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CORPOS DOENTES, CURAS EXTRAORDINÁRIAS: A PRÁTICA MÉDICA DE GEORGES-LOUIS LIENGME NOS CAMINHOS PARA GAZA (SUL DE MOÇAMBIQUE, 1891-1895)* * Este artigo está associado à pesquisa de doutorado “Lança presa ao chão”: guerreiros, redes de poder e a construção de Gaza (travessias entre a África do Sul, Moçambique, Suazilândia e Zimbábue, século XIX), desenvolvida com financiamentos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Núcleo de Apoio à Pesquisa Brasil-África (NAP-USP) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), processo 2012/20813-3. Agradeço aos pareceristas ad hoc pelas inspirações, correções e contribuições ao texto.

SICK BODIES, EXTRAORDINARY CURES: THE MEDICAL PRACTICE OF GEORGES-LOUIS LIENGME ON THE ROADS TO GAZA (SOUTHERN MOZAMBIQUE, 1891-1895)* ** Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Desenvolveu pesquisa em arquivos históricos de Moçambique, de Portugal e da África do Sul, com ênfase nos movimentos, travessias e contatos de populações africanas, especialmente dos atuais territórios de Moçambique, África do Sul, Suazilândia e Zimbábue no século XIX.

Resumo

O artigo analisaNotice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza, escrito por Georges-Louis Liengme (1859-1936), reconstituindo a confluência entre a medicina como prática social e o paradigma civilizatório que o levou a viajar para o sul do atual território de Moçambique no ano de 1891. Dominando a gramática clínica apoiada no poder de intervenção e de controle diretos sobre o indivíduo, Liengme buscou decodificar o universo africano pelo signo da doença e sob a perspectiva de corpos particularmente enfermos, à espera da ação de governos e sociedades missionárias. Para intervir nesse mundo em desordem, de loucuras e de cegueiras, o seu olhar se voltou para os referentes capazes de produzir “conexões de sentido” e “convergência de horizontes simbólicos” com as populações, mas, nesse processo, avançou em direção a uma liminaridade que acabou por subverter o sentido de sua própria presença.

Palavras-chave
Medicina social; disciplinarização; Missão Suíça; Mandlakazi; Gaza; século XIX; Moçambique; Georges-Louis Liengme

Abstract

The article analyzes the Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza, written by Georges-Louis Liengme (1859-1936), reconstituting the confluence between medicine as a social practice and the civilizing paradigm that led him to travel to the south of the present territory of Mozambique in the year 1891. Mastering the clinical grammar based on the power of intervention and direct control over the individual, Liengme sought to decode the African universe by the sign of the disease and under the perspective of particularly sick bodies waiting for the action of governments and missionary societies. In order to intervene in this disorderly world of madness and blindness, his gaze turned to the referents capable of producing “connections of meaning” and “convergence of symbolic horizons” with the populations, but in this process, he advanced in toward one liminality that eventually subverted the sense of his own presence.

Keywords
Social medicine; disciplinary work; Swiss Mission; Mandlakazi; Gaza; 19th century; Mozambique; Georges-Louis Liengme

Após um ano de prática médica nessa parte da África, não me é possível fazer um estudo completo das doenças dos nativos. A minha intenção é, simplesmente, contar sobre as principais patologias que tive a oportunidade de observar em viagem ou durante a minha estadia em Lourenço Marques [atual Maputo, capital de Moçambique] ou Antioka, estação missionária situada junto ao rio Incomati...

Assim começa o artigo escrito (em francês) pelo missionário suíço Georges Liengme (1859-1936) e publicado, em 1895, no Boletim da Sociedade de Geografia de Neuchâtel (na Suíça) com o título Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza [Nota de geografia médica: algumas observações sobre as doenças dos nativos das províncias de Lourenço Marques e de Gaza](LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 180).

Georges Liengme nasceu em 1859, em Cormoret, uma comuna suíça. No final da década de 1870, a Igreja Independente de Neuchâtel o aceitou como candidato a missionário e foi ao tempo dessa formação que Liengme se voltou para a medicina, estudando primeiramente em Berna e, a seguir, em Genebra. Em abril de 1891, Liengme foi consagrado médico-missionário e, nesse mesmo ano, partiu para Moçambique, com destino a Antioka, uma das estações da Mission des Églises Libres de la Suisse Romande, mais conhecida como Missão Suíça.1 1 BUTSELAAR, Jan van. Africains, missionnaires et colonialistes: les origines de l’Église Presbytérienne du Mozambique (Mission Suisse), 1880-1896. Leiden: E. J. Brill, 1984, p. 98-102. Cf. também CRUZ E SILVA, Teresa. Igrejas protestantes e consciência política no sul de Moçambique: o caso da Missão Suíça (1930-1974). Maputo: Promédia, 2001; HARRIES, Patrick. Butterflies & barbarians: Swiss missionaries & systems of knowledge in South-East Africa. Ohio: Ohio University Press, 2007.

Como médico-missionário protestante, Georges Liengme atendeu diversos doentes em Antioka e Lourenço Marques entre os anos de 1891 e 1893, até se estabelecer definitivamente em Mandlakazi (o que muitos missionários vinham tentando, sem sucesso), onde vivia Gungunhana, o inkosi do centro de poder conhecido como Gaza, no sul do atual território de Moçambique.2 2 BUTSELAAR, Jan van. Africains, missionnaires et colonialistes..., op. cit., 1984, p. 102-106; “i-nKosi”: “chefe”. BRYANT, Alfred Thomas. A Zulu-English dictionary with notes on pronunciation, a revised orthography and derivations and cognate words from many languages; including also a vocabulary of Hlonipa words, tribal-names etc., a synopsis of Zulu grammar and a concise history of the Zulu people from the most ancient times. Natal: The Mariannhill Mission Press, 1905, p. 319; SANTOS, Gabriela Aparecida dos. “Lança presa ao chão”: guerreiros, redes de poder e a construção de Gaza (travessias entre a África do Sul, Moçambique, Suazilândia e Zimbábue, século XIX). Tese, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2017, p. 271. O texto de Liengme, que não indica a data exata de sua produção, foi escrito muito possivelmente nesse ano de 1893 porque a própria apresentação que faz de si, junto ao título, é o de ser “médico-missionário em Mandlakazi”.

Das doze páginas de seu texto, Liengme dedicou ao menos dois terços à distinção e “à nomenclatura das doenças encontradas até o presente”. Sendo-lhe impossível mencionar todas por “quão longo seria para os leitores”, as patologias são ordenadas e apresentadas em grupos, segundo o léxico de seu repertório médico: I. “Afecções do sistema nervoso”, compreendendo “crises nervosas”, “numerosos casos de loucura” e “epilepsia”; II. “Doenças das vias respiratórias” e “diáteses reumáticas”; III. “Doenças dos olhos”; “ceratite”, “conjuntivite”, “irite”, “pterígeo” e “catarata senil” - “as mais comuns em regiões intertropicais”; IV. “As chamadas doenças dos países quentes” como “malária”, “esplenite” e “acessos de febre”; V. “Catarros intestinais, cólicas e constipação”, “que integram a agenda diária do médico”; VI. “Doenças da pele”; “albinismo completo ou parcial, distúrbios tróficos, pigmentação, tumores quelóides, lepra, ictiose e parasitas de todos os tipos”; e, por fim, VII. “Hematúria de natureza parasitária”. Nessas, as sete grandes associações diagnosticadas pelo autor, embora pudesse tratar dos “casos de sífilis, tumores de natureza diversa, ferimentos, mordidas de serpentes, varíola” e ainda outros (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 183-190).

A essa disposição textual, Liengme acrescentou construções eloquentes de organismos especialmente enfermos: “escrófulas”, “necroses”, “hemorragias” e “úlceras” se espalham e invadem os poros imagéticos do leitor, o assombrando igualmente com os perigos de “contágios por contato direto” (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 186-190). As ocorrências patológicas são invariavelmente “numerosas” - “casos semelhantes são numerosos”, “encontrei casos numerosos”, “esses casos devem ser numerosos” - e “frequentes”. Há doenças que não podem “senão aumentar em intensidade” e o uso constante do verbo “répandre” na voz passiva, com o sentido de algo que foi espalhado, difundido, disseminado, sugere um processo enraizado e incomplacente de contaminação “nessa parte da África” onde escrevia Liengme (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 180, 183-186, 188-189).

Saber e discurso científicos na prática médica do século XIX

Tanto a identificação quanto o encadeamento das associações patológicas de Liengme, conectados a diagnósticos que muitas vezes ultrapassavam a dimensão da fisiologia humana, remetiam aos novos parâmetros de cuidado e de tratamento médicos (centrados em referenciais de racionalidade, normatividade e desvio) que vinham se desenvolvendo na Europa desde o final do século XVIII (FOUCAULT, 1977FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977., p. 149-152).

O anseio de ordenar o mundo em categorias numa busca classificatória e racional havia acompanhado a passagem para o XIX, tal qual a vitalidade presumida da razão humana, impulsionada pela mecanização da agricultura, máquinas a vapor e locomotivas, que conduziu à percepção de triunfo da burguesia europeia liberal e de suas conquistas como expressão máxima de progresso e de civilização. “A sociedade burguesa”, observou o historiador inglês Eric Hobsbawm, “estava confiante e orgulhosa de seus sucessos” e “ninguém duvidava do progresso, tanto material como intelectual, já que parecia óbvio demais para ser negado” (HOBSBAWM, 1996HOBSBAWM, Eric. O mundo burguês. In: Idem. A era do capital, 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 321-347., p. 349, 351).

Apoiando-se “no capitalismo, na empresa privada competitiva, na tecnologia, na ciência e na razão”, essa burguesia mantinha um “monopólio de comando” que a tornava não “apenas independente” como persuadida de uma superioridade própria, fazendo-a exceder em dignidade, mérito, posição e qualidades exclusivas.3 3 “...o direito de propriedade e o direito de dominação eram indissociáveis”. HOBSBAWM, Eric. O mundo burguês. In: Idem. A era do capital, 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 340-344.

