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O LÉXICO DA POBREZA NA ORDEM FRANCISCANA (SÉCULO XIII): CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DA ECONOMIA CRISTÃ DE BENS SIMBÓLICOS1 1 Todas as fontes e toda bibliografia empregada encontram-se referidas neste artigo, que não foi publicado em plataforma de preprint. Este artigo apresenta uma fonte manuscrita, a saber, a Regula monachorum de Bento de Nursia, apresentada sob o título de Regula sancti Benedicti. E localizada na Bayerische Staatsbibliothek (Biblioteca Regia Monachorum), Códice latino 19409, fl. 33-34.

THE LEXICON OF THE POVERTY IN THE FRANCISCAN ORDER (13th century): AN INPUT FOR THE STUDY OF THE CHRISTIAN ECONOMY OF SYMBOLIC GOODS

Resumo

O léxico da pobreza na Ordem Franciscana deve ser considerado em perspectiva com o vocabulário presente em outras temporalidades e em situações diversas ao longo da história do cristianismo. A análise da série histórica do uso da terminologia da pobreza é importante por afastar hipóteses ingênuas em torno de um suposto Francisco mítico e de uma Ordem Franciscana supostamente disruptiva; ao mesmo tempo, manifesta-se importante por iluminar aspectos particulares do éthos franciscano, aprofundando a capacidade de compreensão do historiador. Por essa razão, propomos aqui, a utilização da pobreza como categoria histórica, tendo como eixo da análise o fenômeno franciscano e estabelecendo, como fundamento metodológico, uma história global em sua relação dialética com as temporalidades particulares a partir das fontes documentais.

Palavras-chave:
Idade Média; cristianismo; vocabulário; cultura; fontes escritas

Abstract

A lexical approach of the Franciscan Poverty must be placed in perspective with the general vocabulary found in different times and distinct situations over the Christian History. A long-term historical analysis is important to put away all the naïve hypothesis upon an alleged mythical Francis, as well as a supposed disruptive Franciscan Order; on the other hand, long-term historical analysis is relevant by bringing light to the uniqueness of the Franciscan éthos and, as consequence, by improving historian’s ability of comprehension. Thus, in this occasion, we propose the application of poverty as historical category for a focused analysis on Franciscan phenomenon; we also put forward the methodology of Global History that prescribes a dialectical interface between general and specific temporalities, with the intermediation of the documentary sources.

Keywords:
Middle Ages; Christianity; vocabulary; culture; written sources

1. Introdução: a pobreza como categoria histórica

Tendo em vista o acúmulo de fortuna crítica no debate a respeito da pobreza, sob diversas perspectivas e nos mais variados campos do conhecimento, podemos traçar, de forma preliminar, somente uma diretriz aproximativa para um ensaio de definição. Até mesmo naquelas ciências que tomam o objeto em termos concretos - no sentido de uma análise quantitativa ou mesmo qualitativa de um fenômeno material - não se observa uma definição consensual e permanente. Ainda nestes casos, tem sido necessário lançar mão de um aparato conceitual de mediação entre, de um lado, as condições materiais reais de um dado indivíduo ou grupo em determinado local e momento e, de outro, o mínimo denominador comum expresso em uma definição universal de pobreza. Via de regra, esse aparato conceitual supõe, primariamente, as modificações processadas nas sociedades ao longo da História.

A uma relativa simplicidade na percepção da pobreza, opõe-se a complexidade inerente à sua definição, de forma que a apreensão do conceito nem sempre se coaduna com a apreensão do real. De um ponto de vista da teoria econômica, é possível compreender três momentos fundamentais na concepção da pobreza, a saber: entre os séculos XIX e XX, até a década de 50, predominaria o enfoque na sobrevivência, a partir de pressupostos médicos que avaliavam a capacidade para a manutenção do rendimento físico dos trabalhadores industriais; nos anos 70 do século XX, juntamente com o princípio da universalização dos serviços sanitários, da saúde e da educação, a pobreza passou a fazer frente a uma noção do atendimento a necessidades básicas; por fim, a partir dos anos 80, assumiu uma conotação relativa, pela qual à privação material vinham somar-se privações em várias esferas da vida, assumindo-se uma perspectiva da pobreza como privação social (CRESPO e GUROVITZ, 2002CRESPO, Antônio Pedro Albernaz e GUROVITZ, Elaine. A pobreza como um fenômeno multidimensional. In: RAE-eletrônica, vol.1, n.2, p. 1-12, jul-dez/2002., p. 4-5).

A partir deste arrazoado e tendo em vista a construção do conceito ao longo da história, uma preliminar definição de pobreza deve ser necessariamente ampla e flexível de forma a acomodar uma série de situações materiais e de concepções subjetivas. Sendo assim, definimos pobreza como a condição de ser pobre, a qual pode ser identificada como tal a partir da observação concreta ou de juízo de valor, bem como a partir da percepção relativa ou absoluta. Nestes termos, é possível, portanto, expandir a concepção da pobreza para além dos limites da teoria econômica, estabelecendo relações sobre o plano da economia de bens simbólicos.

Podemos encarar o expediente da pobreza como aspecto fundamental de uma “cultura cristã”, entendida esta como um conjunto de características predominantes na relação da igreja e da fé cristã com as sociedades ao longo do tempo. Ao relacionar-se com o habitat, a cultura implica em relações fundamentais dos homens com o espaço físico, a saber, na dialética entre as sociedades e o meio. Do ponto de vista da relação do cristianismo com seu meio, podemos identificar alguns pressupostos - materiais e simbólicos - da implementação social da fé. Ora, a pobreza - assim como o pecado e a morte - constituiu-se em fundamento para a elaboração da nova doutrina e de sua espiritualidade (BROWN, 1989, p. 266). Tanto do ponto de vista material quanto do ponto de vista simbólico, a pobreza radicava no ser cristão como manifestação histórica e antropológica. Defendemos, aqui, a aplicação da pobreza enquanto categoria, como instrumento de aplicação universal empregado para iluminar uma (ou múltiplas) determinada(s) série(s) histórica(s).

Enquanto aspecto existencial da antropologia cristã, a pobreza assume contornos globais na medida em que é aplicável ao conjunto das comunidades e sociedades cristãs em qualquer tempo e lugar. O ideal da universalidade, inerente às origens da fé cristã, seria responsável pela difusão do éthos da pobreza, ao mesmo tempo que se concretizava o proselitismo da Palavra. A pobreza - material ou simbólica - era uma implicação radical do cristianismo - na medida em que consistia em elemento indissociável de suas origens.

Por outro lado, mas também como decorrência do que foi exposto, a pobreza viabiliza a compreensão de dimensões particulares do fenômeno do cristianismo, segundo suas múltiplas e variadas manifestações ao longo do tempo histórico. Sendo variável comum a todos os tempos e espaços cristãos, a pobreza opera como uma régua ou termômetro para a compreensão dos grupos humanos, suas dinâmicas sociais e suas interfaces com outros grupos. Por essa razão, a pobreza é capaz de evidenciar as diferenças e, portanto, auxiliar na identificação das especificidades, sempre inerentes ao fazer historiográfico.

No entanto, a pobreza comporta em si uma variedade de dimensões. As possibilidades vão desde sua manifestação mais concreta, a pobreza material, até a noção da pobreza espiritual, passando por uma série de gradações. Seu emprego é ainda mais heterogêneo: nas sociedades cristãs, o conceito da pobreza é empregado em textos jurídicos e diplomáticos, assim como em testamentos e registros comerciais, sem excluir, por suposto, sua ampla utilização nos escritos religiosos. E, nestes últimos, a pobreza comparece de forma particularmente diversificada: de fundamento exegético do texto bíblico à mendicância indigente das vitae de Francisco, passando pela função jurídico-normativa, pelo emprego simbólico associado aos comportamentos positivos e, por fim, pelo ideal de forma de vida adotados pelas comunidades religiosas.

