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ECOS DO ARISTOTELISMO NA TRATADÍSTICA POLÍTICA HISPÂNICA: TEORIAS DO DIREITO NATURAL E DOUTRINAS CONSTITUCIONALISTAS NA ÉPOCA MODERNA (1528-1612)1 1 Todas as obras empregadas na confecção do artigo são referidas nas notas e na bibliografia. O artigo não foi publicado em plataforma de preprint.

ECHOES OF ARISTOTELIANISM IN HISPANIC POLITICAL TREATIS: THEORIES OF NATURAL LAW AND CONSTITUTIONALIST DOCTRINES IN THE MODERN AGE (1528-1612)

Resumo

O objetivo deste estudo é analisar as implicações da matriz aristotélica-tomista na composição das doutrinas constitucionalistas presentes na tratadística política hispânica. Demonstra-se como algumas teses do direito natural, reelaboradas pelos teólogos e juristas da Segunda Escolástica, foram decisivas para a formulação das estratégias discursivas de limitação do poder régio e de afirmação do primado da lei na organização social, estando, portanto, umbilicalmente associada aos esforços constitucionalistas de ordenação do funcionamento da esfera política.

Palavras chave:
História dos discursos políticos; Segunda Escolástica; Aristóteles; Limites do poder régio; Pacto político

Abstract

The aim of this study is to analyze the implications of the Aristotelian-Thomism matrix in the composition of the constitutionalist doctrines present in the hispanic political treatis. It is demonstrated how some theses of natural law, re-elaborated by the jurist theologians of the Second Scholastic, were decisive for the formulation of the discursive strategies of limitation of the royal power and affirmation of the primacy of the law in the social organization, being therefore, intrinsically associated with the constitutionalists efforts to ordination the functioning of the political sphere.

Keywords:
History of political discourses; Second Scholasticism ; Aristotle; Limits of royal power; Political pact

Em uma obra já clássica, Æs Fundações do Pensamento Político Moderno, publicada pela primeira vez em 1987, Quentin Skinner registrou que os filósofos tomistas da Contrarreforma foram designados em numerosas ocasiões como "os principais fundadores do pensamento constitucionalista e até do pensamento democrático moderno” (SKINNER, 2017SKINNER, Quentin. Æ fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 450). Skinner afirmava que por meio da manipulação do legado tomista, os teólogos e juristas da Contrarreforma estiveram aptos a alcançar teses radicalmente "populistas”3 3 Utilizo a mesma terminologia empregada pelo autor, Quentin Skinner, na obra em questão. . O renomado especialista na história do discurso político sustentava ainda que um distintivo caráter constitucionalista revestiu os tratados mais influentes de teoria política produzidos na Europa Católica dos Seiscentos. Quase uma década depois, em 1996, o historiador Joan-Pau Rubiés, ao retratar o ambiente político da Monarquia Hispânica4 4 Recentemente, o historiador Irving Anthony A. Thompson questionou a atribuição do epíteto de "Monarquia Hispânica” entre outros, para designar o complexo territorial hispânico na época moderna. Apesar de considerar válida uma série de argumentos apresentada pelo autor, não considero que exista justificativa suficiente para o descarte do termo, contanto que sua utilização seja feita com consciência de seus limites terminológicos e sublinhando os significados e as intenções por trás do uso do termo Monarquía realizado pelos próprios sujeitos históricos (THOMPSON, 2016). da época moderna, asseverou que o constitucionalismo não pode ser entendido como uma ficção teórica ou um arcaísmo medieval, ponderando igualmente que é possível encontrar manifestações constitucionalistas em todos os reinos que compunham a citada monarquia (RUBIÉS, 1996RUBIÉS, Joan-Pau. La ideia del gobierno mixto y su significado en la crisis de la Monarquía Hispánica. Historia Social, n.° 24, p. 57-81, 1996.). No ano de 1991, no verbete dedicado precisamente à temática do constitucionalismo, publicado em The Cambridge History of Political Thought; 1450-1700, Howell Lloyd, após explicitar o significado amplo e as variadas implicações associadas ao termo constituição, avalia que não configura um dispositivo anacrônico caracterizar como constitucionalismo certas doutrinas e noções, presentes no discurso político moderno, partidárias de um poder político exercido dentro de determinados limites institucionais (LLOYD, 1991LLOYD, Howell. Constitutionalism. In: BURNS, James Henderson (edit.). The Cambridge History of Political Thought (1450-1700). Cambridge: Cambridge University Press, 1991, p. 254-297.). Mais recentemente, em 2008, na tradução ampliada de um texto publicado originalmente em língua inglesa, no volume coletivo Republicanism; a shared european heritage, Xavier Gil Pujol, partindo da análise das linguagens e do vocabulário político das Coroas de Castela e Aragão, indicou a existência das doutrinas e teorias de caráter constitucionalista no contexto mais amplo da Monarquia Hispânica, bem como o relevante papel que ocupavam (PUJOL, 2008).

O elemento comum que permeia as obras de Skinner, Rubiés e Gil Pujol, além da afirmação das doutrinas constitucionalistas como uma vertente presente e ativa no repertório político disponível aos modernos, é a associação umbilical identificada entre os esforços teóricos e conceituais empreendidos por alguns dos membros da Segunda Escolástica e o desenvolvimento de ativas linhas de forças das doutrinas constitucionalistas. Em consonância com este argumento, Gil Pujol identifica, no discurso político dos teólogos e juristas neoescolásticos da Escola de Salamanca, um tom predominantemente constitucionalista assentado na defesa do direito natural e do bem comum como componentes estruturantes da reflexão e da prática política (PUJOL, 2008). Por sua vez, Rubiés crê na distinção de um elemento de ordem teórica na composição do constitucionalismo associado às noções abstratas de soberania e justiça elaboradas de acordo com os preceitos da lei natural. Outros especialistas na história do pensamento político moderno, alguns deles em publicações bastante recentes, como Pedro Calafate (CALAFATE, 2015CALAFATE, Pedro (dir.). A Escola Ibérica da Paz; nas universidades de Coimbra e Évora (século XVI). Coimbra: Edições Almedina, 2015, v. 2.), José Fernández Santamaría (FERNÁNDEZ SANTAMARÍA, 2005FERNÁNDEZ SANTAMARÍA, José. Natural Law, Constitutionalism, Reason of State and War. New York: Peter Lang Publishing, 2005, 2 v.) e Pablo Fernández Albaladejo (FERNÁNDEZ ALBALADEJO, 1992FERNÁNDEZ ALBALADEJO, Pablo. Fragmentos de Monarquía: trabajos de historia política. Madrid: Alianza Editorial, 1992.) engrossam o coro dos que advogam a favor do crucial papel desempenhado pela interpretação da lei natural, realizada por teólogos e juristas da Segunda Escolástica, na construção e desenvolvimento de uma corrente discursiva que, em suas consequências últimas, esgrimiu teses acerca da soberania popular, da limitação do poder político pela lei natural e divina, da fundamentação ética do governo, do direito de resistência à tirania, dentre outros tópicos de escusada importância.

O ponto de partida desta análise, portanto, é uma espécie de lugar comum na historiografia sobre o discurso político moderno, qual seja a inter-conexão entre direito natural, Segunda Escolástica e doutrinas constitucio-nalistas. Contudo, almeja-se um objetivo menos visitado que corresponde ao exame diacrônico do percurso trilhado por determinados componentes discursivos fundamentais para as elaborações das doutrinas constituciona-listas, no âmbito de influência da Segunda Escolástica. Assim, dentro do escopo deste artigo, o marco inicial é o legado aristotélico, passando pela harmonização desenvolvida por Tomás de Aquino das doutrinas do esta-girita com o catolicismo, até chegar aos teólogos e juristas hispânicos. No âmbito dos modernos, começa-se, ainda no século XVI, com um dos grandes personagens associado à Segunda Escolástica, também considerado um dos fundadores do Direito Internacional, Francisco de Vitoria. O percurso se encerra, no início do XVII, com o reputado jesuíta Francisco Suárez. Ao examinar o legado aristotélico-tomista, buscou-se identificar as possíveis teses e noções que foram acolhidas e reelaboradas no contexto intelectual da Segunda Escolástica. A ênfase da análise recaiu, portanto, mais sobre o intuito de assinalar convergências e similitudes do que em apontar dissensos nas obras examinadas, posto que pretendeu-se iluminar os argumentos centrais abraçados por uma linguagem política específica.

Os pressupostos do direito natural, fundamentados no legado aristotéli-co-tomista, foram percebidos como o húmus comum a partir do qual foram nutridas teorias destinadas a fixar as barreiras de atuação do poder régio. A intenção principal é definir o contexto das obras dos teólogos e juristas hispânicos em sua especificidade linguística, na qual, além do contexto socio-histórico, também importa interpretar as proposições da teoria social e política produzidas ao longo da história. O viés discursivo, no entanto, não deve ser percebido como uma maneira engessada de analisar o passado, isolando-o em sua fenomenologia linguística, dado que na exegese do texto, a importância concedida ao campo semântico de cada um dos conceitos principais, bem como à análise dos seus possíveis sentidos, ganha relevância à medida que denuncia seu componente de carácter histórico e social, pois, toda semântica se relaciona com conteúdos que extrapolam sua condição linguística (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/ PUC - Rio, 2006.).

É preciso ressaltar que a denominação de constitucionalismo aqui refere-se ao entendimento que o fenômeno representa, grosso modo, uma filosofia política defensora do governo limitado pela existência de leis. Em outras palavras, o constitucionalismo, na primeira época moderna, relaciona-se às distintas elaborações de sistemas de controles institucionais e legais sobre o exercício do poder político5 5 De acordo com a concepção desta matéria expressa por alguns especialistas no tema, como Joan-Pau Rubiés e Howell Lloyd. Ver as obras citadas anteriormente. . Logo, faz-se necessário considerar que certas diretrizes, que organizam e dão forma às doutrinas constitucio-nalistas, vão muito além do modelo britânico do rule of law, da inspiração da democracia americana e também do protótipo revolucionário francês. E, ainda, importa notar que tais modelos estiveram amplamente inseridos em um panorama discursivo mais amplo, dialogando com motes e problemas oriundos de outros contextos e tradições.

