo fato de ao menos uma vez na vida todos os livres terem servido nessas forças” (BORUCKI, 2015, p. 87). Apesar de existirem, esses batalhões estavam colocados como opção apenas aos livres. Essa vai ser, segundo Borucki, a força que levará à abolição durante a Guerra Grande. Servir nas tropas está diretamente ligado ao estatuto da liberdade. ou, no máximo, àqueles que haviam sido tomados do inimigo ou dele fugiram. Foi a crise revolucionária que abriu espaço para o recrutamento obrigatório de escravos, não sem resistência de seus amos, e de forma a não inviabilizar a permanência da instituição escravista.

Datam da Guerra da Cisplatina as primeiras reclamações de incorporação de escravos fugidos da província do Rio Grande do Sul. Ao contrário dos escravos recrutados pelas levas no território oriental, esses soldados foram imediatamente considerados livres, assim como os escravos de proprietários brasileiros que houvessem sido tomados por partidas militares (FREGA, 2005FREGA, Ana et al. Esclavitud y abolición en el Río de la Plata en tiempos de revolución y república. In: VON-HOOFF, Herman (org.). La ruta del esclavo en el Río de La Plata: su historia y sus consecuencias: memoria del Simposio. Montevideo: Unesco, 2005. p. 115-147.). Nesse momento, arregimentar escravos brasileiros na fileira da República era tomá-los ao inimigo e, portanto, prática considerada legítima. Aliás, as requisições e embargos sobre bens do inimigo não se reduziram à escravaria, mas atingiram também e principalmente o gado, fonte de alimento para as tropas e, através do couro, fonte de divisas para o exército patriótico.

O aumento da população escrava ao longo dos anos 1830 acompanhou o crescimento da produção pecuária, ligada à produção de charque. Os padrões estatísticos do período evidenciam o impacto demográfico da população escrava em departamentos que tinham ampla presença brasileira: Minas, Rocha, Cerro Largo e Tacuarembó. Nestes pontos do território, a população escrava atingia índices que variavam de 25% a 30% da população total (GRINBERG, 2013GRINBERG, Keila (org.). As fronteiras da escravidão e liberdade no sul da América. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013., p. 145), números bem semelhantes àqueles encontrados na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul (OSÓRIO, 2007OSÓRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007., p. 236), de onde emigrava a imensa maioria dos brasileiros que ocupavam o norte do Estado Oriental.

Durante a década de 1830, a conjuntura regional favoreceria a entrada de escravos no território oriental, acompanhando seus amos. Em primeiro lugar, a subida de Juan Manuel de Rosas levaria muitos de seus opositores a atravessar o Rio da Prata e se refugiar em Montevidéu, num movimento semelhante ao dos patriotas orientais que se refugiaram anos antes em Buenos Aires durante a dominação luso-brasileira. Ademais, durante todo o período regencial do Império do Brasil (1831-1841), revoltosos derrotados e perseguidos políticos liberais se refugiaram na capital oriental. Ainda depois de 1845, com o fim da Farroupilha, alguns desses revoltosos preferiram se refugiar na campanha norte do Estado Oriental, para onde transferiram suas criações de gado e, junto com elas, a mão de obra escrava. Tanto argentinos como brasileiros “se ampararon en el artículo constitucional que garantizaba el respeto de la propriedad de los inmigrantes, en la cual se situó indefectiblemente a los esclavos” (FREGA, 2005FREGA, Ana et al. Esclavitud y abolición en el Río de la Plata en tiempos de revolución y república. In: VON-HOOFF, Herman (org.). La ruta del esclavo en el Río de La Plata: su historia y sus consecuencias: memoria del Simposio. Montevideo: Unesco, 2005. p. 115-147., p. 129).

Este mesmo princípio seria reivindicado pelos estrangeiros, como atesta a documentação diplomática ao longo da Guerra Grande. Desde o sítio de Montevidéu proliferaram reclamações de brasileiros com negócios estabelecidos na capital do Estado Oriental sobre o confisco de seus bens. Em março, abril e maio de 1848, o colorado Gobierno de La Defensa lançou diferentes decretos que buscavam aumentar sua capacidade de financiamento e manutenção geral da guerra, então bastante precária. As respostas do encarregado dos negócios brasileiros são muitas, compondo uma discussão bastante interessante sobre estran geiros, o direito das gentes e sua aplicação em casos de guerra.9 9 Archivo General de la Nación, Uruguay, Fondo Relaciones Exteriores1733.

A principal questão está justamente em torno da pretensa neutralidade de estrangeiros nesse tipo de conflito, mais especificamente do direito à neutralidade de suas propriedades, reclamado pelo encarregado brasileiro. Novamente, o problema diz respeito ao lugar da propriedade na nação, como bem apontou em nota o ministro das Relações Exteriores oriental ao declarar que, para oferecer segurança tanto aos nacionais quanto aos estrangeiros em seus negócios, a República precisava de recursos. A guerra não permitia distinções, porque ninguém estava seguro; o Estado Oriental propriamente dito corria perigo, portanto, antes de defender particulares, era necessário defender a própria nação.

Antecedidas pela reação no interior ao recrutamento dos morenos livres em 1841, foram muitas as formas de resistência dos brasileiros ao recrutamento de escravos em Montevidéu. Evitando atacar a propriedade, as primeiras levas forçosas visavam à população de negros e pardos livres, excetuados aqueles que eram estrangeiros ou serviam legações estrangeiras. Essa exceção gerou um precedente importante para reclamações de recrutamento ilegal. De fato, esse tipo de reclamação se tornará bastante comum, representando grande parte dos protestos remetidos por indivíduos às autoridades do Império.

A frequência com que indivíduos pardos ou negros que buscaram resistir ao recrutamento usaram o argumento da nacionalidade brasileira pode ser medida pela hostilidade crescente apresentada pelas tropas da capital, como atesta o caso de João José, súdito brasileiro que buscou o auxílio do encarregado de negócios em janeiro de 1847.10 10 Archivo General de la Nación, Uruguay, Fondo Relaciones Exteriores1732. O pardo João José foi abordado na rua Ituzaingó - uma das principais da ciudadela de Montevidéu - por uma partida de soldados e, segundo seu relato, ao apresentar o título de nacionalidade lhe disseram: “¡Si es brasileño, lo maten!” Depois disso, João José relata ter sido espancado e levado para aquartelamento.

A autenticidade das cartas de nacionalidade brasileira foi constantemente questionada, a ponto de o ministro das Relações Exteriores do Gobierno de La Defensa declarar abertamente sua suspeita de que os títulos brasileiros eram utilizados por indivíduos que buscavam fugir do serviço militar.

Em alguns casos, a cidadania parecia uma questão de interpretação aos olhos dos requerentes, e mesmo daqueles que emitiam o título. Em 1849, o ministro das Relações Exteriores Manuel Herrera y Obes escreveu a Andrés Lamas, ministro plenipotenciário da República no Rio de Janeiro, pedindo que esse enviasse uma representação ao Visconde de Olinda demandando esclarecimentos sobre a emissão de títulos de nacionalidade brasileira a cidadãos orientais nascidos naquela república enquanto essa era a Província Cisplatina. O ministro exigia a demissão do encarregado brasileiro em Montevidéu, responsável pelo abuso.11 11 Archivo General de la Nación, Uruguay, Fondo Relaciones Exteriores1720.