2. O léxico e o campo semântico da pobreza

O adjetivo substantivado φτωχός (pobre) aparece trinta e quatro vezes no Novo Testamento. No versículo de Mateus (5:3), em que se nomeiam “bem-aventurados os pobres”, a tradução recomendada e corrente é, com efeito, por pobres. Há um significativo aspecto moral do termo φτωχός nos evangelhos, ao mesmo tempo que este deve ser traduzido por pobre e não necessariamente por pobre em espírito. O texto de Sofonias (2:3) caracteriza o anawin (do hebraico, pobre/humilde) como aquele que se submete à vontade divina. Com o tempo a terminologia passaria a definir os destinatários da mensagem redentora. Consta, em Isaías (61:1), que a eles seria enviado o Messias. Ora, em concordância com o texto veterotestamentário, a tradução grega φτωχός designaria aquele que se submete à vontade divina. Implícito no texto evangélico encontra-se o pressuposto de que Cristo tinha os excluídos como destinatários de sua mensagem, sendo que a pobreza se apresentava sob um conteúdo moral.

Na tradução latina, fixou-se a forma pauper (e seu plural pauperes) como correspondente à pobreza metafórica preconizada pelo texto bíblico. De maneira relativamente coesa, a exegese dos textos hebraico, grego e latino convergiram para a doutrina da pobreza associada à moral. Em que pese a força da imagem da pobreza em sua materialidade, a fides cristã identificaria a pobreza a um éthos - e, neste sentido, profundamente relacionado à Retórica dos padres da Igreja. A narrativa cristã identificaria na pobreza, não somente uma condição material de existência - em relação à qual impunha-se uma ação - mas também uma representação - acessível a todos, em concordância com o propósito universalista a partir do qual sua ecclesia se constituíra.

A pobreza era, portanto, condição, na qual se encontravam alguns, independentemente de seus atos: tratava-se dos pobres em sentido literal, a saber, os partícipes da pobreza concreta. Embora o texto bíblico pudesse induzir a uma condição de vantagem, esses pobres em bens materiais podiam, conforme a doutrina cristã, ser igualados pelos demais. Além disso, a pobreza material não carregava, por si só, nenhuma virtude especial. O éthos cristão prescrevia o dom , dirigido aos pobres e mediado pela autoridade episcopal: independentemente da condição do doador, a posição do pobre, no interior desse mecanismo de intercâmbios, permanecia sendo aquela exclusivamente a do sujeito de uma ação. A economia do dom, aspecto nuclear do éthos cristão, implicava em uma perspectiva salvífica para aqueles que doavam: o pobre, associado ao pecador - mas também ao estrangeiro, ao marginal e ao ingênuo (ou a criança) - era um mecanismo para a efetivação do éthos cristão e, portanto, para o equilíbrio entre o mundo material e o plano salvífico.

A pobreza encontrava-se, também, acessível àqueles que não partilhavam da condição, embora se apropriassem do seu éthos. Essa pobreza, essencialmente metaforizada, era aquela que predominava na exegese bíblica, e passaria a ser entendida, no conjunto da doutrina cristã, como aspecto fundamentalmente moral. A pobreza bíblica relacionava-se à aceitação da condição dada pelo desígnio divino - trata-se do léxico do texto de Sofonias, mas também da semântica do texto de Jó - que não continha o vocábulo anawin, mas mantinha-se estritamente fiel ao seu significado. Jó era a representação do pecador - assim como os pobres da linguagem veterotestamentária, os quais, sobretudo nos Salmos, eram identificados como aqueles que necessitavam do perdão. O pecado vem, na linguagem sálmica, associado à aceitação e conformação à vontade divina. A carne - matéria física e perecível, constituída a partir do pó e, por isso mesmo, símbolo e alegoria da humanidade - dirige-se a Deus “por causa de seus pecados”, uma vez que “nossas faltas são mais fortes que nós, mas tu no-las perdoa. ” (Sl 65:4). Nesse sentido, Jó, assim como os pobres, seriam representações da própria humanidade - em sua condição de pecadora a partir da queda e, portanto, da perda da semelhança com o Criador. Jó encarnava a necessidade da aceitação de tudo que se originava em Deus e apresentava eco na figura cristã de Maria diante do anjo Gabriel, à qual a narrativa neotestamentária atribuía a resposta: “Eu sou a serva do senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra! ” (Lc 1: 37).

Enquanto aspecto da doutrina cristã, portanto, a pobreza deve ser entendida em sua complexidade de sentidos, para além de sua manifestação literal - embora os sentidos da pobreza mantenham uma relação indissociável com sua manifestação concreta. A exegese do texto bíblico acabaria por consolidar uma interpretação alegórica da pobreza, preferencialmente à literal. No caso do cristianismo em particular, uma das razões para a opção pela exegese alegórica - que não se apresentava como óbvia em um primeiro momento - acabaria por relacionar-se à rápida diversificação dos quadros sociais que caracterizaria a adesão das populações do Império Romano entre os séculos II e III. (BROWN, 1989, p. 260ss) O conjunto articulado de suas características nos permite associar essa pobreza de conteúdo moral à noção de humildade. Esta implicava em aceitação e em submissão, e relacionava-se de maneira direta e preferencial ao desígnio divino. Esse conjunto articulado nos leva a associar a paupertas bíblica à humilitas - a pobreza seria uma alegoria da humildade.

A humilitas reunia a aceitação e a submissão reputadas a Jó e a Maria, sem que, contudo, esses dois personagens necessitassem estar relacionados por sua condição social - ela era diversa nos dois casos,e tivera peso e influência diferentes na escolha divina pelos dois personagens. Para além disso, a humilitas vinculava-se ao ato original da Criação - a forja do Homem a partir do barro - o humus. Sua raiz também se encontraria na palavra humano, humanidade, o que implica, também, na humilitas enquanto elemento de mediação da relação entre o homem e seu criador. Demiurgo supremo, Deus criara o Homem a partir da matéria do barro, elemento igualmente alegórico da Criação - a Palavra era o veículo da efetivação da vontade de Deus, o qual dispunha sua poiesis - ou ato de fazer, de criar - nos termos de uma ordenação verbal, segundo a fórmula “Faça-se”. O ato da criação deu-se pela Palavra, sendo a matéria concreta a sua alegoria.

A relação entre o humilis - aquele que tem sua origem do barro - e seu Criador passava, portanto, pela mediação da Palavra. A Palavra era centro dessa economia desigual entre o ser perfeito e os seres imperfeitos. A Palavra - o verbum, ou lógos divino - do princípio predominava na história da humanidade e articulava toda a criação com seu Criador. Trata-se da natureza fundamentalmente racional e ordenada que presidia a ação divina no mundo. A superposição de alegorias nos dá a medida dessa racionalização e aponta para a composição do discurso cristão na Patrística: a pobreza, elevada à sua maior racionalização, prescindia de sua materialidade, adquirindo seu significado a partir de um conteúdo moral.

A dialética que caracterizou a interação entre a fé e a razão na Patrística cristã também seria operante, portanto, na articulação de outros conceitos entre si. Quando se avalia, por exemplo, a pobreza propriamente dita, concluímos pela existência de uma polissemia, de tal forma que é possível identificar não só um corpus léxico como também um conjunto semântico. Por essa razão, a pobreza se encontra relacionada não somente a uma série de sentidos (derivados de um campo semântico ampliado) como também, a uma série de vocábulos (oriundos de um léxico específico).

Sendo assim, podemos identificar dois grandes conjuntos: o corpus semântico da pobreza (conjunto de aspectos relacionados à produção de sentido) e o corpus lexical da pobreza (conjunto de palavras intercambiáveis com a pobreza). Para ambos os casos, estamos nos referindo à terminologia paupertas, bem como às suas formas intercambiáveis.

Podemos afirmar que, na narrativa cristã em geral, o emprego do termo paupertas se encontra relacionado a sentidos que não se referem à pobreza material ou concreta. A condição material da pobreza, portanto, não costuma ser um significado contemplado pela terminologia paupertas. A partir da análise textual das fontes cristãs, podemos identificar uma série de aspectos semânticos preferenciais do emprego da paupertas.

