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A ESCRAVIDÃO E A “VERDADE” DO ROMANCE: PRIMEIRAS LEITURAS E USOS PÚBLICOS DE A CABANA DO PAI TOMÁS NO BRASIL (1852-1858)1 1 Este artigo não foi previamente publicado em plataforma preprint e todas as fontes e bibliografia empregadas são nele referidas. Os jornais citados foram acessados pelas plataformas das hemerotecas digitais da Biblioteca Nacional do Brasil e da Espanha. Registra-se aqui especial agradecimento ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico e Científico - CNPq pela bolsa de pós-doutorado que permitiu a realização de parte da pesquisa que fundamenta esse artigo.

SLAVERY AND NOVEL “TRUTH”: FIRST READINGS AND PUBLIC USES OF UNCLE TOM'S CABIN IN BRAZIL (1852-1858)

Resumo

Neste artigo aborda-se as primeiras leituras brasileiras e os usos públicos do romance abolicionista A Cabana do Pai Tomás [1852], da estadunidense Harriet Beecher Stowe. Considerando-se o anseio do romance realista oitocentista de desvelar o social, apresenta-se os procedimentos formais adotados assim como sua recepção por leitores do Brasil escravista. Para tanto, utiliza-se como fontes principais a imprensa e baseia-se nas reflexões de Michel de Certeau sobre a leitura. Houve três modalidades diferentes de leituras: refratárias, ambíguas e entusiásticas, cada qual correspondeu a um modo próprio dos leitores se posicionarem diante de a intensão realista do romance, nem sempre sendo aceito como uma representação verossímil da escravidão. Indica-se a importância do romance em incentivar um debate público acerca da legitimidade da escravidão, ainda que não tenha incentivado defesas de abolicionismo imediatista.

Palavras-chave:
Escravidão; Romance realista; Recepção; Literatura; Abolicionismo

Abstract

In this paper I study the first Brazilian readings and the public uses of the abolitionist novel Uncle Tom's Cabin (1852), from American novelist Harriet Beecher Stowe. Considering the 19th century realism's desire of unraveling the social world, I here present the formal procedures adopted, as well as its reception among readers in a slaver Brazil. For accomplishing it, I use 19th century press as my main source and take as theoretical guidelines the reflections of Michel de Certeau on reading. There were three distinct types of reading: refractory, ambiguous and enthusiastic, each one corresponding to a particular way in which readers positioned themselves in face of the realistic intentions of the novel, these not always being accepted as a veritable representation of slavery. I point to the importance of the novel in encouraging a public debate on the legitimacy of slavery, although it has not fostered the defense of immediate abolitionism.

Keywords:
Slavery; Realist novel; Reception; Literature; Abolitionism

Introdução

Surgido na mesma “zona do canal”, entre Inglaterra e França, e no mesmo século XVIII, que também serviu de berço aos antiescravismos e abolicionismos, o romance moderno não deixou de ser usado nos embates em torno da escravidão, seja para condená-la, defendê-la ou reformá-la (COHEN & DEVER, 2002COHEN, Margareth; DEVER, Carolyn (ed.). The literary channel. The inter-national invention of the novel. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2002.; ARAVAMUDAN, 1999ARAVAMUDAN, Srinivas. Introduction. In: ARAVAMUDAN, Srinivas. (ed.) Slavery, abolition and emancipation: writings in the British romantic period. London: Pickering & Chatto, 1999, v. 6.; CAREY, 2005CAREY, Brycchan. British abolitionism and the rethoric of sensibility. Writing, Sentiment and Slavery, 1760-1807. New York: Palgrave Mac Millan, 2005.). Ainda que as estratégias narrativas mobilizadas pelos autores de romances tenham variado, o estudo de A Cabana do Pai Tomás e sua recepção brasileira permite lançar luz acerca do papel desempenhado pelo realismo formal no tratamento do tema escravidão (WATT, 2010WATT, Ian. A ascensão do romance. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Cia das Letras, 2010.. p. 9-36). Cabe investigar se, e de que forma seus procedimentos visando uma descrição pormenorizada e verossímil dos ambientes e das experiências de personagens individualizadas foram recebidos pelos leitores no esforço de mobilização do romance como meio de atuação na luta em torno da escravidão.

Conforme sugere Judith Lyon-Caen, em um período de escasso desenvolvimento das ciências sociais, o romance realista, principalmente a partir dos anos 1830, tinha a pretensão, de natureza cognitiva, de conferir inteligibilidade ao mundo social, discutindo questões como a prostituição, o crime, o pauperismo, a condição da mulher, do operário, a industrialização e também a escravidão (LYON-CAEN, 2006LYON-CAEN, Judith. La lecture et la vie. Les usages du roman au temps de Balzac. Paris: Tallandier, 2006, p. 25-43; 50-61.. p. 25-43; 50-61). Jacques Rancière atesta, neste início do século XIX, a emergência de uma nova política da literatura. Além de seu caráter democratizante - expresso no inédito tratamento sério de personagens de origem social subalterna, que deixavam de ser representados somente de forma jocosa - ela seria marcada por uma “hermenêutica do corpo social”. Presente especialmente no romance realista, por esta nova hermenêutica a literatura passava a ser investida da capacidade de revelar os elementos constituintes de uma sociedade, a partir da decifração de detalhes aparentemente mudos e superficiais do cotidiano (RANCIÈRE, 2007RANCIÈRE, Jacques. Politique de la littérature. Paris: Galilée, 2007., p. 24, 25-31; RANCIÈRE, 2014, p 07-36). Some-se a esse reconhecimento de uma capacidade especial de desvelar o social, o forte apelo de público que o romance conquistou e compreendem-se alguns motivos de o gênero ter sido mobilizado para os embates a respeito da escravidão, inclusive no Brasil, onde circulou cada vez mais a partir do fim da censura prévia, em 1821, incentivado por um comércio livreiro transnacional (ABREU, 2013ABREU, Márcia. Conectados pela ficção: circulação e leitura de romances entre a Europa e o Brasil. O Eixo e a Roda, Belo Horizonte, v. 22, n.º 1, p. 15-39, 2013. Disponível em: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br>. Acesso em: 11 maio/ 2020. DOI disponível em: <http://dx.doi.org/10.17851/2358-9787.22.1.15-39>.
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).

O Brasil participava, desta forma, das rotas transnacionais de circulação de escritos sobre a escravidão, tendo recebido alguns romances sobre a questão. O principal deles e de maior impacto foi A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe. Publicado, nos EUA, em 1852, o livro narrava as agruras sofridas por dois grupos de escravos: o primeiro representado pelo compassivo e cristão Pai Tomás, vendido de senhor a senhor até sua morte violenta em uma fazenda de algodão da Louisiana; o segundo composto pelas peripécias da fuga do casal de mulatos Elisa e George Harris, até a libertação alcançada ao atingirem o Canadá e a posterior migração voluntária para a África. A obra alcançou estrondoso e imediato sucesso internacional, com mais de trezentos mil exemplares vendidos nos Estados Unidos da América (EUA) e mais de um milhão na Inglaterra, somente no primeiro ano. A Cabana do Pai Tomás foi o principal romance abolicionista do século (REYNOLDS, 2011REYNOLDS, David. Mightier than the Sword: Uncle Tom's cabin and the Battle for America. W W Norton & Co, 2011., p 128-137). Chegada ao Brasil em 1853, sofreu apreensões pontuais por autoridades em cidades como Fortaleza, Salvador e Rio de Janeiro, mas sua circulação e leitura foi possível por meio de edições estrangeiras, em português ou outras línguas, provocando celeuma (FERRETTI, 2017FERRETTI, Danilo José Zioni. A publicação de A cabana do Pai Tomás no Brasil escravista. O momento europeu da edição Rey e Belhatte (1853). Varia história, Belo Horizonte, v. 33, n.º 61, 2017. Disponível em: <https://www.scielo.br>. Acesso em: 11 maio/ 2020. DOI disponível em: <https://doi.org/10.1590/0104-87752017000100009>.
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; RIBEIRO, 2016RIBEIRO, Aline Vitor. Lendo Herriet Beecher Stowe no Brasil: Circulação e traduções culturais do romance A Cabana do Pai Tomás na segunda metade do século XIX. Dissertação (Mestrado em História) - Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos: 2016.; GUIMARÃES, 2013GUIMARÃES, Hélio de Seixas. O Pai Tomás no romantismo brasileiro. Teresa; Revista de literatura brasileira, São Paulo, nº. 12/13, 2013. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/teresa/article/view/99408/97896>. Acesso em: 11 maio/ 2020.
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).