Recuperar a especificidade das doutrinas constitucionalistas hispânicas constitui um passo decisivo para ampliar o elenco de referências que possuímos para pensar o fenômeno mais amplo do constitucionalismo e, em certo sentido, também do republicanismo. Neste âmbito, a percepção de algumas peculiaridades do contexto socio-histórico da Monarquia Hispânica, ao longo do século XVI até o início do XVII, auxiliam no processo de compreensão do florescimento de tão pujante corrente discursiva. Em linhas gerais, pode-se dizer que a Monarquia dos Habsburgos era, seguindo a concepção de John Elliott, uma monarquia composta, ou seja, uma estrutura descentralizada formada por um coletivo de jurisdições e comunidades bastante diferenciadas entre si que, contudo, prestavam lealdade a um mesmo monarca (ELLIOTT, 2005ELLIOTT, John. Constitucionalismo antigüo y moderno y la continuidad de España. Cuadernos de Alzate, n.° 33, p. 5-19, segundo semestre de 2005.). Isso significa dizer que, ainda com Elliott, a Monarquia Hispânica era um território formado por diversas entidades relativamente autônomas, onde cada província ou reino poderia manter suas próprias instituições políticas, bem como suas leis, privilégios e liberdades vigentes no momento de união com a coroa castelhana; compromisso este que estava garantido por intermédio de um juramento que deveria ser realizado com os sucessivos monarcas da dinastia dos Habsburgos. Assim, a Monarquia Hispânica pode ser apresentada como uma entidade politicamente plural, característica geradora de problemas de governabilidade e de legitimação da autoridade régia, causadora tanto de tensões e atritos, quanto de colaborações e trocas entre a autoridade política, as elites locais e as populações dos diversos reinos.

Na seara relativa aos fenômenos constitucionalistas, apesar da Inglaterra ser apontada com frequência como o modelo por excelência da formação de uma monarquia com base parlamentar, foi, todavia, em território hispânico que documentou-se a primeira convocação para a reunião de uma assem-bleia que incluiria os representantes das cidades e o monarca, isso ainda no século XII, no reino de Leão. Semelhante procedimento só seria registrado um século depois na Inglaterra. Seguindo essa tradição, as cortes de Castela e Leão desenvolveram-se ao longo do século XIII e, ainda nesse século, em 1265, foi redigido o primeiro grande documento jurídico espanhol, Las Siete Partidas, que estabelecia a base de um sistema de governo firmemente assentado na lei (ELLIOTT, 2005ELLIOTT, John. Constitucionalismo antigüo y moderno y la continuidad de España. Cuadernos de Alzate, n.° 33, p. 5-19, segundo semestre de 2005.). A nomeação de Carlos V como imperador teria deflagrado uma rebelião, Las Comunidades de Castilla, que exibe traços que podem ser lidos como uma disputa de ordem constitucional, ainda que não com todas as cores progressistas que lhes foram atribuídas por José Antonio Maravall (MARAVALL, 1984MARAVALL, José Antonio. Las Comunidades de Castilla: una primeira revolución moderna. Madrid: Alianza Editorial , 1984.). Finalmente, é um aspecto decisivo a existência do reino de Aragão e do principado da Catalunha que ostentavam e defendiam com orgulho um sistema político fortemente assentado nos princípios do pactismo.

Cumpre igualmente considerar que os teólogos e juristas responsáveis pelo desenvolvimento de teses centrais das doutrinas constitucionalistas, associados à Segunda Escolástica e cujas obras são objetos de estudo desta investigação, nasceram no seio de famílias nobres que habitavam o espaço hispânico. Por exemplo, Francisco de Vitoria (1483?-1546) nasceu em Burgos, Domingo de Soto (1494-1560) em Segóvia, Diego de Covarrubias y Leyva (1512-1577) em Toledo e Francisco Suárez (1548-1617) em Granada. Este dado empírico possui dois desdobramentos importantes. Como filhos da nobreza local, os atores sociais em questão recebiam a primeira educação em seus próprios núcleos familiares, sendo assim formados no ethos nobiliárquico do período que os sensibilizava para as questões relativas às disputas políticas. Por outro lado, é igualmente importante ponderar que os membros da nobreza hispânica geralmente recebiam educação formal nos colégios e universidades de sua terra. Aqui, o exemplo paradigmático é a Universidade de Salamanca, que empresta seu nome a uma corrente de pensamento, a Escola de Salamanca, muitas vezes tomada como sinônimo da Segunda Escolástica6 6 Escola de Salamanca e Segunda Escolástica podem ser tomadas como entidades realmente muito semelhantes no sentido de que a segunda engloba a primeira, ainda que o contrário não se sustente. Isso porque, de acordo com Ferrater Mora, um dos sentidos atribuídos ao termo Escola de Salamanca é a atividade filosófica e teológica empreendida por escolásticos hispânicos do início do século XVI até o século XVII. Optei por utilizar os dois termos para não excluir da reflexão mais ampla, sobre o discurso político constitucionalista, os teólogos e juristas da Segunda Escolástica de outras nacionalidades, especialmente os portugueses. Muito embora, empreguei o termo Escola de Salamanca sempre que foi preciso sublinhar uma afiliação mais propriamente circunscrita ao contexto da Universidade de Salamanca. . Assim, é bastante crível supor que as teses acerca do direito natural e das doutrinas constitucionalistas - frequentemente amalgamadas - circulavam amplamente nas camadas superiores da sociedade hispânica moderna.

Além dos limites territoriais estritos da Monarquia Hispânica, ao adotar a perspectiva de um contexto socio-histórico mais amplo, convém assinalar que a corrente filosófica chamada de Segunda Escolástica, ou neoescolásti-ca, em fase de atividade plena na época moderna (MORA, 1994MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Edições Loyola , 1994.) e na qual foi central a participação de teólogos, juristas e filósofos ibéricos, teve de responder aos desafios impostos por três grandes acontecimentos históricos que configuram forças centrais da construção da modernidade europeia: a cisão religiosa da cristandade, a centralização do poder político em vias, lentas e tortuosas, de consolidação e a conquista do continente americano que conduz à inauguração de uma primeira mundialização. A participação ativa de grandes nomes da Segunda Escolástica em eventos que são visíveis desdobramentos dos citados processos históricos é bastante clara, por exemplo, as teses de Francisco de Vitoria acerca de questões relativas à soberania e à liberdade indígenas, bem como a discussão sobre a liberdade dos mares, do mesmo autor; a participação de Domingo de Soto no Concilio de Trento; e a controvérsia católica contra o rei Jamie I, da Inglaterra, na qual se engajou Francisco Suárez, em 1613. Esses exemplos ainda revelam o papel primordial ocupado pela Monarquia Hispânica na geopolítica europeia da época moderna, posto que todos os citados personagens nasceram em solo hispânico.

Retomando o argumento central, passaremos agora à análise de uma noção basilar para o desenvolvimento das doutrinas constitucionalistas, a noção de pacto, que pode ser apreendida em conexão com as noções subsidiárias de corpo político7 7 De acordo com Helmut Georg Koenisberger, a analogia do corpo político foi o pão de cada dia da linguagem política europeia ocidental, durante séculos (KOENIGSBERGER, 1978). e da origem da autoridade política. Abordar as matérias que envolvem o conceito de pacto significa lidar com complexos problemas relativos à convivência social, à formação do direito e à crença religiosa, com desdobramentos significativos também para as relações internacionais e para a definição das formas de governo, segundo Ettore Alber-toni (ALBERTONI, 1989ALBERTONI, Ettore Adalberto. Pacto. In: ROMANO, Ruggiero (dir.). Enciclopédia Einaudi. Estado-Guerra. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1989, v. 14, p. 11-43.). Para o autor, o que constitui a essência da ideia de pacto é a concepção de um "acordo consensual e consciente entre individualidades diversas com vista a um fim determinado” (ALBERTONI, 1989, p. 11). O emprego da categoria de pacto no mundo grego, especialmente no pensamento aristotélico, é fundamental para que seja possível compreender como se estrutura a ideia de sociedade e de corpo político na época moderna, dada a inegável força e presença da filosofia peripatética no mundo hispânico, seja diretamente por intermédio de seu fundador, seja mediante o legado tomista. Tomando como premissa a assertiva aristotélica básica de que o homem é um ser vivo político8 8 No livro I da Política, lê-se: "Estas considerações evidenciam que uma cidade é uma daquelas coisas que existem por natureza e que o homem é, por natureza, um ser vivo político” (p. 53). A tradução utilizada emprega a expressão "ser vivo político”, ao invés de "animal social” A justificativa é que a expressão representa melhor a inserção de todo ser humano na polis, a mais abrangente e superior forma de vida comunitária. Em nota explicativa, o tradutor esclarece que: "O termo político (politikon) deve ser tomado na estrita acepção de "cívico”, isto é "participante da vida da cidade”, e não no sentido demasiado lato e fluído de "social” (ARISTÓTELES, 1998, p. 595). compreende-se porque a política representa a categoria central para avaliar e conhecer a sociedade9 9 Conforme observamos na concepção aristotélica: "O maior bem é o bem visado pela ciência suprema entre todas, e a mais suprema de todas as ciências é o saber político. E o bem, em política, é a justiça que consiste no interesse comum” (ARISTÓTELES. Op. cit., p. 231). . Como corolário da natureza social e política do homem sucede que a cidade é também uma criação natural. Devido a estes atributos, a formação da cidade representa a concretização da sociabilidade humana, pois os homens são levados à vivência coletiva por uma necessidade natural de perpetuação da espécie e satisfação das necessidades cotidianas, engendrando assim a cadeia: família, povoado, cidade.