Em primeiro lugar, a paupertas configura-se como aspecto moral fundamental da doutrina cristã. Em vários momentos, o texto bíblico representa o pobre enquanto pecador, alegoria extensiva a toda a humanidade, aspecto da linguagem dos salmos; o pobre enquanto destinatário preferencial dos desígnios divinos, predominante no texto de Jó; o pobre identificado à viúva, ao estrangeiro, ao órfão e, portanto, àqueles que partilham de uma condição de fragilidade ou vulnerabilidade, objeto da regulamentação de códigos de conduta tais como o Levítico e o Deuteronômio.

Em segundo lugar, a paupertas consiste em fundamento jurídico para classificar uma ou mais condições. Sob essa perspectiva, o pobre é identificado como aquele a quem se aplica uma instabilidade de direitos, via de regra, relacionados a seus bens ou posses. Ao analisar o estabelecimento de preços máximos para grãos e cereais no Capitular de Frankfurt, Marcelo Cândido da Silva defende que esse expediente integra um princípio de ordenação do reino de Carlos Magno segundo um “princípio de justiça aplicável a qualquer matéria” (CÂNDIDO DA SILVA, 2013, p. 54). De acordo com esse estudioso, os pobres representavam uma categoria passível de ter perdido ou de vir a perder direitos, e a “economia moral” carolíngia, por meio do estabelecimento de preços justos, representava um dos pressupostos para a manutenção do equilíbrio social (CÂNDIDO DA SILVA, 2013, p. 54).

Por fim a paupertas pode ser empregada como categoria relacional para efeito de comparação entre duas grandezas - neste caso, equiparável à categoria da riqueza.

Do ponto de vista da terminologia, por seu turno, identificamos formas preferenciais à paupertas, as quais possuem amplo emprego com o sentido de pobreza material: trata-se de humilitas, necessitas, egestas - um corpus lexical adequado à pobreza social tal qual a compreendemos hoje. Deste corpus, o termo paupertas encontra-se, para a quase totalidade dos casos, ausente. A pobreza, em seu sentido literal, não seria, portanto, nomeada como paupertas; da mesma forma, a terminologia pauperes viria empregada com base em uma concepção figurativa ou alegórica, e muito dificilmente conforme uma acepção literal.

3. A pobreza beneditina: economia de bens materiais e simbólicos

A paupertas seria, portanto, retomada nos ambientes cristãos sob uma série de aspectos, por vezes a partir de seu conteúdo doutrinário ressignificado, por vezes com uma acepção de todo independente da doutrina. Observa-se uma incidência sintomática no ambiente monástico: trata-se do emprego da terminologia paupertas não só de forma divorciada de seu conteúdo doutrinário, mas, ainda, com significado diverso de sua acepção corrente.

Estamos nos referindo a fontes que trazem informações relacionadas a dados da economia material sem, contudo, terem sido produzidas como documentos econômicos (a exemplo de registros de transações ou balanços de despensa). Trata-se da linguagem empregada em uma documentação normativa, a saber, aquela das Regras e documentos jurídicos de ordens monásticas. Selecionamos dois exemplos igualmente sintomáticos de um uso particular - a Regula de São Bento (c.525) e a Summa Carta caritatis (c.1152). Em ambos os casos, a terminologia da paupertas aparece como unidade medidora e é empregada como razão entre duas grandezas. Neste sentido, a pobreza é instrumentalizada de tal forma que se configura como categoria econômica.

Portanto, no conjunto das fontes normativas do ambiente monástico - corpus documental especialmente sensível à noção da pobreza -, a categoria da paupertas é empregada de forma relacional. Ela identifica a maior ou menor precariedade de um determinado lugar, pessoa ou situação em relação a uma medianiz variável conforme o caso. Nesse sentido, pobreza poderia ser substituída por riqueza. Em que pese ser a pobreza um dos votos fundamentais que definem o modo de vida monástico, a terminologia da paupertas não parece configurar-se, no texto normativo, como a mais apropriada para significar a precariedade do modo de vida. Essa é referida, antes, pelo vocábulo necessitas, presente no texto da Regula monachorum (c. 525) de São Bento com o sentido de restrição material. O sintomático capítulo XLVIII, que estabelece uma proporção entre os ofícios e o trabalho manual diário ao longo do ano litúrgico, prescreve o seguinte: “E se, porém, as necessidadesdo lugar ou sua pobreza exigirem, que façam eles próprios o trabalho da ceifa, que não se sintam descontentes com isso. ” (c. XLVIII, fl. 33-34).

No conjunto da Regula monachorum, a necessidade (necessitas) encontra-se, por sua vez, em estreita relação com o trabalho (labor). O labor manuum é proporcionalmente maior e mais extenuante quanto mais se fizer sentir, também, a necessitas. Esta, que poderia parecer uma conclusão automática, apresenta uma complexidade ulterior, uma vez que se verifica um descompasso entre a lectio divina - a oração - e o labor manuum - o trabalho. De acordo com a Regra, a lectio prescrita apresenta - ou ao menos, deveria apresentar - somente pequenas variações, em função de expedientes restritos - que dizem respeito a questões de forma e de organização temporal. Por sua vez, o labor manuum comporta variações qualitativas - o pequeno trecho do capítulo XLVIII nos permite verificar a possibilidade do emprego dos monges em trabalhos manuais conforme o grau de paupertas (pobreza ou riqueza).

Naturalmente, a maior ou menor precariedade material do lugar apresentava, portanto, implicações para o maior emprego de monges na ceifa ou nos scriptoria. A própria realidade dos scriptoria - e o volume e importância de sua produção - pode ser relacionada à renda total do mosteiro. Essa pode ser deduzida dos recursos obtidos de seus patronos, da produção que se realiza em seu dominium e do conjunto de doações e outros expedientes ligados à existência social do mosteiro. Em regiões particularmente mais abastadas, era comum encontrarem-se mosteiros mais permeáveis à afluência de indivíduos também abastados e educados segundo o currículo aristocrático. Uma tal configuração predispunha a uma maior presença de trabalhadores destinados ao trabalho da terra, o que liberaria os monges de grande parte do trabalho manual. Esse labor manuum, por sua vez, era preferencialmente identificado à atividade junto à terra: aspecto que viria a ser, também entre os franciscanos, um pressuposto da simplicidade - fundamento da humildade. Conforme a Regra Beneditina, “porque então são verdadeiros monges, se vivem do trabalho de suas mãos, assim como [fizeram] nossos Padres e os Apóstolos. ” (c. XLVIII, fl. 33-34).

Nos círculos educacionais aristocráticos, o trânsito de laicos e clérigos prescindia de categorias sociais, de forma que havia uma unidade disciplinar e de conteúdos que precedia a própria designação do educando, seja para o alto clero, seja para funções públicas seculares. As escolas monásticas se tornariam, ao longo da Alta Idade Média, um locus privilegiado para a formação aristocrática, de tal forma que os mosteiros jamais cumpririam um papel inteiramente monástico. O ideal do isolamento subjacente ao monos nos primeiros séculos do cristianismo - manifestação original da experiência religiosa nas terras ermas do Oriente Próximo - permaneceria um aspecto da vida de um grupo de monges, mas contrariava, para todos os efeitos, a perspectiva política que desde cedo predominou nos ambientes monásticos. Os titulares das terras que abrigavam um mosteiro pertenciam, via de regra, aos mesmos círculos de seu abade e de boa parte dos monges. Por essa razão, não seria de estranhar que, paralelamente à prescrição do labor manuum, predominasse, sobretudo nas áreas mais abastadas, uma cisão no trabalho: os monges predominariam nos scriptoria, razão para a elevada produção bibliográfica no interior do mosteiro; paralelamente, o trabalho da terra se daria por intermédio da ação de trabalhadores, permanentes ou precários.

A prevalência de uma economia fundamentalmente territorial acabava por gerar esse tipo de distorção na relação entre o trabalho manual e a efetiva prática das comunidades monásticas. Em que pese a nobreza atribuída à atividade dos monges intelectuais e copistas, essa não era considerada labor, mas, antes, studium - termo que deve ser traduzido por esforço e que não tem seu emprego restrito aos círculos estudiosos ou letrados. Em razão da nomenclatura, verifica-se que, apesar de elevada, a atividade intelectual não se equiparava ao labor e não se identificava, portanto, com a prescrição fundamental da Regra. O fato de que não se realizassem esforços para a adaptação do léxico do trabalho às atividades efetivamente desenvolvidas pelos monges é um indício de uma espécie de continuidade de uma “moral da distância social” característica dos ambientes senatoriais romanos - tanto quanto a organização econômica e social que presidira o surgimento das casas monásticas.