O objetivo central do presente artigo é estudar a recepção brasileira de A Cabana do Pai Tomás nos primeiros anos de sua inserção, durante a década de 1850, concentrando a atenção em algumas das leituras e dos usos públicos a que foi submetido no Brasil escravista. Busca-se, assim, compreender o impacto social do romance, mediante o modo como alguns leitores brasileiros participaram do processo de construção do sentido da obra e a mobilizaram para fins diversos. A análise da recepção terá como aporte teórico a reflexão de Michel de Certeau sobre a leitura, para quem o leitor não é mero consumidor passivo, mas sim um criador que faz escolhas e pode produzir novos sentidos. Utilizando as metáforas da “operação de caça” e do “nomadismo” para caracterizar o processo de leitura, Certeau reconhece que o leitor, diante do texto, “combina os seus fragmentos e cria algo não sabido no espaço organizado por sua capacidade de permitir uma pluralidade indefinida de significações” (De CERTEAU, 1998De CERTEAU, Michel. Ler: uma operação de caça. In: De CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998.. p. 265).

No entanto, os exercícios, por vezes sutis e subjetivos da leitura e dos usos do romance executados por agentes do passado, somente podem ser captados mediante alguma forma de produção textual que tenha servido como seu registro. Neste artigo, privilegiar-se-á a imprensa periódica, entendendo-a como um arquivo de leituras. Por ela será possível identificar os setores do público que mais comentaram A Cabana do Pai Tomás, como o fizeram e para quais fins. O estudo da leitura se complementa, assim, com o interesse sobre os usos diversos (sociais, econômicos, políticos, religiosos, intelectuais, etc.) que se faz da literatura, para além do universo exclusivamente literário, buscando contribuir para a reflexão em andamento a respeito da literatura como uma forma de ação na sociedade (LYON-CAEN & RIBARD, 2010LYON-CAEN, Judith; RIBARD, Dinah. L´historien et la littérature. Paris: La Découverte, 2010., p. 76-79).

Sensibilidade e realismo em A Cabana do Pai Tomás

A valorização do realismo foi um elemento importante para avaliar um romance durante a maior parte do século XIX. O romance moderno, que se afirmou no ocidente no século anterior, certamente era entendido por escritores e leitores como uma obra de imaginação, mas seria uma ficção dotada de necessário compromisso com o real, pelo menos no modo da verossimilhança, do plausível. Para atingi-lo, os autores lançavam mão de uma série de recursos, batizados por Ian Watt de “realismo formal”, tais como a individualização de personagens com uso de nome próprio, complexificação psicológica, descrições detalhistas das ações e de ambientes geográficos e temporais em sua particularidade (WATT, 2010WATT, Ian. A ascensão do romance. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Cia das Letras, 2010., p. 34; HAMON, 1982HAMON, Philippe. Un discour contraint. In: BARTHES, Roland; BERSANI, Leo et ali (ed). Littérature et réalité. Paris: Editions du Seuil, 1982.; p. 135-168).

Em relação A Cabana do Pai Tomás, livro editado em 1852, a versão própria de mimese adotada é sujeita a controvérsias. Há quase um consenso entre a crítica em identificar o livro como um expoente da literatura sentimental, entendida como uma modalidade do romance moderno que valorizava certa exacerbação emotiva, mediante a criação de cenas patéticas em que se buscava estimular a identificação do leitor com o sofrimento do personagem descrito (COHEN & DEVER, 2002COHEN, Margareth; DEVER, Carolyn (ed.). The literary channel. The inter-national invention of the novel. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2002., p. 108; CAREY, 2005CAREY, Brycchan. British abolitionism and the rethoric of sensibility. Writing, Sentiment and Slavery, 1760-1807. New York: Palgrave Mac Millan, 2005.). A forma particular como o modo sentimental foi usado no romance de Stowe foi entendida por Jane Tompkins, em estudo clássico, como marcada pela anulação dos recursos da descrição particularista do romance realista em proveito de descrições de personagens e situações calcadas em tipologias narrativas abstratas. Estas, como figuras de uma alegoria, remetiam não à realidade social extratextual, mas a modelos fixos de conduta e valores retirados de episódios do relato bíblico. Assim, as cenas de morte de personagens virtuosos, como a da pequena Eva e do Pai Tomás, remeteriam ao tipo do sacrifício expiatório bíblico, que tem como referência o sacrifício de Cristo, igualmente a descrição da fuga de Elisa e George Harris para o Canadá remeteria ao relato da libertação dos hebreus do Egito etc. (TOMPKINS, 1985TOMPKINS, Jane. Sentimental power: Uncle Tom´s Cabin and the politics of literary history. In: TOMPKINS, Jane. Sensational designs. The cultural work of american fiction 1790-1860. New York: Oxford University Press, 1985., p. 122-146).

Esse entendimento, de que o modo narrativo sentimental seria o contrário do realismo, vem sendo questionado por estudos que, sem desconsiderar a presença da caracterização tipológica abstrata anteriormente mencionada, tendem a destacar a presença de elementos do realismo formal em A Cabana do Pai Tomás e sua compatibilidade com o sentimentalismo (HAVARD, 2012HAVARD, John. Fighting slavery by ‘Presenting facts in Detail': realism, typology, and temporality in Uncle Tom´s Cabin. American Literary Realism, v. 44, n.º 3, spring, 2012.). Segundo John Harvard, atreladas às alusões bíblicas, Stowe realizava descrições dos diversos espaços geográficos e ambientes sociais pelos quais circularam os personagens. Quanto à caracterização destes últimos, se seguia alguma modalidade de tipologia, não era somente aquela abstrata e fixa, que remetia ao modelo bíblico, mas, predominantemente, a uma realista e dinâmica. Essa última apresentava os personagens como tipos representativos de determinado agente ou setor da sociedade (Shelby como o tipo do bom senhor, Pai Tomás como o do escravo fiel, Haley o do traficante de escravos, Legree o tipo do mau senhor etc.), passíveis de transformação e dotados de características sociais, raciais, políticas, religiosas, linguísticas ou outras, que a autora se esforçava para apresentar em sua particularidade e de forma detalhada. Haveria, assim, a convivência de duas modalidades de tipologias mobilizadas, uma abstrata e bíblica, e outra realista e social.

Mais importante, no entanto, talvez tenha sido o recurso da autora de remeter as cenas escritas àquilo que apresentava como experiências reais de escravos e ex-escravos, assim como a diferentes formas de comprová-las. Com esse intuito, a autora inseriu um último capítulo, espécie de posfácio, em que afirmava que “os diferentes incidentes que compõem a narrativa são, em sua grande parte, autênticos, ocorrendo, muitos deles, seja sob sua própria observação, seja sob aquela de amigos pessoais”3 3 “The separate incidents that compose the narrative are, to a very great extent, authentic, occuring, many of them, either under her own observation, or that of her personal friends” [tradução minha]. STOWE, 1994. p. 381. . Seguia-se uma explanação a respeito de quais fontes havia retirado as informações para a composição de personagens e incidentes do romance. Esse esforço em apresentar, de forma explícita, o trabalho de prova foi intensificado após a publicação do romance no suporte livro e em resposta aos violentos questionamentos surgidos, com a criação de algo raro na literatura ficcional: um grosso livro totalmente dedicado a mostrar as fontes (relatos de escravos, artigos de jornais, autos de processos jurídicos, cartas privadas, testemunhos orais etc.) que a autora mobilizou para construir cada um dos personagens e situações do romance. Surgia assim, em 1854, Uma chave para A Cabana do Pai Tomás; apresentando os fatos originais e os documentos sobre os quais a história se funda, uma espécie de enorme anexo de notas, com quinhentas e quatro páginas, que se autonomizava da obra principal. Stowe cercava seu romance de diversos procedimentos com vistas a garantir efeitos de realidade, pois entendia a verossimilhança de seu relato como a condição para a eficácia da mensagem junto ao público. Sem um leitor que tomasse a escrita plausível, a ativação dos efeitos sentimentais sairia prejudicada, podendo anular a eficácia político-social do romance. Cabe ver como os leitores brasileiros se posicionaram diante desses procedimentos.