Uma vez que a criação destas primeiras agremiações humanas possui seus caracteres formativos já impressos na própria natureza, a ideia da existência de um pacto original para a instituição da comunidade humana é transferida para o campo político. É neste âmbito que ocorre um pacto simbólico representado pela constituição do regime político orientado para "ordenar os habitantes da cidade” (ARISTÓTELES, 1998, p. 185) e definido como "a organização da cidade, no que se refere às várias magistraturas e, sobretudo, às magistraturas supremas. O governo é o elemento supremo de toda a cidade e o regime é, de facto, esse governo” (ARISTÓTELES, 1998, p. 207). Tal pacto é manifesto também na convenção particular representada pela lei; assim, a justiça é, para Aristóteles, própria da cidade porque simboliza "a ordem da comunidade de cidadãos e consiste no discernimento do que é justo” (ARISTÓTELES, 1998, p. 57). Destes preceitos ainda podemos inferir que a autoridade política surge do pacto simbólico de instauração do regime político, sancionado pela ideia de justiça e orientado ao bem comum10 10 A noção de bem comum está vinculada ao tema da vivência humana organizada politicamente. Presente no pensamento europeu ocidental desde a antiguidade clássica, o núcleo básico desta noção é que os Estados devem proporcionar meios de subsistência, bem estar e felicidade aos seus membros (MORA, 1994, p. 287). .

Na filosofia aristotélica, a ideia da vida em comunidade, portanto, se transforma em um elemento concreto da convenção humana entendido em sua forma de organização política, na qual a ideia de justiça e a força da lei exercerão um papel preponderante. Pode-se perceber sem dificuldade a adesão destes princípios à representação de governo, delineada por Tomás de Aquino, como uma instituição natural encaminhada à promoção do bem comum. Conceber o Estado em sua inalienável função de perpetuação da condição política do homem apresenta, assim, uma diferença expressiva para com aqueles que o entendiam como resultado da necessidade que os homens têm de correção devido às suas práticas pecaminosas - posição que teria em Agostinho de Hipona um de seus principais ícones (SENNELART, 2006SENNELART, Michel. As artes de governar. São Paulo: ed. 34, 2006.). Em outras palavras, ratificando os princípios aristotélicos, Tomás de Aquino percebe o homem como um animal social que vive naturalmente em multidão que, por sua vez, necessita de algo que lhe governe, conduzindo-o ao bem comum (AQUINO, 1995AQUINO, Tomás. Do reino ou do governo dos príncipes ao Rei de Chipre. In: AQUINO, Tomás. Escritos Políticos de São Tomás de Aquino. Tradução de Francisco Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 123-172., p. 128). Os pilares do bom governo seriam a justiça e a razão, os meios pelos quais se atinge o bem comum, a finalidade principal da vida em comunidade.

A concepção aristotélica de cidade, delineada pelos termos anteriormente expostos, impacta a elaboração da noção de corpo político empregada copiosamente na tratadística política moderna e isso traz consequências consideráveis para a elaboração discursiva das propostas de limitação da autoridade política. Acredito ser possível confirmar esta influência acompanhando a seguinte linha de raciocínio: a reflexão filosófica do estagirita, em linhas gerais, compreende uma articulação entre uma estrutura ontológica e o pensar lógico (MORA, 1994MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Edições Loyola , 1994.). Tal característica se reflete na forma de apreensão dos objetos que opera através da demarcação de atributos, seguida pela estipulação do gênero próximo e pela demarcação da diferença específica. Isso porque a atribuição da categoria é capaz de situar o objeto e inseri-lo em uma rede conceitual própria cujo propósito é aproximá-lo cada vez mais de sua finalidade última. Ainda que este procedimento seja melhor compreendido nas meditações metafísicas do autor, podemos perceber indícios dele no seguinte trecho do livro I da Política:

Além disso, a cidade é por natureza anterior à família e a cada um de nós, individualmente considerado; é que o todo é, necessariamente, anterior à parte. Se o corpo como um todo é destruído, não haverá nem pé nem mão, excepto por homonímia, no sentido em que falamos de uma mão feita de pedra: uma mão deste género será uma mão morta; tudo é definido segundo a sua capacidade ou função. Ora todas as coisas definem-se pela sua função e pelas suas faculdades; quando já não se encontram operantes não devemos afirmar que são a mesma coisa, mas apenas que tem o mesmo nome. É evidente que a cidade é, por natureza, anterior ao indivíduo, porque se um indivíduo separado não é auto-suficiente [sic], permanecerá em relação à cidade como as partes em relação ao todo. (ARISTÓTELES, 1998, p. 55)

Seguindo esta lógica, no início do livro III da Política, a cidade é definida como uma realidade composta que, apesar de possuir diferentes partes, integra um todo. As partes que compõem a cidade são seus cidadãos, “visto que a cidade é um composto de cidadãos” (ARISTÓTELES, 1998, p. 185). Tal raciocínio será fundamental para a demarcação da raiz ontológica da sociedade política porque, nestes temos, unidade e ser se implicam e se convertem reciprocamente. Estes são alguns dos insumos essenciais que integram a concepção organicista da sociedade na época moderna. Nesta acepção, a ideia de unidade, também basilar da cosmologia cristã11 11 A noção de corpo místico também compõe os escritos do período. Nas palavras de Maravall: "Recogida de San Pablo, la expresión "cuerpo místico” [...] se repite frecuentemente en nuestros escritores del siglo XVII. Pero en ella sirve el primer vocablo, cuerpo, para designar la unidad en que aparecen fundidos todos los miembros de una comunidad, contable aspecto a la del cuerpo humano; mientras que el segundo término, místico, destaca, entre otros matices, la diferencia con el simple cuerpo físico, advirtiendo que esa unidad tiene sólo realidad en lo espiritual, no en el materialmente corpóreo, y en esto ya no puede, ser comparada al organismo humano” (MARAVALL, 1997, p. 115) , fundamenta a sociedade política e, assim, a república12 12 Empregou-se o termo república com o mesmo sentido amplo lhe era atribuído no período moderno, ou seja, um sentido bastante genérico que remete a uma comunidade política, qualquer que seja a sua forma de governo. é composta de elementos que não podem ser absorvidos e nem confundidos com o todo.

Segundo José Antonio Maravall, a fundamentação metafísica que embasa a ideia de república é crucial para demarcação de direitos e faculdades inerentes ao indivíduo. Ao considerar esse argumento de Maravall, retomando o confronto com as fontes, percebe-se que a definição de cidadão, em Aristóteles, exibe como critério máximo a "capacidade de participação na administração da justiça e do governo” (ARISTÓTELES, 1998, p. 186), ainda que esta varie de acordo com o regime político vigente na cidade. Assim, a esfera na qual se atualiza a definição de cidadão é primordialmente política, antes que religiosa, territorial, linguística ou cultural. E nela já estão prescritos direitos que asseguram a participação do cidadão nas esferas deliberativas e judiciais da cidade. Tem-se, portanto, um sólido arcabouço de ideias que serão futuramente empregadas nas estratégias discursivas de contenção do poder político e de reivindicação dos direitos dos súditos, quando necessário. É certo, todavia, que estas ideias não serão empregadas de forma integral, mas passarão por inúmeras reelaborações e adaptações antes que se efetive sua utilização.

Tomás de Aquino, em seu tratado intitulado Do reino ou do governo dos príncipes ao Rei de Chipre, afirma:

Assim como sucede em certas coisas ordenadas a um fim, andar direito ou não, também no governo da multidão se dá o reto e o não reto. Uma coisa dirige-se retamente, quando vai para o fim conveniente; não retamente, porém, quando vai para o fim não conveniente. Um, porém é o fim conveniente à multidão dos livres, e outro à dos escravos; visto como o livre é sua própria causa, ao passo que o escravo, no que é, pertence a outrem. Se, pois, a multidão dos livres é ordenada pelo governante ao bem comum da multidão, o regime será reto e justo, como aos livres convém. Se, contudo, o governo se ordenar não ao bem comum da multidão, mas ao bem privado do governante, será injusto e perverso o governo. (AQUINO, 1995AQUINO, Tomás. Do reino ou do governo dos príncipes ao Rei de Chipre. In: AQUINO, Tomás. Escritos Políticos de São Tomás de Aquino. Tradução de Francisco Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 123-172., p. 129)

Percebe-se aqui a presença de traços da concepção aristotélica de composição da comunidade política, formada por homens livres e orientada para um fim específico, o bem comum da multidão, ou seja, a mesma finalidade definida pelo filósofo grego. Os ecos aristotélicos, com passagem direta ou indireta pela via tomista, se fazem ouvir em bom tom na tratadística política hispânica da época moderna, com implicações diretas nas doutrinas constitucionalistas.

O caráter pragmático e empírico da reflexão política aristotélica - em contraposição ao idealismo platônico, ainda que a oposição entre os filósofos não seja tão binária como frequentemente é caracterizada -, é um elemento cuja marca reside em diversas correntes do discurso político ibérico moderno, com destaque para as doutrinas da razão de Estado contrarreformada. A teoria das formas de governo, divididas entre as formas retas e transviadas, possui igualmente ampla circulação entre os tratadistas hispânicos. Em relação à teoria das formas de governo, é conveniente sublinhar que o princípio decisivo de distinção, da tipologia entre formas retas ou transviadas é se o governo está orientado ao bem comum ou se é guiado por seus próprios interesses, tanto fazendo que estes interesses sejam de um (realeza/tirania), de poucos (aristocracia/oligarquia) ou de muitos (politeia ou democracia). A questão das formas de governo ainda suscita um ponto interessante, que possui reflexos na tratadística moderna: a dialética entre rei e tirano. Tal dialética será imprescindível para legitimar a atuação dos movimentos de contestação da autoridade régia corporificados em revoltas, motins e suble-vações, ou simplesmente organizados em grupos de oposição ao governo instituído, aberta ou veladamente.