Ainda segundo Hobsbawm, uma disposição social de domínio implicava na suposição de um plano considerado inferior, mediada nesse contexto por noções de sucesso e de fracasso. A antiga “classificação simplista entre moralmente superiores e inferiores” (transpassada pela ética de abstinência e do esforço) já não podia ser aplicada e, por isso, “a crescente importância das teorias alternativas de superioridade biológica de classe” como “resultado de uma seleção natural” nas quais “o burguês era, senão de uma espécie diferente, pelo menos membro de uma raça superior, um nível mais alto na evolução humana” (HOBSBAWM, 1996HOBSBAWM, Eric. O mundo burguês. In: Idem. A era do capital, 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 321-347., p. 340-344).

Conceitos como “seleção natural” provinham da obra mais famosa do inglês Charles Darwin (1809-1882), Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural, ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida, publicada em novembro de 1859 (DARWIN, 1859DARWIN, Charles Robert. On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life. Londres: John Murray, 1859.). Analisando a descendência em termos de filiação comum e de desenvolvimento com modificações, o autor verificou que os organismos avançavam progressivamente e se diversificavam ao longo do tempo, se adaptando aos diferentes meios. Nesse processo, que percebeu como “luta pela vida”, os organismos enfraquecidos tenderiam a desaparecer, subsistindo as formas saudáveis e adaptadas que prolongavam, na reprodução, as variações orgânicas individuais mais favoráveis. Por meio dessa “seleção natural”, a “herança de traços” representava o “progresso de sua formação” e, por conseguinte, a existência de “seres orgânicos triunfantes”.4 4 Ibidem, p. 104, 110, 126. Cf. também BROWNE, Janet. A origem das espécies de Darwin: uma biografia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p. 61, 70.

Tais imperativos evolucionários de competição e de seleção ultrapassaram os limites da biologia para se firmarem como modelo de conhecimento científico, de racionalidade e de análise social, como notou Hobsbawm. (HOBSBAWM, 1996HOBSBAWM, Eric. O mundo burguês. In: Idem. A era do capital, 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 321-347., p. 342-343, 359) Pautado no arquétipo biológico e em teorias evolucionistas que precediam inclusive as de Darwin, o filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903) fixaria a “sobrevivência dos mais aptos” (SPENCER, 1864SPENCER, Herbert. The principles of biology, vol. 1. Edimburgo: Williams and Norgate, 1864., p. 442-472) como um diagrama explicativo (por ocasião da publicação de Sobre a origem das espécies...), a ser aplicado “aos animais e às plantas tão facilmente quanto à política, à economia, à tecnologia e aos seres humanos” (BROWNE, 2007BROWNE, Janet. A origem das espécies de Darwin: uma biografia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007., p. 72):

...propomos demonstrar, em primeiro lugar, que essa lei do progresso orgânico é a lei de todo progresso. Quer seja no desenvolvimento da Terra, no desenvolvimento da vida em sua superfície, no desenvolvimento da sociedade, do governo, das manufaturas, do comércio, da língua, da literatura, da ciência, da arte, essa mesma evolução do simples para o complexo, por meio de sucessivas diferenciações, é válida. Das primeiras mudanças cósmicas rastreáveis aos últimos resultados da civilização veremos que o progresso consiste, essencialmente, na transformação do homogêneo em heterogêneo (SPENCER, 1891 [1852], p. 10).

Spencer acreditava que “tanto o progresso biológico quanto o social formavam um amplo continuum evolucionário - ambos conduzidos pelas mesmas leis imutáveis e controlados pelas mesmas forças da natureza” (BROWNE, 2007BROWNE, Janet. A origem das espécies de Darwin: uma biografia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007., p. 72). A ideia era muito apropriada para descrever a expansão econômica e para provar, com status de ciência (“o trunfo do liberalismo”), que “os homens não eram iguais” (HOBSBAWM, 1996HOBSBAWM, Eric. O mundo burguês. In: Idem. A era do capital, 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 321-347., p. 370).

Se na “luta pela vida” se distinguiam “os mais aptos” e, especialmente, a burguesia com o “monopólio de comando”, no contraponto desse auge glorificado era posta a classe trabalhadora, atrelada à produção fabril e aos salários insuficientes, vivendo em locais com elevada concentração populacional e condições sanitárias precárias. Nessa pobreza tomada como um traço de incapacidade, de inferioridade e de organismos enfraquecidos, se projetavam todas as ameaças que podiam rondar a burguesia e os seus valores: prostituição, agitações trabalhistas, corpos doentes. “A sociedade produzida pelo capitalismo liberal mostrava-se perigosa e instável”, escreveu Hobsbawm.5 5 Ibidem, p. 364. Cf. também FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. In: Idem. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 94.

À inquietação diante da potencialidade de sua força política - capaz de colocar em risco a organização do trabalho e a ordem pública - se associou, precisamente, o horror ao contágio de doenças que seriam postas em movimento pelos pobres e trabalhadores, tomados como um fator patogênico no “corpo social”, um termo expressando, em si, o desdobrar do referencial biológico para o campo da análise social. É desse modo que esse e aquele serão submetidos ao controle médico, com os seus organismos esquadrinhados e inspecionados, exemplificando teorias e demonstrando desvios (SCHWARCZ, 1993SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p. 200). Justificadas e absolvidas pelo saber e discurso científicos, práticas sobre a vida biológica se consubstanciariam em tecnologias políticas de ação sobre os pobres para “torná-los mais aptos ao trabalho e menos perigosos às classes mais ricas”.6 6 “...o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica”. Cf. FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social, op. cit., 1979, p. 79-80, 97.

Organiza-se, nesse processo, “um serviço autoritário, não de cuidados médicos, mas de controle médico da população”, que definirá a medicina como uma prática social, de acordo com o filósofo e historiador francês Michel Foucault.7 7 Ibidem, p. 85, 96. Com o olhar voltado especialmente para as mulheres e homens da massa trabalhadora que inquietavam a burguesia, essa medicina do século XIX se regulará pela noção de normalidade mais do que pela saúde:

...o olho médico deve ver o mal se expor e dispor diante dele à medida que penetra no corpo, avança por entre seus volumes, contorna ou levanta as massas e desce em sua profundidade. A doença não é mais um feixe de características disseminadas pela superfície do corpo e ligadas entre si por concomitâncias e sucessões estatísticas observáveis [como no século XVIII]; é um conjunto de formas e deformações, figuras, acidentes, elementos deslocados, destruídos ou modificados que se encadeiam uns com os outros, segundo uma geografia que se pode seguir passo a passo. Não é mais uma espécie patológica inserindo-se no corpo, onde é possível; é o próprio corpo tornando-se doente (FOUCAULT, 1977FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977., p. 155).

Esse olhar atento ao considerado desvio de padrão de funcionamento orgânico guiaria também os estudos do químico francês Louis Pasteur (1822-1895) que, por técnicas de cultura e semeadura e por microscópio, observou que determinadas bactérias poderiam ser a causa de doenças infecciosas, com capacidade para se difundirem e se propagarem. Nesse contexto, o foco do tratamento do corpo doente se voltou para o esforço de isolar “o agente do mal (...), fixando-o como organismo singular”, e iniciar, na sequência, uma estratégia de “intervenção imediata e de ataque voltado para [essa] invasão microbiana” apta a conter a ação transmissora e o campo de sua propagação (FOUCAULT, 1979FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. In: Idem. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 79-98., p. 119).

A possibilidade onipresente de surtos periódicos por multiplicação das bactérias patogênicas - como agentes infecciosos invisíveis que se esgueiravam pelas cidades sem que pudessem ser pressentidos - se adequava bem ao medo das agitações das classes mais pobres. Os corpos e os espaços públicos serão, assim, “revisitados pela microbiologia impulsionada pelas pesquisas de Pasteur” (SOUZA, 2013SOUZA, Ricardo Abussafy de. O lixo e a conduta humana: gestão dos insuportáveis na vida urbana. Tese, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), Assis, 2013., p. 42) e postos sob o poder de intervenção dos médicos, que assumirão autoridade suficiente para a tomada de decisões afetando instituições, bairros e cidades. É nesse momento que nasce, segundo Foucault,

...o mito de uma profissão médica nacionalizada, organizada à maneira do clero e investida ao nível da saúde e do corpo de poderes semelhantes aos que esse exercia sobre as almas; mito de um desaparecimento total da doença em uma sociedade sem distúrbios e sem paixões, restituída à sua saúde de origem. (...) Os dois sonhos são isomorfos: um, narrando de maneira positiva a medicalização rigorosa, militante e dogmática da sociedade por uma conversão quase religiosa, e a implantação de um clero da terapêutica; o outro, relatando essa mesma medicalização, mas de modo triunfante e negativo, isto é, a volatilização da doença em um meio corrigido, organizado e incessantemente vigiado, em que, finalmente, a própria medicina desapareceria com seu objeto e sua razão de ser (FOUCAULT, 1977FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977., p. 35).

Na confluência sugerida por Foucault de investidura de poder e de projeção de “um meio corrigido, organizado e incessantemente vigiado” para o ponto central que era o médico, se expressava a autoridade e o prestígio que lhe eram atribuídos e que o elevavam à figura pública habilitada a intervir nas realidades e a modificá-las. Formado nesse meio e imbuído da mesma pretensão de conversão (de corpos e de almas), Liengme seguiu para Moçambique em 1891.

“Um jovem médico chegando na África”

A viagem confirmava a superioridade da “civilização europeia”, pois reiterava o “espírito civilizador” que lhe era próprio, tal como presumido pelo francês Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882) no seu Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, publicado entre 1853 e 1855.8 8 GOBINEAU, Joseph Arthur de. Essai sur l’inégalité des races humaines. Paris: Librairie de Firmin-Didot et Cie., [1854] 1884. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k650519/f8.item. Acesso em: 9 jan. 18. Nesse percurso, a medicina renovava e ampliava o seu campo de intervenção e de disciplina, ao mesmo tempo em que reiterava “a inquestionável superioridade do burguês como espécie”, a que se referiu Eric Hobsbawm (HOBSBAWM, 1996HOBSBAWM, Eric. O mundo burguês. In: Idem. A era do capital, 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 321-347., p. 343).