Leituras refratárias

Se, nos EUA e na Europa, o livro circulou com esse aparato textual que buscava conferir caução à verossimilhança da narrativa, no Brasil, as formas adotadas para a publicação de A Cabana do Pai Tomás tenderam a limitá-lo. A edição que mais circulou no país, publicada em português, no ano de 1853, pela casa parisiense Rey e Belhatte, simplesmente excluiu o último capítulo do livro, em que Stowe já apresentava alguns documentos usados na construção dos personagens. Quanto ao livro Uma Chave para A Cabana do Pai Tomás, sua presença no espaço público brasileiro parece ter sido extremamente restrita. A única referência encontrada no atual estágio da pesquisa foi um exemplar, em francês (o que restringia ainda mais seus efeitos), no catálogo, de 1858, da biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro.

Mas, analisando as experiências de leitores brasileiros, encontra-se o primeiro registro de leitura, de natureza indireta, filtrado pelo olhar dos militantes abolicionistas britânicos John Candler e Wilson Burgess. No final de 1852, ambos foram ao Brasil entregar ao Imperador e à imprensa uma declaração oficial da associação abolicionista quaker Sociedade dos Amigos (Religious Society of Friends), que o parabenizava pela abolição do tráfico de escravos e o instava a avançar no sentido da completa abolição da escravidão. A narrativa dos dois abolicionistas revela um momento precoce da publicação e leitura por brasileiros de A Cabana do Pai Tomás, pois a leitura do livro ocorria, ainda antes deste chegar ao Brasil, a bordo do navio que trazia os passageiros e as primeiras caixas de exemplares do romance, lançado há menos de dois meses na Europa. Referindo-se aos dias próximos a 16 de setembro de 1852, os abolicionistas afirmavam:

Várias cópias de A Cabana do Pai Tomás foram trazidas pelos passageiros, e observando um deles dedicado a lê-lo, dia após dia, nos arriscamos a questioná-lo sobre o que pensava da obra. ‘É tudo verdade', ele respondeu; ‘eu sei que é verdade. Eu sou, infelizmente, um proprietário de escravos. A escravidão é um fardo tanto para o senhor quanto para o escravo'. Apesar do muito, e com grande razão, que podemos recusar em trabalhos preparados desse modo, para seguir o gosto do público, é bem provável que a leitura desse extraordinário livro tenha sido muito proveitosa; ela levou muitas pessoas a verem o que nunca tinham visto antes, que a escravidão é um grande mal moral, tanto na América quanto em qualquer outra terra, - e uma horrível instituição, que nenhum cristão praticante pode com consistência tolerar por uma hora sequer. (Folhetim, 1853, p. 1)

Não deixa de ser significativo que a primeira impressão registrada a respeito do referido livro seja no sentido de defender sua verossimilhança, sua adequação plausível à realidade externa à narrativa, reforçada pelo fato de ter sido manifestada por um proprietário de escravos brasileiro, um agente com experiência direta acerca da realidade da escravidão, independentemente da confiabilidade do relato. Quanto a essa última, não há outras fontes capazes de atestá-la ou refutá-la. Ainda que o trecho informe mais sobre a leitura feita pelos abolicionistas ingleses do que pelos leitores brasileiros, ele sugere o quanto a questão da verossimilhança da representação da escravidão era ponto importante nos embates que marcaram a recepção do livro no Brasil e condição para a caução dos princípios políticos e sociais antiescravistas que buscava difundir.

A questão da verossimilhança retornou nos primeiros registros diretos de leituras por brasileiros encontrados na imprensa. De modo geral, um primeiro grupo de comentários publicados rejeitou, em bloco, a validade da representação da escravidão pelo romance, em um claro esforço de manter intacta a legitimidade do cativeiro no Império. Nessa linha, se destacam as considerações publicadas no folhetim do prestigioso e conservador, ainda que apartidário, Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, então sob a responsabilidade do literato e político liberal Francisco Otaviano, possível autor que, no entanto, não assinava o texto. No dia 27 de fevereiro de 1853, tratando de justificar o uso do serviço de escravos por frades, o folhetinista abordava o tema do romance que começava a chegar ao Brasil:

O que lhes vale é não ter passado por aqui a Henriqueta Stowe ou seu continuador Hildreth! Oh! Que páginas lhes haviam de merecer!

Esse Hildreth, amigo leitor, é um filantropo que quis aproveitar a voga dos romances negrófilos e embarcar-se nas águas do Pai Tomás. Compôs uma novela intitulada O escravo branco, que não é superior ao da mencionada autora. Ambos pretendem envergonhar os Estados Unidos por manterem a escravidão, e para isso pintão [sic] as cenas as mais exageradas da atrocidade dos senhores contra os seus escravos. (Folhetim, 1853, p. 1)

O folhetinista discutia o romance de Stowe por intermédio do de Hildreth4 4 Richard Hildreth (1807-1865) era um jornalista e historiador estadunidense que, em 1836, publicou The Slave, or memory of Archie Moore. Tratava-se de uma obra de ficção, mas que se apresentava na qualidade de uma narrativa escrava (slave narrative), um relato não ficcional. Aproveitando o sucesso de A Cabana do Pai Tomás, o livro foi reeditado em 1852, com o novo título mencionado no corpo do texto. , que havia sido reeditado com novo título: O escravo branco, companheiro do Tio Tomás. Interessante notar que o folhetinista desqualificava ambos por lesa pátria e por exagero, uma falha de verossimilhança. E seguia adiante:

Devo, porém, confessar que o Sr. Hildreth é justo em uma passagem relativa ao Brasil. Diz ele em inglês, e peço licença para repetir em português: ‘no Brasil católico, nas ilhas espanholas, onde se podia esperar da ignorância e da superstição (isso lá não digo eu) uma tirania mais cruel, o escravo ainda é considerado um homem com direitos à simpatia. É-lhe permitido ajoelhar-se ante o mesmo autar [sic] que seu senhor, e pode ouvir o padre católico proclamar, do alto do púlpito, a sagrada verdade de que todos os homens são iguais. Pode consolar-se com a ideia de que um dia talvez seja livre. Pode forrar-se. Se se lhe inflige uma punição injusta, pode recorrer à lei; para obter a liberdade, pode esperá-la da generosidade ou da consciência de um bom senhor, movida pelas palavras do sacerdote junto do leito da morte. Fôrro, ele tem os direitos de um homem livre, e goza de uma igualdade real e prática, cuja ideia por si só enche os Americanos do Norte de horror e de indignação.

A escravidão, nesses países, acrescenta o Sr. Hildreth, toca a seu termo, e quando o tráfico na costa d'África for abolido, não se passará meio século sem que desapareça o último escravo da América espanhola e portuguesa.' (Folhetim, 1853, p. 1)

Selecionando, como um caçador, diria Certeau, o trecho que lhe interessava do próprio Hildreth, supostamente uma autoridade insuspeita por ser “negrófilo”, o crítico brasileiro apresentava um quadro condescendente da realidade da escravidão brasileira. A leitura realizava, ao mesmo tempo, três movimentos: a) considerava inverossímil a representação da escravidão norte-americana pelos dois romances, b) recusava sua validade para desvelar o caso brasileiro e c) elogiava o modo brasileiro de lidar com a escravidão, por ser supostamente mais humanitário que o norte-americano e estar em vias de extinção. Dessa forma, o mais prestigioso jornal brasileiro buscava anular os efeitos deletérios do questionamento da legitimidade da escravidão que A Cabana do Pai Tomás e o livro de Hildreth pudessem vir a ter junto ao público leitor brasileiro.

Mas ele não seria o único a adotar essa interpretação, pelo contrário. Um caso importante, que segue uma leitura semelhante, é o da revista Novo Correio das Modas, publicada pela casa Laemmert da Côrte. Em 1853, ela dedicou dois artigos especialmente voltados à análise do livro de Stowe, caso único no cenário brasileiro, marcado predominantemente por comentários breves inseridos em textos que tratavam de outros temas. Não deixa de ser significativo o fato de a revista ser voltada principalmente para o público feminino - considerado, inclusive pela revista, como o mais suscetível ao romance de Stowe - ainda que não sejam conhecidos casos de mulheres colaboradoras ou em sua redação (DONEGÁ, 2013DONEGÁ, Ana Laura. Publicar ficção em meados do século XIX; um estudo das revistas femininas editadas pelos irmãos Laemmert. Dissertação (Mestrado em Teoria e História Literária) - Instituto de Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP: 2013.).