A caraterização do monarca como tirano é decisiva para que seu estatuto de máxima autoridade política possa ser contestado e, eventualmente, para que a sociedade lhe destitua de sua posição - em casos extremos, com sua eliminação física por meio do tiranicídio, como fica claro no tratado sobre a educação real do padre Juan de Mariana (MARIANA, 1981MARIANA, Juan de. La dignidad real y la educación del Rey. Ed. e rev. por Luis Sanchez Agesta. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales , 1981.). Ao fim e ao cabo, a possibilidade da atribuição da etiqueta de tirano ao rei se transforma em uma silenciosa ameaça, um lembrete de que seu poder é oriundo do pacto celebrado com a comunidade política e, finalmente, de que se seu reinado não se pautar pelas leis vigentes e não se guiar pelo bem comum: o então monarca, agora transformado em tirano, perderá seus direitos régios. A percepção da figura do tirano é tão arraigada no discurso político moderno porque além de sua formulação aristotélica, ela foi igualmente incorporada na via tomista. Assim, séculos antes das teses tiranicidas do jesuíta toledano, se encontraria, em Tomás de Aquino, o mesmo tipo de pacto que sustenta a relação entre comunidade e rei, a mesma ênfase na necessidade do rei cumprir seus deveres para com a comunidade e a mesma legitimidade na decisão de destituição do tirano:

Quer, assim, parecer que não se deve proceder contra a perversidade do tirano por iniciativa privada, mas sim pela autoridade pública. Primeiro, porque, competindo ao direito de qualquer multidão prover-se de rei, não injustamente pode ela destituir o rei instituído ou refrear-lhe o poder, se abusar tiranicamente do poder real. Nem se há de julgar que tal multidão age com infidelidade, destituindo o tirano, sem embargo de se lhe ter submetido perpetuamente, porque mereceu não cumpram os súditos para com ele o pactuado, não se portando ele fielmente, no governo do povo, como exige o dever do rei. (AQUINO, 1995AQUINO, Tomás. Do reino ou do governo dos príncipes ao Rei de Chipre. In: AQUINO, Tomás. Escritos Políticos de São Tomás de Aquino. Tradução de Francisco Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 123-172., p. 140)

Concluindo este excurso pelo viés diacrônico da filosofia aristotélico-tomista, destaca-se apenas mais um ponto que será de extrema importância para a explanação dos possíveis pontos de articulação entre a teoria do direito natural e as doutrinas constitucionalistas. Trata-se do primado da lei na organização política da sociedade. Na reflexão aristotélica, um segundo critério para determinar se um regime é reto ou transviado é apontar se os magistrados governam, ou não, em consonância com as leis, conforme especifica o filósofo no início do livro IV. Ponderando acerca da forma de governo monárquica, mais precisamente sobre o perigo do governo das paixões humanas, Aristóteles institui como salvaguarda a lei, ainda que a lei escrita não seja capaz de dirimir todos os casos eficientemente, dado que ela é um preceito e não pode atender todas as situações originárias da contingência. Assim, as leis fundadas nos costumes ofereceriam o governo mais seguro possível.

A associação Deus/ Razão/ Lei exerceu grande ingerência na concepção tomista de lei que, por sua vez, foi uma diretriz estruturante da reflexão acerca do direito, da sociedade e da origem do poder político de alguns dos mais notórios pensadores da Segunda Escolástica, como Francisco de Vitoria, Domingo de Soto e Francisco Suárez. Faz-se necessário retomar, por um instante, a via tomista para que se perceba a lógica da inserção da sociedade civil na ideia de ordem tão decisiva para a cosmogonia cristã do período medieval. A definição de lei tomista estipula que a lei é "um preceito da razão prática do príncipe que governa uma comunidade perfeita” (AQUINO, 2005AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I seção, II parte. São Paulo: Edições Loyola, 2005. , q. 91, a. 1). A lei possui ainda domínios variados que se organizam hierarquicamente e apresentam derivações gradativas, de acordo com as seguintes distinções: lex aeterna, lex divina, lex naturalis e lex humana. Conforme a derivação gradativa, a lei natural é definida como partecipatio legis aeternae in rationali creatura, ou seja, a lei natural é uma participação da lei eterna e, a seu turno, a lei humana é uma derivação da natural por meio da ação do legislador por duas operações mentais distintas: per conclusionem ou per determi-nationem (BOBBIO, 1995BOBBIO, Noberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Editora Ícone, 1995., p. 23). Tomás de Aquino acreditava firmemente na capacidade dos homens de perscrutar as leis divinas através do uso da razão. A lei, definida nesses termos, possibilita que o filósofo justifique a obrigação, ou a lei moral, em ordem da razão divina, porque, em última instância, todas as coisas criadas participam, por derivação direta ou indireta, da lei eterna que é a expressão da razão divina. Essa concepção de lei acabou promovendo um entendimento de si como regra de conduta que obrigava por ser proveniente de Deus.

Neste quadro explicativo, começam a ganhar diferentes contornos as ideias de ordem e unidade que orientam a percepção da esfera política da grande maioria dos tratadistas políticos ibéricos, segundo já havia sentenciado Jose António Maravall. A unidade do corpo político13 13 Noção a qual fez-se referência anteriormente, relacionando-a aos pressupostos aristotélicos. , representado pela república, harmoniza-se com um ideal de ordem que compreende uma ordenação total, que vai se elevando gradualmente até englobar todo o universo e seu criador, conforme espelha o esquema tomista de derivações gradativas da lei. Assim, a ordem é anterior ao governante e toda estrutura social se insere nesta ordem. Consequentemente, o poder só é legitimamente reconhecido quando age em conformidade com a ordem que lhe engloba e autoriza; rei e lei são elementos desta ordem (MARAVALL, 1997MARAVALL, José Antonio. Teoria española del Estado en el siglo XVII. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales , 1997.). Pode-se concluir que estes são argumentos muito poderosos para criar laços bem fortes entre o monarca e o ordenamento jurídico, em um esquema teórico e conceitual que pode ser entendido facilmente como constitucionalista, no sentido explicitado no início deste texto. A partir destes insumos, fica claro que a atuação do monarca não poderia ser caraterizada pela máxima legibus solutus, muito pelo contrário, ela possuía bem demarcados limites de atuação. Se o trecho a seguir, extraído da carta ao Rei de Chipre, de Tomás de Aquino, for examinado atentamente, infere-se que a construção dos argumentos se encaminha a fixar sólidas barreiras para a condução do poder político:

Além de que, há de estabelecer-se de tal forma o governo do reino, que, uma vez instituído o rei, se lhe subtraia a ocasião de tirania. Ao mesmo tempo também, tem-pere-se-lhe de tal maneira o poder, que não possa facilmente declinar para a tirania.

Como isso se fará, considerá-lo-emos adiante. E, finalmente, deve-se cuidar de como se poderia ir de encontro ao desvio do rei para a tirania. (AQUINO, 1995AQUINO, Tomás. Do reino ou do governo dos príncipes ao Rei de Chipre. In: AQUINO, Tomás. Escritos Políticos de São Tomás de Aquino. Tradução de Francisco Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 123-172., p. 138-139)

Passemos agora ao exame de como alguns modernos adeptos das teorias do direito natural equacionaram estas proposições a respeito do pacto político e da ordem em suas próprias teses explicativas da sociedade, da origem do poder político e do papel exercido pela lei nestes melindres. Tais teses, por sua vez, seriam transformadas em eixos centrais das estratégias de constrangimento do poder régio. A primeira figura sobre a qual iremos nos deter é Francisco de Vitoria, personagem central para o desenvolvimento da Escola de Salamanca e para a reativação do tomismo na Península Ibérica. Vitoria estudou as lições da Suma Teológica de Tomás de Aquino sob os auspícios de Peter Crockaert, em Paris, onde concluiu sua formação. Em 1526, o religioso assumiu a cátedra Prima de Teologia da Universidade de Salamanca, local de explanação de suas emblemáticas relectiones, permanecendo no posto até o ano de seu falecimento, em 1546 (FERNÁNDEZ SANTAMARÍA, 2005FERNÁNDEZ SANTAMARÍA, José. Natural Law, Constitutionalism, Reason of State and War. New York: Peter Lang Publishing, 2005, 2 v.). As lições seminais sobre o poder civil de Francisco de Vitoria - considerado um dos fundadores do direito internacional - elegem como tema da preleção a república e os poderes público e privado pelos quais ela é governada. Vitoria define poder público como “a faculdade, a autoridade ou o direito de governar a República civil” (VITORIA, 2016VITORIA, Francisco. Relectiones: sobre os índios e o poder civil. Brasília: UNB , 2016. (Coleção Clássicos IPRI). [De potestate civili é de 1528], p, 206). Das inúmeras contribuições de Vitoria para o pensamento político moderno, para o propósito deste artigo, é conveniente destacar dois pontos. O primeiro deles é a relação estabelecida entre rei e lei. Compartilhando das teses aristotélicas - ainda que não subscreva a mesma concepção acerca do estado de natureza inicial do homem - de que o homem é naturalmente um ser civil e social e, consequentemente, a vida em sociedade é um convívio naturalíssimo, Vitoria sustenta que a monarquia é a melhor forma de governo e equipara o governo de um da república civil ao governo de todo o orbe por um único mandatário e senhor divino. Na concepção do dominicano, para que a lei humana possa obrigar e ser justa não é suficiente a vontade do legislador, mas é preciso que a lei seja útil à república, critério este que leva Vitoria a declarar: “Ademais, se a lei não é útil para a República, não é mais lei” (VITORIA, 2016, p. 219).