Como um médico suíço vivendo em Moçambique no século XIX é possível que Georges Liengme se sentisse portador da “inteligência enérgica”, do “senso de utilidade”, de “uma perseverança que percebe os obstáculos e encontra, a longo prazo, os meios para removê-los” e do “extraordinário instinto de ordem - não só como garantia de descanso e paz, mas como um meio indispensável de preservação” - que Gobineau atribuía aos brancos, em seu texto (GOBINEAU, 1884GOBINEAU, Joseph Arthur de. Essai sur l’inégalité des races humaines. Paris: Librairie de Firmin-Didot et Cie., [1854] 1884. [1854], p. 76, 216-217, 352). “Um jovem médico chegando na África, com o objetivo de cuidar da população nativa”, dizia Liengme, “não demora a se ver embaraçado pelos casos que se lhe apresentam e que são tão difíceis de diagnosticar que ele se vê obrigado a recorrer, com frequência, à medicina veterinária”:

Mesmo conhecendo o idioma dos nativos, não é fácil obter deles as informações que podem esclarecer o médico. Eles acreditam tê-lo satisfeito ao lhe indicar o ponto doente ou ao lhe dizer que há “uma cabeça”, “um olho”, que “dói dentro”. Um negro não sabe que tem um órgão até que a doença o revele (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 180-181).

A essa dificuldade em estabelecer diagnósticos - etapa primordial na qual o médico interrogava e examinava o doente buscando a causa do incômodo e que determinava tanto o prognóstico quanto o tratamento -, Liengme acrescentaria o “entorno supersticioso e ignorante” com sua “população primitiva” entregue à “miséria orgânica”, à “sujeira” e à “negligência” (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 184-186, 188). Nada parecia, entretanto, impedi-lo. O seu olhar clínico, aguçado e diligente, transpunha a barreira da comunicação e ele se via capaz de realizar cirurgias sob árvores, a quilômetros de uma “sala de operação ricamente montada”:

Operar um doente debaixo de uma árvore e no meio de um grupo de pagãos que não cessa de se espantar, cloroformizar com a ajuda de um menino negro que há de segurar uma pinça hemostática, limpar... há um charme em tudo isso que não se encontra em uma sala de operação ricamente montada. Como recipiente, me sirvo de um pote grosseiro de argila, usado diariamente pelos nativos, ou de uma cabaça: nada de mesa de operação, de assento... tudo é feito no chão (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 182).

Na expressividade de sua descrição, Liengme estruturava a cena segundo a energia resoluta de sua presença. Era ele quem conduzia e atribuía lucidez ao encadeamento dos atos como um feito glorioso. A retórica em seu “tom autocongrulatório” exprimia o esforço de reconstituir a experiência nos seus termos próprios, mas não só: em todo o trecho sobressai o impulso em transmitir concretude ao vivido e o anseio em definir os limites de seu contorno, circunscrevê-lo para apresentá-lo como algo já apropriado (PRATT, 1999PRATT, Mary Louise. Do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador. In: Idem. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1999, p. 339-377., p. 348).

Nesse gênero narrativo que a literata americana Mary Louise Pratt designou como “monarca-de-tudo-o-que-vejo”, aquele que escrevia não apenas se colocava na qualidade de personagem principal e se empenhava em captar a imaginação do leitor como o fazia se vinculando aos outros “interesses em jogo”: “como os exploradores vieram a notar, rios de dinheiro e prestígio dependiam do crédito que conseguissem fazer com que outros lhe atribuíssem” (PRATT, 1999PRATT, Mary Louise. Do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador. In: Idem. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1999, p. 339-377., p. 339-343).

Assim, não é fortuitamente que Liengme concluía o seu texto - havia, em sua súplica missionária final, outros acréscimos à precariedade da cena sob a árvore, na qual as “deficiências estéticas suger[ia]m uma necessidade de intervenção social e material pela cultura da base do explorador” (PRATT, 1999PRATT, Mary Louise. Do Vitória Nyanza ao Sheraton San Salvador. In: Idem. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1999, p. 339-377., p. 345):

...é tempo de terminar. Eu gostaria de falar ainda dos casos de sífilis, tumores de diversas naturezas, ferimentos, mordidas de cobras, varíola etc. etc... que eu observei. A minha lista é suficientemente longa. Gosto de acreditar que ela é capaz não só de despertar a curiosidade dos meus leitores, mas de fazer nascer em seus corações uma compaixão sincera em relação aos doentes que não têm ao alcance de si os múltiplos meios de cura, como acontece entre nós. Os doentes africanos merecem que os homens da arte [médica] se ocupem deles. Cabe aos amigos da humanidade sofrida, aos governos, às sociedades missionárias enviar-lhes médicos prontos para colocar os seus conhecimentos ao serviço da causa mais nobre (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 190-191).

Essa posição de fonte única de cura para as populações africanas reivindicada para si (e para aqueles porventura enviados pelos “amigos da humanidade sofrida, governos e sociedades missionárias”) não surge, entretanto, apenas na referência à cirurgia e na conclusão do artigo apresentado à Sociedade de Geografia de Neuchâtel. Ela perpassa o texto e acompanha de perto as grandes associações de doenças diagnosticadas pelo autor, ainda que Liengme simulasse reconhecer a “medicina nativa”, atribuindo-lhe alguma dimensão “racional” (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 181-190). Desse modo,

...algumas pessoas, muitas vezes mulheres, são famosas por sua ciência; elas tratam por meio de plantas, raízes, folhas etc. Para cada órgão, ou melhor, para cada manifestação mórbida, há um ou mais medicamentos. Os purgativos integram a primeira categoria; há os vomitivos, os hemostáticos, os afrodisíacos (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 181-182).

Sem ter estudado esses “remédios nativos”, Liengme observou que, “sem dúvida, mais de um poderia ser útil”, mas, “no geral, o tratamento de um nativo é ineficaz, quando não prejudicial” (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 182, 189). Aqui, a projeção máxima da autoridade suposta e atrelada à sua condição de médico - ele não precisava se aprofundar na “medicina nativa”, pois a própria existência de doenças, sempre mais e mais agravadas, “numerosas” e “frequentes” (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 180, 183-186, 188-189) indicaria a ineficácia do conhecimento africano. O pressuposto de “um desaparecimento total da doença em uma sociedade sem distúrbios e sem paixões” - “a volatilização da doença em um meio corrigido, organizado e incessantemente vigiado” -, de que falava Foucault, havia feito a sua viagem com Liengme.

Códigos de tradução e alteridade em campos de cura

Conjugadas às passagens sobre a “medicina nativa” existem igualmente, no texto, referenciais às concepções que essas populações desenvolveram sobre as doenças e que Liengme, aspirando tornar-se o “monarca-de-tudo-o-que-vejo”, destacou com certos contornos para desqualificar (e projetar um domínio) uma vez mais.

“Os médicos nativos não são tão exigentes”, dizia por referência à própria recusa em tratar os doentes sem examiná-los clinicamente, para observar a seguir:

eles interrogam os seus ossículos e, na maioria das vezes, atribuem as doenças aos malefícios; esses são espíritos que perseguem e atormentam o doente e, assim, é também por meio de sortilégios, amuletos, sacrifícios aos antepassados que ele encontrará a cura. Essas ideias estão tão profundamente enraizadas entre os nativos que, para eles, um médico é um homem que tem relações com os espíritos, podendo frustrar ou afastar a sua má influência. Não é, por isso, surpreendente que muitos dos meus doentes se dirijam a mim para descobrir qual é o espírito que os persegue e o que fazer para mantê-los afastados (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 181).

(...)

as afecções do sistema nervoso são difíceis de serem estudadas entre os negros. Na maioria das vezes, elas são atribuídas às influências ocultas: os “Chikwembo” (deuses) do doente se estabeleceram no seu corpo e o atormentam. Isso pode ser também por demônios que, em certos momentos, manifestam a sua presença por expressões que agitam e perturbam o doente (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 183).

(...)

o próprio Gungunhana, durante uma visita que o fiz em julho de 1892, me perguntou se eu curava pessoas afetadas com “rihouhé” [rihuhé9 9 SITOE, Bento. Dicionário changana-português. Maputo: Texto Editores, 2011, p. 292. ] (demência, loucura). De acordo com as ideias de negro, o médico deveria, de imediato, perseguir o mal, que não é senão a presença no corpo de um ou mais espíritos (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 184).

É possível que, em Liengme, o interrogar “ossículos” tanto quanto o atribuir as doenças aos espíritos com poder para perseguir e atormentar provocasse uma sensação de estranheza incômoda. Na relação médico-paciente, as questões deveriam ser feitas ao doente que, autorizado a escapar temporariamente de uma passividade exigida, buscava exprimir de forma considerada precária o incômodo que sentia até ao ponto do exame clínico precisar os sintomas (FOUCAULT, 1977FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977., p. 80). Nesse contato, o circuito se vinculava e se desdobrava no conhecimento médico que atribuía inteligibilidade (por lógica operatória) aos sinais corporais manifestos dentro das estruturas patológicas admissíveis.

Empregar outro suporte de sinais que não o corpo e remeter a causa (bem como a cura) a algo externo contrastava com a gramática clínica de Liengme, apoiada no poder de intervenção e de controle diretos sobre o indivíduo. A repercussão desse deslocamento de si (por conexões outras que se desprendiam do seu olhar) surge na forma com que Liengme converteu o que lhe foi comunicado, buscando na religião (e não na superioridade que o século XIX atribuiu à ciência médica) os termos para a sua tradução: as influências são ocultas - de deuses ou demônios (tão caros à teologia missionária) - e é preciso, sobretudo, “perseguir o mal, que não é senão a presença no corpo de um ou mais espíritos”. Tratando-se, afinal, da velha luta contra o mal, Liengme podia observá-la com distanciamento (e certo reconforto) - essas eram ideias enraizadas nos outros - enquanto voltava a interrogar os seus pacientes e a emitir os seus diagnósticos.

É certo que a medicina há muito se encontrava impregnada pelo acento sobre o mal - em francês, o vocábulo correspondente à doença é maladie (de “male habitus” e “mal” bíblico confundidos por diversas vezes) -, mas ao passo que a ciência aspirava aos mecanismos racionais de tratamento, o combate [ou perseguição] atravessava os séculos sem fim. Aqui, nesse campo de incertezas infinitas, Liengme descansava e enquadrava o que observava e, ainda assim, algo lhe escapava. Porque se, para ele, o mal devia ser isolado e eliminado (como tudo o que induzia à desordem na sociedade burguesa, onde a penicilina emergirá sob o princípio pasteuriano de extinguir o agente capaz de suscitar desarranjos nos organismos), o mesmo não parecia se passar entre as populações africanas que observava.