Os artigos sobre A Cabana do Pai Tomás, publicados nos primeiros meses de 1853, foram pautados por uma apresentação do enredo do romance em que o crítico anônimo dava destaque àquilo que considerava como as inverossimilhanças da narrativa. Nesse exercício de deambulação pelo texto de Stowe, o autor dos artigos selecionava sua caça: destacava o fato do Sr. Shelby - senhor original do Pai Tomás e de Elisa - ser apresentado como endividado mas, mesmo assim, alimentar seus escravos com perus e presunto, saldar suas dívidas vendendo somente dois escravos, se separar sem dor de seu escravo de estimação - o Pai Tomás -, casar sua escrava Elisa com o escravo de um outro senhor. Ou ainda destacava o fato desse último senhor castigar seu escravo em vez de aumentar-lhe o jornal pelos melhoramentos que providenciou, as improbabilidades de um senador ter-se dado ao trabalho de guiar uma escrava fugitiva durante a noite, de o Pai Tomás ter sido morto por ter ajudado na tarefa de seus parceiros. Por fim, ao longo do livro, de senhores venderem seus filhos, serem violentos e matarem escravos com facilidade (A CASINHA, 1853A CASINHA do Tio Thomaz II. Novo Correio das Modas, Rio de Janeiro, 1853., p. 32-33). “Não achais que a verossimilhança continua sempre a ser sustentada?” questionava-se, ironicamente, o autor, que arrematava:

Na Europa, a senzala ou casinha do Tio Thomaz fará grande sensação: no Brasil, onde estamos vendo a realidade dos fatos, o que se vê são paradoxos sobre paradoxos. Não, não faremos a nossos irmãos da América do Norte a injúria de supor o mais pequeno vislumbre de verdade nessas cenas, que traçou a sua compatriota: avaliamo-los por nós. No Brasil, não se carregão [sic] de ferros quando vão de um lugar para outro os escravos que seus senhores afiançam; e nem podemos admitir que se isso faça em parte alguma do mundo. Mistress Stowe à força de exageração caiu no ridículo.

Entretanto o romance de Mistress Stowe tem achado admiradores. E qual é o pelotiqueiro que não ache basbaques que de boca aberta admirem as suas ligeirezas? E não é provável que fique aí: cedo veremos provavelmente em cena os filhos do Tio Thomaz, os netos do Tio Thomaz, os irmãos do Tio Thomaz, e até talvez os compadres e os afilhados, cada qual mais exagerado, cada qual mais ridículo. (A CASINHA, 1853A CASINHA do Tio Thomaz II. Novo Correio das Modas, Rio de Janeiro, 1853., p. 33-34)

Os adjetivos ligeirezas, paradoxos, exagerado, ridículo eram os termos que pautavam a leitura do romance, que confluía com a do folhetinista do Jornal do Commercio, ao defender, também, a não correspondência da narrativa com a realidade da escravidão brasileira, onde não vigorariam as violências descritas. Essa leitura era, no entanto, acompanhada de argumentos literários que explicavam parcialmente os defeitos do livro por sua inserção em uma espécie de vertente degenerada do romance moderno. Marcada por tirar o sossego das leitoras com suas “páginas de horrores” e “infâmias”, tal vertente era composta por autores tais quais Paulo de Kock, [Fréderic] Soulié, George Sand e o Victor Hugo de Han de Islândia, se distanciando de autores considerados exemplares, como Bernardin de Saint-Pierre, Chateaubriand, Walter Scott e Manzoni. O crítico acusou Stowe de venalidade ao afirmar que “o seu fim foi fazer um livro para ganhar dinheiro” (A CASINHA, 1853A CASINHA do Tio Thomaz II. Novo Correio das Modas, Rio de Janeiro, 1853., p. 33).

Não se tratava apenas de desqualificar o livro por suas características intrínsecas, mas também de discutir os efeitos de sua leitura no ambiente brasileiro, o que se evidenciava quando o crítico sugeria o aparecimento futuro dos “filhos do Tio Tomás”, ou seus “compadres”. Pela imprensa, nota-se que um dos efeitos do romance de Stowe foi a introdução do termo “Tio (Pai) Tom(ás)” como sinônimo de escravo e, na maioria das vezes, atrelado a um tom irônico e a eventos ameaçadores da ordem. Assim, durante o carnaval de 1853, o Correio Mercantil, da Côrte, informava que “a polícia, confiando sem dúvida na morigeração dos compatriotas do tio Tom, não tomou sérias providências para proibir o jogo do entrudo” (106.ª PACOTILHA, 1853106. ª PACOTILHA. Correio Mercantil. Rio de Janeiro, 13 fev./ 1853., p. 1). No mês seguinte, o uso do termo se tornava mais grave, ainda que não perdesse a ironia, no comentário do folhetinista do Jornal do Commercio, ao informar:

Embarcaram ontem para Campos 16 praças do corpo de permanentes, comandadas por um oficial. Houve logo quem espalhasse que iam a diligência de repressão do tráfico, mas a verdade verdadeira é que foram reforçar os destacamentos provinciais que existem nas freguesias daquele município onde alguns companheiros do tio Tomás pretendiam libertar-se violentamente e praticar os excessos que aparecem sempre em casos tais. Felizmente as autoridades e os fazendeiros estão vigilantes e já tomaram as medidas preventivas que o perigo aconselhava. É tão melindroso este assunto que não me animo a referir algumas circunstâncias do fato e o projeto dos haitianos. Queira Deus que despertem no governo e nos particulares a prudência recíproca que hoje nos é tão necessária. (FOLHETIM, 1853bFOLHETIM . Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 6 mar./ 1853b., p. 1)

A ironia surgia do contraste entre a abnegação e mansuetude do personagem literário Pai Tomás e a ação violenta atribuída aos escravos brasileiros sublevados, os haitianos, identificados aqui como companheiros do Tio Tomás. Ela pressupunha que a “verdade” correspondia à violência dos escravos, não à mansuetude expressa no personagem. Mas, por outro sentido dado a esses companheiros do Tio Tomás, capta-se as ansiedades propriamente sociais existentes no Brasil escravista em um momento instável como o do fim do tráfico de escravos, ansiedades que o antiescravismo do livro parece ter catalisado. Era o que se percebia, em 1858, no jornal Brasil Comercial, do Rio de Janeiro, quando um incógnito folhetinista alertava:

Já que falamos em escravos, será ocasião azada para fazermos algumas reflexões sobre a desmarcada proteção que se procura dar aos cativos, contra a necessária e legítima autoridade dos senhores. Se assim continuarmos, dentro em pouco ninguém poderá corrigir os seus escravos, nem até mesmo repreendê-los, porque os amigos do pai Tomás tomam sempre a defesa do escravo contra o senhor. Qualquer queixa que o escravo faz clama-se logo que o senhor é bárbaro e injusto e que o escravo tem razão; se o escravo precipita-se nas ondas, se lança-se em um precipício, se fere-se ou suicida-se, aí estão os amigos do pai Tomás acusando os senhores como culpados destes e outros crimes que os escravos cometem. Nós desejamos, porque é de dever e de religião, que os senhores sejam humanos e que se lembrem que os entes a quem por infelicidade tocou a escravidão em partilha, são criaturas de Deus, (…). Não queremos, porém, com isto acoroçoar as insubordinações e desrespeitos dos escravos, como fazem os amigos do pai Tomás, com suas contínuas jeremiadas; e da autoridade competente esperamos que seja tomada em consideração a necessidade de conservar o equilíbrio da autoridade e a força moral entre o senhor e o escravo, uma vez que ainda temos cativos, que a falta de braços impede que o país acabe por uma vez com essa miserável condição humana. (FOLHETIM, 1858FOLHETIM . Brasil Commercial, Rio de Janeiro, 3 abril/ 1858., p. 1, grifos meus)

O sentido que o folhetinista conferia a “amigos do Pai Tomás” era um tanto diferente do caso anterior, na medida em que parecia se referir não aos escravos, mas aos seus defensores, homens dotados do uso da palavra pública, por isso provavelmente livres, únicos capazes de pronunciar “jeremiadas”. “Os amigos do Pai Tomás”, possíveis leitores que se identificavam com a mensagem de A Cabana do Pai Tomás, contribuiriam, segundo essa leitura, para minar as bases da obediência devida aos senhores. De qualquer modo, avançava-se a percepção de que o Pai Tomás e seus amigos, escravos e livres, eram ameaças à estabilidade social.