A nota de Lamas ao governo imperial retoma o tratado de independência ratificado pelo Brasil e sua aceitação da constituição do Estado Oriental, que define a cidadania naquela república. Além disso, o documento deixa entrever outro ponto importante ao declarar que “los ciudadanos no pueden negar su ciudadanía para huirse de sus deberes con la nación”. O governo imperial, depois de consultar o Conselho de Estado,12 12 Arquivo Nacional Rio de Janeiro Cód. 52 SDH Fundo Conselho de Estado. acaba por emitir nota orientando os agentes consulares no Uruguai a não emitirem títulos de nacionalidade baseados no nascimento durante o período da Cisplatina.13 13 Arquivo Histórico do Itamaraty 221/3/8.

Mas o recrutamento não foi visto por todos como um destino a ser evitado, houve aqueles que o viram como oportunidade. Desde 1844 o encarregado brasileiro em Montevidéu envia várias notas aos orientais reclamando da acolhida pelo exército de La Defensa de desertores brasileiros da divisão naval estabelecida na capital uruguaia. Há mesmo a denúncia, em 1846, de um corpo inteiro de soldados da guarnição de Montevidéu formado por estes desertores, fato negado pelas autoridades orientais. Nas palavras do agente diplomático imperial, tal situação “se torna em um dificultador da disciplina dos navios de guerra, pois mostra quão fácil é desertar da marinha brasileira desde que se pegue em armas pela República Oriental”.14 14 Archivo General de la Nación, Uruguay, Fondo Relaciones Exteriores 1732. A reclamação do diplomata brasileiro se calcava na percepção de que a fuga só se tornava bem-sucedida com a concretização da acolhida, tal como acontecido com um negro de nome Carlos, que servia no brigue Pensamento, de bandeira brasileira. Em algum momento do ano de 1846 ele teria sido “seduzido” a sair do navio e fugir para servir num batalhão da guarnição da capital, sendo localizado apenas no ano seguinte, quando passou a ser reclamado pelas autoridades brasileiras.15 15 Archivo General de la Nación, Uruguay, Fondo Relaciones Exteriores 1732.

Certamente o expediente da acolhida ao escravo fugido foi o que mais preocupou a legação brasileira, especialmente depois de 1846, quando Oribe também decretou a abolição da escravidão. Se na capital, controlada pelos colorados, com quem o governo imperial mantinha ainda contato direto, a situação era conflituosa, no interior, onde dominavam os blancos, representados diplomaticamente pelo governo de Buenos Aires, a possibilidade de intervir através da legação estava inviabilizada.

Em 1851, quando a Guerra Grande se encaminhava para o fim, houve um imenso afluxo de pedidos de restituição de escravos fugidos. As fugas e a acolhida dos orientais aos escravos fugidos tinham se tornado uma preocupação constante para os senhores de escravo sul-rio-grandenses, e não apenas para eles, mas para o Império.

As fugas e a acolhida: guerra, exército e razão de Estado

A partir de 1848 o Império começou a pleitear com as autoridades orientais, coloradas, mas também com o representante do governo de Buenos Aires no Rio de Janeiro, Tomás Antonio Guido, que também respondia em nome de Manuel Oribe, um acordo para a extradição dos escravos fugidos. A discussão com o ministro argentino não frutificou, como em outras questões, ao passo que em Montevidéu os colorados, interessados em obter suporte militar do Império, ao menos se mostraram capazes de ouvir as queixas. Os argumentos de Rodrigo de Souza Pontes, o encarregado de negócios brasileiro, permitem observar importantes transformações desde a abolição de 1842, sobretudo a aceitação da abolição da escravidão no Estado Oriental como um fato.

(…) o Governo Imperial entende que se podem combinar os direitos e interesses de dois países, fazendo distinção de duas épocas das quais compreende todo o tempo anterior à emancipação dos escravos e compreende a segunda todo o tempo que tem decorrido e decorre desde aquela emancipação. Pelo que respeita aos escravos introduzidos no Estado Oriental durante a primeira época, entende o Governo Imperial que os respectivos donos podem exigir a competente indenização no caso que se lhes denegue a faculdade de fazerem sair do território da República os escravos aí introduzidos. Pelo que respeita aos escravos introduzidos no Estado Oriental durante a segunda época entende o Governo Imperial que se os escravos vieram a este país fugidos, violentados ou aliciados, há direito para exigir a extradição deles ou o pagamento imediato de seu valor.16 16 Arquivo Histórico Do Itamaraty 221/3/7.

A transição para o reconhecimento da abolição pode ser entendida como parte de uma estratégia que buscava resolver um problema muito maior, expresso na página anterior da mesma nota. Tal estratégia é a de que o direito de qualquer governo emancipar escravos em seu território “só pode ser legitimamente exercido quando é levado a efeito com as necessárias cautelas para não ofender os direitos adquiridos de propriedade, nem perturbar o sossego, tranquilidade e segurança dos Estados vizinhos”.

O contexto internacional do fim dos anos 1840 ameaçava de forma direta e clara a instituição da escravidão, cara - e, mais que isso, necessária - ao Império do Brasil. As pressões pelo fim do tráfico por parte dos ingleses, que incluíam ameaças de guerra (PARRON, 2011PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil (1826-1863). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011., p. 244) e o isolamento do Brasil como único país abertamente escravista do Atlântico Sul, resultaram no fim do tráfico em 1850. Ao ter encerrada a fonte de abastecimento de mão de obra, o Império precisava garantir que não haveria também perdas através das fronteiras. Como parte das negociações, foram compiladas listas de escravos fugidos, a exemplo do que aconteceria depois com os proprietários de terra, enviadas em conjunto aos Negócios Estrangeiros do Império.17 17 Arquivo Histórico Do Itamaraty 309/4/23.

Antes de discutir o teor dessa lista e de outras utilizadas por pesquisadores que se dedicaram a estudar a fuga escrava no Rio Grande do Sul, proponho observar cuidadosamente o processo que levou à sua confecção, por acreditar que seja esclarecedor de como as demandas locais e particulares podiam se tornar um problema nacional. Em 4 de outubro de 1848, o general Francisco José Soares de Souza d’Andrea, presidente da província do Rio Grande do Sul e comandante de armas, encaminhou uma circular ordenando às polícias dos municípios da fronteira a realização de levantamentos discriminando os escravos fugidos. Muito embora diferentes câmaras de vereadores viessem encaminhando listas desde 1845, nem todos os municípios atenderam à ordem do general Andrea. A lista que se encontra no Arquivo Histórico do Itamaraty, cuidadosamente redigida sob os cuidados do presidente da província do Rio Grande do Sul, apresenta um número de 467 escravos fugidos para o Estado Oriental. Nessa lista, se encontram os seguintes dados: nome do escravo, cor, naturalidade, nome dos donos, lugar de onde fugiu e para onde fugiu. Diferente da lista de proprietários do RRNE de 1850, a lista de escravos fugidos era uniforme em suas informações, tendo inclusive o mesmo dado nos dois últimos campos, ou seja, todos os escravos haviam fugido da província do Rio Grande do Sul para o Estado Oriental.