Segundo a antropóloga moçambicana Alcinda Honwana, que estudou as concepções de doença e de cura na região do atual sul de Moçambique onde esteve Liengme, havia enfermidades, como a tosse e as dores de cabeça e de estômago, que eram julgadas passageiras e atribuídas às causas objetivas (frio, alimentação...). Nesse caso, “se um indivíduo tem uma dessas doenças, mas tudo o mais na sua vida está bem e em equilíbrio, a doença não é considerada complexa nem uma ameaça, sendo relativamente fácil de curar” (HONWANA, 2003HONWANA, Alcinda Manuel. Espíritos vivos, tradições modernas: possessão de espíritos e reintegração pós-guerra no sul de Moçambique. Lisboa: Ela por Ela, 2003., p. 210).

Uma vez, entretanto, que a indisposição persevera “e afeta a vida do indivíduo, considera-se que é grave e que constitui uma ameaça, não só à vida da pessoa como à da família e parentes”. (HONWANA, 2003HONWANA, Alcinda Manuel. Espíritos vivos, tradições modernas: possessão de espíritos e reintegração pós-guerra no sul de Moçambique. Lisboa: Ela por Ela, 2003., p. 210) E isso porque o prolongar, conjugado às demais perturbações e sofrimentos, elevava a doença à posição de sinal visível de um desequilíbrio na relação de interdependência entre os seres humanos e os espíritos daqueles que, a despeito da morte, conservavam a consciência de si, tal qual a condição de manifestação de seu poder, personalidade e conhecimento de quando vivos.10 10 Ibidem, p. 53, 224-240, 265-266. Cf. também MENESES, Maria Paula. Maciane F. Zimba e Carolina J. Tamele. Médicos tradicionais, dirigentes da Associação de Médicos Tradicionais. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). As vozes do mundo: reinventar a emancipação social - para novos manifestos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 406.

Nesse ponto, a doença se sobressaía não como uma manifestação puramente fisiológica (restrita ao funcionamento físico-químico corpóreo e à ideia de um mal que, por contraste à noção de saúde, espreitava organismos vulneráveis) como para Liengme, mas como uma expressão possível de vínculos que existiam não por oposição ao corpo e, sim, por associação a ele, referindo-se aos movimentos incessantes de ajustes e de recomposição, sem que houvesse a pretensão de sustá-los ou de eliminá-los em definitivo.

A partir desse princípio de uma existência que se reorganizava sem se deixar extinguir, o mal (como traduziu Liengme) não devia ser, propriamente, perseguido porque o mesmo espírito que provocava uma doença (entendida nessa intersecção entre os mundos dos vivos e dos ancestrais como uma censura por práticas e comportamentos tomados sob o aspecto de transgressão social) era capaz de propiciar saúde e proteção e de garanti-las (nos contextos de conformação às prescrições estabelecidas). Os espíritos “podem ser simultaneamente generosos e maus” e se asseguram a “fertilidade da terra e das mulheres, dão saúde e riqueza”, têm poder, igualmente, para induzir “à doença e à pobreza”, observou Alcinda.11 11 HONWANA, Alcinda Manuel. Espíritos vivos, tradições modernas..., op. cit., 2003, p. 54, 208-211, 233, 228, MENESES, Maria Paula. Maciane F. Zimba e Carolina J. Tamele, op. cit., 2009, p. 444-445.

Na referência de Liengme aos espíritos que exerciam uma “influência oculta”, algo do que se lhe comunicou sobre essa capacidade ambivalente que guardavam em si (de proporcionarem tanto sofrimento quanto vitalidade) foi por ele retida e introduzida no texto porque também os “‘Chikwembo’ (deuses) do doente” podiam se instalar no seu corpo e o atormentar, segundo o texto (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 183). Não obstante, a origem de doenças destrutivas e perigosas (envolvendo diferentes dimensões da vida humana) nem sempre estava relacionada aos espíritos dos antepassados: se algumas podiam remeter aos conflitos e competições interpessoais, implicando no “ataque ao bem-estar de uma pessoa por outra”, havia aquelas que se vinculavam à “manipulação não intencional das condições ecológicas ou ambientais”, como Alcinda constatou:

...as condições ecológicas podem causar doenças, em virtude de existir uma relação especial entre os indivíduos e o meio ambiente. (...) Crê-se que os seres humanos podem tornar o meio ambiente perigoso ao depositarem substâncias nocivas que podem trazer doenças ou desgraça aos que por lá passam. Também pode ser poluído por elementos de doenças que, segundo se crê, terão sido libertados pelos corpos dos doentes e lançados no meio ambiente (HONWANA, 2003HONWANA, Alcinda Manuel. Espíritos vivos, tradições modernas: possessão de espíritos e reintegração pós-guerra no sul de Moçambique. Lisboa: Ela por Ela, 2003., p. 211-213).

Para se conhecer, com precisão, a causa de uma doença era preciso consultar aqueles que, nas palavras de Liengme, “interrogam os seus ossículos” - partes diminutas “de animais domésticos, como cabras e ovelhas, de animais selvagens, como leões, porcos do mato e hienas, assim como conchas”12 12 Ibidem, p. 215; MENESES, Maria Paula. Maciane F. Zimba e Carolina J. Tamele..., op. cit., 2009, p. 411. -, lançando-as sobre uma esteira e as interpretando segundo a posição em que caíam.

Ainda de acordo com Alcinda Honwana, essa leitura identificava as “áreas de instabilidade” na vida do doente, mas, sendo os sinais muito vagos para a definição de um diagnóstico, aquele que se encontrava enfermo devia guiar e confirmar (ou não) cada sugestão na exploração de sua história, passando por vínculos e alianças sociais e por relações presentes e passadas. Nesse processo “exploratório variável e sem fórmula fixa”, “refeito e recriado em cada sessão particular”, se estabelecia uma conexão e um sentido de continuidade entre os diferentes tempos, da mesma forma que o doente, chamado a examinar também os seus símbolos, interagia não somente com quem jogava as peças, mas com a racionalidade e a argumentação que compartilhavam e sobre as quais se encontravam apoiadas as ações sociais (HONWANA, 2003HONWANA, Alcinda Manuel. Espíritos vivos, tradições modernas: possessão de espíritos e reintegração pós-guerra no sul de Moçambique. Lisboa: Ela por Ela, 2003., p. 207-208, 229-233, 240-241).

Assim, não se aplicava, aqui, o dualismo entre “doença subjetiva - a perspectiva do doente - e ‘doença confirmada’ - a perspectiva do médico” (HONWANA, 2003HONWANA, Alcinda Manuel. Espíritos vivos, tradições modernas: possessão de espíritos e reintegração pós-guerra no sul de Moçambique. Lisboa: Ela por Ela, 2003., p. 234), tão característico da medicina praticada por Liengme. O tratamento, bem como o diagnóstico, emergia dessa ação recíproca que visava, especialmente, à resolução dos conflitos associados à dimensionalidade social do espírito em desequilíbrio, transpondo, dessa forma, as linhas do desconforto físico (HONWANA, 2003HONWANA, Alcinda Manuel. Espíritos vivos, tradições modernas: possessão de espíritos e reintegração pós-guerra no sul de Moçambique. Lisboa: Ela por Ela, 2003., p. 211). Tanto o corpo do doente quanto o princípio espiritual a ele unido deviam experienciar a intervenção terapêutica específica determinada na sessão e constituída por um conhecimento de farmacopeia ervanária (composta de elementos vegetais como raízes, caules e seivas de plantas) pleno de dimensão simbólica, tais quais as precauções que o doente devia observar durante o tratamento.13 13 Ibidem, p. 221-227; MENESES, Maria Paula. Maciane F. Zimba e Carolina J. Tamele..., op. cit., 2009, p. 414-416.

Atrelado à própria cura, o doente podia, então, corrigir o que era tomado como desvio e gerador da enfermidade, restabelecendo a plenitude de seu fluxo de vida e, da mesma maneira, o princípio vital do espírito nele acolhido. Essa proposição de potencialidade máxima do curso de toda existência e manifestação sensível alargava a aplicabilidade terapêutica para além do corpo enfermo. Liengme contava - com o tom de quem buscava despertar a curiosidade de seus leitores - que,

...um dia, um ferreiro me pediu “a medicina do fuzil”, ou seja, aquela que faz com que o atirador nunca erre a mira. “- Os seus médicos têm uma?”, perguntei. “- Certamente. Quando querem que o fuzil atire bem, eles o passam por uma chama, rapidamente, e cospem no tambor, friccionando-o ao mesmo tempo em que pronunciam certas palavras”. Essas explicações foram acompanhadas de uma mímica muito expressiva e séria. O meu ferreiro estava convencido de que os brancos tinham um remédio muito bom para tiros certeiros (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 181).