O éthos que presidiu a criação das novas ordens, a partir do século X, sob o impulso ideológico da Reforma, buscaria resgatar o discurso do trabalho manual ao mesmo tempo que procuraria dissociar os mosteiros da influência laica. Os Cistercienses conduziriam uma narrativa tipicamente reformista, ao preconizar o retorno às origens como pressuposto para o advento do homem novo. O discurso em torno do rigor é bem conhecido nas narrativas sobre a fundação da casa mater. Ele procuraria reintroduzir o princípio original da via monástica, a começar pela experiência apartada da vida secular que caracterizara o monos. Em que pese sua tônica reformista, o discurso cisterciense também não chegaria a superar a dicotomia entre o trabalho manual e os studia dos monges dos scriptoria.

Ainda assim, o modelo monástico cisterciense seguiria representando a si mesmo como o grande baluarte da reforma nos meios religiosos. Para além da questão do trabalho manual - que permaneceria em aberto -, a narrativa de Cister privilegiaria o divórcio entre a Igreja e a vida religiosa, por um lado, e o laicato, por outro. Essa temática seria equacionada na Summa Carta caritatis, de cerca de 1152: “Quod nullam cum saecularibus societatem in pecoribus nutriendis, terris excolendis dando vel accipiendo medietatem vel simila. ”. A criação da categoria dos conversos - grupos vinculados ao território do mosteiro - vinha a solucionar, em termos práticos, o problema da falta de mão-de-obra. Ao estabelecer um subgrupo de indivíduos que se encontravam no limiar entre o laicato e o monacato - mas habitavam as terras do mosteiro -, a legislação cisterciense afastava o problema das relações com a sociedade secular. Igualmente, o fato de que o mesmo documento interditasse a aceitação de indivíduos conversos na condição de monges em outros mosteiros, representava a garantia da permanência da mão-de-obra. Com isso, criava-se uma ordem de indivíduos dedicados ao labor manuum no interior do mosteiro e que, embora não sendo monges, se encontravam apartados da vida secular. Sua condição de conversos implicava na criação de uma nova categoria jurídica, ligada fundamentalmente às necessidades econômicas do mosteiro e às exigências ideológicas da Reforma. Por sua vez, o fato de não poderem ascender a monges criava uma reserva de mão-de-obra. Embora relacionada fundamentalmente ao trabalho, a pobreza, sob o éthos cisterciense, distanciou-se progressivamente do labor para vincular-se à noção do rigor, altamente valorizada pelos teóricos reformistas dos séculos XI e XII.

4. A Ordem Franciscana: concórdia entre pobreza e trabalho

Na narrativa da Ordem Franciscana, por outro lado, se verificaria uma relação indissociável entre a pobreza e o trabalho. O labor viria associado à atividade simples e, via de regra, extenuante, sendo esta a acepção original da mendicância franciscana. As narrativas seriam unânimes em estabelecer o trabalho como fundamentalmente pobre.

No conjunto dos textos, de procedências diversas, o conceito da mendicitas identifica-se ao trabalho simples. Trata-se do modelo dos construtores e operários que proliferou a partir da consolidação do traçado dos caminhos de peregrinação, caso da devoção a Santiago de Compostela. A rede assistencialista que se formaria no trajeto - incluindo hospedarias, hospitais e tavernas -, bem como a construção de pontes e passagens, favoreceriam a valorização de atividades ligadas aos operários e construtores. Trata-se de sintomas dos novos pressupostos para o exercício da vida religiosa. O labor simplex, relacionado à obtenção somente do necessário à sobrevivência, era entendido como forma privilegiada da mendicância, e coadunava-se com o ideal da paupertas. A mesma mendicância também supunha o salário obtido pelo trabalho - via de regra, associado a espécies não monetárias. A mendicância do léxico franciscano identificava-se ao labor manuum, e, sendo assim, supunha uma relação com a otiositas - embora essa não constasse dos textos e nem das prioridades enunciadas pelo franciscanismo. No entanto, para muito além do ato simples do pedir esmolas, a ação do esmoler franciscano encontrava-se incontornavelmente relacionada ao trabalho e nunca sob sua exclusão.

Nas Vitae e Legendae, há uma narrativa consensual que descreve os pedidos de esmolas a fim de encher as lâmpadas da igreja de S. Damião. Esta é uma tópica dos inícios do franciscanismo que se utiliza de uma das primeiras historietas relacionadas à conversão de Francisco: a solicitação, em sonho, para que Francisco restaurasse a Igreja de Deus. A obra da restauração em si supunha a mendicância, princípio fundamental da pobreza franciscana. Mas a mendicância não poderia dar-se sob a exclusão da realização do trabalho. Portanto, para o modelo da mendicância franciscana, haveria uma relação de equivalência entre o operário e o mendicante, e, portanto, uma relação de complementaridade entre o trabalho e a esmola.

A tradição escrita do franciscanismo primitivo supunha, ainda, uma relação da mendicância com a sobrevivência - a ação do esmoler, sempre identificada ao princípio da pobreza, também ia ao encontro dos elementos mais básicos da subsistência. Sendo assim, a esmola era o salário obtido pelo operário a partir de seu trabalho manual. Obter “comida misturada de porta em porta” era uma das finalidades da realização de trabalhos manuais simples e extenuantes - ligados, sintomaticamente, à edificação (aedificatio) e à reforma (reformatio). Trata-se de um éthos do trabalho progressivamente ligado à santidade na cristandade latina. Se os monges de São Bento - até mesmo em sua versão reformada - se aplicavam nos studia dos scriptoria - sem que houvesse a necessidade de uma adequação do léxico à demanda do labor manuum -, os franciscanos partiriam de uma nova sensibilidade - dada por novos contextos religiosos e, sobretudo, pela diversificação social. Um novo éthos se construía a partir dos mesmos impulsos reformistas dos séculos XI e XII. Os desdobramentos desses impulsos apontavam para a difusão e para a multiplicação da devotio na forma das construções e das atividades ligadas aos meios urbanos.

Os textos da Legenda trium sociorum (doravante, LTS), atribuída a Leão, Ângelo e Rufino, e da Vita secunda (doravante, VS), de Tomás de Celano, são igualmente representativos desta ética esmoler. Produzidas em um mesmo contexto (cerca de 1246) mas com motivações opostas, ambas retomaram a Vita prima do mesmo Tomás de Celano para assumirem a defesa de partidos opostos. No entanto, os textos são unânimes na defesa das esmolas e no compromisso com a manutenção da ética do trabalho. Um elemento ulterior vinha juntar-se a estes: o aspecto moral, que associava a esmola à humilhação e, por conseguinte, à humildade. A resultante era o fazer-se humilde (humilis, ou o humus da terra). Todo esse léxico converge com a noção da pobreza, e a define sob um conteúdo não somente social, mas sobretudo moral.

A esmola se encontrava relacionada, ainda, a um mecanismo de resistência à fragilidade: trata-se da fragilidade do espírito, associada ao conforto proporcionado pela vida material abastada. Esta não predispunha ao exercício do trabalho, sobretudo o trabalho realizado em condições adversas. A fragilidade espiritual ligada ao conforto material viria, portanto, a favorecer a otiositas. Essa era representada por toda vida pregressa de Francisco, caracterizada pela atividade usurária e pelo convívio inócuo com seus amigos. Ele deveria trocar uma alimentação substanciosa e ao mesmo tempo delicada, preparada por serviçais e servida em louças finas, pela “comida misturada” que pediria de porta em porta, justa recompensa por um trabalho extenuante. O “espírito delicado” de Francisco, consensualmente definido, no conjunto das narrativas, como burguês e abastado, não seria predisposto ao trabalho árduo ou ao consumo de restos de alimentos. Retomamos a LTS e a VS: o trabalho duro a ser realizado na reforma da igreja corresponderia à infâmia do ato de pedir esmolas. Labor físico e labor espiritual: ao trabalho físico extenuante corresponde um trabalho espiritual infamante. Como em outros aspectos da narrativa franciscana, há uma implicação de superação: na mesma medida em que se devem superar as adversidades da matéria, igualmente devem ser superadas as adversidades do espírito. Dor e fatiga, no caso material; vergonha moral, no caso espiritual.