Leituras ambivalentes

Outro conjunto de textos revelava possibilidades alternativas de leitura de A Cabana do Pai Tomás. Mais matizadas, ao mesmo tempo em que condenavam os exageros e inverossimilhanças, podiam fazer uso de algum aspecto específico do livro que confirmasse valor ou posição defendida pelo leitor, em um jogo de ambivalências que potencializava ainda mais a dimensão seletiva do processo de leitura. Novamente, o Jornal do Commercio de 25 de janeiro de 1853, em seu folhetim, comentava acerca do romance de Stowe. Começava revelando uma leitura negativa, destacando os “quadros sumamente carregados e do gosto da escola ultrarromântica que produziu o Han da Islândia e os Dous Cadáveres” (FOLHETIM, 1853cFOLHETIM . Jornal do Commercio , Rio de Janeiro, 25 jan./ 1853c., p. 1), coincidindo, assim, com o diagnóstico da falha de verossimilhança e identificação como parte de uma vertente degenerada do romance, já apresentados. Mas, em um segundo momento, o folhetinista passava a adotar outra chave de leitura, mais positiva em relação à representação feita no livro:

Entretanto, há algumas páginas de vivo interesse no livro da Sra. Stowe e o esboço perfeito nos países que mantêm a escravidão, o tipo do mascate de negros novos, ainda mais infame que o traficante; porque este expõe-se a graves riscos, atravessa o mar, desafia as balas inglesas, joga o seu dinheiro em uma especulação duvidosa, e pode terminar seus dias na verga de um navio ou nas oficinas da casa de correção: porém o mascate, esse marcha com a legalidade (pela regra de que o negro desembarcado não é mais fazenda proibida), monta no seu burrinho, encontra boas hospedagens nas fazendas, e o lucro certo de sua traficância; e com o coração vazio de todas as ideias nobres, sorrindo-se estupidamente, anda pelas roças catando os escravos dos lavradores endividados ou arrematando-os em hastas judiciais, sem brio, com ferocidade e fazendo garbo de semelhante infâmia!... (FOLHETIM, 1853cFOLHETIM . Jornal do Commercio , Rio de Janeiro, 25 jan./ 1853c., p. 1)

Essa leitura confirmava a possibilidade de o romance revelar aspectos da realidade do escravismo, com validade inclusive para o cenário brasileiro. Nesse movimento, o folhetinista selecionava um aspecto do romance: a crítica feita aos comerciantes de escravos. No romance, esses eram identificados no personagem Haley, tipo do traficante interno, conforme o procedimento já indicado das tipologias sociais. Mas esse personagem nem mesmo era nomeado pelo folhetinista, que usava o tema para traçar um retrato desabonador dos “mascates de negros novos”, no contexto social brasileiro.

Compreende-se melhor a passagem quando se considera que o mascate é relacionado ao traficante de escravos, aquele que realizava o comércio transatlântico. Tal informação demonstra posicionamento contrário ao tráfico, pois o folhetinista desqualifica o mascate como “infame”. Mas o mascate é apresentado como “ainda mais infame”, o que era significativo no contexto brasileiro, uma vez que o governo se empenhava, efetivamente, na repressão ao tráfico de escravos, e os setores envolvidos - dentre eles, o do folhetinista - lançavam mão de estratégias simbólicas que justificassem essa repressão. A principal delas, conforme Jaime Rodrigues, seguia um padrão duplo de responsabilização em que reforçava a criminalização da figura dos traficantes de escravos, ao mesmo tempo em que inocentava os proprietários de escravos de responsabilidade pelo “infame comércio”, muitas vezes apresentando-os como vítimas dos traficantes (RODRIGUES, 2000RODRIGUES, Jaime. O infame Comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Unicamp/Cecult, 2000., p. 127-132). A leitura do folhetinista participava desse movimento ao afirmar a condição “infame” do traficante, mas o fazia de modo original, ao estender e acentuar essa condição para o caso do mascate, peça importante do esquema de venda de escravos, aprofundando a crítica para além daquilo que a lei então considerava legítimo.

No entanto, mais diretamente relacionado ao discurso do duplo padrão de responsabilização, que condenava traficantes e inocentava proprietários de escravos, foi a leitura do romance de Stowe sugerida por breve, porém significativo, comentário de Manoel Peixoto de Lacerda Werneck, em artigo de 1854WERNECK, Manuel Peixoto de Lacerda. O Café na Província do Rio de Janeiro. Auxiliador da Indústria Nacional, n.º 9, 3 mar./ 1854., publicado na revista da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. O autor era, então, um jovem de 24 anos, filho do barão de Paty do Alferes, expoente da classe senhorial, um dos maiores proprietários de escravos do Vale do Paraíba fluminense e se dirigia à mais prestigiosa academia ilustrada, voltada ao incremento das atividades econômicas do Império. Relatando as origens da produção cafeeira na província do Rio de Janeiro, expunha as dificuldades passadas, anteriormente, pelos produtores de cana-de-açúcar no tocante ao fornecimento e manutenção da escravaria. Referindo-se ao período de continuidade ilegal do tráfico de escravos (1831-1850), afirmava:

A esse tempo parece que a corrupção havia invadido todas as regiões de nossa sociedade. Existia um tratado sobre a extinção da escravatura, e esse tratado foi violado pelos próprios homens da administração e pelos influentes do dia: vastos estabelecimentos se fundaram nos arrabaldes da capital do Império: o traficante de escravos teve distinto acolhimento nos nossos primeiros círculos, vivia no fausto e na grandeza, rodava em magníficas equipagens, comprava títulos e brasões, e de miserável aldeão do Alentejo ou da Beira constituía-se grande senhor e verdadeiro potentado entre nós!

Não exageramos os fatos como Ms. Stowe; aí estão os fazendeiros da província do Rio, dentre os quais temos parentes e amigos que foram vítimas desses Haleys. Com mágoa o dizemos, nessas traficâncias tomaram parte caracteres bem notáveis do nosso país: as belas máximas da religião e da moral foram absolutamente esquecidas (…). Sob a pressão de tais sofrimentos, a agricultura e, sobretudo, o fabrico do açúcar fez crise; o senhor de engenho cansou, esmoreceu e desmaiou de todo. (WERNECK, 1854WERNECK, Manuel Peixoto de Lacerda. O Café na Província do Rio de Janeiro. Auxiliador da Indústria Nacional, n.º 9, 3 mar./ 1854., p. 276, 277)

Essa peculiar leitura, realizada por um jovem fazendeiro escravista, ressignificava o romance de Stowe ao inseri-lo em um contexto argumentativo em que os proprietários eram apresentados como vítimas da cobiça dos traficantes, a ponto de esses últimos serem acusados de responsáveis pela crise da produção açucareira na província. Werneck, como de praxe na leitura pró-escravista, apontava a falha de verossimilhança (exagero) do romance de Stowe. Contudo, não deixava de fazer uso dele para desqualificar os comerciantes de escravos, referindo-se diretamente ao personagem Haley, identificado no romance como o tipo social do traficante interno, aqui mobilizado de acordo com o protocolo de leitura sugerido pela autora. Trata-se, portanto, no conjunto, de uma leitura de A Cabana do Pai Tomás que procura legitimar a repressão governamental ao tráfico de escravos e, ao mesmo tempo, inocentar a classe senhorial de envolvimento com tal prática, e só então, após a sua abolição legal e efetiva, deplorada como contrária à moral e à religião. Trata-se de um caso de leitura do romance abolicionista de Stowe por um jovem proprietário de escravos, que legitimava o status quo escravista do imediato pós-tráfico, servindo para inocentar o conjunto da classe senhorial, apresentada como vítima do tráfico imoral e irreligioso ao mesmo tempo em que apresentava sua abolição como obra humanitária.

Leituras entusiásticas

Se as experiências de leitura vistas até aqui correspondiam a setores que naturalizavam ou eram favoráveis à continuidade da escravidão, havia também setores que nutriam sentimentos antiescravistas e defendiam o abolicionismo gradual, não havendo, porém, movimentos coletivos favoráveis a sua supressão próxima. O horizonte de expectativa da sociedade brasileira de meados do Oitocentos no tocante à escravidão não era um todo homogêneo5 5 Ainda que este seja um estudo de recepção de uma obra literária, o conceito de “horizonte de expectativa” aqui empregado remete antes às formas de projeção do futuro a partir do presente, sentido dado por Reinhart Koselleck, que propriamente às formas de compreensão de aspectos formais da literatura, vigentes entre leitores de uma determinada época, conforme o sentido dado por Hans Jauss. (JAUSS, 2013,.p. 54). . Os setores antiescravistas não deixaram de se manifestar no momento da publicação de A Cabana do Pai Tomás, realizando leituras entusiásticas, que tendiam a seguir parcialmente o protocolo de leitura sugerido pela autora, ainda que fazendo uso para situações específicas à realidade da deslegitimação do escravismo brasileiro.