Nessa narrativa que singularizava com acento de ironia e intenção de provocar riso14 14 “Os catarros intestinais, as cólicas e a constipação integram a agenda diária do médico. E nada é mais divertido do que ouvir um negro descrever, com gestos e onomatopeias, o que acontece na sua barriga. Ele atribui todos esses males às serpentes que cantam, mordem e se movimentam, segundo as dores sentidas pelo doente. É inútil discutir com um nativo - mesmo o mais inteligente está convencido de que se trata sempre de ‘tinyoka’ (serpentes)”. Ibidem, p. 189 (tradução da autora). Pelo conceito de nyoka, tida como uma guardiã da pureza corporal por toda a vida - “as pessoas nascem com uma nyoka, que permanece no corpo até a morte” -, relacionavam-se os “diferentes níveis de abstração” associados à causalidade dos desequilíbrios mencionados por Liengme. Sendo capaz de “se mover para cima e para baixo entre a área do coração e do abdômen”, a existência da nyoka era confirmada por sensações físicas como cólicas e contrações nos momentos em que, perturbada pelo acúmulo de impurezas adquiridas por contaminação, induzia à sua eliminação por meio de diarreias. A essa poluição corporal podiam ser combinadas razões imediatas (comida ou água impróprias, por exemplo) e outras, subjacentes, que a tomavam como expressão de vínculos com práticas e comportamentos observados sob o aspecto de transgressão normativa. GREEN, Edward C.; JURG, Annemarie; DJEDJE, Armando. The snake in the stomach: child diarrhea in Central Mozambique. Medical Anthropology Quarterly, vol. 8, n. 1, Nova Jersey: Wiley; Arlington: American Anthropological Association, mar. de 1994, p. 4-24. ISSN 1548-1387. Disponível em https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/pdf/10.1525/maq.1994.8.1.02a00020. Acesso em: 28 mai. 2018. DOI: https://doi.org/10.1525/maq.1994.8.1.02a00020. Para a incidência da diarreia em processos de contaminação, mediados por ruptura de normas e atrelados a mecanismos e práticas de purificação, conferir também SANTOS, Gabriela Aparecida dos. “Lança presa ao chão”: guerreiros, redes de poder e a construção de Gaza (travessias entre a África do Sul, Moçambique, Suazilândia e Zimbábue, século XIX). Tese, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2017, p. 169-200 e, ainda, a referência ao i-Zembe no presente artigo. repousava o incômodo de Liengme com os enunciados de formação, de construção, de flexão e de expressão sociais que não dominava. “Eles acreditam tê-lo satisfeito ao lhe indicar o ponto doente ou ao lhe dizer que há ‘uma cabeça’, ‘um olho’, que ‘dói dentro’” - dizia com inflexão atônita sobre as informações passadas ao médico e, no entanto, era a ele que faltavam os signos convencionados para decodificar o que era comunicado (o local dolorido como um sinal também indicativo, e variável ao longo do tempo, do âmbito afetado na vida do indivíduo), tais quais os termos de ação recíproca no processo de interpretação que atribuíam sentido à aproximação e a aprofundavam. Liengme confirmou ter recebido explicações sobre os “espíritos que perseguem e atormentam”, as “influências ocultas” e a “medicina de fuzil”, mas o código que lhe forneciam escapava à sua racionalidade material e agregava toda existência, assim como cada corpo, a uma dimensão amplificada que tornava difícil para ele encerrá-los nos limites do olhar clínico burguês.

No seu enquadramento, cada expressão era reduzida, por isso, à manifestação do “meio pagão”, “supersticioso e ignorante”, como uma insígnia da “população primitiva” que o habitava. A ela, Liengme associou ainda a prognose de pouca resistência à dor e o temperamento impressionável, “a se assustar e a gritar antes mesmo que lhe faça mal” (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 182-187). Todos esses traços, emergindo de escritos de missionários e exploradores do século XIX, integrariam, como observou o filósofo congolês Valentin-Yves Mudimbe, “a série de oposições e de níveis de classificação dos seres humanos exigidos pela lógica da cadeia do ser e pelas fases de evolução e desenvolvimento social” (MUDIMBE, 2013MUDIMBE, Valentin-Yves. A invenção de África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Mangualde: Edições Pedago / Luanda: Edições Mulemba, Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, 2013., p. 29).

Conexões de sentido para a disciplinarização de mentes e de corpos

Nessa “lógica da cadeia do ser”, o homem africano de Liengme se encontrava sobretudo enfermo (em um estado mais grave do que aquele que as classes trabalhadoras e mais pobres da Europa estiveram um dia), sofrendo com “escrófulas”, “necroses”, “hemorragias”, “úlceras”, “pus fétido e abundante” e “urinas com sangue” e, especialmente, com afecções do sistema nervoso (“crises nervosas”, “loucura” e “epilepsia” iniciavam a apresentação das patologias) tanto quanto pela cegueira:

...estou certo em supor que mais da metade da população nativa sofre de uma ou de outra afecção ocular, como ceratite, conjuntivite, irite, pterígeo e catarata senil. O número dos que são totalmente cegos é muito grande; e ainda maior o daqueles que enxergam com apenas um dos olhos. As ceratites ocupam o primeiro lugar e deixam manchas permanentes que obscurecem completa ou parcialmente o campo visual (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 188, 191).

Particularmente perturbadas por doenças que confluíam no comprometimento da lucidez, eram essas as pessoas que esperavam a “compaixão sincera” dos “amigos da humanidade sofrida”, dos “governos” e das “sociedades missionárias” porque os tratamentos que possuíam, como mencionado, “são ineficazes, quando não prejudiciais” (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 189-191) - “cientificamente, não há nada a aprender com ‘eles’, exceto se já for ‘nosso’ ou surgir de ‘nós’”, como nos fala Mudimbe (MUDIMBE, 2013MUDIMBE, Valentin-Yves. A invenção de África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Mangualde: Edições Pedago / Luanda: Edições Mulemba, Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, 2013., p. 32). É nessa alteridade, com seu anseio em desacreditar e inabilitar o outro, que Liengme fixará a possibilidade e a justificativa para a sua presença e intervenção, pois “uma tese evolucionista”, diz ainda Mudimbe,

...expressa a conversão da selvageria e da escuridão de Satanás na luz da civilização e do reino de Deus. A transformação é, por vezes, descrita como uma introdução ou recuperação da saúde de um universo doente, o estabelecimento da ordem num mundo de desordem, loucura, corrupção e ilusões diabólicas (MUDIMBE, 2013MUDIMBE, Valentin-Yves. A invenção de África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Mangualde: Edições Pedago / Luanda: Edições Mulemba, Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, 2013., p. 77).

Para a “recuperação da saúde de[sse] universo doente”, Liengme revelará um olhar muito atento aos referentes capazes de produzir “conexões de sentido” e “convergência de horizontes simbólicos” na comunicação com essas populações (MONTERO, 2006MONTERO, Paula (org.). Deus na aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006., p. 15-44). Há três diferentes conjuntos de recursos que mobilizará nesse âmbito: (I) fármacos, (II) cirurgias e (III) instrumentos médicos. Sobre o primeiro, as passagens são breves: Liengme afirma, ainda no início do texto, ter fornecido medicamentos para dores de cabeça, incômodos intestinais, queimaduras, feridas e apenas por mais uma vez fará referência às prescrições, sem especificar para qual uso (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 181, 184). A respeito das cirurgias, os registros são mais demorados - além daquele sob a árvore e “no meio de um grupo de pagãos que não cessa de se espantar” (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 182) sucede outro, especificamente no tocante às “doenças dos olhos”:

Qualquer que seja [a razão para tamanha incidência de afecções oculares nessa região], estou surpreso em me deparar com tantos jovens sofrendo já um princípio de opacificação do cristalino. E um negro não percebe o problema até que tenha deixado de reconhecer caminhos ou pessoas. Desnecessário mencionar o fato de que a operação de catarata é para o nativo algo maravilhoso. Ele não consegue compreender como um homem com “olhos mortos” possa recuperar a visão. É por isso que as operações de cataratas que fiz os enchem de admiração (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 188).

Quanto aos instrumentos médicos, novamente a descrição em dois episódios, envolvendo a utilização de ventosas e de alicates cirúrgicos:

No combate dessas afecções reumáticas, tal como as das vias respiratórias, o principal tratamento dos nativos é a ventosa escarificada. Aquele que a aplica se serve de uma faca primitiva cuja ponta é bem afiada; ele faz algumas incisões (em três linhas paralelas) na área doente, sobre a qual posiciona a extremidade aberta de um chifre, enquanto, por sua ponta perfurada, o aspira com força. Com esse procedimento, ele consegue extrair uma pequena quantidade de sangue. É esse sangue a sede do mal, esteja ele “parado” ou “a correr pelo corpo”. Constantemente, encontro nativos com marcas de semelhantes escarificações. Mais de um já veio me pedir para lhe fazer aplicação de ventosas; o método e os instrumentos que eu emprego provocam sempre o maior espanto (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 185-186).

Com frequência, aqueles que vêm de longe para arrancar um dente voltam para as suas casas sem terem tido a coragem necessária para a extração. É verdade que os nativos que executam essas operações não a fazem sem antes causarem vivos e longos sofrimentos aos seus pacientes, pois remexem o dente doente até que o possam deslocar e introduzir entre as raízes um instrumento que lhes sirva de alavanca. Assim, os meus alicates fazem maravilhas; eles me têm valido uma reputação que me traz, às vezes, clientes de muito longe (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 187).

Nessas referências às cirurgias e aos instrumentos médicos, uma construção discursiva se repetia: a ênfase às expressões que destacavam reações de surpresa e de estupefato diante do que se revelava digno de apreciação e que era, ao mesmo tempo, inesperado e surpreendente. Esse realce acompanhava o desenvolvimento da descrição patológica a certa distância, observava quando nada mais podia ser feito pelo doente, ou o que existia lhe causava um sofrimento profundo, para se expor somente como o ato final a provocar o “espanto” e a “admiração” de “algo maravilhoso”, eternizado pela “reputação” consequente. Sentimentos semelhantes acompanham, quase sempre, a própria reversão da doença, situada entre as linhas do compreensível e do incomensurável que formam o horizonte simbólico da cura, e é para essa posição que Liengme buscava se mover ao se vincular aos recursos que apresentava - ventosas, alicates cirúrgicos, pinças hemostáticas, cirurgias - em traços de prodígio e de fascínio.

Na forma como estão dispostos no texto, esses referentes assumem uma dimensão dupla: agem direta, objetiva e racionalmente sobre o corpo (nos termos de Liengme) e dependem de uma habilidade pessoal para alcançarem a plenitude do seu desempenho. Semelhante ordenação o aproxima não exclusivamente da cura, mas da distinção que estabelece no texto entre “as pessoas, com frequência mulheres”, que tratam os doentes “por meio de plantas, raízes, folhas etc.”, e os que “interrogam os ossículos” e que são efetivamente chamados de “médicos” por Liengme, ou ainda (como um sinônimo), de “feiticeiros”.

A marcação de gênero não é acidental: estando o “sujeito soberano” civilizacional apoiado nessa “construção ideológica” (SPIVAK, 2010SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010., p. 19, 66-67), a figura da mulher será indubitavelmente associada a uma prática que, na percepção de Liengme, figurava relativamente mais limitada e circunscrita (como os medicamentos prescritos para dores de cabeça, incômodos intestinais, queimaduras, feridas, vagamente indicados no texto) do que aquela pessoal, amplificada, capaz de “interrogar ossículos” e de revelar o que estava oculto, transformando a imagem latente em imagem visível estável, como a cirurgia dos olhos, a resgatar existências para a lucidez luminosa da civilização europeia.