As listas enviadas ao general Andrea demonstram uma diversidade muito maior de dados que a compilada por ele. Informações importantes - como a data das fugas, o lugar preciso de onde fugiu no Rio Grande do Sul, marcas distintivas e se a fuga foi coletiva ou individual - foram excluídos pelo presidente da província. Mas, mais importante que isso: o número de escravos constantes nas listas enviadas a Andrea e aquele da lista compilada para o Ministério das Relações do Estrangeiro diverge bastante. Muito embora seja difícil precisar o total de escravos contidos naquelas listas - três pesquisas indicam números distintos: Silmei Petiz (2006)PETIZ, Silmei de Sant’Ana. Buscando a liberdade: as fugas de escravos da província de São Pedro para o além-fronteira (1815-1851). Passo Fundo: EdiUPF, 2006. contabilizou 944 indivíduos; Mariana Thompson Flores (2014)FLORES, Mariana Flores da Cunha Thompson. Crimes de fronteira: a criminalidade na fronteira meridional do Brasil (1845-1889). Porto Alegre: EdiPUCRS, 2014., 647; e Daniela Vallandro de Carvalho (2013)CARVALHO, Daniela Vallandro de. Fronteiras da liberdade: experiências escravas de recrutamento, guerra e escravidão: Rio Grande de São Pedro, c. 1835-1850. Tese de doutorado em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013., 736 -, e não seja meu objetivo quantificar esses dados, a diferença entre os números indica que nem todos os casos de cativos fugitivos eram concernentes ao pleito do Império frente ao Estado Oriental.

Os estudos sobre as listas do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul ajudam a supor algumas explicações para essa disparidade. De fato, tenho de precisar uma informação: os números levantados pelos pesquisadores que citei se baseiam numa compilação de 1850, que contém dados posteriores ao da lista que encontrei no Arquivo Histórico do Itamaraty. Ainda assim, creio ser válido considerar a diferença de números não apenas como resultado de uma coleta mais minuciosa no período entre uma e outra lista, mas também fruto de outros fatores.

Analisar os nomes dos proprietários de escravos da “Lista de 1848” (forma à qual me referirei à lista compilada e enviada pelo general Andrea ao Rio de Janeiro) pode fornecer algumas pistas sobre os critérios utilizados para sua confecção. Antes mesmo de compilar os dados sobre os proprietários desses escravos me chamou a atenção o fato de que alguns dos nomes me eram familiares tanto da pesquisa em inventários post-mortem quanto da lista de proprietários de estâncias do RRNE de 1850. A partir dessa constatação, tomei o cuidado de identificar esses nomes, realizando uma análise cruzada das três listas. Também expandi a intersecção desses dados para nomes com um mesmo conjunto de sobrenomes.

Há nove ocorrências, totalizando dezessete escravos reclamados, do nome dos Corrêa Mirapalheta, estabelecidos na atual Santa Vitória do Palmar, com suas propriedades nas costas do Chuí e região. Os Porciúncula, outra rede de proprietários com terras dos dois lados da costa do rio Jaguarão, aparecem três vezes, reclamando quatro escravos. Outros 22 proprietários de escravos que compunham redes familiares ou eram eles mesmos nominalmente donos de estâncias no Estado Oriental aparecem na lista, pedindo a devolução de 47 cativos, quase 10% do total de registros. Esses dados suscitam duas reflexões, uma relacionada à condição da fuga desses escravos e outra à condição de seus senhores para reivindicar seu retorno.

Como apontei, todos esses proprietários estavam vivendo na fronteira com ocupação mais antiga, aquela entre o Rio Grande do Sul e os departamentos de Maldonado e Cerro Largo. Sendo estes 47 escravos propriedades de pessoas que eram parte de famílias com terras dos dois lados da fronteira, podemos inferir que eles tenham transitado em momentos anteriores à sua fuga pelo território oriental ou, no mínimo, conviveram com outros escravos e peões que o fizeram. Muito provavelmente esses cativos já tivessem vivido em estâncias do Estado Oriental, possuíam laços com habitantes daquele território e conheciam libertos e outros escravos fugidos ou orientais que lhes fornecessem refúgio. Certamente, a grande maioria deles sabia das leis de recrutamento de negros e mulatos e da abolição.

O histórico das fugas na fronteira era preocupação das autoridades e se agravava com a Independência das Províncias Unidas do Rio da Prata e sua decisão de oferecer a liberdade a todo escravo que atravessasse a fronteira. Esta determinação encerrava uma longa tradição devolucionista, ao menos na lei, em que os antigos impérios ibéricos tentavam colaborar na manutenção da propriedade de seus súditos. Durante o período artiguista o número de fugas desde o Rio Grande de São Pedro aumentou consideravelmente, especialmente na fronteira sul (PETIZ, 2006PETIZ, Silmei de Sant’Ana. Buscando a liberdade: as fugas de escravos da província de São Pedro para o além-fronteira (1815-1851). Passo Fundo: EdiUPF, 2006.). O trânsito para a fuga também aconteceu em sentido inverso, com alguns escravos de senhores orientais fugindo para o Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo, o Exército português não se furtou a recrutar escravos desertores das tropas artiguistas em troca da liberdade, tendo o general Lecor promulgado em maio de 1817 um decreto nesse sentido (ALADRÉN, 2009ALADRÉN, Gabriel. Liberdades negras nas paragens do Sul: alforria e inserção social de libertos em Porto Alegre, 1800-1835. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009., p. 159). A guerra abria possibilidades novas em relação à liberdade.

Com a expansão da área ocupada pelos brasileiros no Estado Oriental, é possível indicar alguns caminhos. Daniela Vallandro de Carvalho (2013, p. 118)CARVALHO, Daniela Vallandro de. Fronteiras da liberdade: experiências escravas de recrutamento, guerra e escravidão: Rio Grande de São Pedro, c. 1835-1850. Tese de doutorado em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. aponta que a maioria dos escravos fugidos para o Estado Oriental ia para os departamentos de Salto, Cerro Largo, Paysandú, Tacuarembó e Montevidéu. Ainda, na Confederação Argentina, Entre Ríos e Corrientes são as localidades mais acessadas pelos cativos em fuga. Se excluirmos a capital do Estado Oriental, é possível observar que a área geográfica forma uma espécie de “corredor” na fronteira do Rio Grande do Sul, na direção contrária ao litoral. Coincidentemente, esse mesmo sentido do “corredor” é o da ocupação das terras pelos pecuaristas sul-rio-grandenses no Estado Oriental. Portanto, creio ser possível afirmar que a rota das fugas escravas desde o Rio Grande do Sul estava bastante ligada ao trânsito da mão de obra a partir da ocupação ao norte do Rio Negro. Esse trânsito fornecia as informações que permitiam tornar mais segura a fuga, fazendo desta uma possibilidade de liberdade.