Em seis de fevereiro de 1853, o Correio Mercantil, diário do Rio de Janeiro ligado ao partido liberal, publicava um folhetim anônimo que visava refutar as críticas feitas à “Senzala de Tio Tom”:

Um dos nossos mais espirituosos escritores e poeta amável, cheio de sentimento, sustentou, depois da leitura do poema de Miss Stowe, que em alguns dos quadros da Senzala de tio Tom carregara demasiado as tintas a graciosa americana. /A Providência quis, porém, dar-lhe um solene desmentido, e fê-lo domingo passado testemunhar uma dessas cenas que jamais se riscão [sic] da memória, porque lá as escreve o coração com lágrimas. / Uns poucos de herdeiros dividiam nesse dia, em uma fazenda a poucas léguas da capital da província, os escravos que lhes haviam tocado em legado. Cada um dispunha deles como lhe aprazia ou convinha, separando, é verdade que com dor, o irmão da irmã, o filho do pai, a mãe da filha... As lágrimas caiam em borbotões, sobre essas faces onde não costumam refletir-se as sensações da alma; em um momento todos esses entes que amam, sentem e sofrem, vão desaparecer ante si (…). (105a. PACOTILHA, 1853105.ª PACOTILHA. Correio Mercantil. Rio de Janeiro, 6 fev./ 1853., p. 1)

O autor rebatia a acusação de inverossimilhança contra o livro e para tal recorria ao exemplo de leilão de escravos observado no interior da província do Rio de Janeiro, mobilizando-o para afirmar a pertinência do romance para lançar luz sobre a realidade da escravidão brasileira. Esta era condenada, na continuidade do escrito, por sua crueldade contra os direitos de uma raça inteira, representada, conforme a caracterização sugerida por Stowe, como composta por seres sensíveis, “que amam, sentem e sofrem”, reproduzindo o tom sentimental da escrita do romance. Se havia algum descompasso entre a realidade da escravidão brasileira e sua representação no romance de Stowe, seria no sentido de que a primeira era fonte de dor ainda maior do que a retratada, considerando-se que “Miss Stowe, na senzala do tio Tom, ficará aquém da verdade, porque não é possível à pena traduzir as íntimas sensações do coração” (105a. PACOTILHA, 1853105.ª PACOTILHA. Correio Mercantil. Rio de Janeiro, 6 fev./ 1853., p. 1).

Ao mesmo tempo, o autor fazia uso propriamente político do romance. Não falava de abolição imediata, mas defendia a repressão ao tráfico de escravos, apresentando-o como “um dos cancros mais asquerosos que jamais tenha afligido a pobre descendência de Adão”. Afinal, em sua visão:

Se há hoje uma missão santa, grande, nobre e generosa, é a de combater o tráfico. Os homens que, sacrificando interesses, atacando frente a frente, com calma e sangue frio, velhos preconceitos enraizados no interesse, têm feito dar um passo progressivo a essa grande questão utilitária e civilizadora, são beneméritos da humanidade. (105a. PACOTILHA, 1853105.ª PACOTILHA. Correio Mercantil. Rio de Janeiro, 6 fev./ 1853., p. 1)

A referência ao “passo progressivo” sugere um horizonte futuro marcado pela supressão da escravidão, em relação à qual a abolição do tráfico seria um momento importante em um processo gradual. Mas, no presente, o autor lamentava a morte do cônsul britânico, “do Sr. Southern, porque, ao que parece, fez ela abrandar o rigor do governo contra os autores do último desembarque de africanos, pois que o ministério decididamente fez abnegação da própria dignidade” (105a. PACOTILHA, 1853105.ª PACOTILHA. Correio Mercantil. Rio de Janeiro, 6 fev./ 1853., p. 1). Ao contrário de um elogio ao governo, o romance era usado para criticar o gabinete conservador do Visconde de Itaboraí por afrouxar as medidas de repressão, que, sugere-se, continuavam pautadas pela pressão britânica.

No mesmo tom favorável ao livro de Stowe foram os comentários feitos por Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo da potiguar Dionísia Gonçalves Pinto, pioneira do feminismo brasileiro, em seu livro Opúsculo Humanitário, cujos capítulos foram publicados em artigos ao longo de 1853 no Diário do Rio de Janeiro (DUARTE, 2008DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta: vida e obra. Natal, RN: EDUFRN, 2008.). Na contramão das leituras refratárias, vistas anteriormente, a sua destacava os aspectos da escrita sentimental de A Cabana do Pai Tomás, ao considerar que o livro “é um primor de moral, de delicadeza de estilo, de sentimentos sublimes, de preceitos cristãos, simples e habilmente dirigidos por mão feminina” (FLORESTA, 1853FLORESTA, Nísia. Variedades - Opúsculo Humanitário. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 6 maio/ 1853., p. 2). Ao invés de representar uma vertente degenerada do romance moderno, o livro era valorizado como “um moderno Evangelho, em que todos os corações americanos deveriam ir beber as lições do Cristo transmitidas pelo apóstolo menino”. Sua leitura implicava uma certa visão da escravidão brasileira:

Nós outros brasileiros, que lemos esse livro, orando do opróbrio, que igualmente pesa sobre a nossa terra, nas reproduções daquelas cenas de horror, que tão pateticamente descreve a insigne Stowe, deveríamos fazer nossos filhos decorar algumas de suas páginas mais salientes, a fim de podermos guardar a consoladora esperança de que as gerações futuras farão apagar, nas que forem um dia a nossa história, a impressão dolorosa dos crimes cometidos pelas gerações presentes sobre a mísera raça africana!/Possa a mocidade brasileira, essa flor esperançosa do nosso grandioso futuro, aprender do filantropo Saint-Claire, do senador Bird, e de sua esposa, de Mrs. Shelby, da digna quaker Rachel, da celeste pequena Eva, tipo sublime do amor da caridade, e sobretudo do jovem George, os sentimentos que devem distinguir o verdadeiro cristão. (FLORESTA, 1853FLORESTA, Nísia. Variedades - Opúsculo Humanitário. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 6 maio/ 1853., p.2)

A leitura iniciava-se dando destaque a similitude entre a representação da escravidão no livro e a realidade da escravidão brasileira, ambas marcadas pelas mesmas “cenas de horror” e “opróbrio”. Não somente as descrições do livro seriam válidas para a situação brasileira como nada teriam de inverossímil, mesmo para o contexto dos EUA. Nísia Floresta compartilhava o antiescravismo de Stowe, mas dela se distanciava ao sugerir que a supressão da escravidão não seria algo para agora, pelo menos para o caso brasileiro. Se a abolição da escravidão estava no horizonte de Nísia Floresta, expressa pela metáfora do apagamento dos crimes da escravidão de nossa história, ela seria uma esperança, tarefa para as gerações futuras, que a aproximava das teses favoráveis ao abolicionismo gradualista, sem rupturas bruscas. Daí a utilidade de A Cabana do Pai Tomás como obra obrigatória para “nossos filhos”, na medida em que somente aqueles formados desde cedo nos valores antiescravistas poderiam cumprir tal tarefa (FLORESTA, 1853FLORESTA, Nísia. Variedades - Opúsculo Humanitário. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 6 maio/ 1853., p. 2).

Daí também o destaque dado, dentre todos os personagens citados, ao jovem George [Shelby] como exemplo maior de conduta para o cidadão brasileiro em formação. Seguindo o padrão de representação de tipos sociais adotado por Stowe, George Shelby representava o tipo do jovem proprietário de escravos convertido ao abolicionismo. Filho do Sr. Shelby, primeiro proprietário do Pai Tomás, George era o “sinhozinho” tornado adulto que chegou tarde demais para comprar a liberdade do ex-escravo de seu pai, já que o encontrou à beira da morte. Jurou, então, perante o corpo moribundo do Pai Tomás, libertar todos os escravos de sua propriedade, cumprida em um dos últimos capítulos do livro. Ao destacar George Shelby como personagem exemplar para a mocidade brasileira, Nísia Floresta lançava, para um indefinido futuro, a tarefa da abolição da escravidão. Sua leitura do romance, se aceitava a expectativa abolicionista de Stowe, não implicava, contudo, a aceitação de sua versão imediatista. Nísia realizava, assim, uma “bricolagem” que, ao mesmo tempo, expandia o horizonte antiescravista em relação ao padrão corrente na sociedade brasileira, mas não a ponto de atingir aquele sugerido por Stowe.