O empenho para se transfigurar nesse significante associado aos poderes excepcionais (manipulando ventosas, pinças hemostáticas, alicates cirúrgicos como peças em ritos sagrados de cura) confluía para a busca de ascendência que Liengme identificava como lhe sendo decorrente e atrelado aos múltiplos sistemas de referência fornecidos pelas populações com as quais mantinha contato. Uma ascendência a lhe servir de base e, entretanto, a ser sobreposta por aquela a fluir da preeminência suposta de toda presença ajustada à razão civilizacional.

Liengme se mantinha atento a quem recorriam os doentes da área em que se encontrava - se “aos seus próprios médicos ou feiticeiros” ou “a mim” - e quando expressava certa insegurança em relação à escolha constante pelos primeiros essa era uma inquietação contingente [e não somente pelo espanto e pela admiração de seus instrumentos cirúrgicos, mas] porque “no momento em que se convencem de que algo está ‘além’ dos seus médicos, eles tentam a medicina do ‘moloungo’ [mulungu] (branco)”.15 15 No original: “...la médecine du ‘moloungo’ (Blanc)...”. LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale..., op. cit., 1895, p. 182 (tradução da autora). Cf. também SITOE, Bento. Dicionário changana-português, op. cit., 2011, p. 188.

Há, nessa invocação de primazia, o anseio de Liengme em assegurar para si um “poder simbólico” que, na análise sugerida pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, é capaz de “constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, (...) [de] obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, [que] só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário” (BOURDIEU, 1998BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998., p. 14). Esse “poder simbólico”, como almejado, conciliava bem o princípio evolucionista racista àquela centralidade que o paradigma de civilização do século XIX havia atribuído ao médico, em termos de ação e de controle diretos sobre o indivíduo.

Assim, é significativo que, além de remédios, cirurgias, pinças e alicates, Liengme tenha incluído, igualmente, o “hipnotismo” como instrumento terapêutico (e exatamente no ponto em que tratou das “afecções do sistema nervoso”, ligadas às “influências ocultas” de “deuses” ou “demônios”):

...uma raiva, um golpe, uma tristeza, o contato com um objeto, podem produzir crises que são atribuídas aos “Chikwembo”, mas que não passam de crises nervosas, muitas vezes de natureza histérica. (...) Em alguns casos, experimentei o hipnotismo no tratamento de doenças nervosas, como histeria, nevralgias, reumatismos etc. Muitos aceitaram com confiança esse tratamento que, em suma, não os surpreendeu tanto quanto se poderia supor. É verdade que eu me preocupo em apresentá-lo como um tratamento que não tem nada de extraordinário (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 183).

No artigo, Liengme não explicou o que entendia por “hipnotismo” - o ato de induzir à hipnose16 16 “Hipnose: termo derivado do grego hypnos (sono) e sistematizado, entre 1870 e 1878, para designar um estado alterado de consciência (sonambulismo ou estado hipnóide) provocado pela sugestão de uma pessoa em outra. Hipnotismo foi um termo cunhado em 1843 pelo médico escocês James Braid (1795-1860) para definir o conjunto das técnicas que permitiam provocar um estado de hipnose num sujeito, com finalidades terapêuticas. A sugestão se dava, nesse caso, entre um médico hipnotizador e um paciente hipnotizado. As duas palavras, hipnose e hipnotismo são frequentemente utilizadas na mesma acepção”. ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 335. (equiparada a uma condição mental na qual as ondas cerebrais da corrente psíquica se mantêm no limiar entre o sono e a vigília), que se consolidou como um método de intervenção clínica no final do século XVIII -, nem o procedimento de condução aplicado. Mas na tese de doutorado intitulada Contribution à l’étude de l’hypnotisme et de la suggestion thérapeutique [Contribuição ao estudo do hipnotismo e da sugestão terapêutica], que apresentou à Faculdade de Medicina da Universidade de Genebra, em 1890, ele afirmava se tratar de “um ramo das ciências médicas”, acrescentando ter adquirido a própria experiência nos dez anos em que “hipnotizou uma série de pessoas internadas em hospitais” suíços e “um número ainda maior na vida privada” da seguinte forma:

...com o doente sentado, dizemos: “- Para curá-lo, eu vou adormecê-lo; fixarei os meus olhos nos seus por um instante; você sentirá pesarem as suas pálpebras e a sua vista se perturbará; você deixará de me ver nitidamente e então sentirá como se algo se apoderasse de você; os seus olhos se fecharão e você dormirá profundamente, sentindo-se bem e muito calmo”. Na sequência, pegamos as suas mãos e as apertamos no ponto em que se encontra a base do polegar, observando o doente à certa distância. Com os olhos fixos no doente, nos aproximamos um pouco mais, aumentando ligeiramente a pressão nas mãos. Na maior parte dos casos, ao fim de alguns segundos (um ou dois minutos no máximo), os olhos do doente se tornam erráticos, as pálpebras baixam e então se fecham. Isso nem sempre é assim. Para alguns, se faz necessária a sugestão verbal; para outros, movimentos à frente dos olhos; e há também aqueles que devem receber uma ordem para dormirem. A prática, que é a melhor mentora, ensina um conjunto de pequenos meios adequados para reforçar a sugestão do sono (LIENGME, 1890LIENGME, Georges-Louis. Contribution à l’étude de l’hypnotisme et de la suggestion thérapeutique. Tese de doutorado, Faculté de Médecine de Genève, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1890., p. 7-16).

Ainda segundo a tese, “tendo o doente fechado os olhos espontaneamente ou em função de uma ordem”, uma ligeira pressão era feita sobre o seu globo ocular “por um período maior ou menor, dependendo do caso” (LIENGME, 1890LIENGME, Georges-Louis. Contribution à l’étude de l’hypnotisme et de la suggestion thérapeutique. Tese de doutorado, Faculté de Médecine de Genève, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1890., p. 17). Após alguns segundos em silêncio, ou uma segunda assertiva insistindo na condição de sono profundo, Liengme iniciava as sugestões hipnóticas, “declarando energicamente que ele [o doente] está curado e isto para sempre”; que “as dores não voltarão mais”; que “a partir de amanhã ele estará completamente curado como se nunca tivesse manifestado a doença”; ou que “estas dores não existem senão na sua imaginação, e desaparecerão” (LIENGME, 1890LIENGME, Georges-Louis. Contribution à l’étude de l’hypnotisme et de la suggestion thérapeutique. Tese de doutorado, Faculté de Médecine de Genève, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1890., p. 29, 43, 59, 82).

As induções variavam conforme o caso e a patologia, mas todas comportavam a crença de que o médico detinha o poder de “sugestão”, um termo que designava, no momento em que escrevia Liengme, “o meio psicológico” de “convencer um indivíduo de que suas crenças, suas opiniões ou suas sensações são falsas, e de que, inversamente, as que lhe são propostas são verdadeiras”.17 17 ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise, op. cit., 1998, p. 735. Cf. também JORGE, Marco Antônio Coutinho. Fundamentos da psicanálise, de Freud a Lacan, vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. Subjacente à proposição dessa influência - “suficientemente forte para entravar as manifestações patogênicas”,18 18 ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise, op. cit., 1998, p. 735-736. Cf. também FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico: curso dado no Collège de France (1973-1974). São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 371. como nas diferentes falas de Liengme - repousava a ideia “de um campo absolutamente aberto à pura vontade do médico” a “se precipitar e se assenhorear do doente” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico: curso dado no Collège de France (1973-1974). São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 370).

Assim, seguindo Foucault, “efeito disciplinar”, associado à dimensão sedativa da “ação hipnótica”, possibilidade de “modelagem e adestramento do comportamento” e de “domínio sobre o corpo do doente” - “determina[ndo] a contratura ou a paralisia de um músculo, (...) excita[ndo] ou anula[ndo] a sensibilidade na superfície do corpo, debilita[ndo] ou aviva[ndo] as faculdades intelectuais ou morais, (...) modifica[ndo] inclusive funções automáticas como a circulação, a respiração”, tais eram as dimensões da ação hipnótica que a levavam para além de uma técnica que se propunha a anular mal-estares e doenças (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico: curso dado no Collège de France (1973-1974). São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 371).

Esses aspectos aparecem no próprio texto de Liengme, precisamente na passagem em que, destacando “os muitos que aceitaram com confiança esse tratamento” e “a grande facilidade com que um negro é hipnotizado”, apresenta a hipnose [ou “hipnotismo”] como “um meio de cura” e também como um recurso capaz de induzir alguém a se tornar muito “dócil”, sempre que executado por “mãos prudentes e experientes”:

...entre os doentes que hipnotizei, há um caso que merece ser citado. Por ocasião da minha primeira estada em Antioka, em agosto de 1891, eu induzi ao sono, por diversas vezes, um homem de uns cinquenta anos, sofrendo com dores reumáticas muito fortes. Logo em seguida, eu me ausentei por vários meses. Quando retornei à Antioka, em setembro de 1892, o meu doente veio me fazer uma visita para me cumprimentar e, ao mesmo tempo, solicitar remédios para outro mal. Eu não fiz, absolutamente, menção ao tratamento antigo e ele também não. Em certo momento, eu pedi para que se deitasse, com o intuito de lhe apalpar o abdômen. Enquanto o examinava, notei que o seu braço direito se mantinha num relaxamento anormal, o que logo me fez supor que o meu paciente havia caído em sono hipnótico. Muito naturalmente, sem mudar o meu tom de voz, eu lhe disse: “- Assim mesmo! Dorme! Eu voltarei mais tarde”. Isso ocorreu em uma casa de palafita que se encontrava em construção, pois não havia outro lugar em que eu pudesse examinar o meu doente. Apesar do barulho produzido pelos trabalhadores, ele permaneceu em sono profundo, sempre na mesma posição, até eu lhe dar a ordem para que acordasse. Então, retomei a conversa no ponto em que havíamos parado, sem que ele manifestasse quaisquer suspeitas do que havia se sucedido. (...) Estou convencido de que o negro africano, ao menos aquele que conheci, poderia se tornar, entre mãos prudentes e experientes, um sujeito dos mais dóceis (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 183-184).