No que diz respeito à relação entre rei e lei, Vitoria afirma que as leis civis obrigam os legisladores e também os reis, porque as leis outorgadas pelo rei têm a mesma força que teriam se tivessem sido outorgadas por toda a república. Já que as leis instituídas pela república obrigam a todos, mesmo que tenham sido outorgadas pelo rei, as leis obrigam também o próprio monarca, de forma semelhante a um pacto que uma vez celebrado deve ser cumprido. As consequências do descumprimento desta obrigação são graves: "um legislador que não cumprisse suas próprias leis cometeria injúria à República e aos demais cidadãos, sendo parte da República, ao não tomar parte nos seus encargos, de acordo com sua pessoa, qualidade e dignidade” (VITORIA, 2016VITORIA, Francisco. Relectiones: sobre os índios e o poder civil. Brasília: UNB , 2016. (Coleção Clássicos IPRI). [De potestate civili é de 1528], p, 218). Ratificam-se, uma vez mais, os princípios de unidade do corpo político, já que o legislador é parte da república, assentada na ideia da ordem divina, expressa pela lei natural, que estabelece como fim útil da vida em comunidade o bem comum. O primado aristotélico da lei é plenamente recolhido em Vitoria.

O segundo ponto que merece destaque diz respeito ao tratamento complexo e ambíguo que Francisco de Vitoria confere ao tema da origem da autoridade política, tema decisivo para as questões relativas aos limites do poder régio. Isso porque, se admitimos que o poder régio é atribuído diretamente por Deus ao monarca, tem-se como corolário que ele não pode ser contestado e que o monarca não pode ser destituído, mesmo se seu governo degenerar em tirania, assunto que quase não aparece nas lições a respeito do poder civil. Vitoria manifesta, logo no início da lição, que todo o poder civil possui Deus como autor, é justo e legítimo, não podendo ser suprimido nem pelo consentimento de todo o mundo, conforme o trecho: "[...] mas os reis, por direito divino e natural, têm o poder e não o recebem da República e nem absolutamente dos homens” (VITORIA, 2016VITORIA, Francisco. Relectiones: sobre os índios e o poder civil. Brasília: UNB , 2016. (Coleção Clássicos IPRI). [De potestate civili é de 1528], pp, 203-204). Tal declaração tomada isoladamente encontraria pouquíssimo acolhimento em outras obras da tratadística política e jurídica do período, como comprovam os exemplos de Juan de Mariana, Vázquez de Menchaca, Diego de Covarrubias y Leyva, entre outros, demarcando a presença do dissenso na tratadística política hispânica afiliada às teses da Segunda Escolástica. Contudo, ao longo do escrito surgem outros elementos que sugerem interpretações diversas do primeiro estatuto em relação à questão, declarado por Vitoria.

Os elementos que permitem matizar a declaração inicial de Vitoria são questões de ordem filosófica e correspondem a uma distinção entre causa material e causa eficiente, e ainda, à distinção entre o poder, entendido como potência, e a autoridade, entendida enquanto governo (FERNÁNDEZ SANTAMARÍA, 1997FERNÁNDEZ SANTAMARÍA, José. La formación de la sociedade y el origen del Estado: ensayos del pensamiento político español del siglo de oro. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.). Nesse sentido, Vitoria aponta que a causa eficiente do poder civil é o direito natural, que é de autoria divina. Por conseguinte, Deus é o autor do poder civil. Por outro lado, a república seria a causa material do poder civil, uma vez que ela é responsável pela instituição do monarca enquanto autoridade, conforme depreende-se da leitura do seguinte trecho: "[...] ainda que o rei seja investido pela mesma República (uma vez que ela institui o rei) não transfere a ele o poder, mas a própria autoridade” (VI-TORIA, 2016, p. 205). Compreenda-se bem, a república institui o rei como governante, ela não engendra em si mesmo o poder civil que permite que haja governo entre os homens que vivem em sociedade. No trecho a seguir podemos localizar vários argumentos a favor da república:

Por constituição, portanto, a República tem esse poder provindo de Deus. A causa material na qual esse poder reside é, por direito natural e divino, a própria República, a quem compete governar a si mesma, administrar e dirigir ao bem comum todos os seus poderes. Demonstra-se tal fato da seguinte forma: como por direito natural e divino existe um poder de governar a República e como, se eliminado o direito positivo e humano, não haja uma particular razão para que aquele poder esteja mais em um homem do que em outro, é necessário que a própria sociedade se baste e tenha o poder de governar-se. Porque, se antes que os homens concordem em formar uma cidade, ninguém é superior aos demais, não há razão alguma para que na mesma sociedade constituída alguém queira atribuir-se autoridade sobre os outros, principalmente tendo em conta que qualquer homem possui o direito natural de defender-se, e nada mais natural do que repelir a força com a força. E, certamente, não há razão alguma para que a República não possa obter esse poder sobre seus cidadãos, como membros que são orientados para a integridade do todo e para a conservação do bem comum. (VITORIA, 2016VITORIA, Francisco. Relectiones: sobre os índios e o poder civil. Brasília: UNB , 2016. (Coleção Clássicos IPRI). [De potestate civili é de 1528], p. 201-202)

Poderíamos supor que a ambiguidade guardada no raciocínio de Vitoria sobre a origem do poder político deve-se à memória recente dos marcantes acontecimentos da revolta dos Comuneros, na qual foi questionada abertamente a autoridade do recém-empossado monarca, Carlos V14 14 Existe farta documentação acerca desta revolta, sobretudo cartas, editos, atas de reuniões de Cortes, anúncios e declarações produzidas pelos revoltosos. Esta documentação poder ser encontrada em Juan de Maldonado (1840). . Já o contemporâneo de Vitoria, Domingo de Soto, que por um breve período de tempo foi confessor do próprio monarca Carlos V, posicionava-se de maneira muito clara em relação ao tema. Soto inclusive divide alguns traços biográficos com Vitoria, tal como o fato de também ter estudado a proposta filosófica de Tomás de Aquino, em Paris, quase na mesma época, com a diferença de que sob a tutoria de John Mair e, igualmente, ter retornado à Salamanca onde assumiu a cátedra Vésperas de Teologia em 1532 (FERNÁNDEZ SANTAMARÍA, 2005FERNÁNDEZ SANTAMARÍA, José. Natural Law, Constitutionalism, Reason of State and War. New York: Peter Lang Publishing, 2005, 2 v.). Para Soto - com exceção de Saul, David e seus descendentes que foram instituídos imediatamente por Deus -, os reis e príncipes são criados pela comunidade; é ela que lhes transfere sua potestas e seu império. Tal transferência é a base que sustenta a noção do pacto celebrado entre comunidade e autoridade civil. A celebração do pacto é o momento de formação do corpo político, é no pacto que se assentam os princípios por meio dos quais a comunidade deverá ser regida. Não à toa, em momentos de crise política, a questão do pacto ressurge com tanta força, chamando a atenção do governante para seus deveres com a comunidade, os quais são instituídos por direito natural e direito divino.

Ao contrário de Vitoria, o trecho a seguir, extraído do Tratado de la Justicia y del Derecho, de Domingo de Soto, não deixa margem para dúvidas: “ha sido concedido a los hombres que cada república (o nación) tiene derecho a regir-se a sí misma y, por consiguiente, donde lo pida la razón, que es emanación de la divina luz, traspase a otro su potestad y por las leyes de él se gobierne más cuidadosamente” (SOTO, 1922SOTO, Domingo. Tratado de la justicia y el derecho. Vertido al castellano por Jaime Torrubiano Ripoll. Madrid, 1922 [primeira edição: Salamanca, 1556], tomo I., p. 31). Extremamente aristotélico em diversas de suas orientações, Soto entende que a cidade é formada pelo conjunto dos seus cidadãos, como as partes formam um corpo unitário. Assim, a lei deve ser sancionada em prol do bem comum, finalidade última da república. O legislador que faz leis pensando em seu bem particular comporta-se como tirano. Acerca do método de confecção das leis, notam-se ressonâncias tomistas, pois Soto entende que as leis devem ser retiradas do cerne da filosofia natural mediante o uso da razão e do juízo. No entanto, para sancionar as leis, tarefa de quem representa15 15 Soto utiliza precisamente esta noção de representação: “El dar leyes no pertenece a cualquiera, sino a la república y al que la representa o tiene cuidado de ella” (SOTO, 1922, p. 29). Destaca-se que a ideia de representação é capital porque significa um preâmbulo necessário à construção da noção de pessoa jurídica. E, finalmente, é a ideia de representação que fornece alguns dos insumos necessários para a elaboração do conceito moderno de Estado. a república, é preciso também que exista a potência necessária. Assim, a lei é resultado de uma conjunção de fatores: a potência necessária para a criação das leis somada ao conselho maduro dos homens prudentes, sem o qual o príncipe não deveria estabelecer leis.

Um dos aspectos mais notáveis da obra de Domingo de Soto, neste contexto, versa sobre um ponto crucial: se o rei encontra-se está ou não obrigado pela lei. O dominicano inicia suas ponderações sobre o tema afirmando que o príncipe está submetido à fuerza directriz, mas não se encontra obrigado em relação à força coercitiva; isso porque ninguém pode obrigar-se a si mesmo. Todavia, que esteja o príncipe obrigado apenas pela força diretiva da lei é considerado mais como uma condição desfavorável do que como um privilégio, porque desta forma o monarca perde o castigo da lei como um dos meios necessários para alcançar a virtude, posto que não existe ninguém “que le pueda obligar o se atreva a reprenderle” (SOTO, 1922SOTO, Domingo. Tratado de la justicia y el derecho. Vertido al castellano por Jaime Torrubiano Ripoll. Madrid, 1922 [primeira edição: Salamanca, 1556], tomo I., p. 209).

Livre da força coativa da lei, o monarca não escapa dos limites meta-positivos estipulados por Domingo de Soto: os ditados da razão, os desígnios divinos16 16 "[...] atender con mas vigilancia a los dictados de la razón y a los impulsos divinos, y, por consiguiente obedecer él mismo a las leyes, que dicta a los otros [...]” (SOTO, 1922, p. 210). e o direito natural17 17 “[...] luego por el mismo que el Príncipe da la ley, por derecho natural está el sujeto a la misma” (SOTO, 1922, p. 211-212). .