Nesse sentido, fugir para o desconhecido não era uma alternativa, como afirmou Jônatas Caratti (2013, p. 126)CARATTI, Jônatas Marques. O solo da liberdade: as trajetórias da preta Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense em tempos do processo abolicionista uruguaio (1842-1862). São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2013.: “para cada decisão de fuga havia uma motivação, um cálculo”. Muito embora o contexto fronteiriço tivesse suas peculiaridades, volto a ressaltar que não estou observando essas fugas como fáceis, mas a fronteira e o contexto bélico foram fatores que as favoreceram. A condição de trânsito frequente e mesmo de permanência no território do Estado Oriental a serviço do senhor dava mais segurança para os escravos fugitivos. Ainda, a possibilidade de encontrar acolhida nas tropas de ambas as facções orientais durante a Guerra Grande, e mesmo depois, desequilibrava o sistema de controle sobre as fugas. Muitos líderes políticos orientais, como Venâncio Flores, construíram seu prestígio apoiados pelas tropas de negros e pardos (BORUCKI, 2015BORUCKI, Alex. From shipmates to soldiers: emerging black identities in Rio de la Plata. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2015., p. 117). De fato, a preocupação com a recuperação dos 467 escravos da Lista de 1848 era parte de uma tentativa muito maior de manter esse sistema de controle e a própria ordem social no Império.

Voltando a observar aqueles 22 senhores de famílias proprietárias de terras no Estado Oriental, considerando o trânsito frequente de seus escravos e sua permanência naquele território comum mesmo após a abolição, pode-se questionar os dados relativos ao local da fuga, aventando a hipótese de que os escravos tenham fugido de seus amos no Uruguai. Embora não seja possível validar essa possibilidade com os dados que coletei, ainda assim gostaria de fazer sobre ela um esforço analítico. Se esses escravos estivessem em solo oriental e fugissem, conseguiriam a liberdade segundo as leis de abolição orientais, e seus senhores poderiam, mesmo com todas as dificuldades do processo, pedir indenização. Nesse caso, temos que nos perguntar: o que tornava a indenização tão pouco atrativa em relação a uma incerta captura e devolução desses cativos?

O ano de 1848 marcou a reabertura das discussões sobre a repressão e o fim do tráfico no Parlamento do Império. Segundo Sidney Chalhoub (2002, p. 111)CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., antes da queda do gabinete liberal, a discussão sobre a revogação da Lei de 1831 - conhecida como “Lei para Inglês Ver” - e a opinião pública contra o tráfico marcaram as últimas sessões públicas daquela legislatura. A repressão ao tráfico transatlântico realizada pela Marinha de Guerra inglesa, especialmente na costa brasileira, se tornava cada vez mais agressiva, transformando o comércio de grosso trato de escravos uma atividade arriscada a ponto de questionar sua lucratividade, e ao mesmo tempo colocando em cheque a capacidade de defesa da soberania do Império do Brasil. Em 1850, a manutenção do tráfico parecia impossível, e o tema dominava todos os debates:

Em geral, nesses debates, os conservadores reafirmavam que as dificuldades em eliminar o tráfico não concerniam a esse ou àquele partido, mas se deviam a motivos de força maior que enredavam as duas facções da política nacional (numa referência elíptica, como de hábito, ao descumprimento da lei de 1831 e à propriedade escrava ilegal decorrente disso); os liberais cobravam do governo tomar a iniciativa quanto ao assunto, pois a desenvoltura da Marinha inglesa na repressão ao tráfico na costa brasileira ofendia a soberania nacional e causava prejuízos comerciais crescentes. Não obstante essas querelas partidárias nota-se logo que os dois partidos professavam, ao menos retoricamente, dois pontos em comum: primeiro, o tráfico se tornara prejudicial ao país, logo a questão consistia tão somente no modo e oportunidade de dar cabo dele; segundo, a “opinião do país” era agora contrária ao tráfico, “nenhum ministério poder-se-ia hoje (…) sustentar no poder, se não se declarasse inimigo do tráfico de africanos, se não empregasse esforços para reprimi-lo”. (CHALHOUB, 2012CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 119)

Podemos entender a elaboração das listas de escravos fugidos como parte desse processo, que se encerra com a extinção do tráfico através da aprovação da Lei Eusébio de Queirós em 4 de setembro de 1850, que inicia outro longo processo, o de resistência dos senhores ao fim da escravidão. A inflação sobre o preço dos escravos, a concentração da propriedade desses nas atividades mais capitalizadas, o chamado tráfico interprovincial: todas essas consequências da extinção do comércio de escravos vindos diretamente da África tornariam difícil que, caso optassem pela indenização, aqueles 22 senhores de escravos tivessem condições de adquirir outros cativos para “repor” seu plantel. A sobrevivência da escravidão na fronteira sul em meados do século XIX se tornara uma preocupação nacional.

O que agravava este quadro era uma postura importante dos blancos dentro de seu projeto de nacionalidade oriental. Dentre as constatações de Rodrigo de Souza Pontes, naquela nota de janeiro de 1848, uma não estava em discussão: a fronteira era dominada por Oribe, que dava proteção aos escravos fugidos. O fato foi citado sem contestação, reconhecendo que a solução do problema não passava pela mesma via na qual se construía o debate com o governo de Montevidéu.

A lei de abolição do Gobierno del Cerrito foi sancionada em 1846 pela Assembleia Geral e promulgada dois dias depois por Manuel Oribe e Bernardo Prudencio Berro, integrantes do Poder Executivo. Mais radical que a legislação de La Defensa, estabeleceu no primeiro de seus sete artigos a abolição total da escravidão na República a partir daquele momento. Inicialmente a lei de abolição reconheceu a do patronato de 1837, que dizia que todos os varões com menos de 25 anos deviam ficar sob tutela de seus antigos amos, mas, ainda em dezembro de 1846, uma circular delimitou que homens negros casados ou que tivessem pais legítimos que pudessem reivindicá-los não deviam ser atingidos pelo patronato (BORUCKI et al., 2004BORUCKI, Alex et al. Esclavitud y trabajo: un estudio sobre los afrodescendientes en la frontera uruguaya (1835-1855). Montevideo: Pulmón Ediciones, 2004., p. 65-66).

Ao contrário da lei promulgada em 1842 por La Defensa, a lei de 1846 não faz menção alguma ao recrutamento dos libertos, nem condiciona a liberdade ao serviço de armas. Foi a aplicação da lei a partir da leitura de que a liberdade concedia a cidadania que demonstrou seu caráter militar. Na prática, as primeiras manifestações do Ministério da Guerra blanco, desde o dia da promulgação da lei, visavam engrossar as fileiras do exército com os libertos, e a regulamentação pelo Executivo das formas de registro dos escravos e de seus amos para indenização na verdade favorecia o recrutamento em massa.