Por essa suspensão transitória de reações que viabilizava o acesso à mente (podendo induzir ao estado de docilidade, tão próximo ao de submissão), Liengme racionalizava a possibilidade de tocar e de agir sobre o imaterial da existência de cada ser - psique ou chikwembo -, aspirando a um efeito simbólico que ampliasse o seu poder de intervenção e, por extensão, de disciplina de corpos e de comportamentos. Insuflado por essa aspiração, habilitado a “monarca-de-tudo-o-que-vejo”, de “mãos prudentes e experientes” pela prática de prescrição de medicamentos, cirurgias, manipulação de instrumentos e hipnose “junto a uma população primitiva” (LIENGME, 1895LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale: quelques observations sur les maladies des indigènes des provinces de Lourenço Marques et de Gaza. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo VIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1895, p. 180-191., p. 184), é que Liengme chegou a Mandlakazi, a principal povoação de Gungunhana, o inkosi de Gaza.

Em Mandlakazi

Aí, Liengme viveu de 1893 a 1895 como “médico-missionário”, até ser forçado a deixar a região em definitivo, acusado pelas autoridades coloniais de Lourenço Marques de ter apoiado Gungunhana na guerra em que se enfrentaram os guerreiros do inkosi e as tropas do governo português, que projetava o domínio sobre o seu território.19 19 JUNOD, Henri A. Missionnaire. Couvet. 21 octobre 1896. Des causes de la rebellion dans le District de Lourenzo Marques. University of South Africa. Archives and Special Collections. Junod Archives. HA Junod Collection. 9.5. Mozambique (1894-1920); 2. Correspondance and historical notes (1894-1896). University of South Africa. Archives and Special Collections. Junod Archives. HA Junod Collection. 9.5. Mozambique (1894-1920); LIENGME, Georges-Louis. Un potentat africain: Goungounyane et son règne. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo XIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1901, p. 132-134. Cf. também ENNES, António. A guerra d’África em 1895: memórias. Lisboa: Typographia do “Dia”, 1898, p. 296-300, 393-394, 409, 532, NORONHA, Eduardo de. A rebelião dos indígenas em Lourenço Marques. Lisboa: M. Gomes, 1894; CAETANO, Marcelo. Campanhas de Moçambique em 1895: segundo os contemporâneos(as). Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1947, p. 98-100, 261-262, 358; SANTOS, Gabriela Aparecida dos. Reino de Gaza: o desafio português na ocupação do sul de Moçambique (1821-1897). São Paulo, 2007. Dissertação - Universidade de São Paulo [Reino de Gaza: o desafio português na ocupação do sul de Moçambique (1821-1897). São Paulo: Alameda Editorial, 2010]. Mas como alguém tão ligado à medicina disciplinar, definindo com precisão as linhas do “meio pagão”, “supersticioso e ignorante” no qual acreditava se encontrar, empenhado na “série de oposições e de níveis de classificação dos seres humanos exigidos pela lógica da cadeia do ser e pelas fases de evolução e desenvolvimento social” de que nos fala Mudimbe, poderia ficar ao lado de “um bêbado inveterado”, afeito às “numerosas orgias” e “cruel ao extremo” (LIENGME, 1901LIENGME, Georges-Louis. Un potentat africain: Goungounyane et son règne. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo XIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1901, p. 99-135., p. 102, 108), nas palavras que ele mesmo empregaria para descrever Gungunhana?

Em diferentes fontes documentais, constam as orientações que Liengme recebeu para que se retirasse de Mandlakazi na sequência do rompimento das relações entre o governo português e Gungunhana. E em todas, a sua firme decisão de ficar.20 20 JUNOD, Henri A. Missionnaire. Couvet. 21 octobre 1896. Des causes de la rebellion dans le District de Lourenzo Marques. University of South Africa. Archives and Special Collections. Junod Archives. HA Junod Collection. 9.5. Mozambique (1894-1920); LIENGME, Georges-Louis. Un potentat africain..., op. cit., 1901, p. 132-134; ENNES, António. A guerra d’África em 1895..., op. cit., 1898, p. 393-394, 409, 532; CAETANO, Marcelo. Campanhas de Moçambique em 1895..., op. cit., 1947, p. 98-100, 261-262.

De acordo com as memórias que escreveu sobre a sua experiência como “médico-missionário” na povoação do inkosi, publicada também no Boletim da Sociedade de Geografia de Neuchâtel, Liengme afirmou que “abandonar Mandlakazi” significava, para ele, “perder todos os frutos de nosso trabalho missionário” (LIENGME, 1901LIENGME, Georges-Louis. Un potentat africain: Goungounyane et son règne. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo XIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1901, p. 99-135., p. 130). O texto foi apresentado às autoridades portuguesas como um recurso de defesa e, nesse enquadramento, por “frutos” Liengme pretendia, certamente, fazer uma autodeclaração dos esforços civilizatórios empreendidos. Considerando, no entanto, a sentença final de expulsão, o seu escrito deve ter parecido muito pouco convincente em relação ao que pretendia ter acumulado como “trabalho missionário” até o fim da guerra, em 1895.

Houve, nesse ínterim, outra acusação que Liengme, igualmente, teve que responder - não às autoridades portuguesas e sim ao próprio Conselho da Missão, em Lausane (na Suíça): a de “tentar impressionar Gungunhana, se apresentando como mestre da vida e da morte por meio do efeito de seus remédios poderosos” (BUTSELAAR, 1984BUTSELAAR, Jan van. Africains, missionnaires et colonialistes: les origines de l’Église Presbytérienne du Mozambique (Mission Suisse), 1880-1896. Leiden: E. J. Brill, 1984., p. 105). Era justamente entre “a vida e a morte” que se encontravam os guerreiros do inkosi que Liengme viu chegarem a Mandlakazi, após a última das batalhas com as tropas portuguesas, em novembro de 1895. Ele já os tinha observado enquanto se preparavam para a guerra algumas semanas antes, vindos de vários pontos do território de Gungunhana “para receberem as instruções e serem aspergidos com um medicamento destinado a dar-lhes força e coragem, impulsionando-os para a vitória” (LIENGME, 1901LIENGME, Georges-Louis. Un potentat africain: Goungounyane et son règne. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo XIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1901, p. 99-135., p. 112).

Agrupados em torno do inkosi e posicionados “em linhas muito próximas” à espera de serem aspergidos, como notou Liengme,

o feiticeiro [“le sorcier”] entrava no círculo, com um maço de galhos na mão, acompanhado de dois assistentes, um deles segurando um grande pote com o famoso medicamento. O médico [“le médecin”] mergulhava a sua espécie de vassoura no pote e, seguido também pelo outro que agitava um chocalho, aspergia todos os guerreiros (...). Repetia-se a aspersão no interior do círculo e, em seguida, o médico [“le médecin”] recomeçava todo o percurso, mas dessa vez mantendo as mãos elevadas em direção ao exército, como um pastor que abençoa os fiéis. (...) o feiticeiro [“le sorcier”] era seguido por um dos ajudantes que emitia, constantemente, um assobio muito alto... (LIENGME, 1901LIENGME, Georges-Louis. Un potentat africain: Goungounyane et son règne. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo XIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1901, p. 99-135., p. 113)

O rito de proteção aos guerreiros remetia ao campo simbólico de sua agência e, por isso, cada ato adquiria a dimensão de comunicação quando executado (SANTOS, 2017SANTOS, Gabriela Aparecida dos. “Lança presa ao chão”: guerreiros, redes de poder e a construção de Gaza (travessias entre a África do Sul, Moçambique, Suazilândia e Zimbábue, século XIX). Tese, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2017., p. 271-275). Em semelhante contexto, é muito significativo que Liengme tenha recuperado a sinonímia “médico-feiticeiro” introduzida no texto sobre as “principais patologias” entre “os nativos das províncias de Lourenço Marques”, empregando uma construção muito específica: nas quatro vezes em que faz dela uso, ele recorre a uma interposição, inserindo “feiticeiro” [“le sorcier”, em francês], “médico” [“le médecin”], “médico” [“le médecin”] novamente e, então, “feiticeiro” [“le sorcier”], como os negritos acrescidos no trecho citado buscam destacar.

Esforçando-se para se posicionar entre “feiticeiros” por recurso à prescrição de remédios, manejo de instrumentos médicos e intervenções cirúrgicas, invocados sob o signo de alinhamento da existência, Liengme foi chamado por Gungunhana para tratar dos guerreiros feridos após o combate. Esse cuidado - base da acusação da qual tentaria se eximir, a todo custo, na escrita de suas memórias - submergia no rigoroso tratamento que esperava todos os que participavam de uma guerra e que se destinava a afastar o risco de “i-Zembe”, uma doença ligada à responsabilidade pela morte de outrem em batalha e cujos sintomas incluíam diarreia e sangramentos da bexiga ou do estômago, podendo levar à loucura (SANTOS, 2017SANTOS, Gabriela Aparecida dos. “Lança presa ao chão”: guerreiros, redes de poder e a construção de Gaza (travessias entre a África do Sul, Moçambique, Suazilândia e Zimbábue, século XIX). Tese, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2017., p. 167-200).

Não era qualquer pessoa que estava habilitada a tratar do guerreiro porque dela dependiam tanto a purificação e a reabilitação para a vida social, no caso de uma guerra terminada, quanto a “força e coragem”, na hipótese de novos enfrentamentos. Em um e outro momento se encontravam os “feiticeiros-médicos” ou “médicos-feiticeiros” de Liengme, situados junto a Gungunhana e ao vínculo indissolúvel que o inkosi mantinha com os seus guerreiros (SANTOS, 2017SANTOS, Gabriela Aparecida dos. “Lança presa ao chão”: guerreiros, redes de poder e a construção de Gaza (travessias entre a África do Sul, Moçambique, Suazilândia e Zimbábue, século XIX). Tese, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2017., p. 167-200). E talvez, por isso, o impulso em caracterizá-lo como “um bêbado inveterado”, propenso às “numerosas orgias” e “cruel ao extremo”, buscando nessa dissociação discursiva (e posterior) a defesa perante as autoridades portuguesas.

Por ação de seus recursos, Liengme criou as condições para a sua presença em Mandlakazi e, entretanto, se achava muito longe daquela fonte disciplinar que havia suposto para si com as induções hipnóticas porque a sua medicina racionalizada fora já apropriada para outros efeitos simbólicos. Havia sido um longo caminho em direção à “convergência de horizontes simbólicos” e era isso que Liengme não queria “perder”. Mas ela subvertia a intenção que, afinal, o havia conduzido até ali.