Outra experiência foi a da leitura realizada por Antônio Idelfonso Gomes, registrada nas páginas do Correio Mercantil. Doutor em medicina, se aventurava pela homeopatia e era dotado de um raro e solitário fervor antiescravista. Verdadeiro franco-atirador abolicionista, favorável à supressão próxima da escravidão6 6 Além de apelos emocionados ao Imperador, pelo menos em duas oportunidades, em 1848 e 1850, Ildefonso Gomes formalizou sugestões à câmara dos deputados para que aprovassem a abolição imediata de escravos da fazenda nacional (africanos livres), das ordens religiosas, das obras pias, dos colonos e daqueles que se naturalizassem brasileiros, rematando seu pedido com a solicitação da abolição completa da escravidão no dia sete de setembro de 1870. Ambas foram enviadas a discussão em comissões e aí parecem ter sido extinguidas. GOMES, A. Ildefonso. Publicações a Pedidos, in: Correio Mercantil, 13 de maio de 1851, p. 0. , a partir de 1851, escreveu uma série de artigos no Correio Mercantil em que condenava o tráfico, usufruindo de uma retórica apocalíptica que destacava o caráter pecaminoso não somente da venda de escravos, mas também de sua posse. Se havia alguém, no Brasil de meados do século XIX, que pronunciava “jeremiadas” antiescravistas, para retomar o termo do folhetinista do Brasil Comercial visto anteriormente, esse alguém era Antônio Ildefonso Gomes.

Em 1855, ele voltava à carga, mas dessa vez apresentando uma leitura própria de A Cabana do Pai Tomás. Em sua visão, “A Senzala do tio Thomaz nada tem de odioso e imoral, em comparação das atrocidades e horrores praticados pelos Brasilienses, que são os dignos descendentes da varredura das galés e enxovias da Europa, castiçados com o selvagem bugre americano e o sarnento, beberrão e leproso africano mono”. A referência negativa e desumanizadora ao “beberrão e leproso africano mono”, elemento racista de sua visão apocalíptica, indica as tensões e a distância da leitura feita em relação à visão de Stowe do negro como paciente, sensível e sociável.

Mas, no essencial, Ildefonso Gomes defendia o romance das críticas negativas que recebera de seus detratores. E, mantinha, em certa medida, o argumento da inadequação da representação em relação à realidade brasileira, mas, invertia, no entanto, seu sentido político e social. Se havia algum problema na forma de representar a realidade da escravidão não seria por exagero, como afirmavam as leituras pró-escravistas, mas do contrário, pela sua insuficiência em dar conta dos males da escravidão nacional. A representação da escravidão apresentada em A Cabana do Pai Tomás era usada por Ildefonso para destacar a situação ainda mais odiosa da escravidão brasileira, visando, assim, potencializar seu sentido antiescravista.

O artigo ainda apresentava cena narrada por uma escrava, que introduzia elementos ficcionais próximos das descrições patéticas de A Cabana do Pai Tomás, mas que era apresentada como uma experiência real relatada ao próprio autor. Ildefonso conta que, como médico, fora socorrer uma escrava parda clara, vítima do tráfico interno, quase morta por ter sido privada de sono e alimentação ao ser trazida de uma província do Norte. Ela teria lhe narrado sua história: conta ter sido bem criada por uma senhora, após a morte dessa senhora fora herdada por “nhonhô-dindinho”, este “É o Senhor..., sobrinho da defunta minha senhora e é meu padrinho de batismo, e foi ele mesmo quem de meus braços arrancou... o meu... o meu único... o meu filho... de três anos só, e vendeu-me a um comprador de gente” (GOMES, 1855GOMES, A. Ildefonso. Viva a escravidão, abaixo a liberdade. Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 31 jul./ 1855., p. 3). Destaca-se a redefinição do tema da escravidão como desrespeito aos mais sagrados laços familiares e religiosos, sob a chave sentimental peculiar ao romance de Stowe, e inédito sob a pena de Ildefonso, de identificar o escravo como ser sensível e vítima da violência e imoralidade. A leitura do romance de Stowe permitia, assim, que Ildefonso inovasse seu discurso antiescravista mediante o confronto de seu tom apocalíptico e negrófobo com elementos da escrita sentimental, no caso, um relato ficcionalizado que apelava para a mobilização do patético, visando incentivar o sentimento de piedade perante o sofrimento da escrava, apresentada de forma inovadora como vítima sensível.

Quanto a um uso mais diretamente político da leitura realizada, cabe considerar que Ildefonso Gomes, antes mesmo de conhecer o romance de Stowe, já era favorável à supressão relativamente breve da escravidão (propunha, como indicado, a abolição total para 1870). Se a leitura do livro não o converteu à defesa da abolição imediata, no entanto, além de pautar seu antiescravismo pelos novos tons sentimentais da autora, ela o ajudou a formular um discurso marcado pela apresentação explícita dos males da escravidão, sem qualquer condescendência com os governos ou o status quo escravista brasileiro pós-supressão do tráfico. Assim, o artigo apresentava o fim do tráfico como uma imposição inglesa e não como fruto da acuidade e filantropia dos fazendeiros e do governo brasileiro. Em vez da visão apaziguadora que o entendia como um passo para o fim da escravidão, ele era visto como uma reconfiguração do comércio negreiro, que passava a ser internalizado, voltando-se “o danado comércio para o centro e margens do Império”. Logo, “cobiçosos canibais, rafados e desalmados futricantes, arrebanham as desamparadas vítimas, por toda a costa norte e sertões do centro (…)” e as direcionam para o vale do Paraíba cafeeiro, apresentado como “o grande sorvedouro, a charqueada antropófaga, o grande açougue brasiliense”. A verve de Ildefonso ainda atacava as “velhas charqueadas, fazendas de criar”, onde “forçam-se moças brancas (muitas vezes filhas de seu próprio senhor) a casar-se com negros da Costa Africana para atrasar a raça (termo técnico dos malvados) (…)” (GOMES, 1855GOMES, A. Ildefonso. Viva a escravidão, abaixo a liberdade. Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 31 jul./ 1855., p. 03). Assim, a leitura que considerava a descrição de A Cabana do Pai Tomás como aquém dos males da escravidão brasileira, era usada para reforçar uma visão crítica que via o fim do tráfico não como um passo na supressão da escravidão, pelo contrário, um meio de consolidá-la pela internalização do comércio de cativos e pela garantia de sua autorreprodução mediante a expansão de uma população que trazia a marca (degradante, para o autor) do sangue africano.

Mas, para além das declarações de princípios e críticas gerais ao tráfico de escravos e à escravidão, o romance poderia sustentar iniciativas mais concretas de defesa da liberdade. Em 1857, o Diário de Pernambuco, jornal recifense, publicou o caso, ocorrido em Itamaracá, de uma menina crioula livre, pois nascida de Balbina, cujo abastado senhor, Francisco João do Pilar, tornara liberta pouco tempo antes do parto. Falecida Balbina, logo também faleceu o senhor. “Pois bem, meu amigo, saiba que querem tentar contra a liberdade da crioulinha, que procedeu de ventre livre, e ai da infeliz se não houver uma voz que se levante em seu favor” (ITAMARACÁ, 1857ITAMARACÁ. Diário de Pernambuco, Recife, 21 set./ 1857., p. 2). De fato, os herdeiros do senhor inseriram a criança no rol de partilha da herança como se fosse escrava, levaram-na para Recife e aguardavam a consumação do processo. Por seu lado, “a crioulinha tem pai e padrinhos aqui (Itamaracá), estes foram valer-se ao nosso vigário, por quem foi ela batizada, e (...) este prometeu fazer tudo que tivesse a seu alcance” (ITAMARACÁ, 1857ITAMARACÁ. Diário de Pernambuco, Recife, 21 set./ 1857., p 02), escrevendo aos inventariantes e também ao presidente da Província, visando restituir a plena liberdade à criança. Nesse momento o autor fazia uso do romance de Stowe para legitimar sua demanda contrária à escravização da menina:

Quando em um ponto da América já um lamento, arrancando do peito feminino, uma voz de mulher, a voz meiga e compassiva, e por isso poderosa, da ilustre mistress Henriqueta Beecher Stowe, se fez ouvir na causa mais justa e mais santa, qual a emancipação da infeliz raça negra, e esta voz, qual centelha elétrica, tem inflamado todos os corações bem formados; quando na capital de nosso florescente Brasil existe uma sociedade, que segue a mesma honrosa divisa, o mesmo heróico timbre (…) na nossa bela província de Pernambuco, que é uma das primeiras do Império por sua grandeza, civilização e riqueza, hé de se dar fatos que fazem corar de pejo o mundo civilizado e cristão?!-A Dio non piaccia.- Estamos felizmente na época do progresso, e temos autoridades zelosas que sabem cumprir seus deveres e executar a justiça; por isso confiamos muito que o caso de que acabamos de falar seja tomado na maior consideração. (ITAMARACÁ, 1857ITAMARACÁ. Diário de Pernambuco, Recife, 21 set./ 1857., p 2)

O livro de Stowe era mobilizado a partir de uma leitura que, contornando a questão da veracidade, apresentava seu abolicionismo como o parâmetro de progresso e civilização da época. Em outros termos, A Cabana do Pai Tomás ajudava o correspondente a reverter a condição valorativa dos grupos sociais do Brasil escravista: bárbaros deixavam de ser os africanos escravizados ou seus descendentes crioulos e passavam a ser seus senhores que os submetiam à lógica crua da escravidão; bárbara tornava-se a própria escravidão sendo a civilização o seu contrário.

Considerações finais

Nos anos 1850, conforme assinala Tamis Parron, os setores pró-escravistas buscaram impedir o debate parlamentar acerca da escravidão no Brasil. O silêncio sobre o tema da escravidão se apresentava, antes de tudo, como uma política deliberada, parte de um conjunto de medidas adotadas para tornar estável o cativeiro no momento em que o fim do tráfico poderia reforçar a expectativa de sua supressão, ainda que gradual (PARRON, 2011PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil (1826-1865). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011., p. 287 a 300). Neste momento, chegaram os primeiros exemplares de A Cabana do Pai Tomás, embalados pelo enorme sucesso internacional e a fama de romance abolicionista.

Esses fatores também incitavam o interesse do público, que se dedicou à leitura do romance. As impressões não foram unívocas, houve uma diversidade de leituras e usos de A Cabana do Pai Tomás pelos brasileiros, indicando cada qual formas diferenciadas de considerar a dimensão realista do romance. Ou seja, nem todos aceitaram o pacto de realismo proposto, muitos não consideraram o livro como verossímil. Assim, pelo menos três grupos, com modos de leituras próprias, se destacaram. O primeiro grupo realizou uma leitura refratária, fortemente desqualificadora do livro, que unia negação da capacidade de o romance representar a escravidão em geral (e para o caso brasileiro em especial) à indicação dos efeitos sociais e políticos perversos que poderia existir sobre a ordem estabelecida, sugerindo que “os amigos do Tio Tomás”, entusiastas do romance, seriam responsáveis por solapar a submissão do escravo a seu senhor. Afirmação de inverossimilhança e defesa da ordem escravista andavam de mãos dadas.

O segundo grupo, minoritário, realizou uma leitura ambígua. Se, por um lado, se aproximava dos leitores refratários, ao acusar a falha de verossimilhança do romance, por outro lado, se apropriava de algum aspecto específico do livro para defender causas próprias. Esse grupo fez uso do romance para reforçar o discurso que desqualificava comerciantes de escravos (mascates ou traficantes), ao mesmo tempo em que isentava os proprietários, ao apresentá-los como vítimas dos primeiros. Consequentemente, inocentando o proprietário escravista e excluindo a supressão da escravidão de seu horizonte. Essa modalidade de leitura contrariava o abolicionismo proposto por Beecher Stowe e ainda usava A Cabana do Pai Tomás como justificativa para o status quo escravista, adequando-o, porém, ao contexto específico do pós-tráfico.

Por fim, o terceiro grupo, o mais extenso, fazia uma leitura entusiástica do livro e reconhecia sua capacidade de representar a escravidão de forma verossímil, ainda que por vezes destacasse que a crueldade da realidade brasileira ia além da retratada no romance. Os usos do romance foram os mais diversos e incluíam a crítica ao descaso do governo na repressão ao tráfico, a defesa da abolição futura, a condenação do status quo pós-tráfico como reforçador do escravismo, ou ainda a defesa de uma criança contra sua escravização ilícita. Se todas as leituras desse grupo confluíam com a perspectiva antiescravista de Beecher Stowe, nenhuma, porém, realizava leituras que compartilhavam explicitamente de sua defesa de uma abolição imediata da escravidão. Nem por isso se deve menosprezar o potencial do livro em solapar as bases de legitimação simbólica da escravidão na sociedade brasileira oitocentista.

Daí uma segunda conclusão, que diz respeito à centralidade do caráter político dessas primeiras leituras. Ainda que outros aspectos (como o literário ou o papel da mulher) não estejam ausentes, essas primeiras leituras brasileiras do romance, independentemente do posicionamento adotado, remeteram prioritariamente à questão, de interesse público, da escravidão. Foram leituras eminentemente políticas, que indicavam que parte do público utilizava o romance como instrumento de desvelamento da realidade da escravidão brasileira.

Muito mais que um simples entretenimento, o interesse que A Cabana do Pai Tomás despertou junto a setores do público leitor no Brasil pós-tráfico ajudou a impedir que a política do silêncio previamente mencionada se estendesse para além do parlamento, obrigando mesmo os adversários do livro a se manifestarem, mesmo que fosse para refutá-lo. Mesmo não tendo, entre nós, a enorme repercussão da “Tom mania” europeia, o romance incentivou o debate sobre o cativeiro em um contexto marcado por tentativas de evitar ao máximo a discussão pública sobre o tema. Já nos anos 1850, o romance se tornou referência de crítica à escravidão, contribuindo para tencionar o debate sobre sua legitimação no Império brasileiro, em um momento em que era de especial interesse dos setores escravistas silenciar sobre a questão.

  • 1
    Este artigo não foi previamente publicado em plataforma preprint e todas as fontes e bibliografia empregadas são nele referidas. Os jornais citados foram acessados pelas plataformas das hemerotecas digitais da Biblioteca Nacional do Brasil e da Espanha. Registra-se aqui especial agradecimento ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico e Científico - CNPq pela bolsa de pós-doutorado que permitiu a realização de parte da pesquisa que fundamenta esse artigo.
  • 3
    “The separate incidents that compose the narrative are, to a very great extent, authentic, occuring, many of them, either under her own observation, or that of her personal friends” [tradução minha]. STOWE, 1994. p. 381.
  • 4
    Richard Hildreth (1807-1865) era um jornalista e historiador estadunidense que, em 1836, publicou The Slave, or memory of Archie Moore. Tratava-se de uma obra de ficção, mas que se apresentava na qualidade de uma narrativa escrava (slave narrative), um relato não ficcional. Aproveitando o sucesso de A Cabana do Pai Tomás, o livro foi reeditado em 1852, com o novo título mencionado no corpo do texto.
  • 5
    Ainda que este seja um estudo de recepção de uma obra literária, o conceito de “horizonte de expectativa” aqui empregado remete antes às formas de projeção do futuro a partir do presente, sentido dado por Reinhart Koselleck, que propriamente às formas de compreensão de aspectos formais da literatura, vigentes entre leitores de uma determinada época, conforme o sentido dado por Hans Jauss. (JAUSS, 2013JAUSS, Hans Robert. Pour une esthétique de la réception. Tradução de Claude Maillard, prefácio de Jean Starobinski. Paris: Gallimard, 2013.,.p. 54).
  • 6
    Além de apelos emocionados ao Imperador, pelo menos em duas oportunidades, em 1848 e 1850, Ildefonso Gomes formalizou sugestões à câmara dos deputados para que aprovassem a abolição imediata de escravos da fazenda nacional (africanos livres), das ordens religiosas, das obras pias, dos colonos e daqueles que se naturalizassem brasileiros, rematando seu pedido com a solicitação da abolição completa da escravidão no dia sete de setembro de 1870. Ambas foram enviadas a discussão em comissões e aí parecem ter sido extinguidas. GOMES, A. Ildefonso. Publicações a Pedidos, in: Correio Mercantil, 13 de maio de 1851, p. 0.

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Editado por

Editores Responsáveis: Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    24 Jun 2019
  • Aceito
    15 Out 2019
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