Piron observa a grande dificuldade em partilhar do estado medicante em virtude da vergonha implícita no ato de pedir esmolas de porta em porta. A mendicância, estado por excelência dos frades menores, impunha particular constrangimento aos frades que ocupavam posições dirigentes, sobretudo tendo em vista sua posição social frequentemente elevada (PIRON, 2009, p. 36). Observa-se ainda, que a lembrança do estado mendicante consistiria em uma penitência sempre retomada quando se tratava de corrigir desvios contra a natureza humilde da Minoritas.

A terminologia da pobreza na Ordem Franciscana apresentaria, naturalmente, uma correspondência com o léxico bíblico da exclusão. A esse respeito, a Bíblia hebraica apresentava prescrições dotadas de implicação legal: trata-se dos textos de Levítico e Deuteronômio, com suas reiteradas recomendações a respeito daqueles identificados como desassistidos sociais: o órfão, a viúva, o estrangeiro. O fundamento jurídico desses dois livros justifica seu conteúdo legal, no sentido de prover assistência legal aos marginalizados da sociedade. Sua força de lei advinha da necessidade de uma regulamentação unívoca em uma sociedade destituída de um Estado. De qualquer forma, o código expresso nessas fontes - que pode ser coligido em associação com outros documentos - representa uma atribuição de funções assistenciais a indivíduos e grupos de uma comunidade.

De uma maneira geral, a literatura cristã reverberou as prescrições sobre o órfão, a viúva e o estrangeiro. As recomendações da Patrística sublinharam as alegorias do “marginal” bíblico, ao passo que o episcopado do segundo cristianismo as identificou e individualizou a partir da política do dom. Na concepção dos pobres destinatários do dom, havia um fundamento jurídico que radicava na alegoria bíblica. Aqueles a quem se deveria acolher no seio das paróquias, enquanto destinatários por direito dos bens da ecclesia, eram os fragiles do tecido social, aqueles que se encontravam, por uma definição que precedia sua própria existência, nas franjas da sociedade. A partir do terceiro século, momento em que o cristianismo se consolidou na rede paroquial e na administração pública, cristalizou-se a noção segundo a qual os bens da Igreja pertencem aos pobres.

Há uma continuidade na tradição escrita que orienta a composição de documentos jurídicos e de textos em geral a respeito da vida regular na cristandade latina medieval. Por essa razão, podemos identificar, no conjunto da produção - normativa e bio-hagiográfica - proveniente da Ordem, uma relação de continuidade com o léxico da pobreza empregado nos textos beneditinos. Para efeitos da documentação franciscana, o vocábulo paupertas segue sendo, em grande medida, uma categoria relacional, ou seja, um instrumento para quantificação e classificação e não propriamente um conceito definidor de um ou mais aspectos da cultura material ou de um conjunto de ideias.

Por outro lado, a categoria da pobreza na Ordem Franciscana, é, também, suficientemente ampla para abarcar todo um conjunto de significados, todos eles em grande medida derivados da exegese do texto bíblico e das fontes jurídicas medievais. Diferentemente do que se poderia concluir, o léxico da paupertas e dos pauperes nos textos franciscanos não só se caracterizou pela polissemia como também apresentou um emprego fundamentalmente distanciado do sentido da pobreza material. Esta apresentava, como nas fontes cristãs em geral, um papel preponderante no nível das representações, e, naturalmente, o discurso sobre os pobres e a pobreza jamais se divorciaria desta alegoria original. A alegoria do pobrezinho fazia eco às condições precárias da manjedoura e à escassez de víveres que impunha o milagre para sua multiplicação. Ela era necessária - embora não suficiente - para a reprodução da dinâmica da conferência de sentidos para a pobreza.

Há duas implicações fundadoras da concepção franciscana de pobreza: a primeira é de natureza doutrinária; a segunda, jurídica. Do ponto de vista da doutrina, devemos compreender a concepção franciscana de mundo como um aspecto da exegese evangélica, segundo a qual Jesus e seus apóstolos nada haviam possuído, fosse em particular, fosse em comum. Essa doutrina da ausência de propriedade consistiria no fundamento para a observância franciscana da pobreza - a Regra franciscana retiraria sua identidade e originalidade da observância estrita. Do ponto de vista jurídico, impunha-se a criação de uma normativa específica que permitisse a existência da comunidade franciscana, a partir das características particulares de sua proposta: tratava-se de estabelecer um mecanismo que lhe permitisse renunciar à propriedade dos bens, conservando somente o seu uso. Para além de um engajamento em um conjunto de práticas religiosas, a Ordem Franciscana, assim institucionalizada, deveria ter uma existência jurídica legitimada, pressuposto para seu reconhecimento social.

Aquilo a que se convencionou compreender, entre os franciscanos, como o pressuposto da vida evangélica, identificava-se com a pobreza absoluta. Essa noção unânime seria sustentada não somente por aqueles considerados rebeldes - sob a nomenclatura geral de Espirituais Franciscanos - como também pela fonte máxima de autoridade na Ordem no século XIII - Boaventura de Bagnoregio. Com base em uma exegese particular do texto evangélico - aquela predominante entre os franciscanos -, Boaventura defenderia a forma vitae dos franciscanos como mais próxima à perfeição evangélica do que as formas professadas e praticadas por outras ordens religiosas. Com base em uma concepção hierárquica da perfeição, o ministro-geral alocaria os frades no topo de uma cadeia que tinha como fundamento o grau de semelhança com a vida de Cristo e dos apóstolos:

E não se encontra precedente para esta forma de perfeição, ou seja, aquela que consiste na conformidade do viandante com Cristo, por seu hábito de virtude, o qual supererogativamente declina do mal, pratica o bem e tolera a adversidade.

Decorrente da querela entre o clero secular e os mendicantes na Universidade de Paris, a Apologia pauperum contra calumniatorem (c.1269) defenderia a pobreza franciscana por intermédio de uma série de recursos retóricos, resultantes de um processo cumulativo responsável pelo prolongamento da disciplina do trivium nos ambientes da Idade Média cristã. A retórica de Agostinho, estabelecida a partir dos manuais ciceronianos, reverberava a disciplina clássica descrita e difundida por Aristóteles.

Da questão doutrinária decorria a implementação de um aparato jurídico destinado a viabilizar e a legitimar o modo de vida professado pelos frades. Sob o ponto de vista legal, a Ordem passaria a dispor de um mecanismo de separação entre a propriedade (dominium) e o uso (usus). Os Franciscanos deveriam, a partir da Mira circa nos, publicada por Gregório IX em 1228, abrir mão da propriedade de todo e qualquer bem, conservando para si somente o seu uso. A esse respeito, o mesmo Boaventura dedicara-se a estabelecer o princípio geral da jurisdição acerca da propriedade franciscana. Em meio à contenda com os mestres seculares, o então ministro-geral fixaria a natureza da pobreza franciscana, identificando-a à pobreza absoluta e diferenciando-a de outras formas de vida religiosa:

Dessa forma, aquelas coisas que concernem ao uso da Ordem Franciscana encontram-se sob a tutela do pontífice, encontrando-se os frades sujeitos à sua obediência e confiados aos seus cuidados. Da mesma forma que aquilo que se dá ao monge - que vive sob o regime da propriedade comum -, qualquer que seja a intenção daquele que dá, não passa ao domínio do mesmo, a sim de todo o colégio, e encontra-se sujeito à disposição do abade - ainda que o doador não tenha pensado no colégio -, igualmente, aquilo que se dá à congregação dos Frades Menores passa ao direito, domínio e propriedade do sumo pontífice e da Igreja Romana .