  • *
    Este artigo está associado à pesquisa de doutorado “Lança presa ao chão”: guerreiros, redes de poder e a construção de Gaza (travessias entre a África do Sul, Moçambique, Suazilândia e Zimbábue, século XIX), desenvolvida com financiamentos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Núcleo de Apoio à Pesquisa Brasil-África (NAP-USP) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), processo 2012/20813-3. Agradeço aos pareceristas ad hoc pelas inspirações, correções e contribuições ao texto.
  • **
    Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Desenvolveu pesquisa em arquivos históricos de Moçambique, de Portugal e da África do Sul, com ênfase nos movimentos, travessias e contatos de populações africanas, especialmente dos atuais territórios de Moçambique, África do Sul, Suazilândia e Zimbábue no século XIX.
  • ***
    Artigo não publicado em preprint. Todas as fontes e bibliografia consultadas encontram-se referenciadas ao longo do artigo.
  • 1
    BUTSELAAR, Jan van. Africains, missionnaires et colonialistes: les origines de l’Église Presbytérienne du Mozambique (Mission Suisse), 1880-1896. Leiden: E. J. Brill, 1984, p. 98-102. Cf. também CRUZ E SILVA, Teresa. Igrejas protestantes e consciência política no sul de Moçambique: o caso da Missão Suíça (1930-1974). Maputo: Promédia, 2001; HARRIES, Patrick. Butterflies & barbarians: Swiss missionaries & systems of knowledge in South-East Africa. Ohio: Ohio University Press, 2007.
  • 2
    BUTSELAAR, Jan van. Africains, missionnaires et colonialistes..., op. cit., 1984, p. 102-106; “i-nKosi”: “chefe”. BRYANT, Alfred Thomas. A Zulu-English dictionary with notes on pronunciation, a revised orthography and derivations and cognate words from many languages; including also a vocabulary of Hlonipa words, tribal-names etc., a synopsis of Zulu grammar and a concise history of the Zulu people from the most ancient times. Natal: The Mariannhill Mission Press, 1905, p. 319; SANTOS, Gabriela Aparecida dos. “Lança presa ao chão: guerreiros, redes de poder e a construção de Gaza (travessias entre a África do Sul, Moçambique, Suazilândia e Zimbábue, século XIX). Tese, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2017, p. 271.
  • 3
    “...o direito de propriedade e o direito de dominação eram indissociáveis”. HOBSBAWM, Eric. O mundo burguês. In: Idem. A era do capital, 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 340-344.
  • 4
    Ibidem, p. 104, 110, 126. Cf. também BROWNE, Janet. A origem das espécies de Darwin: uma biografia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p. 61, 70.
  • 5
    Ibidem, p. 364. Cf. também FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. In: Idem. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 94.
  • 6
    “...o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica”. Cf. FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social, op. cit., 1979, p. 79-80, 97.
  • 7
    Ibidem, p. 85, 96.
  • 8
    GOBINEAU, Joseph Arthur de. Essai sur l’inégalité des races humaines. Paris: Librairie de Firmin-Didot et Cie., [1854] 1884. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k650519/f8.item. Acesso em: 9 jan. 18.
  • 9
    SITOE, Bento. Dicionário changana-português. Maputo: Texto Editores, 2011, p. 292.
  • 10
    Ibidem, p. 53, 224-240, 265-266. Cf. também MENESES, Maria Paula. Maciane F. Zimba e Carolina J. Tamele. Médicos tradicionais, dirigentes da Associação de Médicos Tradicionais. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). As vozes do mundo: reinventar a emancipação social - para novos manifestos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 406.
  • 11
    HONWANA, Alcinda Manuel. Espíritos vivos, tradições modernas..., op. cit., 2003, p. 54, 208-211, 233, 228, MENESES, Maria Paula. Maciane F. Zimba e Carolina J. Tamele, op. cit., 2009, p. 444-445.
  • 12
    Ibidem, p. 215; MENESES, Maria Paula. Maciane F. Zimba e Carolina J. Tamele..., op. cit., 2009, p. 411.
  • 13
    Ibidem, p. 221-227; MENESES, Maria Paula. Maciane F. Zimba e Carolina J. Tamele..., op. cit., 2009, p. 414-416.
  • 14
    “Os catarros intestinais, as cólicas e a constipação integram a agenda diária do médico. E nada é mais divertido do que ouvir um negro descrever, com gestos e onomatopeias, o que acontece na sua barriga. Ele atribui todos esses males às serpentes que cantam, mordem e se movimentam, segundo as dores sentidas pelo doente. É inútil discutir com um nativo - mesmo o mais inteligente está convencido de que se trata sempre de ‘tinyoka’ (serpentes)”. Ibidem, p. 189 (tradução da autora). Pelo conceito de nyoka, tida como uma guardiã da pureza corporal por toda a vida - “as pessoas nascem com uma nyoka, que permanece no corpo até a morte” -, relacionavam-se os “diferentes níveis de abstração” associados à causalidade dos desequilíbrios mencionados por Liengme. Sendo capaz de “se mover para cima e para baixo entre a área do coração e do abdômen”, a existência da nyoka era confirmada por sensações físicas como cólicas e contrações nos momentos em que, perturbada pelo acúmulo de impurezas adquiridas por contaminação, induzia à sua eliminação por meio de diarreias. A essa poluição corporal podiam ser combinadas razões imediatas (comida ou água impróprias, por exemplo) e outras, subjacentes, que a tomavam como expressão de vínculos com práticas e comportamentos observados sob o aspecto de transgressão normativa. GREEN, Edward C.; JURG, Annemarie; DJEDJE, Armando. The snake in the stomach: child diarrhea in Central Mozambique. Medical Anthropology Quarterly, vol. 8, n. 1, Nova Jersey: Wiley; Arlington: American Anthropological Association, mar. de 1994, p. 4-24. ISSN 1548-1387. Disponível em https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/pdf/10.1525/maq.1994.8.1.02a00020. Acesso em: 28 mai. 2018. DOI: https://doi.org/10.1525/maq.1994.8.1.02a00020. Para a incidência da diarreia em processos de contaminação, mediados por ruptura de normas e atrelados a mecanismos e práticas de purificação, conferir também SANTOS, Gabriela Aparecida dos. “Lança presa ao chão: guerreiros, redes de poder e a construção de Gaza (travessias entre a África do Sul, Moçambique, Suazilândia e Zimbábue, século XIX). Tese, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2017, p. 169-200 e, ainda, a referência ao i-Zembe no presente artigo.
  • 15
    No original: “...la médecine du ‘moloungo’ (Blanc)...”. LIENGME, Georges-Louis. Notice de géographie médicale..., op. cit., 1895, p. 182 (tradução da autora). Cf. também SITOE, Bento. Dicionário changana-português, op. cit., 2011, p. 188.
  • 16
    “Hipnose: termo derivado do grego hypnos (sono) e sistematizado, entre 1870 e 1878, para designar um estado alterado de consciência (sonambulismo ou estado hipnóide) provocado pela sugestão de uma pessoa em outra. Hipnotismo foi um termo cunhado em 1843 pelo médico escocês James Braid (1795-1860) para definir o conjunto das técnicas que permitiam provocar um estado de hipnose num sujeito, com finalidades terapêuticas. A sugestão se dava, nesse caso, entre um médico hipnotizador e um paciente hipnotizado. As duas palavras, hipnose e hipnotismo são frequentemente utilizadas na mesma acepção”. ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 335.
  • 17
    ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise, op. cit., 1998, p. 735. Cf. também JORGE, Marco Antônio Coutinho. Fundamentos da psicanálise, de Freud a Lacan, vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
  • 18
    ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise, op. cit., 1998, p. 735-736. Cf. também FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico: curso dado no Collège de France (1973-1974). São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 371.
  • 19
    JUNOD, Henri A. Missionnaire. Couvet. 21 octobre 1896. Des causes de la rebellion dans le District de Lourenzo Marques. University of South Africa. Archives and Special Collections. Junod Archives. HA Junod Collection. 9.5. Mozambique (1894-1920); 2. Correspondance and historical notes (1894-1896). University of South Africa. Archives and Special Collections. Junod Archives. HA Junod Collection. 9.5. Mozambique (1894-1920); LIENGME, Georges-Louis. Un potentat africain: Goungounyane et son règne. Bulletin de la Société Neuchateloise de Géographie, tomo XIII, Neuchâtel: Imprimerie Attinger Frères, 1901, p. 132-134. Cf. também ENNES, António. A guerra d’África em 1895: memórias. Lisboa: Typographia do “Dia”, 1898, p. 296-300, 393-394, 409, 532, NORONHA, Eduardo de. A rebelião dos indígenas em Lourenço Marques. Lisboa: M. Gomes, 1894; CAETANO, Marcelo. Campanhas de Moçambique em 1895: segundo os contemporâneos(as). Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1947, p. 98-100, 261-262, 358; SANTOS, Gabriela Aparecida dos. Reino de Gaza: o desafio português na ocupação do sul de Moçambique (1821-1897). São Paulo, 2007. Dissertação - Universidade de São Paulo [Reino de Gaza: o desafio português na ocupação do sul de Moçambique (1821-1897). São Paulo: Alameda Editorial, 2010].
  • 20
    JUNOD, Henri A. Missionnaire. Couvet. 21 octobre 1896. Des causes de la rebellion dans le District de Lourenzo Marques. University of South Africa. Archives and Special Collections. Junod Archives. HA Junod Collection. 9.5. Mozambique (1894-1920); LIENGME, Georges-Louis. Un potentat africain..., op. cit., 1901, p. 132-134; ENNES, António. A guerra d’África em 1895..., op. cit., 1898, p. 393-394, 409, 532; CAETANO, Marcelo. Campanhas de Moçambique em 1895..., op. cit., 1947, p. 98-100, 261-262.

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Editado por

Editores responsáveis:
Iris Kantor e Rafael Marquese
Organizadoras do Dossiê Moçambique em perspectiva: histórias conectadas, interdisciplinaridade e novos sujeitos históricos
Maria Cristina Cortez Wissenbach
Juliana Paiva Magalhães
Lia Dias Laranjeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2018
  • Aceito
    05 Jul 2018
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