O processo consistia na formação de comissões departamentais constituídas pelo chefe político (ou, na ausência deste, o comandante militar para a presidência), pelo alcalde ordinario de cada vila e por dois indivíduos eleitos pelo presidente entre os mais distintos, com a sugestão de que, se possível, houvesse médicos nessas comissões. Os senhores deveriam comparecer ante a comissão acompanhando seus escravos - e, caso não fosse possível, por ausência ou enfermidade, um representante deveria ser enviado em seu lugar -, e em troca receberiam boletos com os valores dos libertos, para posterior busca de indenização. Mas a função principal dessas comissões não era garantir o registro indenizatório. De fato, seu papel era fazer um levantamento detalhado das condições dos escravos apresentados e de sua possibilidade de recrutamento. Essas comissões passaram a operar em fins de 1846 e princípios de 1847. Este período coincide com o das primeiras reclamações de violência praticada pelo blancos contra brasileiros por resistência ao recrutamento no interior da campanha oriental.

Por sua vez, servir no exército oribista podia tanto significar a liberdade quanto condições de vida menos dignas do que aquelas encontradas no cativeiro. A vida em barracas, as más condições de higiene e comodidade, o toque de recolher e acordar, a exigência de permissão dos superiores para saídas, o pagamento irregular dos soldos e a possibilidade de promoção limitada às vacâncias de cargos, além da distribuição das tarefas mais pesadas para os libertos: todas essas condições podiam ser vistas como motivos para deserções, que não foram poucas, e punidas severamente. Essas condições talvez expliquem a permanência de cativos sob a “proteção” de seus senhores, alguns deles estancieiros brasileiros listados na documentação diplomática.

É o caso de um grupo de estancieiros de Cerro Largo que enviam representação em dezembro de 1851 reclamando de embargo de terras sofrido ao serem flagrados escondendo escravos pelas tropas do comandante blanco Dionísio Coronel. O relato de todas as humilhações infligidas pelas tropas orbistas deixa claro como o tema da escravidão era sensível: dentre as acusações de abuso contra Dionísio Coronel, constam o acobertamento de escravos fugitivos da província do Rio Grande do Sul, a libertação e consequente recrutamento forçado de escravos e o embargo das terras como punição pelos estancieiros acobertarem os cativos e atravessarem gado para o Império sem pagar taxas.18 18 Arquivo Histórico Do Itamaraty 310/1/1.

O medo de que a política de recrutamento de negros impulsionasse a fuga de escravos era ponto importante nas preocupações das autoridades brasileiras. O vislumbrar de uma vida melhor do outro lado da fronteira trazia riscos inegáveis para a manutenção da escravidão. Em carta ao ministro dos Negócios Estrangeiros o presidente da província do Rio Grande do Sul, Manuel Antônio Galvão, chama a atenção para documentos enviados por brasileiros residentes no Estado Oriental, que denunciam “o iníquo proceder de agentes daquele intruso Presidente [Oribe] recrutando nessa província escravos com o duplicado fim de prejudicar debaixo de mais de um ponto de vista os interesses do Império e encher as fileiras de seus exércitos”.19 19 Arquivo Histórico Do Itamaraty 309/4/23.

A historiografia dá conta de uma quantidade considerável de libertos que viram no exército oribista uma possibilidade de melhorar suas condições de vida (CARVALHO, 2013CARVALHO, Daniela Vallandro de. Fronteiras da liberdade: experiências escravas de recrutamento, guerra e escravidão: Rio Grande de São Pedro, c. 1835-1850. Tese de doutorado em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.). Os confiscos de propriedade ofereceram ao Gobierno del Cerrito a possibilidade de oferecer benefícios àqueles que o apoiavam, tanto civis como militares. Muitos negros e pardos, graças aos seus bons serviços de armas, puderam aceder a bens e posições que antes lhes eram impossíveis. Ironicamente, muitos desses confiscos foram de propriedades de antigos senhores de escravos. Várias dessas propriedades foram terras de sul-rio-grandenses, que seguiram reclamando-as nos anos que se sucederam ao fim da guerra.

Retomando as reflexões sobre a Lista de 1848, é importante pensar quem eram os senhores que podiam reivindicar escravos fugidos, até para poder estabelecer um dos fatores que provavelmente explicam a diferença de números dessa lista - depositada no Arquivo do Itamaraty - em relação àquela compilada em 1850 - habitualmente utilizada pelos estudos sobre fugas, e que se encontra no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Já aventei que uma das explicações para essa diferença pode ser o intervalo de dois anos que separa a primeira lista da segunda, o que teria permitido que um número maior de proprietários e de escravos fugidos fossem listados. Mas creio que esse ponto merece aprofundamento, avaliando o contexto desses dois anos.

Ao analisar casos de alforria de escravos que se utilizaram repetidamente do argumento de terem vivido no Estado Oriental e terem sido (re)introduzidos no Brasil após 1831, Marcelo Matheus (2013)MATHEUS, Marcelo Santos. Manejando a fronteira: estratégias escravas e senhoriais em torno dos limites entre o Brasil e o Uruguai (província de São Pedro do Rio Grande do Sul, século XIX). In: GRINBERG, Keila (org.). As fronteiras da escravidão e liberdade no sul da América. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013. p. 129-147. aponta que houve casos em que senhores preferiram conceder a alforria ao escravo para evitar o litígio na Justiça. Matheus se pergunta (2013, p. 141): “Seria o caso de passarmos a questionar também sobre a dificuldade de alguns senhores em acessar a justiça para se defender de seus cativos?”. O autor não oferece respostas conclusivas, mas creio que posso apontar alguns indícios nesse sentido.

O primeiro deles pode ser justamente esse aumento vertiginoso no registro centralizado de escravos fugidos para o Estado Oriental num intervalo de dois anos. A depender da estimativa considerada, esse incremento pode chegar a 100%. Observa-se que nesse período o poder provincial estava sensível a todos os problemas relacionados à fronteira e ao território oriental. Muitos senhores talvez tenham visto esse momento como a oportunidade para reivindicar algo que antes lhes parecia impossível.

Outro fator que pode explicar essa diferença é a necessidade de documentos comprovatórios da posse de escravos. Até 1872, quando foi instituída a matrícula em decorrência da Lei do Ventre Livre, não havia no Império do Brasil um registro de posse de escravos. Para efeitos, era possível utilizar a certidão de nascimento, no caso dos nascidos no Brasil, e/ou certidão de compra e venda, especialmente no caso dos africanos. A questão era a forma vaga dos registros (MAMIGONIAM, 2011).

A historiografia tende a tomar a propriedade escrava como segura e incontestada, especialmente pela conivência geral em relação ao tráfico ilegal. Escravos introduzidos no país entre 1831 e 1850 não possuíam registro, como parte da própria ilegalidade de seu desembarque e escravização, que precisavam ser ocultados. E, realmente, essa não foi uma questão entre os nacionais, que reconheciam a posse de escravos. Mas na relação entre o Império do Brasil e a República Oriental do Uruguai é possível observar a fragilidade dessa instituição.