Mas o salto qualitativo em relação à discussão que ocuparia os frades ao longo do século XIII - a Questão Franciscana - se daria a partir da superação da dicotomia propriedade versus uso. A categoria do usus pauper, delimitada na obra do franciscano Pedro de João Olivi (1248-1298), representaria um expediente de estabilização de conceitosm, embora estivesse longe de sanar os conflitos no interior da Ordem. Ao longo do Tractatus e das Questiones de Usu Paupere, Olivi redimensionaria a discussão em torno do binômio propriedade-uso, conferindo-lhe profundidade: ele o faria a partir da interposição do usus pauper, que apresentaria uma nova perspectiva ao debate. Tratava-se de transcender o binômio para fixar um terceiro vértice, responsável pela mediação da relação entre os dois primeiros.

A separação entre a propriedade e o uso acarretava em um debate, cuja conclusão concorreria, em grande medida, com a doutrina do usus pauper, - uma proposta no sentido de se estabelecer um princípio antes qualitativo que quantitativo na determinação das formas e limites do uso. O tratado De usu paupere, e suas subsequentes quaestiones, teria sido produzido em cerca 1283, em um contexto de disputas entre grupos e facções. A ideia de que a pobreza radicava não em um princípio absoluto sujeito a medidas invariáveis, mas, antes, em uma prática - ou práticas - sujeitas a medidas dosimétricas de natureza (também) qualitativa, seria a grande novidade trazida pelo pensamento de Olivi. Infelizmente, o contexto de acirramento de disputas, aliado a uma produção concorrente do próprio Pedro de João Olivi - a chamada Lectura super Apocalypsim - acabariam por ofuscar o texto e comprometer seu alcance na Ordem como um todo.

Se os Conventuais tenderam progressivamente a desacreditar a produção de Olivi, na medida em que ela obtinha a adesão de muitos colegas da facção oposta, os Espirituais elegeram a Lectura, um texto fundamentalmente místico, como emblema de sua própria luta - considerando o De usu paupere como um mero aparato jurídico no conjunto do pensamento místico do frade. A marginalidade a que seria relegado o De usu paupere traria consequências desastrosas tanto para a sobrevida da unidade da Ordem quanto para o debate em torno da pobreza. Esse tenderia a retroceder às discussões de princípios do século XIII - discussões até mesmo anteriores a Francisco - a cada vez que se apresentava a necessidade de se construírem consensos partilhados.

Texto jurídico importante por estabelecer a definição do usus pauper, na década de 1280, o Tractatus de usu paupere, acrescido de suas Quaestiones, pode ser considerado a obra de síntese de Olivi. Trata-se de uma contribuição fundamental para o entendimento do tópico, aprovado pelo papa Gregório IX para a Ordem Franciscana, e que estabelecia a separação entre o uso e a propriedade. Princípio fundamental da existência jurídica franciscana em seu primeiro século, o usus pauper era o elemento de mediação entre essas duas grandezas, sendo que os frades deveriam abdicar da propriedade, conservando somente o uso das coisas. De acordo com Todeschini, por intermédio da categoria econômica do “uso”, a escola franciscana teria conseguido traçar uma nova chave explicativa para a dialética que ligava o sujeito humano às coisas criadas (TODESCHINI, 2002, p. 326). Para além desta perspectiva, observa-se uma contribuição para a construção do pensamento econômico moderno: ao relacionar, como alternativa à terminologia denarii - designativa da espécie monetária -, a palavra pecunia, Olivi estabelecia como válida - e equivalente ao dinheiro - toda uma categoria de bens pecuniários passíveis de incorporar valor. Trata-se da concepção de uma ratio pecuniae, subjacente ao conjunto dos bens passíveis de serem utilizados à guisa de precificação (LAMBERTINI, 2016, consultado em 05/12/2019). O tratado, que nada tem de conteúdo moral ou exortativo, procura, na verdade, a partir da discussão e proposta de resolução de uma questão jurídica, estabelecer, no campo normativo, os pressupostos para o funcionamento das casas franciscanas. Pela natureza da composição, o texto apresenta minúcias terminológicas e atém-se a detalhes mínimos do funcionamento das comunidades.

Aqui, o léxico da pobreza também apresenta a particularidade de desdobrar-se em uma polissemia, sendo que o termo paupertas nunca se relaciona à pobreza social e material. No texto de Olivi, a paupertas - e seus próximos, tais como pauper e pauperes - figura em três níveis: a) como categoria relacional, a exemplo dos textos monásticos; b) como normativa, fornecendo lastro teórico à forma de vida professada pela Ordem, como em “professionem ac regulam paupertatis nostram” (ed. BURR, 1992, p. 89) c); com sentido adverbial, ou seja, expressando um modo (pobre) de vida, caso de “rerum (...) modo non excedunt altíssima paupertas” (ed. BURR, 1992, p. 89). No corpus franciscano de escritos, seria comum, portanto, que a paupertas comportasse uma polissemia, concomitante à sua onipresença nas sentenças.

Recolhemos e analisamos uma série terminológica nos 30 primeiros artigos do Tractatus (c.1283), assim como na IX Quaestio, particularmente representativa do debate então em voga. Em primeiro lugar, a paupertas surge como aspecto normativo da Regra e, portanto, incorporado à forma de vida franciscana - devido à particularidade do aparato teológico da Ordem, esta vem identificada, automaticamente, à forma de vida professada no cristianismo primitivo por Cristo e seus apóstolos. A paupertas é, aqui, equivalente à mendicitas, também relacionada à forma de vida. O substantivo pauper ocorre três vezes com sentido adverbial, para referir-se ao modo pobre, e ainda três vezes expressando a exegese da pobreza dotada de conteúdo moral - caso do pauper spiritu. A terminologia que parece descrever de forma mais completa o sentido da pobreza material é egestas e seus próximos, tais como o verbo egere. Este último também é intercambiável por non habere/habendo/habentes. A egestas, por sua vez, opõe-se a opulentia/abundantia, as quais, via de regra, surgem em conjunto.

A egestas possui, portanto, força conceitual para definir a pobreza material, aspecto sobremaneira marcante no pensamento franciscano. A apropriação da noção da pobreza, em sua materialidade - em certo sentido, contra a tradição exegética -, possui implicações para o desenvolvimento do pensamento e das instituições franciscanas já nos primeiros séculos. A incorporação da pobreza em sua forma concreta se faria a partir do emprego do léxico da egestas, sendo que a paupertas manteria seu emprego como categoria relacional. O Tractatus traz a fórmula egestas super paupertatem, o que vem a confirmar o uso categorial de paupertas e o uso conceitual de egestas. A fórmula, repetida ao longo do tratado, é empregada como sinônimo da também amplamente utilizada expressão penuriam rerum utilibium. O vocábulo penuriam, ao lado de necessitas, encontra-se associado ao léxico da egestas no conjunto do tratado.

A egestas, por sua vez, vem associada a uma série de aspectos relacionados à propriedade e aos bens em geral, via de regra, representados por termos empregados no caso latino do genitivo (carecer de [algo]). É recorrente, portanto, no texto do Tractatus, a presença de expressões tais como egestas res, egestas divitiae, entre outras. Há uma insistência, portanto, na associação da Ordem à carência (egestas) de bens materiais: coisas, dinheiro, reserva de grãos, privilégios concedidos por poderosos, alimentos. Trata-se da prevalência do léxico da egestas sobre o da paupertas na delimitação dos aspectos da pobreza material.

Essa mesma carência relaciona-se, no corpo do texto, a aspectos definidores da pobreza, representados por uma terminologia que pretende circunscrevê-la - sempre aplicada em proximidade com a palavra egestas - e não com o termo paupertas. Trata-se de definir e caracterizar a pobreza material - a egestas - por topói recorrentes, tais como: vileza no vestir e no comer, rígidos jejuns, forma de viver em humildade e aspereza. Da mesma forma, é recorrente o emprego de uma terminologia alusiva ao oposto daquilo que se configuraria como pobreza material: trata-se da referência à delicadeza - essa vem, via de regra, associada à comida, mas também pode relacionar-se à vestimenta. Trata-se de um tópos das vitae e legendae, que situam o personagem de Francisco anteriormente à conversão em seus hábitos burgueses e abastados. O contraste é representado por sua renúncia à vestimenta no momento do desnudamento diante de seu pai e por sua disposição para o trabalho sob a condição de pedir comida de porta em porta - ambos aspectos já tratados neste capítulo.