A questão da obrigação dos príncipes se insere no tema do legibus solutus que, por sua vez, dialoga com a temática muito mais ampla da soberania régia, que é um dos critérios para a caracterização da monarquia como absoluta ou constitucional. Nessa perspectiva, várias passagens da obra de Diego de Covarrubias y Leyva, um renomado membro da Escola de Salamanca, podem ser entendidas como ataques frontais à concepção de potência absoluta. Um pequeno parêntese faz-se necessário para mencionar a impressionante carreira política deste personagem, traço amplamente relevante para compreender a força de algumas das teses defendidas em sua obra, como será visto adiante. Jurista de formação, ainda estudante, Covarrubias, esteve na Universidade de Salamanca onde foi aluno de Martín de Azpiculeta, Francisco de Vitoria e Domingo de Soto. A associação biográfica entre estes tratadistas é um exemplo, não isolado, que sugere uma explicação para que as teses do direito natural, compreendidas através do prisma aristotélico-to-mista, terem alcançado tão ampla aceitação e circulação entre os teólogos e juristas hispânicos da época moderna, justificando a criação da alcunha Escola de Salamanca. Covarrubias foi ouvidor da Real Chancelaria de Granada, entre 1548 e 1559, e presidente de um dos mais importantes conselhos da estrutura administrativa da Monarquia Hispânica, o Conselho de Castela, no período de 1572 a 1577 (PENA GONZÁLEZ, 2009PENA GONZÁLEZ, Miguel Anxo. La(s) Escuelas(s) de Salamanca; proyecciones y contextos históricos. In: POLO RODRÍGUEZ, Juan Luís; RODRÍGUEZ-SAN PEDRO BEZARES, Luis. Universidades hispánicas: colegios y conventos universitarios en la Edad Moderna II. Miscelánea Alfonso IX, 2009. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2013, p. 185-237.).

Diego de Covarrubias denomina potência ordinária o que o príncipe pode fazer legitimamente por direito natural, direito divino e humano. A ação do príncipe que se afasta destas balizas pode ser nomeada como “cruel tiranía” (COVARRUBIAS Y LEYVA, 1957COVARRUBIAS Y LEYVA, Diego de. Textos jurídico-políticos. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1957 [primeira edição: Salamanca, 1545]., p. 170). Estes sólidos empecilhos, estipulados acerca da atuação régia, refletem-se em uma matéria decisiva para as doutrinas constitucionalistas: a capacidade e a liberdade reais de sancionar leis. Nesta acepção, Covarrubias postula que é muito conveniente que a autoridade das leis seja inviolável e sagrada. Ao monarca não compete abolir leis conforme sua vontade18 18 Eis o trecho em questão: “Si el príncipe pudiese a su capricho abolir las leyes y demás disposiciones de su autoridad, redundaría en grave daño de la equidad, del derecho natural y del bien común, al que conviene en gran manera que la autoridad de las leyes sea inviolable y sagrada” (COVARRUBIAS Y LEYVA. 1957, pp. 176-177). . Comentando a questão da melhor forma de governo na Política de Aristóteles, Covarrubias faz uma reflexão digna de nota:

Para que no se crea que Aristóteles en el d. 3 de la Política, cap. 12, opina en contra de nosotros y prefiere la aristocracia a la monarquia, adviértase que no alabamos al rey que disiente de los varones prudentes y calificados y por su absoluto parecer y antojo, antes bien debe el rey cuando ha de promulgar alguna ley o resolver algún negocio de pública utilidad, pedir el parecer de ellos y consultar y deliberar sobre los negocios públicos, porque de otra manera fácilmente el rey y príncipe único caerá en la tiranía, y será menos conveniente que una aristocracia bien ordenada con leyes convenientes. Por tanto, en igualdad de otras circunstancias, la monarquia es preferible a la aristocracia, aunque la aristocracia es preferible a una pura y absoluta monarquia, según lo afirma y demuestra Aristóteles. (COVARRUBIAS Y LEYVA. 1957COVARRUBIAS Y LEYVA, Diego de. Textos jurídico-políticos. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1957 [primeira edição: Salamanca, 1545]., p. 80) [destaques meus]

A operação que está em jogo no trecho acima diz respeito à construção, a partir de uma sólida fundamentação jurídica e filosófica, de um modelo político que, além de limitar claramente o poder real, prescreve e garante, em seus fundamentos, a participação dos cidadãos no governo da cidade. É certo que, neste contexto, devemos entender por cidadãos a nobreza hispânica. Desse ponto de vista, se torna claro porque esse tipo de argumentação foi empregada como arsenal ideológico para legitimar revoltas. Todos esses elementos contribuem para a construção de um discurso bastante peculiar de limitação do poder régio que poderíamos atribuir à denominação de constitucionalismo hispânico.

Em Covarrubias, a explicação fornecida para conferir tão estreita capacidade decisória ao príncipe associa-se ao problema do pacto e da origem da autoridade política que, como ficou claro até o presente momento, são questões muito mais importantes para a teoria política do período do que simples especulações filosóficas. Vejamos o seguinte trecho:

La potestad temporal y civil jurisdicción suprema reside entera en la misma república, y, por tanto, aquél será príncipe temporal y tendrá autoridad sobre todos en el gobierno de la república que haya sido elegido y constituido por la misma república, cosa que consta por el derecho de gentes u por la misma razón natural, salvo que la sociedad humana haya establecido mediante pacto otra cosa distinta. (COVARRUBIAS Y LEYVA, 1957COVARRUBIAS Y LEYVA, Diego de. Textos jurídico-políticos. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1957 [primeira edição: Salamanca, 1545]., p. 248)

Fernando Vázquez de Menchaca apresenta contribuições significativas à problemática em pauta, a dinâmica entre reis e leis. Jurista laico, fez carreira como alto funcionário da Monarquia, tendo alcançado o grau de bacharel em Leis e Cânones na Universidade de Salamanca em 1544, posteriormente obteve a cátedra Prima de Leis em 1550. Vázquez de Menchaca, contudo, encerrou sua participação na vida acadêmica em 1552 e iniciou sua carreira como juiz e ouvidor na Contaduría Mayor de Hacienda, tendo ainda sido designado por Felipe II para participar do Concílio de Trento (EGÍO GARCÍA, 2014EGÍO GARCÍA, Víctor Manuel. El pensamiento republicano de Fernando Vázquez de Menchaca. Tese (Doutorado) - Universidad de Murcía. Departamento de Filosofía, 2014.). Vázquez de Menchaca também ratificava o princípio de que o governo dos príncipes deve estar sujeito às leis19 19 “Siguese, pues, que por muy encumbrado que sea el poder del principe, no le es licito, ni permitido, el quebrantar las leyes. [...] Todo el que promulga leyes debe someterse él mismo a ellas” (VÁZQUEZ DE MENCHACA, 1931, p. 230.). . Leis estas que devem ser promulgadas sempre visando o bem do povo; caso contrário, elas simplesmente não possuem força para obrigar, pois se não são úteis aos cidadãos não são leis, como já havia sentenciado Vitoria. Ainda de acordo com o jurista, príncipe legítimo é aquele que foi nomeado pelo povo e esta razão é suficiente para que o rei se submeta às leis, e não o contrário. De acordo com a concepção de Vázquez de Menchaca, a deferência do monarca às leis e aos povos se justifica porque todo poder legítimo, oferecido aos príncipes ou a qualquer outra autoridade política, foi dado e instituído unicamente para o bem dos cidadãos, não para a utilidade daqueles que os governam. Outra razão bastante eloquente - sustentada uma vez mais pela força do pacto social que engendra a comunidade política - para que o bem comum seja a finalidade última das decisões políticas é que “el poder supremo justo y legítimo es, en último término, el que tiene su origen en la espontánea concesión y voluntad del pueblo” (VÁZQUEZ DE MENCHACA, 1931VÁZQUEZ DE MENCHACA, Fernando. Controversias fundamentales y otras de mas frecuentes uso: libro I. Valladolid: Talleres Tipográficos Cuesta, 1931 [primeira edição: Barcelona, 1563]., p. 148). Vázquez se apoia na força da tradição aristotélica para defender um modelo político no qual quem ocupa o papel soberano é a lei:

(...) y el doctísimo Domingo de Soto basándose en la doctrina de Aristóteles: ambos afirman ser más útil, más fácil y segura el gobierno de un estado por medio de leyes que por el criterio de un príncipe; porque las leyes que se promulgan después de madura deliberación y examen y tendiendo sólo al público provecho, mientras que el príncipe obra mucha veces con excesiva impremeditación o con la mente nublada por las pasiones con los odios, temores, ambiciones que le apartan del bien público, por lo que defienden ser preferible que todos los asuntos posibles se determinen por leyes, dejando al criterio de los jueces únicamente las cosas de menor importancia o que por su naturaleza no pueden legislarse. (VÁZQUEZ DE MENCHACA, 1931VÁZQUEZ DE MENCHACA, Fernando. Controversias fundamentales y otras de mas frecuentes uso: libro I. Valladolid: Talleres Tipográficos Cuesta, 1931 [primeira edição: Barcelona, 1563]., p. 101).