No caso dos estancieiros sul-rio-grandenses, a dimensão dessa fragilidade derivada da ilegalidade podia ser dupla: havia os que, além de comprar africanos do tráfico ilegal com destino ao Brasil, compravam africanos desembarcados no Estado Oriental depois da proibição do tráfico naquele país. Uma possibilidade em relação à diferença entre as duas listas é a de que a que foi enviada ao governo do Estado Oriental cumprisse minimamente os critérios de comprovação da propriedade escrava em relação aos fugitivos. Logo do encerramento da Guerra Grande, houve um grande esforço do governo brasileiro em fazer valer os interesses de seus súditos, mas o estabelecimento de um Estado de direito no Uruguai foi diminuindo a capacidade de reivindicação dos estancieiros.

O governo oriental passa a reclamar desde 1848 do sequestro de cidadãos uruguaios negros e pardos para serem vendidos no Brasil. Foram muitas as condenações públicas feitas por autoridades brasileiras, muito embora, segundo Rafael Peter de Lima (2010)LIMA, Rafael Peter de. “A nefanda pirataria de carne humana”: escravizações ilegais e relações políticas na fronteira do Brasil meridional (1851-1868). Dissertação de mestrado em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010., na prática - como em todos os temas ligados à manutenção da escravidão -, essas autoridades tenham sido coniventes e às vezes até participantes dessa situação. Os crimes eram publicamente repudiados, mas os seus executores nunca eram punidos, e as reclamações nesse sentido proliferam nos fundos documentais. Ainda assim, em dois momentos o governo imperial se pronunciou sobre a ilegalidade dessas tentativas de reescravização: quando do Aviso 188 de 1856, do Ministério da Justiça, que ratificava a validade da lei de 7 de novembro de 1831, que proibia a entrada de pessoas escravizadas no Império; e o parecer de 25 de abril de 1859, do Conselho de Estado, que confirmava que a nacionalidade de um indivíduo é relativa a seu local de nascimento. Neste mesmo sentido, o governo imperial também se manifestou em 1851, alertando os cidadãos que levavam escravos para o Estado Oriental de que não seria possível apresentar reclamações sobre a libertação ou fuga desses escravos, pois, juridicamente, eles se tornavam livres ao pisar em solo uruguaio.

Exatamente para evitar esses problemas, advindos da impossibilidade de o governo imperial apoiar esses pleitos, mas consciente da dificuldade que esses estancieiros alegavam ter para suprir suas estâncias de mão de obra, em 7 de agosto de 1852 o vice-presidente da província do Rio Grande do Sul publica uma nota oficial sugerindo o mecanismo dos contratos de peonagem. Nessa nota,20 20 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul Correspondência Presidentes da Província. A.2.10. nº 26, f.48. Luís Alves Leite de Oliveira Bello reconhece que aqueles que levam seus escravos voluntariamente para o Estado Oriental não os têm protegidos pelo Tratado de Extradição de 12 de outubro de 1851.21 21 Embora esse trabalho não tenha o objetivo de discutir os tratados assinados entre Brasil e Uruguai em 1851, preciso apontar que o contexto de sua aceitação pelos uruguaios foi mais complexo do que é possível explicitar aqui. De toda forma, os tratados foram praticamente impostos no contexto da campanha contra Oribe e Rosas e foram largamente contestados ou mesmo ignorados ou burlados durante os anos que se seguiram. Os riscos assumidos pelos senhores incluíam a não reclamação de cativos fugitivos, recrutados ou libertados por tropas de polícia e comandos militares.

A preocupação em realizar os contratos de peonagem não apenas incluía a necessidade dos senhores de que os escravos não procurassem outro rumo que não suas estâncias tão logo chegassem no Estado Oriental, mas também que não fossem recrutados pelas tropas nacionais, dado que o contrato reconhecia esses “ex-cativos” como brasileiros e comprovava sua condição de trabalhadores, retirando-os da categoria de mal entretenidos, ou seja, “desocupados”. Mas de fato, até 1863, na presidência do blanco Bernardo Berro, nenhuma atitude oficial além da denúncia foi tomada pelo governo oriental. Os contratos tinham aparência de legalidade e era difícil rebatê-los sem tocar numa questão de direito internacional. Como apontou Laurie Benton (2001, p. xx, tradução minha)BENTON, Lauren. “The laws of this country”: foreigners and the legal construction of sovereignty in Uruguay, 1830-1875. Law and History Review, Cambridge. v. 19, n. 3, 2001, p. 479-511. DOI: http://dx.doi.org/10.2307/744271.
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as demandas e os conflitos legais gerados pelos residentes estrangeiros (entre eles expressivo contingente de brasileiros) foram fundamentais para a construção da soberania do Estado uruguaio no século XIX, incentivando a codificação e o fortalecimento das instituições e autoridades nacionais.

Da mesma forma, o Estado brasileiro passou a constituir instâncias legais e a conformar instituições e papéis a partir de demandas externas. Foi a pressão inglesa pelo fim da escravidão, em dois momentos - em 1850-1851 e nos primeiros anos da década de 1860 -, que forçou um processo de organização estatal para mantê-la até 1888. Ao mesmo tempo, a insistência das autoridades de fronteira uruguaias, e mesmo do alto escalão daquele governo, em evitar ao máximo o retorno de qualquer indivíduo à situação de escravo forçava um recrudescimento da postura dos senhores de escravos e das autoridades de fronteira brasileiras. Não é mera coincidência que as instituições da Guarda Nacional e dos comandos da fronteira do Rio Grande do Sul tenham passado por um processo profundo de reorganização logo após o fim da Revolução Farroupilha.

Em 1860, quando Bernardo Prudêncio Berro chegou à presidência no Estado Oriental e começou uma ofensiva para exterminar os contratos de peonagem, mais uma vez os estancieiros brasileiros enviaram suas reclamações ao governo do Império. Tanto no Estado Oriental do Uruguai quanto no Império do Brasil o clima político estava em ebulição. No primeiro, o governo blanco contava não apenas com um presidente que defendia abertamente o estabelecimento de um corpo legal para inibir a atuação caudilhesca na política, mas também um ministro de Governo e de Relações Exteriores, Eduardo Acevedo, que agressivamente defendia a regulação das leis baseada na soberania do Estado. A intenção do governo composto majoritariamente por letrados, muitos deles com formação universitária e tradição na advocacia, era estabelecer um corpo jurídico que impedisse qualquer forma de imposição de legislação extraterritorial (BENTON, 2001BENTON, Lauren. “The laws of this country”: foreigners and the legal construction of sovereignty in Uruguay, 1830-1875. Law and History Review, Cambridge. v. 19, n. 3, 2001, p. 479-511. DOI: http://dx.doi.org/10.2307/744271.
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, p. 506).

No Brasil, o início dos anos 1860 trouxe novamente a instituição da escravidão para o centro do debate público, que desta vez não se centrava apenas na condenação de um dos mecanismos da escravidão, como acontecera uma década antes, com o tráfico. A postura do representante britânico, William Christie, que forçava o cumprimento da lei de 1831 e a libertação dos africanos desembarcados, lançou as primeiras chamas que incendiaram o debate. Christie seguia uma postura comum a muitos diplomatas britânicos, que vinham abertamente sabotando a instituição da escravidão (YOUSSEF, 2017YOUSSEF, Alain El. Miguel Maria Lisboa: escravidão, geopolítica global e economia imperial durante a Guerra Civil norte-americana (1860-1871). Cadernos do CHDD, Brasília, DF, v. 15, n. 29, 2017, p. 29-50., p. 31).