A humilitas que se encontra aqui não representa um princípio geral da norma comportamental franciscana e nem uma alegoria da pobreza bíblica. Portanto, não se trata de uma forma intercambiável com a paupertas, mas sim uma manifestação material e concreta da pobreza - portanto, egestas. Ao modular-se à egestas, a humilitas tem sua semântica alterada: ela passa a ter seu significado associado a elementos da existência material e concreta. Um dos mecanismos de alinhamento da humildade à pobreza material é sua associação, conforme se observa no corpo do De usu paupere, à terminologia asperitate. A aspereza designa formas e texturas palpáveis, sobretudo no vestir e no comer - e, portanto, situa e preenche um conjunto de condições materiais de existência. Em adição, a aspereza contrasta com a delicadeza, sendo que essa última, via de regra, é empregada com a função de definir uma situação material: no caso, a vida burguesa. Note-se, a esse respeito, que a humilitas e sua terminologia relacionada acabaria por ser facilmente associada à pobreza material do que a própria paupertas. Essa última se encontraria investida, historicamente, de muitos - e múltiplos - significados, embora muito raramente de seu sentido literal tal como hoje se lhe atribui.

A terminologia da egestas vem, ainda, relacionada ao usus. Embora esse último se encontre fundamentalmente articulado a expressões da vida material - uma vez que se refere aos bens disponíveis aos frades -, o emprego do termo não é frequente quando relacionado à egestas. Ao contrário, quando se trata do corpo lexical da paupertas, o usus passa a ser um elemento sempre presente e operante no campo normativo. Trata-se de uma categoria instrumentalizada para fins jurídicos e com emprego muito limitado no campo das condições concretas de existência. A partir da bula de Gregório IX, o usus passaria a configurar-se como aspecto da norma franciscana e seria empregado conforme a sua definição particular da pobreza: ele passaria a integrar um corpus teórico de significações no universo franciscano.

Por conseguinte, ao tratar do uso - seu eixo temático, embora raramente sua temática única -, o Tratado o emprega, primordialmente, em uma acepção de medida, o que vem a reforçar sua função normativa. O usus tem por função operar uma modulação da paupertas, de forma que cabe a ele delimitar o campo destinado ao exercício da paupertas e circunscrever as práticas franciscanas. Sendo assim, temos que paupertas/pauper consiste, neste caso em particular, na forma do uso. Seguem os principais empregos do usus pauper e suas formas intercambiáveis:

A IX Quaestio representa um caso modelo do tratamento do tema. Não se verifica a palavra paupertas neste enunciado em forma de diálogo. Olivi compõe sua réplica à quaestio sobre o usus pauper prescindindo do vocabulário específico da paupertas. Mais afeito à categorização abstrata, o instrumental da paupertas revela-se menos útil ao tratamento de questões específicas da vida prática. Aqui predomina o léxico da necessitas. Ao seu lado, coexistem as formas habere sufficientiam e egere. A necessitas, por sua vez, é passível de um espectro de variações, embora estas sejam restritas a uma semântica da pobreza - ela não é, como a paupertas, uma categoria relacional. A necessitas serve, antes a uma categorização que adquire sentido no interior do discurso, por sua força retórica. Dessa forma, temos associações tais como necessitas presens; necessitas extrema; necessitas mortis; necessitas minora. Destas, a necessitas presens é a mais amplamente empregada para definir o ideal do usus pauper:nunquam res accipienda vel habenda nisi pro necessitate presente. ” (ed. BURR, 1992, p. 109).

A instituição franciscana impunha, desde seu estabelecimento efetivado sob o modelo conventual, a questão das doações. Alvo de críticas de parte da Ordem e sempre encarada de forma controversa, as doações deveriam, também, enquadrar-se na categoria do usus, excluindo-se a questão da propriedade. Aqui, a terminologia recai sobre a mendicância, intercambiável com a noção do usus pauper:Sed aliquando melius possunt dare semel pro toto anno ut in vindemiis et messibus et consimilibus (...) usum hominum inopum et mendicantium. ” (ed. BURR, 1992, p. 110).

Conclusão

O léxico da pobreza no conjunto da documentação franciscana implica, fundamentalmente, em uma polissemia. Essa tem sua origem na própria ambiguidade interpretativa do texto bíblico, a partir das sucessivas exegeses e traduções do hebraico, do grego e do latim. Mas essa polissemia também deriva da particularidade da eleição da pobreza como fundamento de toda a doutrina franciscana. Ao longo da tradição de escritos ligados aos meios monásticos, a paupertas teve seu emprego preferencial como categoria relacional. No conjunto da documentação franciscana, por seu turno, a paupertas apresentava, para além desse uso tradicional, uma acepção doutrinária e modal. Embora onipresente no texto franciscano, o vocábulo paupertas nunca aparece empregado com o sentido de condição material de existência.

Em que pesem suas limitações, por intermédio da noção da paupertas (e não necessariamente da terminologia paupertas) e de seus correspondentes egestas, mendicitas, necessitas, a literatura franciscana readequou o léxico do trabalho - o labor manuum - à terminologia da vida religiosa. Doravante, o trabalho se encontraria, na terminologia, incontornavelmente associado à pobreza, a partir da mediação da mendicância.

Este conjunto de reflexões nos possibilita algumas conclusões de caráter geral e algumas pistas para a exploração de determinadas particularidades. Em primeiro lugar, é necessário considerar a manifestação lexical da pobreza franciscana no interior de uma série histórica abrangente o suficiente para nos fornecer bases para a comparação. Neste sentido, retomamos uma terminologia que remonta aos princípios fundadores do cristianismo e constituidores de sua antropologia. O vocabulário identificado seria retomado e se tornaria hegemônico, ditando, ao mesmo tempo, um éthos cristão de pobreza predominante ao longo dos séculos.

Em segundo lugar, a análise da série histórica permite afastar a hipótese, sempre retomada em círculos acadêmicos e não acadêmicos, segundo a qual Francisco de Assis fundamentaria uma novidade absoluta com sua proposta específica de pobreza. Igualmente, uma tal análise de longo prazo nos conduz a refutar o pensamento corrente segundo o qual as formas de pensar, agir e relacionar-se com a sociedade propostas pela e para a Ordem Franciscana seriam, essencialmente, disruptivas; ao contrário, elas integram um longo caminho de construção e reconstrução da religião.

Por fim, aqueles aspectos realmente inovadores aportados pela “boa-nova franciscana” são importantes por iluminar todo um período, dotado de características particulares, necessidades específicas e novas formas de relacionamento das pessoas entre si e com seus espaços. Por outras palavras, uma vez separados do caldo geral, estes aspectos acabam por reforçar a singularidade de Francisco, de sua experiência e de sua proposta - uma vez que lhes conferem significação em seu ambiente e em sua temporalidade.