Um último aspecto a ser destacado concernente à obra de Vázquez de Menchaca é a diferenciação estipulada pelo jurista entre vassalo e cidadão, ou súdito. Tal definição é significativa porque estabelece o estatuto jurídico ao qual o sujeito está vinculado. Vassalo seria aquele que vive em uma posse particular de um indivíduo, sob determinados tributos e leis acordados de antemão, cuja maior parte dos acordos se sustenta nos direitos feudais. A diferença substancial é que o vassalo vive em um regime que apresenta como finalidade última o bem estar do senhor. Já súditos e cidadãos, definidos como as unidades que compõem o todo da cidade, vivem em um regime cuja finalidade é o bem estar coletivo. Outrossim, importa destacar que, na condição de súditos e cidadãos de uma comunidade política, os indivíduos possuem direitos adquiridos inalienáveis que devem ser respeitados pelos governantes, dado que "al no gozar el pueblo de derechos ciertos y definidos traía graves prejuicios” (VÁZQUEZ DE MENCHACA, 1931VÁZQUEZ DE MENCHACA, Fernando. Controversias fundamentales y otras de mas frecuentes uso: libro I. Valladolid: Talleres Tipográficos Cuesta, 1931 [primeira edição: Barcelona, 1563]., p. 110).

A fim de concluir estas reflexões, passemos ao exame de alguns aspectos centrais presentes na doutrina de Francisco Suárez, o mais afastado no tempo dos outros tratadistas investigados neste estudo que, não obstante, pode ser considerado um verdadeiro herdeiro da tradição intelectual sala-mantina e um membro destacado da Segunda Escolástica. Suárez ingressou na Universidade de Salamanca em 1566, período em que os ensinamentos da Suma Teológica de Tomás de Aquino já haviam substituído as Sentenças de Pedro Lombardo. Diferentemente de seus predecessores e obedecendo aos desígnios de Felipe II, Suárez foi para Portugal e ali permaneceu até o final dos seus dias, em 1617, onde assumiu a cátedra Prima de Teologia na Universidade de Coimbra (FERNÁNDEZ SANTAMARÍA, 2005FERNÁNDEZ SANTAMARÍA, José. Natural Law, Constitutionalism, Reason of State and War. New York: Peter Lang Publishing, 2005, 2 v.). Segundo o célebre jesuíta, a origem da sociedade seria consequência da necessidade de sociabilidade humana entendida em termos aristotélicos. Importa ressaltar também que, a princípio, todos os homens nascem livres sem que haja autoridade ou jurisdição de uns sobre outros; a liberdade é, assim, seu estado natural. O primeiro núcleo de exercício da autoridade é a família. O agrupamento orgânico dessas pequenas unidades familiares seria o primeiro passo para a construção da sociedade. A transformação de um conglomerado de pequenas unidades familiares em uma civitas, ou sociedade política plenamente organizada, necessita, para que seja bem sucedida, da ocorrência de um consenso tácito ou um pacto, segundo o qual os indivíduos se agrupam voluntariamente objetivando o bem comum20 20 Ao ratificar a intuição de Tomás de Aquino que vincula a existência do Estado com a procura pelo bem comum, Suárez se aparta radicalmente da concepção sobre a origem da autoridade política delineada por Agostinho de Hipona. Suas razões para isso são expostas com as seguintes palavras: "El raciocinio que se ha hecho puede también aplicarse al estado de inocencia, porque no se funda en el pecado o algun desorden sino en la manera de ser natural del hombre, que consiste en ser animal social y reclamar naturalmente la vida en comunidad, la cual necesariamente debe ser dirigida por un poder público” (SUÁREZ, 1967, p. 201). ; "luego en una comunidad perfecta es necesario un poder público al cual le corresponda por oficio buscar y procurar el bien común” (SUÁREZ, 1967, p. 199). A comunidade política completa seria o produto de dois pactos, um primitivo de caráter social e outro de natureza política, no qual ocorre a cessão da potestas ao governante. A interpretação de que a sociedade civil é formada por meio de algum tipo de contrato, ou aliança, será um lugar comum da filosofia política moderna, considerada ainda um elemento importante na fabricação das doutrinas do contrato social21 21 Richard Peters, em seu estudo clássico sobre Hobbes, elucida pontos relevantes acerca das teorias do contrato social (PETERS, 1956). . Isso porque mediante o pactum unionis os homens individualmente acordariam em uma aliança entre si para compor a comunidade política. Posteriormente, no pactum subjectionis, ocorreria um outro tipo de acordo em que a sociedade civil se submeteria a uma forma particular de governo22 22 Uma perspectiva muito interessante relacionada a esta questão do duplo pacto social e sua relação com o cristianismo pode ser vista na reflexão relativa ao pacto de E. E. Albertoni. Vejamos o seguinte trecho: "O cristianismo instaura de facto uma hierarquia de valores, na qual a sociedade já não é um problema a explicar mas um dado existente e real. No plano mundano, de facto, o 'generale pactum societatis', é afirmado por Santo Agostinho, que, no De civitateDei, estabelece a distinção entre pactum subiectinis e pactum societatis de tal modo que, 'durante toda a Idade Média, a ideia de fundamentação da sociedade e do poder político se desenvolve em torno da temática contractualista do bispo de Hipona [D'Addio, 1954, p. 189]' A concepção do pacto pode portanto, nesse ponto, servir para legitimar o poder que se assume ter violado o pacto primeiro, original, o que liga o homem a Deus, às suas leis, à sua Igreja. A concepção cristã-agostiniana do pacto surge na natureza dúplice e sempre dialéctica e com suas contradições e polaridades internas que sempre distinguiram - no tempo - a abordagem cristã do tema do poder" (ALBERTONI, 1989, p. 28-29) .

Mesmo que os modos de efetuação desse pacto sejam variáveis e permitam diferentes formas de governo, todos seriam igualmente legítimos, conquanto preenchessem um único requisito: ser edificado sobre o consentimento comunitário de transferência voluntária do poder ao governante. Compreende-se que da mesma forma que a potência espiritual é de origem divina, a potência temporal teria que pertencer ao corpo político integralmente, e não apenas a um eleito entre os integrantes deste corpo. A citação a seguir retém implicações determinantes para o problema da origem divina do poder do rei:

Por consiguiente hay que decir que este poder, por sola la naturaleza de la cosa, no reside en ningún hombre en particular sino en conjunto de los hombres. Esta tesis es general y cierta. Se encuentra en Santo Tomás, el cual piensa que el soberano tiene el poder para dar leyes y que ese poder se lo transfirió a él la comunidad, como lo traen también y lo confiesan las leyes civiles. (...)

Por consiguiente, así como esa comunidad no comenzó con la creación de Adán ni por sola su voluntad sino por la de todos los que se reunieron en ella, así como no tenemos base para decir que Adán, por la naturaleza misma de cosa, tuvo el primero primado político en esa comunidad, porque eso no puede deducirse de ningún principio natural, ya que en fuerza de solo el derecho natural, al progenitor no se le debe que sea también el rey de su descendencia. Y si esto no se deduce de los principios naturales, no tenemos base para decir que Dios le dio este poder como un regalo personal y con una providencia particular, pues no tenemos ninguna revelación ni ningún texto en la Sagrada Escritura acerca de esto.

(...) Luego el poder para dominar o regir políticamente a los hombres Dios no se le dio inmediatamente a ningún hombre en particular. (SUÁREZ, 1967, p. 201-202)

Ao estabelecer um paralelo com a liberdade que os homens possuem individualmente, Suárez afirma que Deus deu o poder à comunidade humana, mas não sem a intervenção das vontades e do consentimento dos homens, fatores que possibilitaram por sua vez a reunião da comunidade perfeita. Um ponto bastante relevante a respeito do entendimento de Suárez relativo à monarquia é que mesmo elegendo este tipo de governo como a forma mais salutar e aconselhável, o autor não deixa de fazer advertências aos possíveis abusos e excessos que tal forma de organização política po-deria suscitar, sugerindo como remédio a essa teorética degeneração uma forma de governo mista implantada de acordo com os costumes dos homens de determinada localidade. Cabe ressaltar ainda que mesmo sem mencionar diretamente, como seria mais do que razoável esperar desse tipo de discurso, o autor insinua que os vícios da monarquia ocorreriam em razão da fragilidade, da ignorância e da malícia dos homens, leia-se dos monarcas. Esta era uma das advertências feita, com muito cuidado e sutileza, contra a adoção da forma simples de governo monárquico:

Y así también consta por la experiencia que en esto existe una gran variedad: en algunas partes hay monarquía, pero raras veces es simple, porque dada la fragilidad, la ignorancia y la malicia de los hombres, normalmente conviene mezclar algo de gobierno aristocrático, más o menos según las diversas costumbres y juicios de los hombres; así, pues, todo esto asunto depende de la prudencia y de la libre voluntad humana. (SUÁREZ, 1967SUAREZ, Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador: en diez libros. (Reproducción anastática de la edición príncipe 1612). Madrid: Instituto de Estudios Políticos , sección de Teólogos Juristas, v. II; libros III y IV, 1967., p. 206).

A partir da apresentação destes caracteres formativos das teorias do direito natural, interpretadas de acordo com o prisma aristotélico tomista, acredito ser pertinente postular que as teses explicativas da sociedade, da origem do poder político e do papel exercido pela lei nestes melindres, cunhadas pelos membros da Segunda Escolástica, configuravam eixos centrais das estratégias de constrangimento do poder régio e da afirmação contundente do primado da lei na organização social, desempenhando assim um papel fundamental na elaboração das doutrinas constitucionalistas. Desse ponto de vista, se torna claro porque esse tipo de argumentação constituiu um farto repertório no qual os movimentos contestatórios das ações dos monarcas buscariam ideias e fundamentos jurídicos que legitimassem suas reivindicações e corroborassem suas ações. O exame das temáticas em pauta aprofunda e dinamiza as análises dos discursos políticos modernos possibilitando, em última instância, a exploração de percursos alternativos de construção do Estado Moderno.