As denúncias na imprensa, sobre a condição dos africanos livres - possivelmente feitas numa colaboração entre Francisco Otaviano, Tavares Bastos e Christie - e a conivência do governo com o cativeiro ilegal contribuíram para o acirramento dos ânimos (MAMIGONIAM, 2011, p. 26). Ainda, a Guerra da Secessão estadunidense - e, por conta dela, o medo de uma guerra entre defensores da escravidão e abolicionistas -, e depois a promulgação da libertação dos escravos por Lincoln em 1863, mantiveram o debate aceso. O Brasil se tornara a última grande nação americana a manter a escravidão, e a percepção de que seu fim era iminente ficava cada vez mais clara. O aumento das ações de liberdade e da denúncia de escravos ilegais começaram a colocar em perigo a propriedade escrava no Império (GRINBERG, 2002GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antônio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002., p. 215-216).

Quando em abril de 1863 a Assembleia Provincial do Rio Grande do Sul envia representação ao Imperador reclamando da exigência, pelas autoridades uruguaias, de certidão de nascimento certificada pela autoridade consular como prova de propriedade do escravo, novamente o assunto ganha atenção da Corte. Os deputados sul-rio-grandenses acreditavam que esse procedimento feria o Tratado de Extradição de 1851, dada a inexistência de lei do Império que fizesse tal exigência. A questão foi debatida pelo Conselho de Estado, e o parecer, como demonstra Beatriz Mamigonian (2011, p. 21)MAMIGONIAN, Beatriz. O Estado nacional e a instabilidade da propriedade escrava: a Lei de 1831 e a matrícula dos escravos de 1872. Almanack, Guarulhos, n. 2, 2011, p. 20-37. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/2236-463320110203
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, acabou por revelar posturas muitas vezes possíveis porque silenciosas.

Quando se tratava de direito internacional, os juristas brasileiros tendiam a respeitar a soberania do país vizinho, e neste caso reconheciam que o Estado Oriental tinha o direito de exigir documentação comprobatória da propriedade. Mas o problema se concentrava na questão aqui já discutida da inexistência desses registros, exatamente porque estes incriminariam aqueles que se beneficiaram do tráfico ilegal e comprometeriam a posse dos escravos obtidos desse modo. O que para alguns era benefício se tornava a desgraça dos proprietários, com cativos fugidos para o Estado Oriental.

Se no campo da legalidade não era possível tomar atitudes claras em relação aos escravos perdidos por ações do governo oriental, a diplomacia apresentava seus esforços. Em 1864, o Império, através da Missão Saraiva, passa a demandar de forma mais incisiva a criação de uma comissão mista - já discutida desde 186222 22 Arquivo Histórico Do Itamaraty 221/4/3, 221/4/4. -, formada por dois representantes brasileiros e dois orientais que avaliassem os reclames dos súditos imperiais em relação a prejuízos sofridos. O precedente fora aberto pela formação de uma comissão similar com representantes franceses e ingleses (ETCHECHURY BARRERA, 2014bETCHECHURY BARRERA, Mario. Periferias imaginadas: guerras facciosas y sueños protectorales em el Río de la Plata (1838-1865). Prohistoria, Rosario, v. 17, n. 22, dez. 2014b. Disponível em: <http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1851-95042014000200003&lng=es&nrm=iso>. Acesso em: 25 set. 2018.
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, que em 1861 acabou por reconhecer dívidas com indivíduos dessas nações num total de 4 milhões de pesos (BENTON, 2001BENTON, Lauren. “The laws of this country”: foreigners and the legal construction of sovereignty in Uruguay, 1830-1875. Law and History Review, Cambridge. v. 19, n. 3, 2001, p. 479-511. DOI: http://dx.doi.org/10.2307/744271.
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, p. 487). A negação do governo oriental em sequer aceitar o documento, visto como uma afronta à soberania uruguaia, foi o estopim da invasão brasileira e da própria Guerra do Paraguai.

Há dois dados que creio ser necessário explorar no documento da Missão Saraiva. O primeiro é a inexistência de reclamações relacionadas a escravos. Ainda assim, até onde pude apurar, havia ao menos quatro reclamações, uma por prisão e três por recrutamento indevido de trabalhadores de estâncias, negros, de nacionalidade brasileira e com contrato de trabalho, o que pode apontar tanto para um reconhecimento dos estancieiros brasileiros - ou apenas da diplomacia que formulou o documento - da ilegitimidade de reclamar escravos, como para uma nova formulação para reclamações relacionadas à mão de obra. Até a promulgação do Código Rural no Estado Oriental na década de 1870, que estabeleceu os termos do trabalho no campo e, com ele, altas penalidades para a “vagabundagem”, as questões relacionadas a contratação de trabalhadores rurais ainda seriam conflituosas (BELL, 1998BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a Brazilian ranching system (1850-1920). Standford: Standford University Press, 1998.).

O segundo dado a ser observado é o de que, de todas as reclamações que o governo imperial recebeu nos vinte anos anteriores, apenas 64 foram selecionadas para o documento levado pelo conselheiro Saraiva. Mais uma vez, é possível verificar um processo de eleição das reclamações. Os critérios dessa escolha certamente foram muitos. Mas, de todos, creio ser importante reforçar a percepção de que alguns estancieiros conseguiam fazer com que seus pleitos chegassem até a corte, e outros não. Da mesma forma, a corte mostrava uma audiência mais ou menos sensível aos problemas dos estancieiros no Estado Oriental, conforme seus interesses coincidissem ou não.

Considerações finais

A relação entre a produção pecuária realizada por brasileiros em território do Estado Oriental do Uruguai e a mão de obra escrava, que pretendi explicitar nesse trabalho, tem sido objeto pouco tratado nos trabalhos da historiografia brasileira. Embora uma crescente onda da historiografia venha tentando mudar esse panorama, a percepção sobre esse grupo de elite e suas inflexões na política imperial ainda são vistas como objeto de uma história regional - aqui leia-se “localista” -, e não como parte de um amplo processo de defesa da propriedade escrava que varria o Império, atingindo inclusive seus confins e, nesse caso, ultrapassando fronteiras.

Ainda que a historiografia platina - esta sim regional, no sentido de compreender as interações para além das fronteiras nacionais - venha ressaltando os processos de troca e confronto entre diferentes concepções políticas e sociais, é possível aprofundar essas questões, observando os mecanismos acionados pelos sujeitos para garantir aquilo que consideravam seus direitos. A proposta desse artigo foi observar sujeitos com diferentes posições sociais, acionando sua reivindicação de cidadania brasileira em busca de contextos que reforçassem ou fragilizassem condições de liberdade. Entender como e se esses sujeitos conquistaram seus pleitos nos permite ver possíveis aplicações desses conceitos e suas mudanças de acordo com o lugar ocupado por cada indivíduo e suas relações naquela sociedade.