  • 1
    Todas as fontes e toda bibliografia empregada encontram-se referidas neste artigo, que não foi publicado em plataforma de preprint. Este artigo apresenta uma fonte manuscrita, a saber, a Regula monachorum de Bento de Nursia, apresentada sob o título de Regula sancti Benedicti. E localizada na Bayerische Staatsbibliothek (Biblioteca Regia Monachorum), Códice latino 19409, fl. 33-34.
  • 3
    Para essa série de considerações, seguimos a concepção kantiana (cf. o Livro Segundo da Dialética Transcendental) segundo a qual as categorias são conceitos fundamentais mediante os quais se torna possível o conhecimento da realidade fenomênica.
  • 4
    O debate acerca da economia do dom originou-se a partir das discussões entre os historiadores do direito germânico, no século XIX. O momento presidiu à criação do conceito de dom-troca - Gebentausch -, sendo que Jacob Grimm, em estudo de 1848, intitulado “Presentear e doar”, fixaria o campo conceitual do contradom - Gegengabe, Widergabe -, e o consequente estabelecimento de uma relação agonística: a reciprocidade do dom garantiria sua eficácia legal, decorrendo daí seu caráter contratual. A instrumentalização da teoria permaneceria restrita ao campo da história do direito, sendo que os historiadores em geral se apropriariam do dom a partir da influência de estudos de Etnografia. Os primeiros estudos etnográficos sobre o dom supunham uma relação de antagonismo entre a economia do dom e a economia de mercado. Trata-se dos trabalhos sociológicos influenciados pelo texto de Marcel Mauss, “Ensaio sobre o dom”, publicado em 1924. Em 1959, Phillip Grierson afirmaria, em artigo intitulado “Comércio na Idade das Trevas”, que o comércio era, na Idade Média, uma dentre outras formas de circulação de bens, tais como o rapto e o butim de guerra e as relações entre dom e contradom - esses ocupariam o centro de uma circulação baseada na dívida moral. Georges Duby (Guerreiros e camponeses, 1973) atenta para o fato de que, no Ocidente medieval, parte da produção se encontrava comprometida com a circulação de uma caritas compulsória, que resultaria em uma relação econômica baseada em um fundamento estéril: tratava-se de intercambiar bens materiais e serviços litúrgicos. Eliana Magnani proporia o estudo do dom a partir da perspectiva de representações elaboradas pela própria sociedade. Sob esse aspecto, o dom poderia, inclusive, converter-se em instrumental para a compreensão das trocas em geral naquelas sociedades. Dotado de força simbólica, o dom pressupunha mecanismos complexos que ultrapassavam o automatismo das trocas de bens - mecanismos que acabariam por estruturar todos os tipos de troca nas sociedades cristãs do Ocidente medieval. (cf. MAGNANI, 2008/1)
  • 5
    “Si autem necessitas locis aut paupertas exegerit, ut ad fruges recollegendas per se occupentur, non contristentur. »
  • 6
    «Quia tunc vere monachi sunt, si labore manuum suarum vivunt, sicut et Patres nostri et Apostoli.»
  • 7
    Robert Markus considera o obscurecimento de fronteiras entre o deserto e a cidade como “uma das mais importantes mudanças na paisagem espiritual da Antiguidade Tardia. ” Ao concentrar-se no caso de Lerina, no sul da França a partir do 5º. século, Markus aponta para o recrutamento de grande parte do episcopado gaulês naquele monastério. Esse expediente teria facilitado a “entrada de ideias ascéticas na sociedade e na mente dos cristãos urbanos, com consequências, ainda não reveladas, para sua visão de si mesmos e do mundo ao seu redor. ” (MARKUS, 1997, p. 182)
  • 8
    O termo studium (plural: studia) designa não somente a atividade relacionada ao saber livresco, mas a toda e qualquer atividade que implique no empenho de um esforço deliberado. Dentre as traduções possíveis, emprega-se “esforço”, em referência a toda e qualquer atividade, nos mais variados campos, que pressuponham o uso voluntário de forças. É o caso da descrição do trabalho realizado por Francisco quando da restauração da igreja de São Damião, presente na quase totalidade das vitae e legendae. Para além disso, também se lhe atribui o significado “estudo”, vocábulo que se encontra em conformidade com a ideia e a prática implícitas nos scriptoria dos mosteiros.
  • 9
    Peter Brown alude à “moral tranquilamente arraigada no sentimento da distância social” que teria caracterizado o pensamento e as práticas da vida cotidiana romana entre o 1º. Século a.C. e o fim do 2º. Século A.D., sob forte influência do estoicismo. (BROWN, 1989, p. 243)
  • 10
    Richard Fletcher destaca a extensão patrimonial dos mosteiros, a partir da apropriação do modelo aristocrático. Entre outros, cita o caso de Fulda, que, sob o patronato dos pepinídeos, representaria um significativo polo econômico na região da Turíngia. (FLETCHER, 1998, p.150ss)
  • 11
    “sed sicut pauper, vadens ostiatim porta in manus paropsidem, et (...) diversa in eam cibaria coaduna”; “ibat per civitatem ad oleum mendicandum (…) verecundatus coram eis eleemosynam petere.” (1989, p. 44-46)
  • 12
    “ut mendicaret oleum ad luminaria (…) ecclesia sancti Damiani quam (...) reparabat. ”; “videns hominum multitudinem (...) ante domum (...), quam intrare volebat, rebore perfusos retraxit pedem. ”; “Surgo iam impiger, et ostiatim cocta cibaria mendicabo. ” (1880, p. 26-28).
  • 13
    Peter Brown se refere ao estatuto da autoridade episcopal, conforme se apresentava em princípios do século IV: “Patrono dos pobres e das mulheres influentes, cujas energias e fortuna coloca a serviço da Igreja, diretor espiritual de vastos grupos de viúvas e virgens, o bispo (...) deliberadamente se associa em público a essas categorias de pessoas cuja existência fora ignorada pelo antigo modelo ‘cívico’ dos notáveis urbanos. ” (BROWN, 1989, p. 270)
  • 14
    Segundo Eliana Magnani, a efetivação do dom cercava-se de práticas cerimoniais, que ratificavam sua importância no conjunto da fé cristã: “Sabe-se que os dons e sua escrituração têm lugar no curso de cerimônias públicas, na presença de uma assembleia mais ou menos importante, que reunia clérigos e laicos. As atas de doação são ditadas, lidas e ouvidas; algumas são rimadas, índice de sua oralidade; frequentemente, o doador coloca o pergaminho sobre o altar consagrado ao santo patrono da igreja. O dom se encontra, portanto, na origem de um verdadeiro ritual, que passa pela palavra - falada e escrita - e pelos gestos. ” (MAGNANI, 2002/1, p. 311)
  • 15
    É comum encontrarmos, na reflexão de estudiosos sobretudo vinculados à fé cristã, a noção de que a introdução de uma moral cristã sobre a sociedade civil no mundo romano resultou em um fenômeno de “renovação dos valores humanos”. Embora não se possa defender a ideia de uma ruptura cultural fundamental com o universo do pensamento e das práticas romanas - o elo de ligação entre o mundo clássico e o cristão é representado pelos judeus helenizados do Mediterrâneo e da Ásia Menor, responsáveis por estruturara a nova fé -, é possível conceder que, sob a perspectiva da atenção aos pobres, o cristianismo introduziu uma mudança nos valores sociais. A exemplo de Peter Brown, Daniel-Rops defende a noção segundo a qual o cristianismo subverteu a moral social romana, ao propor o assistencialismo aos pobres. (DANIEL-ROPS, 1988, p. 557)
  • 16
    “Et istiusmodi perfectionis notificationem ex praecedentibus colligere possumus, videlicet quod ipsa sit conformitas viatoris ad Christum per illum virtutis habitum, quo supererogative declinantur mala, efficiuntur bona et perferuntur adversa. ” (BUENAVENTURA DE BAGNOREGIO, BAC, 1949, p. 382)
  • 17
    “Et propterea, sicut illud quod datur monacho, qualiscumque sit intentio dantis, non in ipsius transit dominum, sed totius collegii et subiacet dispositioni abbatis, etiam si dans nihil de collegio cogitet; sic quidquid congregationi Minorum Fratrum in ius, domiium et proprietatem summi Pontificis et Romanae Ecclesiae transit; praecipue cum ipsi Fratres ius seu proprietatem rei alicuius sibi acquirere nulla ratione intendant. ” (BUENAVENTURA DE BAGNOREGIO, BAC, 1949, p. 644).

Referências Bibliográficas

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  • La Leggenda di San Francesco scritta da tre suoi Compagni (Legenda trium sociorum), ed. bilíngue, org. Marcellino Civezza, Theophilo Domenichelli. Roma: Sallustiana 1899.
  • PEDRO DE JOÃO OLIVI. De usu paupere: The Quaestiones and the Tractatus, ed. David Burr. Firenze/Perth, 1992.
  • Regula sancti Benedicti Bayerische Staatsbibliothek (Biblioteca Regia Monachorum), Códice latino 19409.
  • TOMMASO DA CELANO - La vita seconda ovvero appendice ala vita prima di S. Francesco d’Assisi del B. Tommaso da Celano, ed. bilíngue latim/italiano, org. Leopoldo Amoni. Roma: Tipografia della Pace, 1880.

Obras de referência

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Editado por

Editores Responsáveis Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2019
  • Aceito
    18 Fev 2020
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