  • 1
    Todas as obras empregadas na confecção do artigo são referidas nas notas e na bibliografia. O artigo não foi publicado em plataforma de preprint.
  • 3
    Utilizo a mesma terminologia empregada pelo autor, Quentin Skinner, na obra em questão.
  • 4
    Recentemente, o historiador Irving Anthony A. Thompson questionou a atribuição do epíteto de "Monarquia Hispânica” entre outros, para designar o complexo territorial hispânico na época moderna. Apesar de considerar válida uma série de argumentos apresentada pelo autor, não considero que exista justificativa suficiente para o descarte do termo, contanto que sua utilização seja feita com consciência de seus limites terminológicos e sublinhando os significados e as intenções por trás do uso do termo Monarquía realizado pelos próprios sujeitos históricos (THOMPSON, 2016THOMPSON, Irving Anthony A. From Reinos to Monarquía: Political association in late 16th century Spain. Tempus, revista en Historia General, Medellín, n.° 4, p. 91-110, sept.-oct./ 2016.).
  • 5
    De acordo com a concepção desta matéria expressa por alguns especialistas no tema, como Joan-Pau Rubiés e Howell Lloyd. Ver as obras citadas anteriormente.
  • 6
    Escola de Salamanca e Segunda Escolástica podem ser tomadas como entidades realmente muito semelhantes no sentido de que a segunda engloba a primeira, ainda que o contrário não se sustente. Isso porque, de acordo com Ferrater Mora, um dos sentidos atribuídos ao termo Escola de Salamanca é a atividade filosófica e teológica empreendida por escolásticos hispânicos do início do século XVI até o século XVII. Optei por utilizar os dois termos para não excluir da reflexão mais ampla, sobre o discurso político constitucionalista, os teólogos e juristas da Segunda Escolástica de outras nacionalidades, especialmente os portugueses. Muito embora, empreguei o termo Escola de Salamanca sempre que foi preciso sublinhar uma afiliação mais propriamente circunscrita ao contexto da Universidade de Salamanca.
  • 7
    De acordo com Helmut Georg Koenisberger, a analogia do corpo político foi o pão de cada dia da linguagem política europeia ocidental, durante séculos (KOENIGSBERGER, 1978KOENIGSBERGER, Helmut Georg. Monarchies and Parliaments in Early Modern Europe: Dominium Regale or Dominium Politicum et Regale. Theory and Society, v. 5, n.° 2, p. 191-217, 1978.).
  • 8
    No livro I da Política, lê-se: "Estas considerações evidenciam que uma cidade é uma daquelas coisas que existem por natureza e que o homem é, por natureza, um ser vivo político” (p. 53). A tradução utilizada emprega a expressão "ser vivo político”, ao invés de "animal social” A justificativa é que a expressão representa melhor a inserção de todo ser humano na polis, a mais abrangente e superior forma de vida comunitária. Em nota explicativa, o tradutor esclarece que: "O termo político (politikon) deve ser tomado na estrita acepção de "cívico”, isto é "participante da vida da cidade”, e não no sentido demasiado lato e fluído de "social” (ARISTÓTELES, 1998ARISTÓTELES. Política. Ed. bilíngue. Trad. António Campelo Amaral e Carlos Gomes. Lisboa: Vega, 1998., p. 595).
  • 9
    Conforme observamos na concepção aristotélica: "O maior bem é o bem visado pela ciência suprema entre todas, e a mais suprema de todas as ciências é o saber político. E o bem, em política, é a justiça que consiste no interesse comum” (ARISTÓTELES. Op. cit., p. 231).
  • 10
    A noção de bem comum está vinculada ao tema da vivência humana organizada politicamente. Presente no pensamento europeu ocidental desde a antiguidade clássica, o núcleo básico desta noção é que os Estados devem proporcionar meios de subsistência, bem estar e felicidade aos seus membros (MORA, 1994MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Edições Loyola , 1994., p. 287).
  • 11
    A noção de corpo místico também compõe os escritos do período. Nas palavras de Maravall: "Recogida de San Pablo, la expresión "cuerpo místico” [...] se repite frecuentemente en nuestros escritores del siglo XVII. Pero en ella sirve el primer vocablo, cuerpo, para designar la unidad en que aparecen fundidos todos los miembros de una comunidad, contable aspecto a la del cuerpo humano; mientras que el segundo término, místico, destaca, entre otros matices, la diferencia con el simple cuerpo físico, advirtiendo que esa unidad tiene sólo realidad en lo espiritual, no en el materialmente corpóreo, y en esto ya no puede, ser comparada al organismo humano” (MARAVALL, 1997MARAVALL, José Antonio. Teoria española del Estado en el siglo XVII. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales , 1997., p. 115)
  • 12
    Empregou-se o termo república com o mesmo sentido amplo lhe era atribuído no período moderno, ou seja, um sentido bastante genérico que remete a uma comunidade política, qualquer que seja a sua forma de governo.
  • 13
    Noção a qual fez-se referência anteriormente, relacionando-a aos pressupostos aristotélicos.
  • 14
    Existe farta documentação acerca desta revolta, sobretudo cartas, editos, atas de reuniões de Cortes, anúncios e declarações produzidas pelos revoltosos. Esta documentação poder ser encontrada em Juan de Maldonado (1840)MALDONADO, J. El movimiento de España: Historia de la Revolución conocida con el nombre de las comunidades de Castilla. Madrid: Imprenta de D. E. Aguado, 1840..
  • 15
    Soto utiliza precisamente esta noção de representação: “El dar leyes no pertenece a cualquiera, sino a la república y al que la representa o tiene cuidado de ella” (SOTO, 1922SOTO, Domingo. Tratado de la justicia y el derecho. Vertido al castellano por Jaime Torrubiano Ripoll. Madrid, 1922 [primeira edição: Salamanca, 1556], tomo I., p. 29). Destaca-se que a ideia de representação é capital porque significa um preâmbulo necessário à construção da noção de pessoa jurídica. E, finalmente, é a ideia de representação que fornece alguns dos insumos necessários para a elaboração do conceito moderno de Estado.
  • 16
    "[...] atender con mas vigilancia a los dictados de la razón y a los impulsos divinos, y, por consiguiente obedecer él mismo a las leyes, que dicta a los otros [...]” (SOTO, 1922SOTO, Domingo. Tratado de la justicia y el derecho. Vertido al castellano por Jaime Torrubiano Ripoll. Madrid, 1922 [primeira edição: Salamanca, 1556], tomo I., p. 210).
  • 17
    “[...] luego por el mismo que el Príncipe da la ley, por derecho natural está el sujeto a la misma” (SOTO, 1922SOTO, Domingo. Tratado de la justicia y el derecho. Vertido al castellano por Jaime Torrubiano Ripoll. Madrid, 1922 [primeira edição: Salamanca, 1556], tomo I., p. 211-212).
  • 18
    Eis o trecho em questão: “Si el príncipe pudiese a su capricho abolir las leyes y demás disposiciones de su autoridad, redundaría en grave daño de la equidad, del derecho natural y del bien común, al que conviene en gran manera que la autoridad de las leyes sea inviolable y sagrada” (COVARRUBIAS Y LEYVA. 1957COVARRUBIAS Y LEYVA, Diego de. Textos jurídico-políticos. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1957 [primeira edição: Salamanca, 1545]., pp. 176-177).
  • 19
    “Siguese, pues, que por muy encumbrado que sea el poder del principe, no le es licito, ni permitido, el quebrantar las leyes. [...] Todo el que promulga leyes debe someterse él mismo a ellas” (VÁZQUEZ DE MENCHACA, 1931VÁZQUEZ DE MENCHACA, Fernando. Controversias fundamentales y otras de mas frecuentes uso: libro I. Valladolid: Talleres Tipográficos Cuesta, 1931 [primeira edição: Barcelona, 1563]., p. 230.).
  • 20
    Ao ratificar a intuição de Tomás de Aquino que vincula a existência do Estado com a procura pelo bem comum, Suárez se aparta radicalmente da concepção sobre a origem da autoridade política delineada por Agostinho de Hipona. Suas razões para isso são expostas com as seguintes palavras: "El raciocinio que se ha hecho puede también aplicarse al estado de inocencia, porque no se funda en el pecado o algun desorden sino en la manera de ser natural del hombre, que consiste en ser animal social y reclamar naturalmente la vida en comunidad, la cual necesariamente debe ser dirigida por un poder público” (SUÁREZ, 1967SUAREZ, Francisco. Tratado de las leyes y de Dios Legislador: en diez libros. (Reproducción anastática de la edición príncipe 1612). Madrid: Instituto de Estudios Políticos , sección de Teólogos Juristas, v. II; libros III y IV, 1967., p. 201).
  • 21
    Richard Peters, em seu estudo clássico sobre Hobbes, elucida pontos relevantes acerca das teorias do contrato social (PETERS, 1956PETERS, Richard. Hobbes. London: Penguin Books, 1956.).
  • 22
    Uma perspectiva muito interessante relacionada a esta questão do duplo pacto social e sua relação com o cristianismo pode ser vista na reflexão relativa ao pacto de E. E. Albertoni. Vejamos o seguinte trecho: "O cristianismo instaura de facto uma hierarquia de valores, na qual a sociedade já não é um problema a explicar mas um dado existente e real. No plano mundano, de facto, o 'generale pactum societatis', é afirmado por Santo Agostinho, que, no De civitateDei, estabelece a distinção entre pactum subiectinis e pactum societatis de tal modo que, 'durante toda a Idade Média, a ideia de fundamentação da sociedade e do poder político se desenvolve em torno da temática contractualista do bispo de Hipona [D'Addio, 1954, p. 189]' A concepção do pacto pode portanto, nesse ponto, servir para legitimar o poder que se assume ter violado o pacto primeiro, original, o que liga o homem a Deus, às suas leis, à sua Igreja. A concepção cristã-agostiniana do pacto surge na natureza dúplice e sempre dialéctica e com suas contradições e polaridades internas que sempre distinguiram - no tempo - a abordagem cristã do tema do poder" (ALBERTONI, 1989ALBERTONI, Ettore Adalberto. Pacto. In: ROMANO, Ruggiero (dir.). Enciclopédia Einaudi. Estado-Guerra. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1989, v. 14, p. 11-43., p. 28-29)

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Editado por

Editores Responsáveis: Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2019
  • Aceito
    02 Out 2019
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