  • *
    O artigo não foi publicado em plataforma de preprint. Estão referidos no artigo todos os autores e fontes e estas tem indicação do acervo documental ao qual pertencem.
  • **
    Doutora em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente é docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense, no campus Gravataí, junto ao Departamento de Ensino, Pesquisa e Extensão.
  • 1
    Alguns autores têm apontado que é possível remontar o início do conflito a 1836, com os primeiros levantes contra Oribe. Da mesma forma, o fim da Guerra Grande seria posterior a 1852, com os desdobramentos da derrota de Rosas em Caseros. Cf. Caetano (2013)CAETANO, Gerardo. Historia conceptual: voces y conceptos de la política oriental (1750-1870). Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2013., Duffau (2017a)DUFFAU, Nicolas. Propuestas orientales, concreciones rioplatenses: redes delictivas, extradición criminal y colaboración policial en el río de la Plata (1854-1865), p. 138-165. Revista Historia y Justicia, Santiago, n. 8, abr. 2017a., Etchechury Barrera (2014b)ETCHECHURY BARRERA, Mario. Periferias imaginadas: guerras facciosas y sueños protectorales em el Río de la Plata (1838-1865). Prohistoria, Rosario, v. 17, n. 22, dez. 2014b. Disponível em: <http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1851-95042014000200003&lng=es&nrm=iso>. Acesso em: 25 set. 2018.
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    .
  • 2
    Esta lista, produzida pelos Comandantes de Fronteira e anexa ao Relatório da Repartição dos Negócios do Estrangeiro do Império do Brasil, arrola 1.353 criadores de gado brasileiros estabelecidos no Estado Oriental do Uruguai. O documento tem sido fundamental para observar a presença desses brasileiros no país vizinho.
  • 3
    Arquivo Histórico do Itamaraty (ARQUIVO HISTÓRICO DO ITAMARATY) 309/4/23, 221/3/6; Archivo General de la Nación/Uruguay (AGNUy) Fondo de Relaciones Exteriores (FRE) 1732.
  • 4
    Nesse caso, bando se refere a uma proclamação pública por escrito, distribuída e afixada em espaços de circulação comum.
  • 5
    Há toda uma renovação da historiografia uruguaia sobre o tema, inclusive ponderando a questão do fusionismo após a Guerra Grande, demonstrando que em ambos os partidos existiam grupos de doctores, intelectuais urbanos que observavam a necessidade de superar o espectro do caudilhismo ao mesmo tempo em que refutavam a ideia do faccionismo ou partidarismo, associando essas duas dimensões da política no Estado Oriental do período (CAETANO, 2013CAETANO, Gerardo. Historia conceptual: voces y conceptos de la política oriental (1750-1870). Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2013., p. 209).
  • 6
    Como bem mostra em excepcional trabalho Duffau (2017b)DUFFAU, Nicolas. ¿El indio Amarillo sitia El Salto?: reconstrucción histórica y reflexiones metodológicas em torno a um confuso episodio (Salto, 1853). Revista Historia para Todos, Provincia de Córdoba, v. 3, n. 5, jun. 2017b, p. 23-33..
  • 7
    Esse é um tema com imensa bibliografia. Apenas para explicitar o marco da discussão que assumo neste artigo, cito os trabalhos de Chust e Frasquet (2009)CHUST, Manuel & FRASQUET, Ivana (eds.). Los colores de las independencias iberoamericanas: liberalismo, etnia y raza. Madrid: CSIC, 2009., que apontaram com vigor a presença e importância dos populares (escravos ou libertos) nos processos de independência na América espanhola; e, mais recentemente, a compilação apresentada por Mallo e Telesca (2010)MALLO, Silvia & TELESCA, Ignacio (eds.). Negros de la patria: los afrodescendientes en las luchas por la independencia en el antiguo virreinato del Río de la Plata. Buenos Aires: Editorial SB, 2010., que trata da questão exclusivamente na Bacia do Prata, mostrando o quão importante foram os pelotões de pardos e negros no ciclo revolucionário e sua invisibilização no discurso nacional.
  • 8
    O fundamental trabalho de Alex Borucki (2015)BORUCKI, Alex. From shipmates to soldiers: emerging black identities in Rio de la Plata. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2015., From shipmates to soldiers, especialmente o Capítulo III, que trata das milícias negras durante o período colonial, precisa ser mencionado. Segundo o autor, “em 1810, provavelmente a maioria dos negros e pardos livres de Montevidéu já havia se engajado ao menos uma vez na vida no serviço de armas. Todavia, a maioria da população negra da cidade permanecia escrava. Provavelmente não mais que 700 homens e mulheres negros e pardos viviam em Montevidéu. A importância das milícias de negros e pardos é elucidada pelo fato de ao menos uma vez na vida todos os livres terem servido nessas forças” (BORUCKI, 2015BORUCKI, Alex. From shipmates to soldiers: emerging black identities in Rio de la Plata. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2015., p. 87). Apesar de existirem, esses batalhões estavam colocados como opção apenas aos livres. Essa vai ser, segundo Borucki, a força que levará à abolição durante a Guerra Grande. Servir nas tropas está diretamente ligado ao estatuto da liberdade.
  • 9
    Archivo General de la Nación, Uruguay, Fondo Relaciones Exteriores1733.
  • 10
    Archivo General de la Nación, Uruguay, Fondo Relaciones Exteriores1732.
  • 11
    Archivo General de la Nación, Uruguay, Fondo Relaciones Exteriores1720.
  • 12
    Arquivo Nacional Rio de Janeiro Cód. 52 SDH Fundo Conselho de Estado.
  • 13
    Arquivo Histórico do Itamaraty 221/3/8.
  • 14
    Archivo General de la Nación, Uruguay, Fondo Relaciones Exteriores 1732.
  • 15
    Archivo General de la Nación, Uruguay, Fondo Relaciones Exteriores 1732.
  • 16
    Arquivo Histórico Do Itamaraty 221/3/7.
  • 17
    Arquivo Histórico Do Itamaraty 309/4/23.
  • 18
    Arquivo Histórico Do Itamaraty 310/1/1.
  • 19
    Arquivo Histórico Do Itamaraty 309/4/23.
  • 20
    Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul Correspondência Presidentes da Província. A.2.10. nº 26, f.48.
  • 21
    Embora esse trabalho não tenha o objetivo de discutir os tratados assinados entre Brasil e Uruguai em 1851, preciso apontar que o contexto de sua aceitação pelos uruguaios foi mais complexo do que é possível explicitar aqui. De toda forma, os tratados foram praticamente impostos no contexto da campanha contra Oribe e Rosas e foram largamente contestados ou mesmo ignorados ou burlados durante os anos que se seguiram.
  • 22
    Arquivo Histórico Do Itamaraty 221/4/3, 221/4/4.

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Editado por

Editores responsáveis pela publicação:
Iris Kantor e Rafael Marquese

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2018
  • Aceito
    13 Set 2018
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